0420/2008 - A relação entre professores com sofrimento psíquico e crianças escolares com problemas de comportamento
The relation between Teachers with psychological suffering and school children with behavior problems
Autor:
• gabriela Franco Dias Lyra - Lyra, G.F.D - rio de janeiro, RJ - Centro latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli - <gabifdl@gmail.com>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
: O presente estudo tem por objetivo analisar a relação entre professores com sofrimento psíquico e crianças escolares com problemas de comportamento. Um total de 151 professores avaliou a presença de problemas de comportamento em 372 alunos, através da escala Teacher´s Report Form (TRF). Os alunos foram selecionados através de amostragem por conglomerados e estavam matriculados na primeira série do ensino fundamental. Os professores também responderam a um questionário auto-aplicado a fim de avaliar algumas características pessoais e a presença de sofrimento psíquico (Self Reported Questionnaire SRQ-20). A prevalência de sofrimento psíquico encontrada entre os professores foi de 21,8%. Os resultados mostram percentuais mais elevados na identificação de problemas internalizantes pelas professoras que apresentam sofrimento psíquico.Palavras-chave: sofrimento psíquico, problemas de comportamento em crianças, TRF, SRQ-20.
Abstract:
The present article aims to analyze the relation between teachers with psychological suffering and school children with behavioral problems. A total of 372 children were evaluated by teachers through the application of the Teacher´s Report Form (TRF). The teachers also answered an auto-applied questionnaire in order to evaluate some personal characteristics and the presence of psychological suffering (Self Reported Questionnaire, SRQ-20). The psychological suffering prevalence founded was 21,8%. The results show more elevated percentages of children’s internalizing problems by the teachers that present psychological suffering.Key-words: psychological suffering, behavior problems, children, TRF, SRQ-20.
Conteúdo:
O presente artigo tem como objetivo analisar a relação entre professores com sofrimento psíquico e a sua capacidade de identificar crianças com problemas de comportamento internalizantes, externalizantes e com déficit de atenção e/ou hiperatividade.
A atuação docente, em especial de séries iniciais, traz importantes contribuições para o processo de desenvolvimento infantil. O longo tempo de convivência estabelecido em sala de aula e a possibilidade de avaliar a criança na relação com outras da mesma faixa etária facilitam a observação do professor, conferindo-lhe uma posição estratégica na identificação de crianças que apresentam problemas de comportamento.
Na realidade brasileira, pouco se tem investigado sobre a criança e os possíveis problemas de comportamento que possam ocorrer nesta faixa etária. Em países mais desenvolvidos, estima-se que 10 a 20% das crianças apresentam algum problema de saúde mental, colocando-se entre as cinco principais causas de doença acima de cinco anos de idade1,2.
Estudo no Brasil mostrou resultados próximos aos de países desenvolvidos. Investigação com 1251 crianças escolares de 7-14 anos, em Taubaté/São Paulo encontrou uma prevalência de crianças com problemas de comportamento de 12,5%. Considerando os tipos de problemas, verificou-se que a maior freqüência ocorreu no grupo de crianças com transtornos de conduta com estimativas em torno de 7%. Em segundo, prevaleceram as crianças com transtornos de ansiedade, cuja ocorrência foi de 5,2%. Os transtornos de déficit de atenção e/ou hiperatividade representaram 1,5% das crianças estudadas3.
De uma maneira geral, os problemas de comportamento representam déficits ou excedentes comportamentais que prejudicam a interação da criança com os pares e adultos de sua convivência4. São freqüentemente divididos em problemas que se externalizam (sintomas de comportamento de quebrar regras e agressividade, tais como os transtornos de conduta) e problemas que se internalizam (tais como depressão e ansiedade) 5.
Os comportamentos que se internalizam restringem-se ao âmbito privado da criança, não sendo diretamente dirigidos para o entorno em que esta vive. Já os comportamentos externalizantes interferem no cumprimento de tarefas evolutivas como as requeridas pela escola, por terem alta prevalência, prognóstico pobre e por serem fatores de risco para inadaptação psicossocial na adolescência.
Além dessas categorias, destaca-se o transtorno de déficit de atenção e/ou hiperatividade6, um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade da criança, mais freqüente e severo do que aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente de desenvolvimento. Chae et al7 relatam que a criança com déficit de atenção e/ou hiperatividade tem uma tendência a demonstrar comportamento agressivo, sofrer com baixa auto-estima, envolver-se constantemente em brigas, isolar-se em situações sociais e ter dificuldade de aprendizagem.
Crianças com problemas de comportamento apresentam modos de enfrentamento diferenciados frente às situações cotidianas e às relações interpessoais nas diversas esferas de convivência social. Em sala de aula, as principais manifestações nas crianças são os comportamentos tidos como socialmente inadequados4 e o baixo desempenho escolar8. Dependendo do tipo de problema, o aluno pode ser considerado desobediente, impaciente, agitado, destrutivo, ou então, desanimado, desacreditado e quieto, o que não, necessariamente, chame a atenção do professor.
Com base nessas considerações, pouco se tem debatido sobre a possibilidade de determinadas variáveis interferirem na visão que o professor tem sobre os problemas de comportamento dos alunos. Alguns estudos mostram que características dos alunos, tais como gênero, sexo e condição sócio-econômica podem contribuir para o julgamento e tomadas de decisão dos professores sobre os comportamentos em sala de aula. Neste sentido, há indícios que: crianças negras estão mais sujeitas a encaminhamentos para classes de educação especial do que crianças de outras raças9; meninos são avaliados como tendo mais problemas relacionados à leitura do que meninas10; crianças pertencentes a estratos sócio-econômicos mais pobres são mais prováveis a serem indicadas para estratégias de intervenção em decorrência de problemas de fala11.
Características do professor também se constituem elementos importantes para a avaliação docente sobre os problemas de comportamentos dos alunos. O estresse vivenciado em sala de aula e a presença de problemas de saúde mental dos professores podem dificultar suas tomadas de decisão e possibilitar resultados nem sempre positivos para a criança12.
O sofrimento psíquico, também chamado transtorno psiquiátrico menor, caracteriza-se por um mal-estar inespecífico, com repercussões fisiológicas e psicológicas que podem acarretar limitações severas no dia-a-dia e pode se transformar em doença pela sua intensidade e cronicidade13. São problemas que não necessariamente originam a procura imediata por intervenção médica, mas que podem interferir nas relações e observações cotidianas do indivíduo.
Estatísticas sobre a presença de sofrimento psíquico dos docentes mostram percentuais sempre elevados, porém variados segundo os diferentes contextos sócio-culturais. Pesquisas nacionais realizadas com o Self Reported Questionnaire (SRQ-20) encontraram taxas que variaram de 20% a 55,9%14,15,16,17. Estudo com professores do ensino básico no Chile encontrou uma prevalência de 28,6%, utilizando outra escala (General Health Questionnaire GHQ-20)18.
Diversos fatores podem estar relacionados à presença de sofrimento psíquico dos professores, tais como condições de vida e trabalho desfavoráveis, desprestígio profissional, relações desiguais de gênero e dificuldades na vida familiar. Entretanto, a maioria dos estudos sobre sofrimento psíquico desta categoria tem debatido a influência do trabalho docente. Araújo et al17, procurando investigar os fatores associados ao sofrimento psíquico dos professores da rede particular de Salvador, ressaltaram a importância das diversas características do processo de trabalho, tais como: atividade repetitiva, dificuldades de relações com os colegas de trabalho, insatisfação no desempenho das atividades, desgaste nas relações professor-aluno, ambiente intranqüilo e estressante, falta de autonomia no planejamento das atividades, ritmo acelerado de trabalho, pressão da direção da escola e salas de aula inadequadas. Gasparini et al.19, avaliando professores do ensino fundamental da rede municipal de Belo Horizonte, observaram uma forte associação entre transtornos psíquicos com experiência de violência na escola, percepção negativa sobre o trabalho e condições do ambiente físico laboral.
METODOLOGIA
O presente artigo originou-se de uma pesquisa longitudinal, iniciada em 2005, com 500 crianças e que teve por objetivo conhecer a magnitude dos problemas de comportamento dos alunos matriculados em escolas municipais da rede de ensino pública de São Gonçalo20. As crianças foram selecionadas por amostragem por conglomerado simples em três estágios de seleção: escolas (25); turmas (50) de 1ª série do 2º segmento do 1º ciclo (antiga 1ª série do ensino fundamental) e alunos (10 em cada uma das turmas). Os dados apresentados no artigo foram coletados na segunda fase da pesquisa (2006).
A análise apresentada neste artigo refere-se a 372 crianças aferidas por 151 professoras, em 83 escolas em que os alunos estudavam no ano de 2006. A redução do número de crianças avaliadas no presente artigo se deve a: a) não localização de 28 crianças; b) exclusão de 16 crianças em função do teste do quociente de inteligência (1 não realizou o teste e 15 foram avaliadas como "intelectualmente deficientes", o que impossibilita a aferição de problemas de comportamento); c) preenchimento insuficiente pelas professoras dos questionários de 15 alunos; d) recusa de professoras em responder aos questionários de 50 alunos; e) não retorno do instrumento de auto-avaliação pelas professoras de 19 crianças.
Instrumentos
O Teacher´s Report Form (TRF)21 é um instrumento desenvolvido para a avaliação de professores sobre crianças de 6 a 18 anos. É um questionário preenchido por professores, orientadores pedagógicos ou outros profissionais que participam do desenvolvimento escolar da criança e com condições de mostrar seu ponto de vista em relação ao comportamento apresentado pela criança na escola nos últimos dois meses. A versão utilizada da TRF é a traduzida para a cultura brasileira por Bordin et al22 e ainda não há dados sobre confiabilidade e validade publicados. Todavia, a comparação dos problemas de comportamento aferidos pelos responsáveis (CBCL) e professores (TRF) na primeira fase da pesquisa mostrou correlação com significância menor que 1%20, tal como observado em outros estudos internacionais 23,24.
Exemplos de itens que aferem problemas de comportamento na TRF: preferência por ficar sozinho; recusar-se a falar; destruir objetos; ser infeliz, triste ou deprimido, desobediente, agitado, medroso ou ansioso demais. As opções de resposta variam de: falsa; pouco verdadeiro/às vezes verdadeiro; muito verdadeiro/freqüentemente verdadeiro. Possibilita aferir crianças sem problemas de comportamento (não clínicas) e com problemas em nível limítrofe ou clínicas (nos resultados deste artigo estas duas categorias estão agregadas).
Os questionários com a TRF foram colocados em envelope com o nome do aluno participante e entregues ao professor para a realização do preenchimento, devolvendo-os dias após. Além da TRF, um questionário auto-aplicado foi preenchido pelo professor a fim de verificar dados pessoais e a presença de problemas de saúde mental. Foram investigadas informações como: maior nível educacional do professor; tempo de experiência na docência; número de alunos em sua turma; número de escolas que trabalha; intervalo de tempo entre uma escola e outra, sem descanso algum; tempo semanal dos alunos sob seus cuidados.
A presença de sofrimento psíquico dos professores foi aferida por meio do Self Reported Questionnaire - SRQ2025 que foi validado para o português por Mari & Williams26. Exemplos de itens que compõem a SRQ-20: sentir-se nervoso(a), tenso(a) ou agitado(a); sentir-se triste; sentir-se cansado o tempo todo; ter dores de cabeça freqüentemente; ter dificuldade para realizar com satisfação suas atividades diárias, cansar-se com facilidade; ter falta de apetite; e ter má digestão. É composta por itens que aferem sintomas somáticos de humor depressivo/ansioso, decréscimo de energia vital e pensamentos depressivos, segundo classificação sugerida por Iacoponi e Mari27. O ponto de corte utilizado para o estabelecimento de suspeição de sofrimento psíquico foi de oito ou mais respostas positivas dentre as 20 perguntadas, seguindo o melhor ponto de corte segundo Mari & Williams26.
Os dados que compõem o perfil das crianças, apresentados na tabela 1, foram informados pelos responsáveis em outro instrumento que faz parte da pesquisa original. São eles: sexo, idade, distorção série-idade de dois ou mais anos e cor da pele da criança, estrutura familiar e escolaridade materna. Do questionário materno também foi obtida a Classificação Econômica Familiar, desenvolvida pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP)28, para determinar as classes econômicas, segundo o poder de consumo da família. Dois grupos de classes sociais foram estabelecidos, segundo o escore total obtido: B e C (17 a 11 escores), D e E (10 a 0 escores).
Processamento e análise dos dados
O instrumento de avaliação da criança pelo professor foi digitado e inserido no programa Epidata versão 3.1. Para a análise de dados, foi utilizado o programa Statistical Package for Social Sciences - SPSS versão 15. A associação entre presença de sofrimento psíquico dos professores e a identificação de problemas de comportamento nos alunos pelos professores foi analisada pelo teste de qui-quadrado. Apenas se apresentaram associações estatísticas significativas ao nível de 5%.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ e os professores e a direção das escolas assinaram termos de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS
Alunos
Dentre as crianças estudadas, 51,1% eram meninas e 48,9% meninos. 94,0% das crianças tinham até 10 anos no momento da coleta de dados. Quanto à estrutura familiar, 52,5% residiam com o pai e mãe, ao passo que 24,6% viviam somente com um dos pais (a maioria com a mãe). Grande parte das mães tinha até o 1º grau (71,8%) e 44% das famílias encontravam-se no estrato social D e E. Em relação à distorção série/idade, 33,6% das crianças apresentavam atraso escolar de dois ou mais anos (tabela 1). Estes dados sinalizam as dificuldades sócio-econômicas enfrentadas pelas famílias da rede pública municipal de ensino de São Gonçalo.
Tabela 1: Perfil das crianças e famílias da rede pública de ensino de São Gonçalo/RJ
No que se refere aos problemas de comportamentos observados entre os alunos, tem-se na tabela 2 que o transtorno mais apontado pelas professoras foi o problema externalizante (12,6%), seguido pelos com a atenção e/ou hiperatividade (10,8%) e internalizantes (9,1%).
Tabela 2: Prevalência de problemas de comportamento em crianças de São Gonçalo/RJ
Professores
Todos os 151 professores entrevistados são do sexo feminino. Na tabela 3, vê-se que a maioria das docentes encontra-se na faixa dos 30 aos 49 anos de idade (63,4%). Quanto à escolaridade, a maioria (49,6%) possui nível superior incompleto/completo, somado a 25,2% com especialização. Boa parte das professoras pesquisadas demonstrou experiência na profissão. Todavia, 36% têm menor tempo de atuação (9 anos ou menos).
Em relação ao número de escolas em que trabalhavam concomitantemente, 47,2% das professoras relataram trabalhar em 2 ou mais escolas; 45,5% afirmaram que costumam sair de uma escola para trabalhar em outra imediatamente, sem descanso. Em relação ao tempo (horas semanais) que os alunos ficam em aula sob os seus cuidados, 45,5% ficam mais de 20 horas semanais. Mais da metade das professoras (53,6%) relatou ter mais de 30 alunos por turma. Esses dados apontam para a sobrecarga de trabalho e para a necessidade de continuada atenção a muitas crianças por longos períodos de tempo.
Tabela 3 - Perfil das professoras estudadas no ano de 2006 na rede pública de São Gonçalo/RJ
Em relação à saúde mental das professoras, 21,8% relataram sofrimento psíquico. No gráfico 1, vêem-se os itens respondidos pelas professoras agregados segundo a classe de sintomas apresentados. Nota-se que alguns sintomas destacam dos demais: sentir-se nervosa, tensa ou agitada (54,7%), encontrar dificuldades para realizar com satisfação suas atividades diárias (41,3%), dormir mal (43,5%) e ter dores de cabeça freqüentemente (38,4%). Vale a pena ressaltar a importância dos pensamentos depressivos, embora em menores percentuais: 5,8% das professoras se sentem uma pessoa inútil, sem préstimo, 3,6% têm tido a idéia de acabar com a vida e 2,2% se sentem incapazes de desempenhar um papel útil em sua vida.
Gráfico 1: sofrimento psíquico das professoras de São Gonçalo (itens da SRQ-20)
Saúde mental das professoras e identificação de problemas de comportamento nos alunos.
Na tabela 4, observa-se que professoras que vivenciam sofrimento psíquico, comparadas às que não apresentam o transtorno, identificam mais problemas internalizantes em seus alunos (15,2% versus 7,3%, respectivamente; p-valor=0,042).
Em relação aos problemas com a atenção e/ou hiperatividade encontra-se tendência similar, porém o nível de significância fica apenas próximo ao patamar estipulado no estudo. Para os problemas externalizantes os resultados mostram-se menos incisivos.
Tabela 4: Associação entre sofrimento psíquico das professoras e identificação de problemas de comportamento de crianças
DISCUSSÃO
A prevalência de 21,8% de professoras com sofrimento psíquico encontrada no presente artigo se aproxima da relatada em pesquisa realizada por Araújo et al 17 que utilizou a mesma escala no cenário nacional, cuja taxa foi de 20,1%. Comparada a outras categorias profissionais, observa-se realidade um pouco distinta. Na categoria profissional de bancários do Rio de Janeiro verificam-se prevalências de sofrimento psíquico de 11,5% entre homens e 19,8% entre mulheres29. Utilizando como contraponto uma categoria profissional muito exposta à tensão no trabalho, tem-se que 35,7% dos policiais militares da cidade do Rio de Janeiro e 25,8% dos policiais civis da mesma cidade apresentam sofrimento psíquico medido pela SRQ-20 30.
Alguns autores apontam uma elevada taxa de sofrimento psíquico dos professores, acima das encontradas neste artigo, tais como a pesquisa de Reis et al15 que encontraram uma prevalência de 55,9% dos professores da rede municipal de Vitória da Conquista e a de Delcor et al16 que identificaram a presença do transtorno em 41,5% dos professores da rede particular de Vitória da Conquista. Ambos os estudos, realizados na rede pública e particular, utilizaram o SRQ-20. Um Estudo conduzido por Gasparini et al19 (utilizando a General Health Questionnaire GHQ-20) encontrou uma prevalência de 50,3% dos professores da rede municipal de Belo Horizonte.
Em relação ao grupo de sintomas aferidos, embora a SRQ-20 se limite a detectar os níveis de alteração do funcionamento psíquico e não a realizar diagnóstico, é possível observar algumas tendências também avaliadas em outros estudos15,17, como por exemplo, uma maior manifestação de professoras com sintomas relacionados ao humor depressivo (se sentir nervoso, tenso ou agitado; assustar-se com facilidade; se sentir triste ultimamente) e aos sintomas somáticos (dormir mal; ter dores de cabeça frequentemente; ter sensações desagradáveis no estômago).
Alguns fatores dificultam a comparação dos resultados entre as prevalências encontradas nos diferentes contextos. Destacam-se: diferentes escalas de aferição de transtornos mentais; variados pontos de corte utilizados para definição de distúrbio psíquico na SRQ-20; diversidade das populações e cenários estudados. Porto et al14 ao detectar uma prevalência de sofrimento psíquico de 44% dos professores de escolas públicas e particulares de Vitória da Conquista, explicam que o período de realização da pesquisa é mais um fator que poderia contribuir para o aumento dos resultados encontrados, uma vez que os sintomas de sofrimento psíquico são transitórios e existem períodos escolares em que a carga da atividade docente aumenta e, consequentemente, potencializa os fatores estressantes para o professor.
Outro dado a ser levado em conta é a localização regional. Uma pesquisa nacional com 30.000 professores mostrou que características econômicas ou sócio-culturais se relacionam à variação nas taxas de problemas relacionados à saúde mental do professor. Este estudo revelou que as taxas de exaustão emocional dos professores variaram de 17% em Minas Gerais e 39% no Rio Grande do Sul 31.
A relação de transtornos emocionais com gênero foi evidenciada por Araújo et al32, como outro fator a ser levado em conta: professoras teriam prevalências mais altas do que professores. As inúmeras jornadas de trabalho que as mulheres estão submetidas e a sobrecarga doméstica, proporcionada pelas tarefas nos cuidado com os filhos e com a casa as tornariam mais vulneráveis à presença de sofrimento psíquico.
As características pessoais e do trabalho das professoras investigadas foram semelhantes às de estudos que encontraram relação entre sofrimento psíquico e características do trabalho docente15,16. O número grande de alunos por turma, evidenciado em 53,6% dos professores, bem como o número considerável de escolas que as professoras trabalham, relatado por 47,2% das professoras, são fatores que contribuem para o desgaste mental desta população. O docente, muitas vezes, dá aula em inúmeras escolas durante a semana, sem ao menos ter tempo para descansar durante essas atividades, como visto em 45,5% na população estudada. Também cabe ressaltar as outras jornadas de trabalho que muitas professoras realizam após a atividade docente, tendo em vista o papel social determinado à mulher de cuidadora da família.
A partir dos resultados observados entre os alunos, vale apontar que os problemas de comportamentos constituem-se um desafio para os professores em sala de aula. Como mostrado na pesquisa que deu origem a este estudo, cerca de 10% dos alunos apresentavam sinais de algum problema de comportamento, em nível clínico, segundo os professores e este resultado esteve próximo ao detectado pelos pais na mesma pesquisa (cerca de 11%)20.
Massola e Silvares 33 revelaram que os professores são capazes de identificar de forma adequada o potencial e os problemas de seus alunos, tal como fizeram pais e psicólogos treinados. Youngstrom et al34, em seu estudo com jovens americanos, lembram que os relatos dos professores são mais fidedignos em relação aos auto-relatos feitos por jovens para avaliação de comportamentos de hiperatividade, desatenção e comportamento opositor. Porém, ressaltam que quanto aos comportamentos internalizantes, a auto-avaliação dos jovens é melhor do que a efetuada pelos professores.
Quanto aos tipos de problemas, os professores, de uma maneira geral, identificam mais alunos com problemas externalizantes do que com a atenção e/ou hiperatividade e internalizantes, fato também evidenciado em outros estudos34,35. Isso é mais provável de acontecer porque problemas externalizantes são mais visíveis aos olhos do professor e difíceis de administrar em situações de sala de aula. Em relação aos problemas internalizantes, parece existir uma tendência de subestimar a severidade do impacto desses problemas. Na mesma direção, grande parte dos alunos com sintomas depressivos tende a se aproximar da figura de um aluno “normal” e que chama menos atenção em sala de aula 36.
Verificou-se que a presença de sofrimento psíquico associa-se à diferente visão dos professores em relação aos problemas internalizantes e bem próximo da significância estatística no que se refere aos problemas externalizantes. Estariam as professoras que apresentaram sofrimento psíquico sendo mais sensíveis aos sinais manifestados pelos alunos em sala de aula? Embora não se possa afirmar ou negar esta indagação a partir dos resultados deste artigo, é possível afirmar a existência de uma relação entre transtorno emocional das professoras e a identificação de problemas na saúde mental de crianças.
Alguns estudos sobre depressão materna ajudam a entender a complexidade existente entre a saúde mental do adulto e sua influência na avaliação de problemas emocionais e/ou comportamentais na criança ou no adolescente37,38,39. Berg-Nielsen et al.40 utilizando instrumentos análogos ao TRF (Child Behaviour Checklist- CBCL e Youth Self Report - YSR), mostraram que mães com depressão tenderam a relatar mais problemas internalizantes comparadas aos adolescentes. Boyle e Pickles37 confirmam que mães com sintomas de depressão informam mais problemas de comportamento de seus filhos em relação à avaliação dos professores.
Para Najmam et al38 existem interpretações distintas para este fenômeno: mães com dificuldades emocionais tendem a superestimar os problemas de comportamento de seus filhos; mães que não são comprometidas emocionalmente podem subestimar os problemas de comportamentos das crianças. Para o autor, é difícil determinar qual dessas interpretações é a mais provável. Uma possibilidade é que pessoas deprimidas seriam mais sensíveis e precisas em suas percepções do que pessoas não-deprimidas41.
Como limitação do estudo, temos o fato de ser um estudo seccional, que não permite conhecer o nexo causal entre transtornos emocionais dos professores e os problemas de comportamento dos alunos. Também está restrita a uma população mais pobre, não permitindo avaliar diferenças entre estratos sociais mais díspares. Cabe ainda ressaltar que a amostra não é representativa dos professores da rede pública de São Gonçalo (e sim das crianças).
Finalizando, ressalta-se que a identificação de problemas de comportamento é condição básica para o bem-estar futuro da criança, mas por si só não traz efeitos benéficos para uma intervenção adequada. A escassez de recursos materiais e humanos e as dificuldades relacionais observadas em muitas escolas contribuem para que os professores se sintam impotentes perante situações as quais não sabem lidar, a exemplo dos alunos com problemas emocionais. A falta de rede de apoio social e de atendimento em saúde mental reduz ainda mais a expectativa dos docentes no cuidado das crianças com dificuldades de comportamento.
A capacitação dos professores na identificação e no encaminhamento de crianças em idade escolar com problemas de comportamento poderá contribuir para uma intervenção precoce e, conseqüentemente, um encaminhamento a uma rede de apoio que dê o suporte necessário para a resolução dos problemas, uma vez que tais situações podem prejudicar o desenvolvimento infantil e a vida adulta da criança. Por outro lado, o apoio emocional aos professores com sofrimento psíquico e a todos que trabalham em condições tão desfavoráveis é igualmente necessário para se construir uma escola mais digna ao crescimento e desenvolvimento infantil.
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