0103/2006 - A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico
Autor:
• Carla Ribeiro Guedes - Carla Ribeiro Guedes - Rio de Janeiro, RJ - Instituto de Medicina Social / UERJ - <carla.guedes@globo.com>Área Temática:
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Este artigo tem como proposta estabelecer uma discussão sobre a biomedicina trazendo à tona uma reflexão sobre o lugar que os fenômenos subjetivos relacionados ao adoecimento ocupam nesse modelo. Utilizaremos como principal instrumento de análise a epistemologia, com destaque especial à Thomas Kuhn e as noções de “paradigma e anomalia”, e à contribuição de Ludwick Fleck com os conceitos de “exceções das teorias e a tendência à persistência nos sistemas de idéias”. Acreditamos que a presente reflexão possa vir a ser um exercício fundamental e oportuno para a otimização/transformação do paradigma biomédico, na medida em que é consensual o alto grau de subjetividade que envolve a prática médica.Palavras-chave: biomedicina; subjetividade; epistemologia; paradigma; anomalia.
Abstract:
The purpose of this paper is to discuss biomedicine bringing to the forefront a reflection on the role, played by the subjective phenomena related to the experience of illness play in that model. We use epistemology as our main analytic tool, with emphasis on the work of Thomas Kuhn and his notions of paradigm and anomaly and Ludwik Fleck and the concepts of exceptions to theories and the persistence of the systems of ideas. We believe that the reflections presented here can be an adequate resource for perfecting/transforming the biomedical paradigm, since there is a consensus about the high degree of subjectivity that encompasses medical practice.Key Words: biomedicine; subjectivity; epistemology; paradigm; anomaly.
Conteúdo:
Ao examinar-se o campo da prática biomédica vários problemas tornam-se imediatamente aparentes: a insatisfação de pacientes e médicos, os custos crescentes de tratamentos e exames, a formação inadequada de recursos humanos, o mercantilismo e a competição entre os próprios profissionais da área, a precariedade dos programas de saúde, etc – problemas graves e complexos que, entretanto, parecem se banalizar, dada a freqüência com a qual somos confrontados com eles no cotidiano.
No entanto, sabemos serem inúmeras as propostas e soluções possíveis, tanto no nível institucional, quanto na organização e gestão dos serviços de saúde. A crise na saúde é uma questão política, e como tal poderia ser equacionada com vontade política e algum refinamento técnico-administrativo – somos tentados a afirmar, ao lançarmos um olhar mais superficial sobre a medicina, os serviços de saúde e os seus descaminhos.
É inegável que maiores investimentos no setor, melhor estruturação do sistema e melhorias na gestão teriam um impacto positivo e produziriam resultados mais satisfatórios na situação médico-sanitária atual.
Não obstante, neste artigo, gostaríamos de chamar a atenção para uma outra dimensão do problema, ou seja, examinar as dificuldades produzidas por obstáculos internos à própria racionalidade biomédica. Desse modo, a nossa proposta é estabelecer uma discussão sobre o modelo da biomedicina em sua profundidade esotérica, trazendo à tona uma reflexão sobre o lugar, ou o não lugar, que os fenômenos subjetivos relacionados ao adoecimento ocupam nesse modelo.
Utilizaremos como principal instrumento de análise a epistemologia, mais precisamente uma vertente específica, com destaque especial à Thomas Kuhn , e as noções de “paradigma e anomalia”, e à contribuição de Ludwick Fleck com os conceitos de “exceções das teorias e a tendência à persistência nos sistemas de idéias”.
Antecipando-nos à crítica da utilização de modelos epistemológicos na reflexão sobre a prática assistencial, gostaríamos de assinalar que, se por um lado é fato que esta última não é determinada pelo “estoque de conhecimentos” (para citar uma expressão de Fleck), tampouco lhe é indiferente. Embora as relações entre saber e prática no domínio da biomedicina sejam mais sutis e confusas do quê o discurso de auto-apresentação dos manuais médicos poderia levar a supor, a dimensão epistemológica segue se impondo no mínimo como norma técnica de legitimação e validação da ação médica , . Adicionalmente, parece-nos plausível e heuristicamente útil empregar noções chave que emergem dos modelos kuhniano e fleckiano para estudar a interação saber-prática no domínio da atividade profissional do médico por supormos que a mesma é ao menos análoga àquela dos cientistas no seu fazer:
Penso que supor, como Kuhn, a ciência como um empreendimento apenas parcialmente racional, e considerar o paradigma como determinante fundamental na forma como o cientista percebe o mundo, abre novas perspectivas no estudo de que chamei de paradoxos da clínica. Refiro-me em especial ao papel condicionante que as teorias correntes acerca das categorias diagnósticas e de sua gênese têm no modo como o médico traduz o sofrimento que seus pacientes apresentam, supervalorizando os aspectos objetiváveis, traduzidos em doença, e deixando de lado o universo subjetivo do sofrer. Proponho como hipótese de trabalho que essa dissociação deve-se a existência de um paradigma clínico-epidemiológico, que condiciona a percepção do médico ao modelo da teoria das doenças. Sendo um paradigma, não é completamente enunciável em termos objetiváveis, e seu aprendizado tampouco se faz por proposições lógicas analiticamente decompostas, mas mediante exemplos.
Assim, acreditamos que realizar essa discussão epistemológica da biomedicina, investigando a forma como se dá a produção do conhecimento dentro deste modelo, seria um exercício fundamental e oportuno para a otimização/transformação do paradigma biomédico, na medida em que é consensual o alto grau de subjetividade que envolve a prática médica.
Ao fazermos um breve histórico sobre esta questão podemos identificar que no início do século XX existiram as primeiras manifestações negativas no interior da medicina sobre a forma em que esta estava constituída, onde se privilegiava a doença e não o doente . Entretanto, foi através de Michel Balint que as críticas em relação ao modelo médico tiveram uma grande repercussão mundial, foram trazidos à tona a necessidade de se resgatar a relação humanizada entre médico-paciente e direcionar a escuta terapêutica não só para os relatos objetivos da doença, mas para todos os aspectos psicológicos que permeiam o adoecer. Movimento este que veio a ser conhecido como medicina psicossomática, com vários representantes e propostas que se diferenciavam entre si. No Brasil esta se propagou através de Perestrello e traziam para o centro do debate as principais questões abordadas por Balint. Contudo, estas propostas apesar de inicialmente mostrarem-se revolucionárias, foram perdendo força ao longo de seu percurso, e hoje demonstram pouco ou nenhum papel de destaque na prática médica , .
Apesar disto, podemos detectar que o questionamento à prática médica continua pungente. Inúmeros autores vieram criticar o reducionismo organicista da medicina vigente. Dentre outros podemos nomear os trabalhos clássicos de Clavreul e Foucault , e, mais recentemente, Camargo Jr. e Bonet . Além disto, verificamos no campo da saúde coletiva a emergência de novas abordagens para se pensar o adoecimento, tais como a clínica ampliada, a humanização do atendimento, as discussões sobre a integralidade das ações de saúde e a produção do cuidado com vistas à transformação do modelo tecno-assistencial. Concomitante a estas propostas tem-se observado nos últimos anos uma crescente aceitação das medicinas ditas alternativas em nossa sociedade. A capacidade resolutiva dos problemas de saúde por estes sistemas de cura deve-se fundamentalmente à peculiar interpretação do binômio saúde-doença, no qual os aspectos psíquicos e físicos são indissociáveis na busca do restabelecimento do equilíbrio .
Entendemos que estes sinais indicam que a prática biomédica apresenta impasses, o que Luz considera uma crise nas suas dimensões ética, política, pedagógica e social.
Partimos da premissa de que há também obstáculos no interior do próprio saber médico ocidental que podem afetar a melhoria da atenção à saúde e para que haja uma mudança efetiva desse modelo assistencial torna-se imprescindível um repensar contínuo da teoria, da prática e das ações de saúde. Para que a alteração ocorra, convém ter em mente como é a situação, como funciona esse modelo e para onde se quer transformá-lo. Esperamos que esse trabalho possa vir a ser mais uma contribuição na busca do germe da transformação da biomedicina.
2- O modelo biomédico e a subjetividade
No final do século XVIII, houve uma ruptura de paradigma no interior do saber e da prática médica; a medicina segundo a conceituação de Foucault deixa de ser classificatória para tornar-se anátomo-clínica. Bichat, ao estudar as superfícies tissulares, inaugurou uma nova concepção, denominada por Foucault de medicina moderna. Nessa perspectiva, passa-se a pensar a doença como localizada no corpo humano, e a anatomia patológica, até então sem nenhuma função para uma medicina eminentemente erudita, insere-se na prática médica.
Desde o surgimento da racionalidade médica moderna, vem se consolidando o projeto de se situar o saber e a prática médica no interior do modelo das ciências naturais. Com isso a medicina faz sua opção pela naturalização de seu objeto através do processo de objetivação, ou seja, o de fazer surgir a objetividade da doença, com a exclusão da subjetividade e a construção de generalidades .
Desse modo, estabeleceu-se uma dicotomia importante entre o diagnóstico, seara da ciência, e a intervenção terapêutica, território da “arte”, sendo a última permeada de incerteza e a possibilidade de fracasso, além de ser compartilhada com o paciente. Verificou-se, então, uma verdadeira cisão entre teoria e práticas médicas, que termina por fragmentar também o paciente (sintomas objetivos x sintomas subjetivos); sendo que na maioria das vezes, os sintomas subjetivos não são levados em conta, ou mesmo, não se sabe como “dar conta” deles.
Assim, entendemos que a subjetividade do adoecimento, isto é, a complexidade e a singularidade do sofrimento humano, e mais ainda, a sua dimensão fenomenológica, experiencial, nunca chegou a ser objeto das ciências biomédicas, uma vez que o modelo da medicina ocidental é herdeiro da racionalidade científica moderna.
Para Canguilhem a medicina contemporânea estabeleceu-se cindindo a doença e o doente:
a medicina de hoje fundamentou-se, com a eficácia que cabe reconhecer, na dissociação progressiva entre a doença e o doente, ensinando a caracterizar o doente pela doença, mais do que identificar uma doença segundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentado pelo doente .
Essa forma de se configurar a medicina é hoje denominada de biomedicina, pela sua estreita vinculação com disciplinas oriundas das ciências biológicas. O referencial da clínica médica passa a ser a doença e a lesão, isto é, o objetivo do médico é identificar a doença e a sua causa. Basta remover a causa para que haja a cura da doença. Doença e lesão estabelecem uma relação de co-dependência, uma necessita da outra para existir . Essa díade aparece tão fortemente nas representações do saber médico que se estabeleceu um conjunto de proposições implícitas norteadoras à prática do médico, a teoria das doenças:
As doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa, as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas, que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta .
Essas proposições não aparecem explicitamente em livros ou manuais de ensino da medicina, sendo entretanto familiares a qualquer médico. A partir disto notamos que há pouco ou nenhum questionamento sobre essa condição por parte dos médicos; as doenças não são vistas como construções, ficções criadas e categorizadas por homens, mas efetivamente como entidades que existem. Estas se apresentam e, cabe ao médico identificá-las, encontrar a lesão para, como diria Foucault em O nascimento da clínica, dar visibilidade aquilo que está invisível.
Enquanto o referencial teórico do médico são os acima citados, o sofrimento do paciente torna-se irrelevante; “quando a doença passa a ser “real” o paciente virtualiza-se” . Paradoxalmente, ignora-se aquilo que deveria ser a categoria central a qual nortearia a prática médica: o médico em última instância deveria trabalhar sabendo que lida com um paciente que sofre e que esta experiência envolve uma série de questões as quais escapam ao biológico, pois se referem a questões psicológicas, culturais e sociais. É freqüente encontrarmos na prática discursiva da medicina referências à necessidade de uma abordagem biopsicossocial, mas há uma total primazia do campo biológico sobre os demais:
Categorias fundamentais no que concerne ao adoecer como por exemplo, SOFRIMENTO, SAÚDE, HOMEM (no sentido de “ser humano”),VIDA, CURA, encontram-se perdidas nas brumas do imaginário ou empurradas para o terreno da metafísica .
A partir desses referenciais, os médicos são guiados por comportamentos que tentam se basear em padrões científicos mais que em particularidades e procuram fazer com que seu trabalho esteja focado na competência técnica e na objetividade sem envolvimento emocional com o paciente . No entanto, nem sempre a ideal posição de neutralidade e objetividade consegue ser mantida, pois há no interior do saber médico uma grande valorização da experiência pessoal do médico , .
Bonet afirma que o trabalho médico é marcado por uma ambigüidade em relação ao que os médicos devem saber e ao que sentem ao fazer; o saber e o sentir seriam a expressão de uma tensão estruturante que se encontra presente no interior da prática médica. Durante os anos de formação, o médico aprenderia a manejar esta tensão, e gradativamente as manifestações relacionadas à subjetividade, ao emocional iriam sendo excluídas da prática cotidiana. A tensão estruturante apareceria em ocasiões de interações sociais que favorecessem a eclosão de conflitos. Como exemplo o autor menciona o momento de passagem das visitas médicas, o contato com o paciente terminal e dá um destaque especial à diagnose.
No momento de construção do diagnóstico, aparecem vários elementos como sentimentos, dúvidas, tentativas e erros, porém, no resultado final, isto desaparece, adquirindo um estatuto de saber científico. Sendo assim, perdem-se as contextualizações históricas e sociais que se apresentavam no momento da sua construção:
Com isso queremos dizer que nesse processo de constituição do diagnóstico ocorrem negociações, tácitas ou explícitas, avaliação dos enunciados produzidos e do agente que os produz, mas que na formulação “científica” do diagnóstico ficam eliminadas. Deste modo, a esse diagnóstico construído lhe é outorgado um critério de “objetividade” .
Os médicos, ao buscar a objetividade dos exames clínicos, relegando a segundo plano a observação clínica, não se atentam para o fato de que os dados produzidos nos exames, por mais objetivos que sejam, sempre vão passar por um processo interpretativo . Segundo Hacking , as inscrições produzidas pelos dados, como gráficos, tabelas, fotografias e registros, são chamadas por ele de “marcas”, e estas para serem decifradas requerem a interpretação.
Embora a biomedicina tente se adequar ao modelo preconizado pela ciência, o médico em sua prática clínica não consegue cumprir este ensejo, pois a subjetividade apresenta-se em vários momentos: na sua experiência, nas interpretações dos exames, ao tomar decisões e julgamentos .
Luz afirma que na sociedade contemporânea existiria uma crise na medicina. Esta não estaria ligada à produção de conhecimento da disciplina, mas sim às dimensões ética, política, pedagógica e social. Dentre algumas questões abordadas pela autora podemos mencionar os programas de atenção médica precários, ênfase na diagnose em detrimento da cura do sujeito doente, relação médico-paciente perpassada pelo mercantilismo, competição entre as especialidades médicas e demais profissionais de saúde, conflitos entre médicos e os cidadãos que estão em busca de atenção à saúde e a incapacidade de se formar profissionais de saúde que sejam aptos à resolução dos problemas na área de saúde.
Sem dúvida, os pontos levantados acima já nos dão indícios de inúmeros problemas no campo. No entanto, ressaltaremos nesse trabalho uma outra dimensão em que se revelam impasses na prática médica atual – contradições inscritas no interior do próprio modelo biomédico.
Nem todas as manifestações da doença podem ser explicadas a partir do modelo doença-lesão e seus correspondentes e aquelas que não se encaixam nos referenciais da biomedicina tornam-se um problema para o diagnóstico, colocando em xeque o saber médico, já que estes pacientes possuem persistentes sintomas físicos sem que o médico possa detectar uma doença. Segundo Simonetti , há vários termos em medicina para nomear estas manifestações. A terminologia “histeria” seria, para este autor, a mais frequente para indicá-las. Entretanto, o caráter pejorativo que foi se atribuindo ao termo no decorrer da história fez com que houvesse uma tendência hoje em dia de utilizar termos mais descritivos, tais como “distúrbio neurovegetativo” (DNV), “distúrbio conversivo ou dissociativo”, “somatização”, “psicossomática”, “neurose conversiva”, entre outras. Além disto, haveriam nomes usados pelos médicos no seu cotidiano para se referir a estas manifestações como: “piripaque”, “chilique”, “frescura”, “dramatização”, etc...
Ainda sobre os termos usados para designar estes transtornos, Almeida nomeia estes pacientes como “refratários”, por não apresentarem nenhum tipo de lesão e disfunção. Tais pacientes ocupam, assim, um lugar de marginalidade na prática médica, e não conseguem se encaixar dentro dos serviços e tratamentos oferecidos nas instituições de saúde. Por sua vez, Camargo Jr. discorda dessa terminologia, pois a seu ver não são os pacientes que não se enquadram, mas o sistema institucional que não consegue responder a suas demandas. Portanto, segundo ele, estes deveriam ser chamados de “pacientes rechaçados”.
Para Moretto estes pacientes, ao qual denomina de “histéricos”, ludibriariam o saber médico, uma vez que os seus sintomas podem regredir de forma súbita sem que seja necessário qualquer intervenção médica, como também podem mostrar-se persistentes apesar de serem utilizados todos os recursos disponíveis na medicina. Esse tipo de postura colocaria o médico num impasse, o qual não teria recursos para lidar com essa situação, e na maioria das vezes, a única resposta disponível diante disto seria a de afirmar que o paciente não tem nada. Para a autora “nada que seja passível de se inscrever no discurso médico” . Entretanto, nesses casos, apesar do médico negar a existência da doença, ele saberia que o paciente tem “alguma coisa”, a qual muitas vezes diagnostica de forma pejorativa no intuito de atingir aquele que lhe agride:
Ele (médico) diagnostica esta coisa como “piti”, diagnóstico que tem como função desqualificar o sujeito tanto quanto ele se sente agredido, desqualificado e impotente diante de um doente que pela própria doença tenta derrogar o seu saber de mestre .
O médico, em seu cotidiano, trabalharia no sentido de decodificar as falas dos pacientes em sinais médicos. Desse modo, em nome de uma terapêutica baseada em procedimentos científicos, são descartadas as singularidades e diferenças entre os casos .
Então, a partir da problematização das questões referentes à biomedicina buscaremos na epistemologia contribuições para melhor compreender as falhas existentes nesse modelo, relativas à priorização dos fenômenos objetivos frente à subjetividade do adoecimento humano.
3- Abordagem epistemológica de Kuhn e Fleck
A seguir utizaremos a abordagem epistemológica complementar de Kuhn , e Fleck sobre o modo de produção de conhecimentos científicos como ferramenta principal para estudar a racionalidade biomédica.
3.1-Kuhn: paradigmas e anomalia
Kuhn oferece uma significativa contribuição à epistemologia, sobretudo ao desenvolver o conceito de “paradigma”. Segundo ele, os paradigmas seriam modelos e padrões consensualmente aceitos em uma comunidade científica os quais guiariam a prática do cientista.
Um cientista estaria, em seu cotidiano, sendo regido por modelos e um conjunto de exemplos que são compartilhados pelos seus membros, submetendo-os à regras e padrões da prática científica, e seu surgimento se daria quando haveria uma síntese capaz de cativar grande parte de seus praticantes, em especial das novas gerações.
A prática de um cientista que envolve leis, teorias, aplicação e instrumentação é o que Kuhn denomina de ciência normal, isto é, todo o trabalho que se dirige para a consolidação do conhecimento.
A elevação de uma nova teoria ao status de paradigma é justificada de duas formas: por conseguir partidários que se convençam de que aquele paradigma pode solucionar questões as quais os cientistas consideram graves e, concomitantemente, ser amplo o suficiente para trazer uma gama de problemas os quais devem ser resolvidos por eles.
Parte-se da noção de que o paradigma deve ser constantemente aperfeiçoado e lapidado, função dos cientistas ao fazer a ciência normal que, mesmo sem se dar conta, estariam trabalhando para a sua manutenção. O fazer ciência não incluiria novos fenômenos, e tampouco a invenção de teorias novas; o enfoque estaria “dirigido para a articulação dos fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma” .
Desse modo, os cientistas teriam um trabalho restrito no que tange à produção de conceitos, não iriam além das cercanias dos padrões e modelos paradigmáticos no qual estão incluídos. Essas áreas seriam minúsculas, e não haveria nenhum interesse por parte dos cientistas em ampliá-la, produzindo novidades.
Segundo Kuhn o cientista resolve “quebra-cabeças” em sua pesquisa normal. A utilização deste termo estaria relacionada à exposição de enigmas que colocariam em teste a habilidade dos indivíduos na solução de problemas. No processo de fazer ciência, problemas de grande importância não são considerados os “quebra-cabeças”. Assim, estes não são definidos pela sua relevância, mas pela sua capacidade de serem solucionáveis.
O autor ainda afirma que um paradigma possui problemas que podem ser resolvidos, e os seus membros são estimulados a fazê-lo. A habilidade de solucionar “quebra-cabeças” é a demonstração de que um indivíduo é um perito nesta seara: “o que o incita ao trabalho é a convicção de que, se for suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem” .
A orientação do trabalho do cientista pode se dar sem a presença de regras explícitas. As regras somente são colocadas em questão quando os paradigmas mostram-se inseguros. Nos períodos em que está para ocorrer uma substituição paradigmática, é constante a indagação sobre os métodos, solução de problemas, e tudo aquilo que envolve os procedimentos da ciência normal. Desse modo, embora não haja esforço em produzir novidades, estas efetivamente ocorrem e podem produzir descontinuidade, o que o autor denomina de revolução científica .
As novas descobertas são um processo lento e demorado, e caracterizam-se pela recorrência de uma estrutura, isto é, esse processo se inicia com a consciência de uma anomalia – aquilo que não estava previsto – com a qual o pesquisador não se encontra preparado para lidar: “a descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal” .
Após o seu reconhecimento, os cientistas dedicam-se à adequar essa anomalia ao paradigma, e para isto é feita uma exploração na área onde esta ocorreu. Há uma tentativa de ajustamento deste elemento inesperado. Em síntese, todas as descobertas apresentam três traços básicos: a consciência da anomalia, a verificação desta no plano conceitual e da observação e, finalmente, uma modificação das categorias e procedimentos de um paradigma. A transformação geralmente é seguida de uma resistência por parte dos cientistas.
Kuhn relata o processo de consciência de uma anomalia, demonstrando como uma nova descoberta fora do padrão paradigmático é recebida com resistência, e como esta irá garantir que o cientista tente incorporar a novidade ao paradigma.
A anomalia produz fracasso na resolução dos enigmas (os “quebra-cabeças”) cotidianos enfrentados pelos cientistas na ciência normal, gerando insegurança profissional, modificações nos aparatos técnicos e produção de novas teorias. Essas características seriam o enunciado de uma crise.
Novas teorias ocorrem precedidas de uma crise, cuja anomalia necessariamente encontra-se presente. Entretanto, os fenômenos anômalos não seriam razão para que cientistas abandonassem um modelo paradigmático, por mais que estes sejam persistentes. Uma das razões para essa posição é que ao negar um paradigma, é necessário que já se tenha um substituto: “rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência” .
Além disto, o fato de se encontrarem anomalias não significa que haja uma crise. Kuhn indaga-se sobre o que diferencia a ciência normal e aquela em estado de crise. Segundo ele, não seria a presença de fenômenos anômalos. Os “quebra-cabeças” no cotidiano dos cientistas se apresentam porque não existem paradigmas que tenham solucionados todos os seus problemas. Assim, com exceção dos enigmas instrumentais, cada “quebra-cabeça” poderia ser visto como um contra-exemplo, e logo, como um princípio de crise.
Deste modo, esta diferenciação não pode ser vista de uma forma causalista, se por um lado, uma anomalia grave e persistente pode não levar a uma crise, por outro uma que não apresentava nenhuma importância aparente poderá desencadeá-la.
Para Kuhn , a presença de anomalias não significa que possam causar a emergência de teorias as quais vão se configurar em um novo paradigma. O advento de uma crise nem sempre é suficiente para a substituição paradigmática. Algumas vezes a ciência normal acaba revelando-se capaz de tratar do problema que provoca a crise. Em outras ocasiões o problema resiste até mesmo a novas abordagens. Nesse caso, o problema recebe um rótulo e é posto de lado para ser resolvido posteriormente. Ou, finalmente, pode terminar com a emergência de um novo paradigma.
A transição paradigmática é marcada por uma ruptura, ou seja, abandona-se toda a tradição científica anterior e introduz-se uma nova, a qual é guiada por teorias, regras e muitas vezes métodos completamente diferentes dos vigentes até então. A revolução científica implica em rompimentos, e não em processos cumulativos.
Assim, as revoluções científicas acarretariam em mudanças na forma de conceber o mundo do cientista - deixam-se de lado as percepções anteriores e adota-se uma nova. O cientista, então, é obrigado a se familiarizar com um novo olhar, e quando isso é feito passa a efetivamente ver e a trabalhar num novo universo.
3.2-Fleck: as exceções e a tendência à persistência dos sistemas de idéias
Através de sua epistemologia Fleck oferece uma significante contribuição aos estudos referentes à medicina. Em seu livro “A gênese e o desenvolvimento de um fato científico” realiza um estudo sobre o desenvolvimento histórico da sífilis e da reação de Wasserman, demonstrando como os “fatos científicos” estariam condicionados à circunstâncias históricas e culturais.
O autor ressalta desde o início de sua obra a característica coletiva, interdisciplinar e cooperativa da investigação em medicina. Segundo ele, o fazer ciência é sempre um processo coletivo e delimitado por estruturas sociológicas, históricas e culturais. Esta “imposição” cognitiva seria explicada através de dois conceitos: o coletivo de pensamento e o estilo de pensamento. O primeiro “designaria uma unidade social de uma comunidade de cientistas de um campo específico”, enquanto o segundo seria definido como “as pressuposições de acordo com um estilo sobre as quais o coletivo construiria seu edifício teórico” .
Sendo assim, o conhecer não se daria como um processo individualizado, mas fruto de uma atividade social que teria uma característica coercitiva:
O coletivo de pensamento se compõe de indivíduos, entretanto, o indivíduo não tem nunca, ou quase nunca, consciência do estilo de pensamento coletivo, que quase sempre exerce sobre seu pensamento uma coerção absoluta e contra o que é sensivelmente impensável uma oposição .
Para Fleck , não haveria um olhar que não estivesse impregnado por pressuposições, pela mediação de um estilo de pensamento. Desse modo, a aquisição do conhecimento em uma disciplina passaria por dois momentos: um ver confuso inicial e um ver formativo. O último somente seria possível após uma vivência prática e teórica em um determinado campo. Após isto os indivíduos passariam a ver segundo os cânones daquela área. Paralelamente a este processo, haveria uma diminuição da capacidade de ver aquilo que se contrapõe ao sistema.
Sendo assim, a inserção em um campo de conhecimento teria mais a característica de doutrinação do que de incentivo a um pensamento crítico, e o ensino comportaria o sugestionamento de idéias autoritárias: “toda introdução didática é, portanto, um conduzir –dentro, uma suave coerção” .
A propensão a pensar e agir de uma determinada maneira seria a principal característica de um estilo de pensamento. Este seria constituído por duas partes que estariam intrinsicamente relacionadas: “disposição para um sentir seletivo e para a ação conseqüentemente dirigida” . A partir disso, Fleck o define como: “um perceber dirigido com a correspondente elaboração intelectiva e objetiva do percebido” . Desse modo, não seria possível pensar de outra forma que não fosse aquela do estilo de pensamento vigente.
Segundo Fleck , em todo estilo de pensamento, há um período de classicismo, ao qual todos os fatos encaixam-se à teoria, e um momento de complicações em que as exceções começam a aparecer. Entretanto, para que se possa manter a estrutura coletiva, costuma-se negar, afastar e re-interpretar (de acordo com o estilo) todas as contradições do sistema. Desse modo, ocorre uma tendência à persistência das concepções: “Uma vez que haja formado um sistema de opiniões estruturalmente completo e fechado, composto por numerosos detalhes e relações, persistirá tenazmente contra tudo que o contradiga” .
Estas idéias constituem-se como estruturas rígidas e persistentes e formam algo que Fleck denomina de “harmonia de ilusões”. Dessa forma, para que um estilo de pensamento permaneça harmônico ocorrem procedimentos ativos os quais obedecem a alguns graus.
1- A contradição do sistema parece impensável. Quando um coletivo de pensamento passa a influenciar de tal maneira os indivíduos a ponto de introduzir-se na vida cotidiana e nas suas expressões linguísticas, torna-se inadmissível a contrariedade.
2- Aquilo que não concorda com o sistema parece inobservável. O processo de persistência dos sistemas funciona como um todo fechado, só é possível perceber aquelas idéias que coadunam com o estilo de pensamento. O observar é sempre dirigido e orientado a uma meta, e há um alheamento de tudo que o contradiga.
3- No caso de uma contradição ser observada pode-se fazer silêncio a respeito. Há uma tendência a encobrir as exceções, por vezes elas são ocultas por muito tempo, visto que se opõe às idéias dominantes e somente podem vir à tona quando o estilo de pensamento é modificado.
4- Quando uma exceção é observada pode-se também realizar grandes esforços para explicá-la em termos que não contradigam o sistema. Há um empenho em explicar a contradição, em torná-la parte de um sistema lógico. Para Fleck entretanto este intuito muitas vezes não passa de uma aspiração. Desse modo, todo o movimento é no sentido de re-interpretar o elemento oponente até que ele se adeque ao estilo de pensamento.
5- Apesar dos legítimos direitos das concepções contraditórias, tende-se a ver, descrever e inclusive a formar somente as circunstâncias que corroborem com a concepção dominante. É como se pudesse transformar esta idéia numa realidade. Toda tendência à persistência dos sistemas comportam o que Fleck denomina de “ficção criativa”, ou seja, a idéia mágica de acreditar que todos os sonhos científicos pudessem ser realizados.
Entretanto, a tentativa de legitimar uma proposição tem sempre para o autor um caráter parcial, pois esta encontra-se intrinsecamente ligada ao coletivo de pensamento, o qual por sua vez está interligado a determinantes históricos, culturais e sociológicos.
4- Aplicação dos modelos de Kuhn e Fleck à biomedicina
Neste estudo, partimos da premissa de que a grande anomalia do paradigma biomédico está relacionada a toda ordem de sofrimentos ligados ao mal estar existencial, isto é, queixas dificilmente enquadráveis nos diagnósticos “tradicionais” da biomedicina. Então, como a biomedicina está calcada nas ciências biológicas, focada na díade doença-lesão, as manifestações que não apresentam marcadamente esta relação de causalidade aparecem na contra-mão deste direcionamento organicista.
Sabemos que a biomedicina experimentou avanços extraordinários na área tecnológica e medicamentosa, mas ainda assim apresenta inúmeros fracassos na prática clínica, sobretudo no que concerne em o médico lidar com fenômenos subjetivos no indivíduo que demanda por cuidado. Podemos extrair em Camargo Jr. três estratégias utilizadas pelos médicos ao lidar com esta situação. A primeira seria simplesmente afirmar que não há doença, tendo como justificativa a ausência de lesão - estes pacientes são nomeados de funcionais, polissintomáticos e até mesmo “pitiáticos”. A última expressão denota claramente o caráter pejorativo desse tipo de manifestação na prática médica. Existem também os médicos que encaminham o paciente à psiquiatria, assim não deixam de oferecer algum tipo de atendimento ao doente, e por outro lado se vêem livres do problema que lhes é apresentado. E, finalmente, há os médicos que receitam tranqüilizantes, oferecendo uma saída biologizante para a dimensão do sofrimento subjetivo. Estas situações, as quais a biomedicina não está preparada para lidar, são como uma “zona cinzenta”, espaço onde o desencontro terapêutico vai se dar .
No entanto, se entendemos as manifestações somáticas sem causas explicáveis pela biomedicina como um fenômeno anômalo no sentido kuhniano, devemos nos ater a como as mesmas se expressam em um paradigma biomédico. Apesar das respostas habituais dos médicos aparecerem no sentido de negar a existência de uma doença , é possível detectar na prática médica o reconhecimento de “algo que não estava previsto” dentro do seu modelo paradigmático, algo que escapa ao saber teórico-prático aprendido – a sintomatologia sem a presença de uma doença reconhecida pela biomedicina. E por não saber como manejar estes pacientes, é que muitas vezes os médicos os encaminham para outros profissionais - psiquiatras e psicólogos. Podemos suspeitar, então, que estes são sinais de que há uma consciência e o reconhecimento da anomalia.
O segundo movimento observado é o de trazer esse desconhecido a um terreno conhecido, familiar. Para tal, a biomedicina recorre a um dos seus fundamentais instrumentos: a categorização. Apesar de Foucault demarcar uma ruptura no fim do século XVIII, momento em que se dá a passagem de uma medicina classificatória para anátomo-clínica, a medicina ocidental moderna não deixou de ser eminentemente classificatória. Não mais como era no séc. XVI e XVII, onde a taxonomia era baseada no modelo da botânica, mas sim ancorada na anatomia patológica: identifica-se a lesão e a enquadra nas possíveis categorias nosológicas.
Desse modo, iremos constatar que há um esforço na biomedicina para incluir os sintomas físicos sem causas explicáveis dentro das suas inúmeras categorizações, isto é, tornar objetivo o subjetivo, transformar o invisível em visível.
Por outro lado, ao nos remetermos à Fleck podemos afirmar que estaríamos deixando para trás a época clássica da medicina, quando tudo funcionava conforme o modelo dominante. O autor postula que as teorias passam por dois momentos: o de classicismo e o de complicações, onde as exceções tornam-se presentes.
Como vimos anteriormente, os sistemas de idéias para que possam manter a sua estrutura coletiva, e por conseguinte a sua harmonia, tendem a ser fechados e rígidos e desenvolvem uma tendência à persistência das concepções, as quais obedecem a alguns graus. Acreditamos que este modelo oferecido por Fleck pode ser aplicado ao problema em questão, isto é, compreender como a biomedicina lida com as manifestações somáticas não explicáveis por uma causalidade reconhecida. Poderíamos sintetizá-lo da seguinte forma:
1- A contradição parece impensável. A biomedicina apresenta-se como um sistema fechado, o qual pode ser explicado através da díade lesão orgânica – doença e seus correspondentes.
2- Aquilo que não concorda com o sistema parece inobservável. Aquilo que foge à relação lesão orgânica-doença e seus correspondentes não é observável. Quando um paciente apresenta um sintoma, que não pode ser visto como uma doença comprovada, se entende que o paciente não tem nada.
3- Quando se observa algo que não estava previsto no sistema médico, pode-se fazer silêncio a respeito e, muitas vezes, há o encaminhamento para profissionais da área “psi,” como psicólogos e psiquiatras. Movimento este que pode ser entendido como o reconhecimento de uma exceção, mas que é evitado falar sobre.
4- Quando algo não previsto é observado pode-se também realizar grandes esforços para explicar a exceção nos termos que não contradigam o sistema. A biomedicina tem um importante instrumento para tentar incorporar as exceções em seu modelo: as classificações. O DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- 4a. edição) e a CID-10 (Classificação Internacional das doenças - 10ª edição) são recursos nos quais se torna possível inserir o imprevisto na ordem do previsto.
5- Apesar dos legítimos direitos das concepções contraditórias, se tende a ver, descrever, e inclusive formar, somente as circunstâncias que corroborem com a concepção dominante. Nesse sentido, é como se pudesse transformar esta idéia em realidade. Desse modo, a contradição do modelo anátomo-clínico dificilmente é admitida, e as doenças são coisificadas, vistas efetivamente como “reais”.
Assim, a partir da epistemologia de Fleck verificamos que uma importante estratégia em biomedicina para lidar com as exceções de seu sistema é a tentativa de incorporação daquilo que não estava previsto. Podemos considerar, então, que desse modo parcial – através do estabelecimento de categorizações - a biomedicina consegue objetivar aquilo que não lhe parece visível. Apesar de classificar tem poucos recursos para tratar, ficando comumente restrita ao uso de fármacos . E talvez pela sua ineficácia terapêutica para responder a estas questões, a prática médica quando se depara com as manifestações subjetivas continua fracassando, tornando-as persistentes anomalias, como sugere Kuhn, ou exceções, como afirma Fleck.