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0067/2007 - A eutanásia e os paradoxos da autonomia
The euthanasia and the paradoxes of autonomy

Autor:

• Rodrigo Siqueira Batista - Rodrigo Siqueira Batista - Teresópolis, Rio de Janeiro - DCS/ENSP/FIOCRUZ - <rsiqueirabatista@yahoo.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

O princípio de respeito à autonomia tem se mostrado bastante útil para a argumentação bioética em favor da eutanásia. Sem embargo, a despeito de sua inquestionável eficácia teórica, inúmeras aporias podem ser levantadas, no momento em que se procede a uma análise rigorosa deste conceito, sendo possível colocá-lo em xeque. Com base nesta ponderação, o presente artigo busca investigar o princípio de autonomia, partindo de suas origens nas tradições grega e cristã e mapeando alguns desdobramentos na tradição ocidental, até sua formulação na modernidade, legado de Immanuel Kant. A seguir, são apresentados seus principais paradoxos, no âmbito da filosofia, biologia, psicanálise e política, expondo-se, assim, varias das dificuldades teóricas que precisam ser enfrentadas, a fim de tornar possível sua aplicabilidade no âmbito das decisões relativas ao fim da vida.
Palavras-chave: Bioética, Eutanásia, Morte, Autonomia.

Abstract:

The principle of respect for autonomy has proved very useful for bioethics arguments in favour of euthanasia. However unquestionable its theoretical efficacy, countless aporiae can be raised whenever one conducts an accurate analysis of the concept, seeming likely to bring it to a checkmate. Based on such considerations, the present article seeks to investigate the principle of autonomy, starting with its origins in the greek and christian traditions, to then map some of its developments in the tradition of the Occident, until its modern formulation, a legacy of Immanuel Kant. The concept main paradoxes in the fields of philosophy, biology, psychoanalysis and politics will then be presented, thus expounding several of the theoretical difficulties to be faced in order to make its applicability possible within the scope of decisions relating to the termination of life.
Key words: Bioethics, Euthanasia, Death, Autonomy

Conteúdo:

Introdução


O Universo é como o fole de uma forja,
Que, embora vazio, fornece força,
E tanto mais alimenta a chama quanto mais o acionamos.
Quanto mais falamos no Universo,
Menos o compreendemos.
O melhor é ausculta-lo em silêncio.
Tao Te Ching


A eutanásia é um dos temas que vem ganhando importante espaço nas discussões contemporâneas em diferentes sociedades,1,2 especialmente a partir da segunda metade do século XX, momento histórico no qual “entra em cena” a bioética. Esta disciplina, que se propõe a investigar a moralidade dos atos humanos que podem alterar, de forma significativa e irreversível, os sistemas autopoiéticos, também irreversíveis, representados pelos seres vivos,3 vem se debruçando sobre toda sorte de conflitos e dilemas que emergem no binômio vida/morte, mais precisamente em relação à finitude e ao significado da expressão morrer bem — daí o termo eutanásia. De fato, etimologicamente, este vocábulo diz respeito à boa morte4, podendo ser caracterizada atualmente como a abreviação do processo de morrer de um enfermo, por ação ou não-ação, com o objetivo último de aliviar um grande e insuportável sofrimento.
O debate bioético hodierno sobre a boa morte repousa, em grande medida, na polarização entre os princípios do respeito à autonomia individual e da sacralidade da vida, o primeiro de “inspiração” marcadamente iluminista e o último de tessitura preponderantemente religiosa, especialmente judaico-cristã.5 Embora pareça moralmente contra-intuitivo, pelo menos pelos defensores do princípio da sacralidade da vida, a eutanásia é moralmente defensável — no contexto das sociedades democráticas contemporâneas laicas e plurais —, na medida em que o titular da existência é o mais indicado para (auto)determinar o curso do seu viver, aqui incluído o momento e o modo no qual esta se finda, ou seja, a pessoa autônoma é em princípio a mais qualificada para avaliar e decidir o rumo de sua vida, desde que possa ser considerada cognitiva e moralmente competente.6
A despeito de sua relevância teórica para as discussões bioéticas — tanto às relativas ao fim da vida, quanto aos outros âmbitos deste saber7,8,9,10 — o conceito de autonomia é complexo e é de difícil aplicação aos conflitos e dilemas do mundo da vida, tal qual demonstrado por diferentes autores,9,11,12,13 pois, vem sendo questionado em diferentes ordens discursivas — filosofia, neurociências, genética, psicanálise e teoria política, somente para mencionar algumas das mais relevantes —, colocando em xeque sua possibilidade de fundamentar o discurso e a ação moral, de forma racional.
Com base nestas premissas, torna-se legítima a indagação acerca do alcance do princípio de autonomia da pessoa nas controvérsias morais em torno da eutanásia, em um movimento de retomada de discussões já conduzidas outrora.14 Caracterizar os elementos que entram em jogo na formulação deste problema é, assim, o escopo do presente artigo.

As “origens” da autonomia
O mais arcaico emprego da palavra autonomia — &#945;&#7911;&#964;&#959;&#957;&#959;&#956;&#943;&#945;, de &#945;&#7911;&#964;&#972;&#962; = próprio, e &#957;&#972;&#956;&#959;&#962; = leis — remonta à Antigüidade grega, na referência à perspectiva de autogoverno das &#61552;ó&#61548;&#61541;&#61545;&#61526; (póleis = cidades-estado), surgidas por volta do século VIII a.C.15 A despeito desta acepção política originária, já florescem algumas tímidas referências à aplicação da autonomia à condição do homem,16 especialmente manifestas nos sentidos de &#61537;&#61557;&#61556;&#940;&#61554;&#61539;&#949;&#61545;&#61537; (autarquia) — a autonomia da vontade do homem virtuoso — e de ’&#949;&#955;&#949;&#965;&#952;&#949;&#961;&#943;&#945; (liberdade) — domínio de si, caracteristicamente no âmbito da subserviência da animalidade à razão, algo também identificável no vocábulo ’&#949;&#947;&#954;&#961;&#940;&#964;&#953;&#945; (autodomínio) —, ambos presentes na “fundação” da moral socrática,17,18 centrada na idéia de alma.19,20 Sem embargo, ao contrário do que uma leitura superficial [e precipitada] poderia sugerir, a vontade não é aqui entendida no sentido coevo, mas sim em concordância com certa ênfase dada ao horizonte do lógos:
“Com efeito, autodomínio (’&#949;&#947;&#954;&#961;&#940;&#964;&#953;&#945;) é domínio não da vontade, mas da razão e do conhecimento sobre os impulsos sensíveis; a liberdade (’&#949;&#955;&#949;&#965;&#952;&#949;&#961;&#943;&#945;) não é o livre-arbítrio, a liberdade do querer, mas a liberdade do lógos, ou seja, a capacidade da razão de impor as próprias instâncias às instâncias da animalidade humana. E a autarquia, como independência das necessidades animais, é, também ela, auto-suficiência do logos humano.” 18
Tal acento “individualista” encontra-se ainda bastante incipiente no âmbito da cultura helênica, na medida em que é reconhecida a prioridade da ordem da phýsis — o cosmo — e das leis da &#61552;ó&#61548;&#61545;&#61526; (polis) sobre a ação do homem-cidadão.
Assim, pois, a noção de autonomia aplicada ao homem poderia ser mais apropriadamente esquadrinhada em outro nicho antigo, o cristianismo primitivo.21 Já nas primeiras comunidades cristãs celebrava-se a igualdade entre os homens, na medida em que estes, por terem sido criados como almas individuais, à imagem e semelhança de Deus, pertencem, em igual medida, ao plano e à obra do Pai.22 Ademais, os humanos possuem o livre-arbítrio para receber e aderir, ou não, os ensinamentos do Cristo — como na parábola das boas ou más sementes, respectivamente —, algo que é marcante no pensamento de Santo Agostinho,23 o primeiro filósofo da vontade.24,25
Se a autonomia pode ser “buscada”, sob um ponto de vista histórico-conceitual, entre as tradições helênica e cristã,26 será com o advento da modernidade que o indivíduo, indiviso, se constituirá como eu pessoal, capaz de conhecer o mundo (sujeito epistêmico) e de agir autonomamente no âmbito da ética (sujeito moral), erigindo os valores que nortearão o julgamento e a práxis em sua vida social.27 Foram as coordenadas espaço-temporais propícias — o humanismo renascentista, a reforma protestante, a revolução científica e a redescoberta do ceticismo antigo — que permitiram a construção do indivíduo moderno.28,29
O primeiro grande movimento neste sentido foi realizado por René Descartes, o qual, a partir de uma dúvida radical sobre toda e qualquer possibilidade de conhecimento,30 chega à proposição de uma substância pensante — a res cogitans, em oposição à substância do mundo, a res extensa —, caracterizável como uma realidade imediatamente dada a um sujeito que reflete sobre si mesmo.10,31 Assim, pois:
“De sorte que, após ter pensado bem nisso e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, é preciso enfim concluir e ter por constante que esta proposição, Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito.” 31
A certeza procurada por Descartes é “entrincheirada” neste eu pensante — racional e dotado de idéias claras e distintas —, havendo a necessidade de se recorrer a Deus para que tal solipsismo radical possa ser, enfim, superado.31 Neste “esquema trinitário” — res cogitans / Deus / res extensa —, o espaço para a liberdade permanece resguardado, na medida em que o filósofo reconhece que “a principal perfeição do homem está em dispor de um livre-arbítrio.” 32
O racionalismo cartesiano foi alvo de inúmeras críticas, podendo-se mencionar os questionamentos formulados por David Hume, em relação à identidade pessoal. O pensador escocês critica o modelo cartesiano, afirmando que não é possível ter qualquer representação da mente de forma independente da experiência — ou seja, não há como representar o pensamento puro. O “eu” passa a ser entendido como um “feixe” de percepções, inscrito em um dado momento, que pelo hábito — e continuidade — adquire um status individual:
“Há alguns filósofos que imaginam que estamos a todo momento conscientes de algo a que chamamos nosso ‘eu’ (Self) e que sentimos a sua existência contínua, tendo certeza, para além de qualquer evidência e demonstração, de sua perfeita identidade e simplicidade. [...] Mas o eu ou pessoa não é uma impressão determinada, mas aquilo que se supõe que nossas várias impressões ou idéias tem como referência. Se alguma impressão dá origem à idéia de eu, essa impressão deve manter-se invariavelmente a mesma, durante todo o curso de nossas vidas, uma vez que se considera que o eu existe desta maneira. Mas não há nenhuma impressão constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-se umas às outras, e nunca existem todas ao mesmo tempo. Não pode ser, portanto, de nenhuma dessas impressões, nem de nenhuma outra, que a idéia de eu é derivada, e conseqüentemente esta idéia simplesmente não existe.” 33
Como pode ser percebido, a refutação do eu efetuada por Hume é devastadora. Uma “resposta” possível foi apresentada por Immanuel Kant, ao introduzir o conceito de sujeito transcendental, na Crítica da Razão Pura — tornando-o antes uma forma que estrutura as percepções do que um conteúdo dotado de realidade própria —, obra que expõe uma teoria do conhecimento, a qual, em última análise, busca uma composição dos impasses existentes entre o empirismo e o racionalismo.34
A bela “saída” encontrada por Kant para a questão do conhecimento facultou a extensão da centralidade do sujeito transcendental à questão moral, o que permitiu a concepção do sujeito ético, moralmente autônomo, como o discutido a seguir.

Autonomia: o fundamento da moral
A aplicação definitiva do conceito de autonomia moral ao indivíduo — um necessário “produto” da modernidade burguesa e protestante35 —, iniciada com o pensamento moderno e consolidada no projeto da Aufklärung (Iluminismo), ganha sua expressão máxima na formulação moral sistemática de Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática.36,37
Para o filósofo germânico, a moralidade é a única condição capaz de tornar o homem, ser racional, um fim em si mesmo.37 Tal é a prerrogativa do ser dotado de razão, constituído como sujeito moral — pessoa —, capaz de agir por dever, este entendido como “a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei”,37 na medida em que esta é universal — ou seja, capaz de ser erigida a norma geral e inequívoca,38 como diz o próprio pensador:
“Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei universal.” 37
É preciso pontuar que a aquiescência em agir por dever à lei universal é, em última análise, uma ação inscrita na boa vontade (das gute Wille):
“É absolutamente boa a vontade que não pode ser má, portanto aquela vontade, cuja máxima, quando convertida em lei universal, não pode jamais contradizer-se a si mesma.” 37
Reconhecer — e aderir incondicionalmente a — este imperativo categórico é um ato genuinamente moral, somente podendo ser alcançado por um ser racional e autenticamente autônomo, concorde com a boa vontade:
“A moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das suas máximas. A ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida. A vontade, cujas máximas concordem necessariamente com as leis da autonomia, é uma vontade santa, absolutamente boa.” 37
Torna-se diáfana a posição adotada por Kant, entender a autonomia como o princípio supremo da moralidade — em contraposição à heteronomia, não advinda da vontade livre, produtora, por contraste, de imperativos hipotéticos —, na medida em que esta, por fim, possa ser compreendida como:
“[...] não escolher se não de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas, simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal.” 37
O universalismo categórico da filosofia moral kantiana permanece até o final do século XIX, momento no qual as mordazes censuras impostas por Schopenhauer, Nietzsche e Freud e, posteriormente, já no século XX, a transformação da moral em ética aplicada — marcada pela “substituição” dos deveres absolutos por deveres prima facie —, colocam sua formulação original em xeque. Ainda assim, a autonomia — juntamente com a justiça —, manteve-se como grande ideário norteador da construção da cidadania no século passado, no contexto das sociedades democráticas, laicas e plurais contemporâneas.39
Acrescente-se a isto o fator de boa parte da reflexão moral dos últimos 35 anos — coincidente com o advento da bioética —, ter se estribado em um conceito (prima facie) de respeito à autonomia individual, como aquele formulado no âmago do principialismo,7 o qual considera autônomo o indivíduo que
“[...] age livremente de acordo com um plano escolhido por ele mesmo, da mesma forma que um governo independente administra seu território e define suas políticas.” 7
A autonomia para agir livremente de acordo com um plano escolhido por ele mesmo deve incluir, em tese, todas as decisões concernentes à existência do indivíduo, inclusive a deliberação por encerrá-la, abrindo-se assim espaço para as discussões em torno da moralidade da boa morte.

Autonomia: o esteio para a moralidade da eutanásia
O princípio de respeito à autonomia têm fornecido sustentação a cogentes argumentos bioéticos em defesa da eutanásia.5 Neste âmbito, é mister que seja respeitada a liberdade de escolha do homem que padece, isto é, sua competência em decidir, autonomamente, aquilo que considera importante para viver sua vida, incluindo nesta vivência o processo de morrer, de acordo com seus valores e interesses legítimos. Deste modo, com raízes fincadas na Antigüidade — Espírito helênico e Cristianismo — e pleno florescimento na Aufklärung, o respeito à autonomia pressupõe que cada indivíduo tem o direito de dispor de sua vida da maneira que melhor lhe aprouver, optando pela eutanásia no exaurir de suas forças, quando sua própria existência se tornar subjetivamente insuportável:
“Em tal sentido, pode-se dizer que, em caso de conflito de interesses e de direitos, o direito da autodeterminação tem uma prioridade léxica sobre os demais direitos no contexto de decisões referentes à vida e à morte de seu titular, quer dizer, a pessoa em princípio é mais qualificada para avaliar e decidir o rumo de sua vida.” 6
Neste âmbito, concebe-se uma genuína preeminência do titular da existência para decidir (1) tanto não permanecer em um martírio que não o conduzirá a lugar algum, a não ser à própria morte, (2) quanto continuar padecendo, não por uma decisão tomada por outrem, mas, sim, por uma opção pessoal, que pode até ser a de se submeter, por boas razões, à imposição de um outro.
Sem embargo, a despeito de sua eficácia teórica na argumentação bioética sobre o fim da vida, o princípio de autonomia pode ser questionado a partir de distintas frentes, emergindo paradoxos — no sentido grego de &#960;&#945;&#961;&#940;&#948;&#959;&#958;&#959;&#957;, tese que se opõe à opinião comum40 — que podem, mesmo, inviabilizar sua aplicação. Veja-se um pouco mais de perto tais aporias.

Primeiro paradoxo: acaso ou necessidade?
Pode-se dizer que o correspondente ético do debate epistemológico acaso / necessidade é o par antagônico livre-arbítrio / determinação. Em última análise, a compreensão da realidade enquanto manancial sujeito à determinação é instaurada nos próprios primórdios do pensamento grego.41
Para o milésio, a origem e a corrupção do cosmo é estabelecida segundo a necessidade,42 ou seja, respeitando à determinação constitutiva do próprio processo. Tal perspectiva está inscrita no espesso tecido do Espírito helênico,43 mormente se é reconhecido o papel do destino (Moiras = &#61517;&#61551;î&#61554;&#61537;&#61545;) nos mitos homéricos e hesiódicos,43 na tragédia — como no caso paradigmático de Édipo que, ao tentar fugir de seu destino parricida, acaba encontrando, justamente, o sangue de seu pai, Laio44 — e na medicina hipocrática — na concepção de que algumas doenças são frutos da ananke (’&#61537;&#957;&#940;&#947;&#967;&#951;), necessidade inflexível.45 Esta influência — baseada em uma composição de conceitos não completamente sobreponíveis, mas relacionáveis, como determinação, necessidade e destino — é reconhecida por Etienne Gilson ao comparar as filosofias gregas e cristãs:
“[...] influenciadas pela religião grega, as filosofias gregas são filosofias da necessidade, ao passo que as filosofias influenciadas pela religião cristã serão filosofias da liberdade.” 25
É preciso comentar, no entanto, a exceção feita ao atomismo de Epicuro, um esforço para pensar o acaso e a liberdade, o que é retomado pelo filósofo latino Lucrécio.46,47 Para os atomistas em questão, o que torna possível o real (ontologia) e a liberdade (ética) é o clinamen, o desvio — ou declinação — dos átomos, o qual ocorre por acaso,48 individualmente para cada uma das partículas,49 em um momento e em um tempo que são impossíveis de predizer e/ou determinar.47 Tal é o fundamento do cosmo e do livre-arbítrio.
O contraponto ao epicurismo é dado por uma modelar filosofia da necessidade, construída pela escola de Zenão de Cicio; trata-se do estoicismo.50,51 O pensamento estóico é concebido de forma sistemática, em três partes, de acordo com a metáfora da árvore: a física (raiz), a lógica (tronco) e a ética (os frutos) — sendo esta última a de maior importância, mas inalcançável sem as duas anteriores.50
Para os estóicos, o cosmo tem dois princípios, o passivo e o ativo. O primeiro é a matéria, e o segundo, a razão que naquela se encontra, Deus, o lógos spermatico — ou razão seminal — do mundo, que contém em si as razões de todas as coisas.52 Assim, Deus forma uma unidade com o cosmo. Ademais, os estóicos defendem as idéia de eterno retorno cíclico do universo, dentro de um esquema de determinação radical — ou seja, todas as coisas acontecem fatalmente, a partir de uma inextirpável concatenação causal, a qual governa o mundo.51 Neste horizonte, o homem deve se resignar a aceitar a determinação do mundo — nisto se funda a ética —, agindo de acordo com preceitos morais julgados pertinentes, mas reconhecendo as conseqüências de sua ação e a inevitabilidade dos fatos. Aceitar o destino deste modo incondicional é uma atitude de ataraxia (imperturbabilidade), chave para o alcance da eudaimonia (felicidade).
Esta perspectiva determinista ganhou marcante ressonância no pensamento de Baruch Spinoza, para o qual Deus é identificado com a própria realidade, ou seja, Deus sive natura, em uma imanência radical.53 Neste âmbito, o homem é livre — agindo eticamente — ao se pôr diante de Deus — a substância infinita —, reconhecendo sua necessidade seminal, manifesta no curso necessário das coisas.54 A ação livre alicerça-se na inequívoca concordância com esta determinação universal, sendo prerrogativa da alma humana que atinge a serena tranqüilidade.
O determinismo, marca inexpugnável das concepções dos estóicos e de Spinoza, vai alcançar seu apogeu a partir da Revolução Científica, iniciada, antes, por Galileu Galilei e consolidada por Sir Isaac Newton. O físico inglês propõe um grande sistema de leis matemáticas para explicação do mundo, as quais tornam factível a predição, a partir do estado de um dado sistema físico — posições e velocidades, as quais caracterizariam o assim chamado instante inicial —, da situação ulterior do sistema em qualquer instante.55 Assim, a partir da mecânica newtoniana, a matematização do mundo possibilita um nível antes inimaginável de previsibilidade do real, a ponto de o físico, em seus Princípios Matemáticos de Filosofia Natural,56 pontuar que:
“Gostaria que pudéssemos derivar o resto dos fenômenos da natureza pela mesma espécie de raciocínio a partir de princípios mecânicos, pois sou levado por muitas razões a suspeitar que todos eles podem depender de certas forças pelas quais as partículas dos corpos, por causas até aqui desconhecidas, são ou mutuamente impelidas umas para as outras, e convergem em figuras regulares, ou são repelidas, e afastam-se umas das outras.” 56
Não é difícil supor o quanto esta prerrogativa tornou possível a concepção de que o universo já se encontrava praticamente desvendado, a partir do (re)conhecimento de suas leis naturais — o que, diga-se de passagem, pode ser recuperado a partir do estoicismo. O ideário determinista chega a alcançar um grau de pujança tão sólida e inabalável, que o matemático Pierre Simon Laplace57 chega a afirmar:
“Um intelecto que, em um momento dado qualquer, conhecesse todas as forças que animam a Natureza e as posições mútuas dos seres que a compõem, se esse intelecto fosse vasto o suficiente para submeter seus dados a análise, seria capaz de condensar em uma única fórmula o movimento dos maiores corpos do universo e o menor dos átomos: para tal intelecto nada poderia ser incerto; e tanto o futuro quanto o passado estariam presentes diante de seus olhos.” 57
Com tal nível de agudeza fica fácil compreender que o determinismo laplaciano não deixa espaço para o acaso e, tampouco, para o livre-arbítrio.58 Entretanto, alterações no panorama das teorias físicas e matemáticas no século XX, acabaram por forçar a revisão deste paradigma. O advento da mecânica quântica foi decisivo neste sentido, ao colocar em questão a causalidade e o determinismo na compreensão da natureza,59,60 representando um duro “golpe” em toda uma tradição de pesquisa que se ancorava na pretensa investigação das leis deterministas do mundo objetivo — ou seja, referida a processos físicos que têm lugar no espaço e no tempo —, independentes de quem investiga (isolando, pois, observador e observado).
Muitos pensadores contemporâneos têm identificado a emergência da física quântica como uma demonstração cabal de que a necessidade é uma simples quimera que deixou de fazer sentido, especialmente após a enunciação do Princípio da Incerteza de Heisenberg.61,62 Sem embargo, tal posicionamento é equívoco — ou, pelo menos, insuficiente — por pelo menos três motivos:
(1) A física quântica refere-se ao microcosmo, o qual “escapa” à possibilidade de experiência corriqueira do homem, ao passo que a mecânica newtoniana permanece extremamente útil para compreender o mundo ordinário de todos os dias — construir prédios, enviar o homem à lua, e outros.63
(2) A indeterminação vem sendo revista a partir do desenvolvimento da matemática do caos, enquanto elegante tentativa para integrar ordem e acaso; neste referencial o caos é entendido como o “comportamento estocástico que ocorre em um sistema determinístico.”,64 ou seja, como um ruído presente em um sistema marcado pela necessidade — o exemplo mais claro, e simples, é a iteração de 2x2 – 1 (figura 1) —, como bem caracterizado por David Ruelle:58
“Fala-se também de ruído determinista quando se observam oscilações irregulares de aparência aleatória, mas que são produzidas por um mecanismo determinista. Nos fenômenos caóticos, a ordem determinista cria, portanto, a desordem do acaso.” 58
A aplicação do caos clássico, assim entendido, vem sendo tentada no âmbito do mundo quântico, fazendo com que seja possível antever a superação da indeterminação do microcosmo — quiçá como o sonhado por Einstein. Ainda que se esteja, do ponto de vista teórico, distante de tal perspectiva, tal alcance é vislumbrado pelos matemáticos:
“Há sempre uma possibilidade de que alguma nova versão da mecânica quântica venha substituir a natureza probabilística da função de onda por algo determinístico, mas caótico.” 64
Neste sentido, mesmo que “Deus jogue dados”, poder-se-á chegar à resposta acerca das regras segundo as quais o Seu jogo é realizado.
(3) Por fim, restará sempre a possibilidade de a indeterminação ser, em última análise, uma conseqüência da ignorância humana acerca das causas. Assim, pois, para Spinoza, as causas são da ordem do infinito e, por conseguinte, imperscrutáveis pela mente humana.53 É precisamente neste sentido que se estabelece o determinismo de Henri Atlan:65
“Nossas noções de entropia e ruído são derivadas de noções estatísticas. E, portanto, mais uma vez, não contradizem a idéia do determinismo absoluto. Elas são medidas da nossa ignorância. Mas é óbvio que, embora não contradigam o determinismo absoluto, nada provam acerca dele. Esta é a clássica questão da natureza do acaso: será ele intrínseco, ontológico, ou atribuível apenas à nossa ignorância?” 65
A questão formulada por Atlan — a qual, de certo modo, reatualiza a polêmica epicuristas versus estóicos — permanece longe de ser respondida. Nestes termos, pensar a autonomia enquanto livre-escolha permanece algo da ordem do possível, mas sempre com a “sombra” irremovível de uma necessidade, quase destino, que subtrai toda e qualquer possibilidade de decisão autônoma, quer sobre a vida, quer sobre a morte.

Segundo paradoxo: o “caso” da biologia – neurociências e genética
A questão das neurociências e da genética reatualizam, de um modo próprio, o debate determinismo versus liberdade.66 Em verdade, o que está em jogo é a limitação imposta pela própria biologia humana, na medida em que a existência material — ou corpórea — marca, de modo indelével, toda sorte de restrições, como cansaço, senescência, enfermidade, sofrimento e morte, as quais têm profunda influência sobre a (im)possibilidade de autodeterminação.39
As neurociências — conjunto de saberes, de matriz multi e interdisciplinar, que se dedicam ao estudo dos órgãos que compõem o sistema nervoso central, em especial o cérebro —, vem contribuindo de forma significativa, nos últimos 50 anos, para a compreensão dos processos mentais,67,68 dentro de uma perspectiva teórica que propõe a redução destes processos à simples atividade neuronal.69,70 Um dos marcos históricos nestas investigações é o famoso “caso Phineas Gage”, ocorrido no século 19. Gage, um operário-padrão — dono de um comportamento exemplar, como atestam diferentes fontes históricas67 —, sofreu um acidente caracterizado pela penetração de uma barra de ferro na região infra-ocular, a qual emergiu na parte posterior do osso frontal. Tendo sobrevivido ao evento, o enfermo passou a apresentar um comportamento irascível, marcado por explosões de raiva e por profunda irreverência; ademais, perdeu a capacidade de articular idéias e de planejar suas ações, com profundas implicações sobre suas tomadas de decisão.67 A partir de então, inúmeras situações semelhantes foram tornadas públicas na literatura médica internacional, a ponto desta região cerebral — o setor ventromedial do córtex pré-frontal — passar a ser “responsabilizada” por diferentes comportamentos “anti-sociais” e patológicos, culminando na proposição, e realização, de cirurgias mutilantes — a psicocirurgia — em pacientes psiquiátricos (esquizofrênicos, sobretudo) e delinqüentes “rebeldes”.
Atualmente, as pesquisas voltam-se para a identificação dos circuitos responsáveis pelas atividades de planejamento e tomada de decisão, os quais são esboçados na figura 2.71 Ainda que estes trabalhos estejam em fase bastante inicial, o que está em jogo é a discussão sobre até que ponto os eventos bioquímicos e moleculares cerebrais são responsáveis — ou determinantes do — pelo julgamento de possibilidades e pela tomada de decisões — evidentemente, desde que se aceite que a ciência é realmente capaz de descrever a realidade — tornando o livre-arbítrio uma simples ilusão gerada pela arquitetura cognitiva.72
Neste mesmo plano de confluência teórica se inscrevem os debates sobre a determinação genética do ser humano e de sua vontade. Um dos exemplos mais estarrecedores é o da doença de Huntington, enfermidade genética autossômica dominante, que ocorre por repetições do trinucleotídeo CAG no gene IT15, localizado no braço curto do cromossomo 4.73 A moléstia tem penetrância completa, de modo que todos aqueles que possuem a alteração genética desenvolverão suas manifestações, mais cedo ou mais tarde, na dependência do número de repetições CAG existentes. Por outro lado, aqueles indivíduos que apresentem trissomia da banda cromossômica 21q22 exibirão necessariamente a síndrome de Down, enquanto uma duplicação de cromossomos X em associação a um Y (cariótipo XXY) determinará a síndrome de Klinefelter.
Há uma determinação genética absoluta nestes casos? Ao que parece, sim, na medida em que as observações realizadas até o presente momento corroboram tais resultados, colocando em questão toda a polêmica acerca do determinismo genético,74,75 modelo segundo o qual “os genes possuem a explicação final para muitas características dos organismos vivos”.75 Sem embargo, esta perspectiva reducionista — o homem restringido aos seus genes — é fortemente contestada por uma série de evidências científicas.76 Assim, pois:
“Os genes são certamente importantes para determinar a identidade biológica do indivíduo humano, mas não são tudo para determinar a identidade de um indivíduo, visto que determinam uma limitação do possível mas dificilmente determinam, sozinhos, um destino.” 77
Não é difícil compreender tal ponderação, à luz da distinção entre as duas “naturezas” humanas: bioecológica ou “primeira natureza”, propriamente natural; e técnico-lingüística ou “segunda natureza”, engendrada no plano simbólico, as quais interagem e se condicionam fluida e mutuamente.78 Em última análise, não parece ser possível defender que a primeira determine peremptoriamente a segunda, na medida em que ambas são dimensões distintas, ainda que solidárias na constituição do Homo sapiens sapiens.
Mesmo que o determinismo genético possa ser rechaçado, a questão da necessidade permanece em aberto, na medida em que a combinação do patrimônio genético e das condições materiais de existência (para lembrar Marx) de uma pessoa estipulem seu desenvolvimento, de modo irrevogável.79
Com base nestas considerações percebe-se que todo este tecido, composto a partir dos discursos relativos à biologia [humana], parece remeter a uma situação de impossibilidade de livre-arbítrio, como na afirmação de Erasmo G. Mendes:80
“[...] esses resultados [da neurofisiologia e da genética] indicariam fortemente uma predeterminação do comportamento humano, dificultando a aceitação de uma liberdade da vontade, nos moldes em que ela é tradicionalmente aceita por muitos estudiosos.” 80

Terceiro paradoxo: Schopenhauer, Nietzsche, Freud e o Inconsciente
O grande edifício teórico proposto por Kant desempenhou um papel decisivo no pensamento ulterior, com inquestionável influência na filosofia dos séculos 18 e 19, especialmente nas questões epistemológicas — como no caso do construtivismo — mas, também, nas discussões em âmbito moral, como anteriormente apresentado. Sem embargo, diferentes autores questionaram os pressupostos do racionalismo ético kantiano, cabendo destaque a Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud, os quais merecerão breve comentário.
A principal obra de Schopenhauer, o Mundo como vontade e representação, alberga uma importante crítica ao ideário iluminista.81 O filósofo mantém a distinção kantiana entre fenômeno e númeno, mas caracteriza-os, respectivamente, como representação e vontade. O primeiro compreende a realidade empírica, ou seja, constituída de “coisas” tais como são conhecidas pelos sentidos, as quais se originam a partir da apreensão, pelo sujeito, do mundo em si. Este é o horizonte da Representação (Vorstellung), a qual não existe em si mesma, “apresentando-se” quando recebe sua estrutura por meio das formas cognitivas intrínsecas àquele que conhece.81 Ao contrário, o mundo em si é constituído por uma essência intangível, a Vontade (Wille), cega e irracional — e não mais das gute Wille, a boa vontade kantiana —, que só faz desejar e querer incessantemente.81,82 Tudo o que se apresenta como existência singular — coisas e indivíduos — possui, em última análise, uma vontade subjacente — a qual permanece após a extinção da existência individual —, matriz de um anseio inextirpável e insaciável, o qual se constitui nos viventes como vontade de vida. Deste modo, para Schopenhauer, o elemento primário nos seres humanos é a vontade — irracional —, e não o intelecto — racional —, reconhecido como secundário e submetido à primeira.83 Tal formulação é reconhecida, por alguns autores, como um gérmen da idéia freudiana de inconsciente.84
A subversão instituída por Schopenhauer torna-se clara, mesmo nesta sumária exposição. Na verdade, o indivíduo autônomo da moral kantiana desmorona, na medida em que (1) este é uma efêmera organização temporal de algo muito maior, a vontade, a qual é (2) capaz de determinar — ainda que não em um esquema convencional causa-efeito —, a partir de um desejo irrefreável, suas escolhas pretensamente livres e racionais, abrindo-se (3) a perspectiva para o reconhecimento de uma instância para além da consciência, capaz de se impor a esta última. Assim, pois, em um trabalho posterior, Schopenhauer é categórico em rejeitar que o fundamento da moral esteja no uso imparcial da razão, situando-o, outrossim, no âmbito da compaixão.85
Uma substantiva apreciação da ética kantiana foi conduzida por Nietzsche, o qual, na Genealogia da Moral86 e em Além do Bem e do Mal,87 procede a uma genuína desconstrução dos pressupostos racionalistas de Kant,9 na esteira de sua encarniçada crítica à metafísica clássica. No primeiro ensaio, o filósofo tenta “desvendar” a gênese das concepções éticas tradicionais, denunciando a “moral do rebanho”, fraca, impotente e ressentida.86 Na segunda obra, busca a transmutação de todos os valores, demolindo, a golpes de martelo, o pífio maniqueísmo da cultura ocidental — o bem versus o mal —, como explícito no aforismo “O que uma época percebe como mau é geralmente uma ressonância anacrônica daquilo que um dia foi considerado bom — o atavismo de um antigo ideal”.87 Contrapondo-se a isto, são erigidas a vontade, a criatividade e o sentimento estético como genuínas afirmações da vida.87
Ademais, Nietzsche também subverte completamente a idéia de das gute Wille — em certa medida na “esteira” de Schopenhauer —, demonstrando que a ela subjaz a vontade de poder e o ressentimento advindo de seu não alcance.86,87 Mais uma vez, o indivíduo autônomo — capaz de enunciar, e aderir, ao imperativo categórico — é colocado na berlinda. Entretanto, a ruptura não é completa: a proposta nietzschiana para sobrepor o, ou ir além do, ressentimento — a partir da imagem do Übermensch, o sobre-Homem —, mantém (e agudiza) a perspectiva voluntarista da ética de Kant, ainda que atrelando o querer humano à irracionalidade (como Schopenhauer).
A despeito das anástrofes construídas por Schopenhauer e Nietzsche, é a psicanálise de Freud que descentrará definitivamente, por assim dizer, o sujeito racional kantiano de seu lugar privilegiado para o julgamento/ação moral.88
O ponto de partida para a compreensão de uma tal assertiva é o reconhecimento da centralidade do inconsciente (das Unbewusste) na teoria psicanalítica.89 A descrição do inconsciente pode ser erigida a ponto de inflexão desta descentralização do sujeito do iluminismo, na medida em que expõe, de forma virtualmente incontestável, o quão limitada é a concepção que entende os processos psíquicos apenas nos seus aspectos conscientes:90
“Assim, enquanto Descartes pensava o eu como uma entidade original, Freud o pensa como engendrado; enquanto Descartes nos fala do sujeito da ciência, Freud nos fala do sujeito do desejo. Antes de Freud o sujeito se identificava com a consciência; a partir de Freud temos que nos perguntar por esse sujeito do inconsciente e por sua articulação com o sujeito consciente.” 90
De fato, partindo de sua compreensão de que a distinção entre consciente e inconsciente é a matriz da psicanálise,94 Freud contesta a autotransparência da razão, explicitando que as causas últimas dos atos humanos estão relacionadas à libido — determinada por Eros e Thanatos. Ademais, este comentário ressalta um aspecto significativo da concepção de sujeito freudiano, que é a sua clivagem em consciente e inconsciente; ou seja, trata-se de uma subjetividade cindida e instituída por duas sintaxes díspares.
Mas, qual a real dimensão do inconsciente? Freud descreve-o a partir de suas investigações sobre os fenômenos lacunares — o sonho, o lapso, o ato falho, o chiste e os sintomas90 — identificando seu núcleo com “impulsos carregados de desejo”.91,92 Características importantes do inconsciente incluem a ausência de temporalidade e a existência de uma ordenação, uma sintaxe, que Lacan reconhece como linguagem.93 Ademais, o inconsciente não pode ser identificado com uma região “profunda” da consciência — obscura, instintiva e ilógica — e, tampouco, como uma substância, ou seja, não é uma “coisa” e, também, não “ocupa” um lugar. Em última análise, o inconsciente é uma forma, um modus operandi distinto da consciência, segundo o qual seus conteúdos se ordenam. Estes, por seu turno consistem em representações (Vorstellungen), inscrições da pulsão nos sistemas psíquicos.
Tal concepção de inconsciente tem ainda como elemento fundamental a negação da pura e simples arbitrariedade dos eventos psíquicos, afirmando, a seu modo, uma modalidade de determinismo com profundas implicações nas operações conscientes:
“[...] os acontecimentos psíquicos são determinados. Não há nada arbitrário neles. De modo bastante geral, pode-se demonstrar que se um elemento é deixado indeterminado por um certo encadeamento de pensamentos, sua determinação é imediatamente efetuada por um outro. Por exemplo, posso tentar pensar arbitrariamente num número, mas isso é impossível: o número que me ocorrer será inequívoca e necessariamente determinado por pensamentos meus, embora eles possam achar-se afastados de minha intenção imediata”.94
Esta determinação psíquica é incompatível com a autonomia iluminista, na medida em que o inconsciente dita as preferências e opções aparentemente livres que se estabelecem como “suposto” produto da atividade consciente, a ponto de ser possível dizer que “Freud coloca por terra o livre arbítrio”.11
Mas esta não é a única determinação proposta pela psicanálise. Um outro ponto desenvolvido na segunda tópica — na qual há um “deslocamento” da antiga tríade consciente / inconsciente / pré-consciente para uma nova, ego / Id / superego — é a participação do processo civilizador na formação do psiquismo, em um movimento de renúncia imposta pela cultura.95 O que merece ser destacado, no contexto desta breve discussão, é o conceito de superego, herdeiro do complexo de Édipo e modelo do superego dos pais. Freud atribui-lhe uma tríplice função: (1) de auto-observação, (2) de ideal do ego e (3) de consciência moral.96 Neste último ponto, há uma tentativa, por parte do psicanalista, de identificá-lo com o imperativo categórico kantiano,97 o que tem motivado acirradas controvérsias entre os comentaristas de Freud, alguns identificando como errônea a aproximação do psicanalista,98 outros ressaltando sua relevância para compreensão do pensamento kantiano.99 Pode-se argumentar que Freud “assimila” a crítica hegeliana a Kant,100 no horizonte de questionamento sobre as condições para o advento da consciência / sujeito transcendental. De todo modo, o próprio Freud reconhece que seu tabu — o imperativo categórico99 — “rejeita quaisquer motivos conscientes”,97 algo afim à “leitura” realizada por Jacques Lacan:
“A lei moral, examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado puro, aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando, de tudo o que é objeto de amor em sua ternura humana”.101
O panorama estabelecido a partir das críticas formuladas por Schopenhauer, Nietzsche e Freud alteraram, radicalmente, o ideário, até então vigente, de um sujeito capaz de pensar e a agir motivado por uma razão albergadora de idéias claras e distintas e/ou capaz de se constituir como um verdadeiro tribunal, no qual são julgados, de forma autônoma e imparcial, os diferentes aspectos relativos ao conhecimento e à moral. Ser e pensar deixam de ser coincidentes — dimensão que pode ser recuperada na própria nascente do pensamento ocidental, em um filósofo tão originário quanto Parmênides de Eléia43 —, a ponto de Lacan poder formular uma afirmação tão impactante — e elucidativa — quanto “penso onde não sou, portanto sou onde não penso”.93

Quarto paradoxo: indivíduo versus coletivo e as tensões entre autonomia e justiça
O equilíbrio entre autonomia e justiça nas sociedades democráticas permanece como uma grande dificuldade a ser enfrentada, especialmente na intrincada composição entre o respeito à liberdade individual e à igualdade. O primeiro termo pressupõe, em sua essência, que a desigualdade porventura existente entre os sujeitos autônomos deve-se não apenas ser respeitada, mas também estimulada, na medida em que propicia um incremento enriquecedor no numero de vozes nos agrupamentos humanos laicos e plurais. Esta posição teórica tem como importantes expoentes os pensadores H. Tristam Engelhardt Jr. e Richard Nozick, os quais defendem uma a ampla liberdade do indivíduo, com mínima intervenção do Estado, quando muito para garantir, justamente, a liberdade individual.102,103 Neste âmbito cabe a interrogação sobre o grau de autonomia efetiva de pessoas que, por conta de um estado de profunda desigualdade — como no caso da sociedade brasileira104,105 —, encontram-se alijadas das mínimas condições para se manterem dignamente. Estas e outras indagações ganham contornos bastante próprios no seio nas democracias contemporâneas, como demarcado na notável crítica articulada por Alexis de Tocqueville:106
O individualismo origina-se da democracia [...] Na medida em que as condições se tornam iguais, aumenta o número de indivíduos que, já não sendo ricos ou poderosos o bastante para exercer grande influência sobre o destino de seus semelhantes, conservaram ou adquiriram, não obstante, instrução e bens suficientes para bastar-se a si mesmos. Nada devem a ninguém; habituam-se a considerar-se sempre de forma isolada e até imaginam que seu destino esteja em suas mãos. Assim, a democracia não só leva cada homem a esquecer-se de seus antepassados, mas também lhe esconde seus descendentes e o separa de seus contemporâneos; sem cessar, ela o traz de volta a si mesmo, ameaçando enclausurá-lo inteiramente na solidão de seu próprio coração.106
O excerto de Tocqueville apresenta as interfaces da inserção dos indivíduos no ordenamento democrático, chegando a comentar criticamente a existência [questionável] de um certo senso de empoderamento de sua própria jornada de vida. A contrapartida deste “efeito adverso” — individualismo — seria o ideologia coletivista, segundo a qual o coletivo alcançaria uma substancialidade, capaz de justificar sua prioridade sobre os anseios dos indivíduos tomados isoladamente.107 Este plano de discussão vem se estabelecendo desde o século 19 — como na distinção durkheimiana entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, respectivamente referidas aos estágios iniciais (prioridade no indivíduo) e maduros (prioridade no coletivo, em um sentido orgânico, formulado em termos de uma metáfora biológica) das organizações sociais108 —, acirrando-se, especialmente, após a Revolução Russa de 1917.109 De fato, no século 20, as reflexões e contestações agudizaram-se em torno de matizes predominantemente ideológicos, estabelecidos na oposição entre coletivismo (identificado com o holismo) — orientação que ressalta o cumprimento das obrigações com os demais, no sentido de seguir as determinações do grupo de pertença, o qual é considerado mais importante do que a própria pessoa em si110 — e individualismo — concepção que enfatiza a individualidade, tratada em termos de independência das demais pessoas e dos grupos, sem que haja constituição de um genuíno senso de pertencimento.111
Sob este acirrado debate entre individualismo e coletivismo, como compor, sem fundamentalismos e extremismos, autonomia e justiça, de modo que os sujeitos possam desempenhar sua (possível) autodeterminação no sentido de atingir genuínas escolhas para sua própria vida? Uma vez mais, neste contexto, a autonomia aparece como um “devaneio” inalcançável, em suas diferentes instâncias:
“A autonomia econômica é uma ficção, num mundo em que as principais decisões macroeconômicas são tomadas por bancos centrais estrangeiros e por conselhos de administração de empresas transnacionais, em que a volatilidade dos mercados financeiros impede qualquer planejamento a longo prazo, e em que as inovações tecnológicas têm origem externa. A autonomia política se torna relativa, quando se leva em conta que as decisões políticas que mais diretamente afetam nossas vidas foram tomadas fora de nossas fronteiras [...] a autonomia cultural é uma fraude para aqueles que ficam indefesos diante dos aparelhos ideológicos e que são meros consumidores passivos de bens culturais sobre cuja produção e distribuição não têm qualquer controle”.112
Diante de todos estes paradoxos — determinação da realidade física / biológica, dos processos psíquicos e impossibilidades conceituais para exercício da liberdade dentro de coordenadas sociais — seria ainda factível pensar em autonomia (mais propriamente, do indivíduo, para decidir sobre sua vida ou morte)?

Controvérsias finais: enfim, há escolha autônoma em relação à eutanásia?
A despeito de sua relevância teórica, o conceito de autonomia tem se mostrado bastante problemático,12 na medida em que sua formulação e aplicação têm redundado na produção de uma série de aporias — em diferentes planos de discussão —, como se tentou demarcar ao longo deste ensaio. As discussões ora entabuladas podem ser sumarizadas em dois grupos principais de indagações, a saber, (1) o determinismo absoluto e (2) a impossibilidade de resolver a tensão entre individual e coletivo.
A primeira questão, como visto, está na agenda da logomaquia filosófica desde a Antigüidade, o que demonstra as dificuldades para o seu tratamento conceitual. Na verdade, o modo segundo o qual a pergunta vem sendo formulada parece tornar impossível qualquer escapatória — caracterizando, assim, uma aporia genuína no âmbito do pensamento e da cultura —, uma vez que (1) o acaso esvazia a possibilidade de fundação da ciência, na medida em que às leis naturais sempre se oporá o evento fortuito, inviabilizando assim sua aplicação irrestrita — mesmo no território da mecânica quântica há autores que questionam a indeterminação, mantendo a crença de que o avanço do conhecimento permitirá o ocaso desta forma de probabilismo64 — e (2) a necessidade estrita torna a ética contemporânea impensável, na medida em que extingue a possibilidade de se agir livremente:
“Mas, se por outro lado eu não tiver a crença de que há uma certa margem de autonomia, que me dá condições de pensar, de refletir sobre tudo (volto a citar o velho Kant, que dizia que todo homem, que quiser, tem condições de ser um legislador universal) — se eu não tiver essa crença, cairá por terra qualquer pretensão de poder realizar uma análise ética”.113
Assim, em termos lógicos, aquiescer teoricamente ao acaso ou ao determinismo, representaria uma adesão excludente à possibilidade de agir eticamente ou de conhecer [definitivamente] a realidade, respectivamente. Sem embargo, pode-se pensar uma via de escape para tal paradoxo, na medida em que se esvazia o núcleo do determinismo: a causalidade. Para isto, pode se recorrer, uma vez mais, a David Hume:
“Quando olhamos para os objetos ao nosso redor e consideramos as operações das causas, não somos jamais capazes de identificar, em nenhum caso singular, nenhum poder ou conexão necessária, nenhuma qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma conseqüência infalível da segunda”.33
A causalidade seria assim, para Hume, uma expressão do modo a partir do qual o ser humano articula as informações provindas do real, sem que nada possa ser afirmado em relação à sua existência. O que aqui entra em jogo é o sentimento de crença — acreditar que o “anterior” e o “posterior” são ligados por um “fio”, a causalidade. Tal foi a constatação que permitiu a Kant estabelecer que as categorias a priori — como, por exemplo, a causalidade —, eram parte do “aparato cognitivo” do sujeito. Tal formulação desloca, claramente, o debate do determinismo. Se a causalidade não está “nas coisas” — ou seja, não pertence ao real —, então não faz sentido se perguntar sobre o determinismo, esvaziando-se assim a questão da existência, ou não, do livre-arbítrio. Esta é uma “saída pela tangente”, é bem verdade, representando, em última análise, uma alternativa para ir além de tal aporia.
O segundo problema, as relações entre indivíduo e coletividade — ou, em outros termos, entre autonomia e justiça —, é mais recente — um subproduto da modernidade —, mas igualmente complexo no seu manejo, como o esboçado no “quarto paradoxo”. Entretanto, nos contextos em que a justiça possa ser compreendida como eqüidade — como em Aristóteles114 e Rawls,115 por exemplo — alternativas podem ser pensadas, com propostas de equilíbrio entre os extremos de individualistas/egoístas e coletivistas/totalitários. Nesta perspectiva se incluem os trabalhos de Amartya Sen, economista indiano que pensou uma igualdade complexa,116,117 na qual é possível equacionar, de modo notável, autonomia e justiça, ao se abolir a determinação heterônoma do que deve ser igualado, passando a voz de escolha ao titular da própria existência. A despeito disto, pode-se reiterar todas as interrogações acerca da possibilidade de escolhas livres e genuínas e, ademais, as concepções senianas de capacidades e funcionamentos pressupõem uma radical transformação social, capaz de alcançar horizontes muito mais amplos, “quase” revolucionários, difíceis de serem concebidos na hodierna ordem mundial.


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