0211/2006 - As Arranhaduras da Masculinidade: Uma Discussão sobre o Toque Retal como Medida de Prevenção do Câncer Prostático
The touch in the masculinity: A discussion about the rectal digital examination cancer prostrate prevention
Autor:
• Romeu Gomes - Romeu Gomes - Rio de Janeiro - Instituto Fernandes Figueira - FIOCRUZ - <romeugo@gmail.com> +ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3100-8091
Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
O presente estudo tem por objetivo analisar os sentidos atribuídos ao toque retal, buscando refletir acerca de questões subjacentes a falas masculinas a partir de aspectos do modelo hegemônico de masculinidade. O método do estudo baseia-se numa abordagem de pesquisa qualitativa, através de entrevistas semi-estruturadas, com 28 homens, realizadas na cidade do Rio de Janeiro, em 2004. Dentre os principais resultados, destaca-se a idéia de que o exame do toque retal pode suscitar interdições e violações, podendo ser percebido como algo que compromete o que se entende comumente por ser homem; ou seja, o toque retal não toca apenas a próstata, mas também toca na masculinidade, podendo arranhá-la. Conclui-se que, para a compreensão e problematização das questões sobre a prevenção do câncer prostático, em específico, e as relacionadas ao cuidar de si masculino, em geral, se faz necessário levar em consideração os aspectos estruturais e simbólicos que perpassam tais questões.Palavras-chave: câncer de próstata, prevenção, toque retal, masculinidade
Abstract:
The present study is aimed to analyze the meanings attributed to the digital rectal examination, looking for the reflection of the underlying subjects to masculine discourse starting from aspects of the predominant manliness model. The study method is based in an approach of qualitative research, by semi-structured interview, with 28 men performed in Rio de Janeiro city, in 2004. Among the main results, the idea that the digital touch examination can produce interdictions and violations emphasizes, it can be realized as something that compromises the current understanding of what is to be male, i. e., the digital rectal examination does not affect only the prostate, it also affects the masculinity and puts it to shame. It concluded from it that is necessary to think the symbolic and structural aspects to understand and to analyze critically the questions on prostate cancer prevention itself and those related to male self-care in general.Key words: prostrate cancer, prevention, digital rectal examination, masculinity
Conteúdo:
O câncer de próstata é o tipo de neoplasia mais prevalente em homens, com estimativa de 1,5 milhões com diagnósticos nos últimos anos1. Um em cada seis homens, com idade de 45 anos, pode ter a doença sem que nem sequer saiba disso2 , possivelmente pelo fato deste tipo de doença, muitas vezes, se desenvolver de forma assintomática, induzindo os homens à crença de que, se não apresentam sintomas, é porque não estão doentes.
Na literatura médica sobre o assunto, é recorrente a idéia de que o câncer de próstata pode ser detectado precocemente através de métodos de triagem3 e que o diagnóstico precoce da doença é a única maneira de evitar e reduzir a mortalidade deste tipo de câncer4.
O Instituto Nacional de Câncer-INCA5 procura regular a detecção precoce do câncer de próstata, apresentando recomendações que surgiram a partir de consensos. Nesse sentido, recomenda que seja realizado “o rastreamento oportunístico (case finding), ou seja, a sensibilização de homens com idade entre 50 e 70 anos que procuram os serviços de saúde por motivos outros que não o câncer da próstata sobre a possibilidade de detecção precoce deste câncer (...)”5 (p.4).
A Sociedade Brasileira de Urologia-SBU6, por sua vez, recomenda que os homens que têm acima de 50 anos e os que têm 40 anos, com histórico familiar de câncer de próstata, pensem na possibilidade de “ir anualmente ao urologista para fazer check-up da próstata” (p. 37), mesmo que não tenha sintomas urinários.
Em termos de diagnóstico precoce do câncer de próstata, costuma-se recomendar o exame clínico (toque retal ou toque digital da próstata) e o exame de sangue para a dosagem do antígeno prostático específico, conhecido por PSA, sigla inglesa da expressão prostatic specific antigen, informando-se sobre as limitações, os benefícios e os riscos da detecção precoce do câncer de próstata5.
Essa recomendação tem apoio na literatura médica internacional. Uma revisão literária sistemática7 de artigos publicados e indexados pela Medline e Pubmed, no período 1966 a 2003, concluiu que o valor sérico do PSA associado ao toque retal é o método de maior sucesso no diagnóstico do câncer prostático.
Entretanto, tal recomendação é polemizada por inúmeros estudos. Walsh e Worthington 8, por exemplo, questionam o toque retal, afirmando que muitos homens quando têm o câncer prostático detectado por esse exame já se encontram em estado avançado da doença. Já Shimizu9 traz o posicionamento de Thomas Stamey da Universidade de Stanford (EUA), que coloca em xeque o PSA, afirmando que tal exame tem seus dias contados. Stamey foi um dos primeiros a defender esse exame, mas atualmente – baseado em pesquisa por ele liderada e em outros estudos – questiona tanto a sua eficácia quanto à necessidade de ser utilizado o PSA, defendendo o toque retal ainda como a melhor solução.
Em se tratando da realização do toque retal como medida preventiva secundária do câncer prostático, independentemente da polêmica quanto a sua eficácia, a discussão não pode desconsiderar aspectos simbólicos que interferem diretamente na decisão de realizar exame/diagnóstico, criando barreiras para a maioria dos homens, uma vez que o toque retal pode ser visto como uma violação ou um comprometimento da masculinidade4,10. Tanto na clínica – no âmbito das relações de escuta e tratamento – como na Saúde Coletiva – no campo da prevenção da doença e da elaboração de políticas de assistência à saúde do homem – essas questões não se encontram suficientemente debatidas, demandando um maior investimento nessa discussão.
A partir dessa perspectiva, no presente estudo, pretendemos analisar os sentidos atribuídos ao toque retal por parte dos homens, procurando problematizar questões subjacentes às falas masculinas a partir de aspectos do modelo hegemônico de masculinidade.
A masculinidade, numa perspectiva relacional de gênero, pode ser vista como um espaço simbólico que serve para estruturar a identidade de ser homem, através de prescrições a serem seguidas por aqueles que desejam receber o atestado de masculinidade e não sejam questionados e nem objetos de estigma por parte daqueles que compartilham dessas prescrições11. Dentre os “diversos modelos de masculinidade disponíveis, alguns são mais valorizados e exaltados, enquanto outros são desprezados e subordinados, no mesmo contexto” 12 (p.64).
Na relação entre os diferentes modelos de masculinidade, aquele que consegue ser mais valorizado, com maior legitimidade, e se apropriar de outros modelos, concentrando maior poder, pode ser considerado hegemônico. Tal modelo, idealmente formulado e dificilmente seguido por todos os homens, consiste numa referência que, ao mesmo tempo, se impõe e se relaciona com os modelos alternativos ou subordinados. No modelo da masculinidade hegemônica, destacam-se como eixos estruturantes a dominação e a heterossexualidade.
Desenho Metodológico
Nosso estudo é parte de uma investigação que procurou problematizar aspectos relacionados ao modelo hegemônico da masculinidade que podem impedir homens de cuidar de sua própria saúde, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 2004. Essa investigação pautou-se numa abordagem de pesquisa qualitativa, aqui entendida como um conjunto de práticas interpretativas que busca investigar os sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem13, 14. Nessa abordagem, baseados em princípios da hermenêutica-dialética15, procuramos compreender e contextualizar os sentidos subjacentes às falas dos sujeitos investigados.
Os sujeitos do estudo foram selecionados a partir de uma prática bastante usual em pesquisa social sobre os universos familiares16, 17, em que pessoas conhecidas do pesquisador indicam outras a serem entrevistadas, que, por sua vez, indicam outras conhecidas. Ao longo da pesquisa, nem sempre foi possível contar com a indicação de uma pessoa conhecida dos entrevistados, fazendo com que novas cadeias de informantes fossem iniciadas.
A amostra de conveniência foi composta a partir dos seguintes princípios: (a) escolher os sujeitos que detém os atributos relacionados ao que se pretende estudar (no caso deste trabalho homens a partir de 40 anos – foco da prevenção de câncer de próstata – residentes ou que trabalhem na cidade do Rio de Janeiro, e médicos com experiência de trabalho relacionada ao câncer de próstata de, no mínimo dois anos); (b) considerar tais sujeitos em número suficiente para que possa ter uma certa reincidência das informações; (c) levar em conta a possibilidade de inclusões sucessivas de sujeitos até que seja possível uma discussão densa das questões da pesquisa. Assim, a amostra não buscou uma representatividade numérica e sim um aprofundamento da temática18 .
A coleta dos dados se apoiou em entrevistas semi-estruturadas, realizadas em horários e locais escolhidos pelos entrevistados, em um único encontro, durando em média de 1h30min. Nesse tipo de coleta, procuramos estabelecer uma conversa dirigida com os entrevistados em torno de temas que integravam o objeto da pesquisa. No caso deste recorte da pesquisa, focalizamos questões relacionadas aos cuidados da saúde do homem, à prevenção do câncer de próstata em geral e ao toque retal em específico.
Em termos de procedimento analítico adotado no trato dos depoimentos, neste estudo utilizamos o método de interpretação de sentidos19, com base em princípios hermenêuticos-dialéticos para a interpretação do contexto, das razões e das lógicas dos depoimentos que giraram em torno das temáticas do estudo.
Na trajetória analítico-interpretativa, percorremos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva, visando impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades do material gerado pela pesquisa original; (b) identificação e recorte temático dos depoimentos sobre a realização do toque retal como medida de prevenção secundária para o câncer prostático; (c) identificação e problematização das idéias explícitas e implícitas no texto; (d) busca de sentidos mais amplos (sócio-culturais) que articulam as falas dos sujeitos da pesquisa; (e) diálogo entre as idéias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto e o referencial teórico do estudo; e (f) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos.
O projeto de pesquisa da qual se insere este trabalho foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz, em cumprimento da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Para garantir o caráter sigiloso das informações, os depoimentos dos entrevistados foram codificados com nomes fictícios iniciados pela letra “A” para os homens do Grupo I, com a letra “M” para os do Grupo II e com a letra “D” para os médicos.
Caracterização dos Sujeitos do Estudo
Com base em critérios de amostra de conveniência, entrevistamos 18 homens que moravam ou trabalhavam na cidade do Rio de Janeiro, que foram agrupados da seguinte forma: Grupo I: homens de baixa ou nenhuma escolaridade; Grupo II: homens de nível superior. Essa organização se deu para se problematizar possíveis influências do grau de instrução no que se refere a ações preventivas do câncer de próstata. Além desses sujeitos, foram ouvidos 10 médicos para que pudéssemos estabelecer um diálogo de suas falas com as dos outros dois grupos.
O Grupo I foi composto por 10 homens com idades entre 45 e 57 anos. Seus integrantes se autodeclararam, em sua maioria, pardos (7). Os demais se autodeclararam branco (1), preto (1) e amarelo (1). Nove deles cursaram até a quarta série do Ensino Fundamental e um respondeu não ter nenhuma instrução. Entre eles, 9 eram casados e 1 afirmou ser solteiro. A renda mensal dos entrevistados apresentou uma média de 3,3 salários mínimos, sendo que o menor rendimento foi de 1 salário mínimo e o maior de 8 salários mínimos. Na época da coleta das informações, em 2004, o salário mínimo do Estado do Rio de Janeiro era de R$ 305,00. Entre as atividades exercidas, destacaram-se as de carpinteiro, pintor e armador, além de ascensorista, mestre de serviços operacionais, pedreiro e servente. A maioria deles residia em municípios vizinhos à cidade do Rio de Janeiro.
O Grupo II foi composto por 8 homens. Os entrevistados tinham entre 40 e 64 anos e se autodeclararam brancos (4), pretos (2) e pardos (2). Em relação ao estado civil, quatro eram casados e quatro solteiros. A renda mensal dos entrevistados apresentou uma média aproximada de 15 salários mínimos, sendo que o menor rendimento foi de 08 e o maior de 20 salários mínimos. Entre as atividades exercidas, foram verificadas as profissões de professor, psicólogo, engenheiro, advogado e economista. Todos residiam na cidade do Rio de Janeiro.
Entre os médicos entrevistados, cuja caracterização contemplou apenas o tempo de experiência e formação acadêmica, 1 estava envolvido com a prevenção do câncer de próstata (atuando no INCA) e 9 eram especialistas ou residentes em urologia. A média de idade do grupo era de 44 anos, sendo que 7 encontravam-se na faixa entre 40 e 55 anos e 3 na faixa entre 25 e 30 anos. Quanto ao tempo de experiência no campo específico do câncer de próstata, 5 tinham mais de 20 anos de experiência e 5 menos de 3 anos de experiência profissional. O médico com maior tempo de experiência (30 anos) tinha como maior titulação o mestrado, no entanto, a maioria dos entrevistados (6) tinha como maior título a residência médica. Outro dado interessante na caracterização dos médicos é que o com maior titulo acadêmico (doutorado) era o que tinha menor experiência no tratamento e prevenção do câncer de próstata (2 anos).
O Cenário da Detecção Precoce do Câncer de Próstata
Antes de iniciarmos a discussão dos aspectos simbólicos relacionados à realização do toque retal como detecção precoce – aqui entendida como prevenção secundária – do câncer prostático é necessário apontarmos aspectos relacionados ao contexto onde tal discussão se insere. Inúmeras questões, tangenciadas pelos aspectos simbólicos relacionados a problemas de busca masculina por cuidados em saúde e ao câncer em geral – compõem o cenário dessa discussão. Tais questões – se negligenciadas – podem comprometer a produção de um conhecimento necessário para que se possa agir frente aos problemas suscitados pelo toque retal.
Caminhando nessa direção, observamos que não estamos tratando de uma prevenção qualquer. Estamos falando de ações que, de uma forma ou outra, mexem com sentimentos que surgem a partir da representação do câncer como um mal, visto no senso comum como fatal. Independente de ser homem ou mulher, as pessoas – quando são acometidas por esses sentimentos – podem ser impedidas de buscar diagnósticos que precocemente detectem tal doença e contribuam para um efetivo tratamento. “Historicamente o câncer vem sendo associado a experiências malditas e servindo como metáforas para diversas ordens de infortúnios físicos, mentais e sociais. Freqüentemente somos lembrados dos diferentes tipos de ‘cânceres’ sociais. A violência, a desintegração familiar, o uso de drogas e a corrupção têm sido referidos como perturbadores da ordem e, conseqüentemente, denominados câncer” 10 (p.201).
Em nosso estudo, transversalmente a todos os fatores que dificultam a realização do toque retal, está presente o medo dos homens buscarem um diagnóstico precoce para o câncer prostático, gerado pela associação de câncer à morte. Como diz um dos médicos entrevistados:
“O Câncer no coletivo social está muito ligado à morte (...) é comum (...) as pessoas (...) falarem ‘aquela doença’ (...) e isso certamente mexe muito com (...) a busca do diagnóstico” (Damião).
O fato de se falar de uma doença, que às vezes nem o nome se pronuncia, pode comprometer a busca de um diagnóstico a ela relacionada. A idéia do que não é pronunciado pode ter influenciado alguns dos nossos entrevistados quando falam:
“[Dependendo] dos exames [o homem] tem aquela cisma, aquele medo” (Adalberto).
“Eu acho que tem... um temor terrível (...) de encarar qualquer possibilidade de que algo vai mal” (Murilo).
Não podemos descartar a possibilidade de “aquela cisma” e “algo vai mal” estarem no lugar do câncer como algo que não se pronuncia.
A não busca de medidas preventivas do câncer de próstata também pode ser influenciada por aspectos culturais que refletem na socialização dos homens em geral. Segundo um dos entrevistados, “o homem não se interessa de se cuidar mesmo da saúde (...) Já a mulher (...) ela se interessa (...) A mulher se cuida mais do que o homem” (Almir).
A possível indiferença em relação ao cuidar de si por parte dos homens pode ser explicada a partir da perspectiva da construção social. Segundo essa perspectiva mulheres e homens pensam e agem de maneira diferenciada porque são influenciados pela construção de uma feminilidade e masculinidade ditada por sua cultura, ou seja, os indivíduos são estimulados a adaptar-se a estereótipos que os leva a assumir normas dominantes de feminino e masculino20. Tais normas, culturalmente construídas, podem suscitar sentimentos e comportamentos que se diferenciam por gênero.
A necessidade de responder a uma norma de masculinidade também afeta a solicitação, por parte dos homens, de atenção aos serviços de saúde. Para o homem, é muito difícil ocupar o papel de paciente e, com freqüência, nega a possibilidade de estar enfermo e procura um médico, só em último caso, já que ao contrário poderia estar assumindo um papel passivo, dependente e de fragilidade21.
Junto aos aspectos simbólicos que interferem na busca de cuidados de saúde em geral por parte dos homens, há outras questões de ordem mais estrutural que também podem impedir tal busca. Nesse sentido, as falas dos nossos entrevistados apontam para: (a) dificuldades em se conciliar o atendimento dos serviços de saúde com as jornadas de trabalho dos homens que necessitam dos serviços públicos; (b) falta de recursos financeiros para se conseguir um atendimento privado ou para se ter acesso a exames complementares; (c) precarização dos serviços públicos em atender às demandas de cuidados em saúde da população em geral. Ilustram esses aspectos os seguintes depoimentos:
“Pra pessoa cuidar da saúde tem que (...) matar aquele dia (...) ai fica difícil pra gente (...) que trabalha (...) não tem um tempo suficiente” (Alberto).
[Existe a dificuldade de se ter] “acesso ao sistema de saúde (...) mesmo aqui no hospital no ponto de vista preventivo a gente ainda fica muito limitado porque a demanda (...) é muito grande” (Diogo).
Essas questões apontadas pelos nossos sujeitos não se relacionam apenas às especificidades de segmentos masculinos, mas também podem ser fatores impeditivos para a população em geral, principalmente no que se refere aos grupos economicamente mais desfavorecidos.
Entretanto, as condições estruturais não podem ofuscar a coexistência de outros problemas, de ordem mais simbólica, que fazem com que os homens não procurem medidas preventivas do câncer prostático nos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados. Isso pode ser melhor discutido quando olhamos para alguns dos homens entrevistados do Grupo II que, embora tenham melhor nível socioeconômico e jornadas de trabalho mais flexíveis do que os homens do Grupo I, também não buscam serviços de saúde e pouco ou nada se cuidam. As falas de alguns médicos também ilustram essa situação quando dizem que eles próprios não buscam os cuidados de saúde.
Outro aspecto que compõe o cenário da nossa discussão se relaciona a questões de informações e escolaridade. Entre os médicos entrevistados por nós, há um pressuposto de que a informação pode influenciar na decisão dos homens, tanto em relação ao autocuidado em geral como também em relação à prevenção do câncer de próstata, principalmente no que diz respeito a realizar o toque retal.
Ilustrando esse posicionamento, destacamos a fala de um urologista: “O cara que vem aqui no consultório ele vem porque precisa vir. Ele vence barreiras. Mas essas barreiras existem. Ele consegue vencer as barreiras porque ele [tem] informação” (Douglas).
No que se refere à realização do exame de toque retal, entre os nossos entrevistados, aparentemente, o grau de escolaridade pode se relacionar a tal decisão. Entre os 10 entrevistados de baixa ou nenhuma escolaridade (Grupo I), observamos que 9 responderam que não havia feito o exame, mesmo estando na faixa etária onde é recomendado que se faça. Já em relação aos 8 entrevistados com nível superior (Grupo II), 5 afirmaram ter realizado o exame do toque retal.
Esses números, entretanto, necessariamente não são indicativos de uma associação entre grau de escolaridade, informação e realização do toque retal. A facilidade de ter acesso aos serviços de saúde, por exemplo, pode ser outro fator que contribui para a realização de tal exame. Por outro lado, o nosso interesse não é discutir o quanto de homens faz exames preventivos e quais fatores interferem nesse quantitativo. Se fosse esse o nosso interesse, não trabalharíamos com uma amostra de conveniência e sim com um desenho de estudo randomizado. Interessa-nos discutir os sentidos atribuídos ao toque retal e à prevenção do câncer prostático em geral para os homens.
Segundo Lucumi-Cuesta e Cabrera-Arana22, a falta de informação sobre a prevenção ou sobre o tratamento do câncer de próstata pode estar relacionada a baixos níveis de escolaridade. Eles concluíram que a desinformação atinge com maior intensidade a população masculina com menor nível de escolaridade e poder socioeconômico, demandando ações educativas voltadas, principalmente, para este grupo.
De acordo com Nascimento4, a escolaridade, associada à idade, é um elemento significativo para a realização do exame do toque retal. Segundo o autor, homens – mais novos e com maior escolaridade – disseram não ter muitas restrições para realizar o exame de toque retal apesar de que, em alguns casos, teriam hesitado em realizá-lo. Já homens mais velhos e com pouca escolaridade teriam mencionado não ter realizado o exame, pois não teriam apresentado sintomas, o que revelaria, “conhecimento fragmentado da doença, não a associando à idade” 4 (p.15).
Por outro lado, na própria literatura médica sobre o assunto, observamos sólidos argumentos de que nem sempre a informação resulta em prevenção. Miranda e colaboradores3, por exemplo, concluíram que 20,7% dos professores-médicos de uma universidade estudados, mesmo tendo acesso fácil à informação e aos serviços de diagnóstico clínico e complementar, nunca realizaram práticas preventivas para o câncer de próstata. Assim, o acesso à informação pode ser um caminho para a prática preventiva, porém não justifica, por si só, a não realização desta.
Não temos a intenção de saber se os homens que se previnem contra o câncer prostático são ou não influenciados pela informação e o seu grau de escolaridade. Neste estudo, interessa-nos compreender os sentidos atribuídos ao toque retal como medida preventiva do câncer de próstata e se esses sentidos se diferenciam ou não a partir do grau de escolaridade. Essa discussão será retomada por nós na parte final da interpretação dos achados do nosso estudo.
Abordar esses e outros aspectos, aqui apontados como cenário da detecção precoce do câncer de próstata, é de fundamental importância para a busca de medidas preventivas mais efetivas. No entanto, neste estudo, recortamos como foco de discussão as questões simbólicas presentes nas falas dos sujeitos no que se refere à realização do toque retal. Nesse sentido, subjacente às dificuldades masculinas, nós procuraremos problematizar a influência do modelo hegemônico de masculinidade, socialmente construído, presente nos sentidos atribuídos a esse exame.
O Toque na Masculinidade
O toque retal não pode ser visto apenas como um exame físico que pode diagnosticar precocemente o câncer de próstata. Esse exame não toca apenas na próstata. Ele toca em aspectos simbólicos do ser masculino que, se não trabalhados, podem não só inviabilizar essa medida de prevenção secundária como também a atenção à saúde do homem em geral. Com base na interpretação das falas dos nossos entrevistados, podemos dizer que, mais do que na próstata, o toque retal toca na masculinidade.
Seguindo na direção dessa discussão, de início, observamos que os homens dos Grupos I e II ancoraram suas opiniões em relação ao toque retal em idéias do modelo hegemônico de masculinidade. Nesse sentido, independentemente do nível de escolaridade, os entrevistados lançaram mão das seguintes idéias do que é ser homem: “bruto”, “forte”, “agressivo”, “tem iniciativa sexual (ativo)”, “vive mais na rua” e “gosta de pular a cerca (é sexualmente infiel)”. O fato de terem utilizado tais idéias para compor suas falas não significa que necessariamente com elas concordavam. Uns as utilizavam quase que como “verdades”, enquanto outros faziam críticas sobre elas. Num e noutro caso, podemos dizer que essas idéias compunham o imaginário dos entrevistados, sendo subjetivadas de formas diferenciadas.
Essas idéias do que é ser homem – reflexos de aspectos do modelo de masculinidade hegemônica – serviram de referência para os entrevistados atribuírem sentidos à realização do toque retal. Esses sentidos, que não se excluem mutuamente, assim como as idéias de ser homem, não variaram pelo grau de escolaridade dos entrevistados. Foram utilizados com ou sem crítica tanto pelos homens do Grupo I como os do Grupo II.
O primeiro sentido atribuído ao toque retal foi o de invasão de um espaço interdito do corpo masculino:
“[Para um homem] já é difícil que um outro homem introduza o dedo no seu ânus” (Damião).
“Não me sinto bem à vontade de alguém chegar e dar um toque em mim ali no lugar [se referindo ao ânus]” (Adalberto).
“Tudo que diga respeito a (...) examinar o ânus (...) fica um pouco mais difícil” (Marcos).
Estudo qualitativo realizado na Colômbia com homens de vários estratos sociais, de uma certa forma, reforça a idéia de espaço interdito, uma vez que, dentre os seus achados acerca do efeito do toque retal sobre a masculinidade, concluiu que para alguns homens a zona anal masculina é percebida como uma parte que não deve ser explorada23.
As falas dos nossos sujeitos sobre partes interditas dos homens nos remetem a questões culturais mais amplas acerca da construção do corpo no espaço relacional de gênero. A construção do corpo masculino “ideal” envolve, antes de tudo, a idéia de oposição complementar do corpo feminino24. Essa oposição não se dá pela parte traseira do corpo. O traseiro – com o seu orifício como parte macia, semi-aberta e frágil – se associa à parte mais feminina do corpo masculino25; enquanto a parte dianteira diferencia o homem da mulher, a parte traseira a ela o iguala. Se o pênis é uma marca do ser homem, a nádega é o outro lado da medalha. Nesse sentido tocar nessa parte “inferior” pode comprometer a masculinidade de quem se deixa tocar23 e, portanto, “o homem se sente humilhado em ter que fazer o exame físico” (Diogo).
A interdição de partes do corpo reflete que culturalmente há uma regulação do que pode ser mostrado e o que não deve ser mostrado. Como diz um dos entrevistados: “eu me sinto constrangido (...) a gente mostra a língua, mas não pode mostrar o [ânus], não é? (...) eu acho que isso é tabu” (Márcio). Essa fala revela uma lógica de que, quando se percorre lugares interditos, o mínimo que pode ocorrer é haver um constrangimento, ainda que se faça uma crítica à interdição.
Se o simples fato de tocar nas nádegas pode indicar que uma parte interdita do corpo masculino está sendo invadida, o toque retal pode simbolicamente ser visto como uma violação da masculinidade, uma vez que se associa à penetração sexual. As falas dos nossos entrevistados são bastante ilustrativas:
“Eu acho que [os homens em geral] devem pensar, entre aspas, que (...) estão sendo violentados (...) mas isso não se encaixa na minha cabeça” (Milton).
“Não vai (...) me enfiar o dedo porque eu sou macho, compadre (...) essa mentalidade (...) afasta o homem (...) acho que o homem associa à penetração” (Mário).
“(...) Sexo anal...que eu acho que é o que acabam associando ao toque retal” (Damião).
O fato de ter que ser penetrado pode fazer com que os homens expressem constrangimentos e resistências, uma vez que a imagem do masculino se associa ao penetrador (ativo) e não ao ser penetrado (passivo). Assim, a condição de ser passivo no momento do exame poderia conspirar contra o modelo vigente de ser masculino 4.
Ampliando a discussão, o toque retal pode suscitar nos sentimentos mais recônditos dos homens a inversão do masculino. Ser passivo se associa ao ser penetrado ao ser “comido”. Metaforicamente são as mulheres e os “veados” que são “comidos” pelos homens25.
A partir dessa reflexão, o toque retal pode não ser visto apenas como uma penetração física. Tal exame, simbolicamente, pode ser associado à violação do ser masculino via penetração. Por isso, ninguém vai “me enfiar o dedo porque eu sou macho”.
A associação do toque retal à violação da masculinidade também foi encontrada por estudo realizado na Colômbia 23. Entre os seus entrevistados, alguns viram o toque retal como uma violação e humilhação a ponto de ser considerado a pior coisa que a eles aconteceram.
Outro sentido atribuído ao toque retal vincula-se à possibilidade de haver excitação. Ocorrida a excitação, indicada pela ereção do pênis, surge o grande medo de pensar que o médico pode achar que o homem está gostando de ser tocado e isso pode colocar em risco a sua masculinidade:
“Eu acho que existe um medo muito grande da excitação (...) Do excitar-se com isso (...) e de isso poder ser mostrado para o outro (...) justamente (...) a zona anal (...) é o grande temor do homem (...) poder ter a possibilidade de sentir algum tipo de prazer nessa área ou de poder pelo menos sentir essa área (...) é um grande risco” (Marcos).
Em relação à possibilidade de ter uma ereção com o toque, Gomes 26 observa que “no imaginário, a ereção pode estar associada tão fortemente ao prazer que não se consegue imaginá-la como uma reação fisiológica” (p. 828).
Junto à possibilidade de se excitar por conta do toque, há também, no senso comum, como diz um dos nossos entrevistados, “determinado tipo de piada [que diz que] se o cara gostar do toque e aí [risos] fica viciado” (Miguel).
Tanto ter ereção por conta de ser tocado por outro homem numa parte interdita, como gostar e ficar excitado, a partir do toque, são sentidos dissonantes com o modelo hegemônico de masculinidade. Assim, o toque retal pode ser visto como algo que conspira contra esse modelo.
A experiência de ter sido penetrado pelo dedo, com fins de detecção precoce, foi diferenciada nos dois grupos. No Grupo I (homens com baixa ou nenhuma escolaridade), apenas um entrevistado mencionou ter feito esse exame e sua experiência aponta para uma violação simbólica de sua masculinidade: “Eu [me] senti (...) rebaixado com aquilo que ele [o médico] fez” (Américo).
Entre os entrevistados de baixa ou nenhuma escolaridade a resistência ao exame é maior. Não só pelo fato de apenas um deles ter feito o exame, mas também pelo fato de não terem grandes informações relativas ao exame. Mas os homens de baixa ou nenhuma escolaridade também abordam a importância do exame de toque retal, apesar de não saberem explicar como ele se processa e de não terem, em sua grande maioria, realizado o exame.
Já o Grupo II (composto pelos sujeitos de nível superior) parece tolerar mais o fato de terem que realizar o exame de toque retal. Tanto é que a maioria dos entrevistados já havia realizado o exame.
“Se tivesse outra forma seria melhor (...) porque é uma coisa meio constrangedora. A primeira vez que eu fiz, cara, eu sai dali meio, me achando assim, puta que pariu (risos) uma coisa terrível” (Marcelo).
“Eu já tive que fazer (...) doeu pra cacete [foi] uma sensação desagradabilíssima (...) Mas não tenho trauma” (Mário).
“É uma coisa meio constrangedora, mas não chega a ser o fim do mundo” (Marcelo).
“Eu me senti bem (...) sem nenhum trauma, nem nada” (Mateus).
“Não, não vejo problema até no sentido de que (...) a masculinidade (...) está muito calçada na visão do outro, sobre você, do que basicamente na sua (...) eu não vejo o exame do toque retal como uma ofensa ou uma desconstrução daquela sexualidade” (Miguel).
Essas falas nos apontam que existem diferentes formas de se subjetivar o exame em questão. Segundo elas, o exame, de um lado, pode suscitar constrangimento, dor (física e simbólica) e, de outro, pode ser superado. Nos revela também que, ainda que possa ser visto, em princípio, como uma violação da masculinidade pelo senso comum, ele pode não ser percebido dessa forma por determinados homens. Mas, para alguns homens, se houvesse uma outra forma de exame seria melhor. Em outras palavras, o fato de ser examinado pelo toque retal porque se tem consciência de que deve ser feito tal exame não torna o procedimento menos constrangedor.