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1247/2008 - O AGIR EM SAÚDE DA FAMÍLIA: AS CONDIÇÕES EXISTENTES E NECESSÁRIAS PARA A INTERAÇÃO E TROCA DE CONHECIMENTOS NA PRÁTICA PROFISSIONAL
THE ACTING IN FAMILY’S HEALTH: THE EXISTING AND NECESSARY CONDITIONS FOR THE INTERACTION AND THE KNOWLEDGE EXCHANGE AMONG THE PROFESSIONALS

Autor:

• Maria Glícia Rocha da Costa e Silva de Noronha - Noronha, Maria Glícia Rocha da Costa e Silva - Curitiba, Parana - Prefeitura Municipal de Curitiba - <mglicia@gmail.com>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Este texto relata parte dos resultados de pesquisa realizada no período de 2005 a 2007 na Unidade de Saúde da Família Jardim Pinheiro, no Distrito Sanitário de Santa Felicidade, em Curitiba – PR. Investigou-se as condições existentes e necessárias para a interação e troca de conhecimentos entre profissionais das equipes do PSF. Realizou-se um estudo qualitativo descritivo, utilizando a entrevista semi-estruturada e a observação direta para coleta de dados. Constatou-se que a implantação do PSF investigado deu-se dissociada de uma discussão coletiva com os profissionais diretamente implicados, fato justificado em discursos que manifestam incertezas e inseguranças quanto à implantação da proposta. Verificou-se um distanciamento entre o que está posto nas regulamentações e documentações oficiais da concepção do PSF e a organização perceptível da realidade. Considerando a concepção e prática deste programa, verificou-se a necessidade de pensar e agir sobre os processos de trabalho, acionando dispositivos para alterar relações técnicas e sociais presentes no cotidiano do trabalho das equipes, reconhecendo que a formação de profissionais em saúde abrange distintas esferas humanas: social, procedimental, afetiva, do conhecimento, de conduta e de manifestação da vontade. Palavras-chave: Saúde, Trabalho e Educação; Programa de Saúde da Família; Equipe Multiprofissioal de Saúde

Abstract:

This paper describes the main conclusions of a research developed from 2005 to 2007 in the Family’s Healthcare Unit Jardim Pinheiro, in the Sanitary District of Santa Felicidade, in Curitiba – PR. It was investigated the existing and necessary conditions for the interaction and the knowledge exchange among the professionals of the PSF teams. A descriptive qualitative study has been accomplished, using the half structuralized interview and the direct observation as methods of data collection. It has become clear that the investigated PSF’s establishment was spread by collective discussion between the directly involved professionals, an evident fact in statements that reveal doubt and insecurity to the proposal’s introducing. It has been verified a distance between what is rank in official regulations and documents about the PSF conception and the reality’s perceivable organization. Considering this program’s conception and practice, it has been verified the importance of thinking and acting on the work processes, operating devices in order to modify technical and social relations in daily team’s works, recognizing the different human areas included in the health professional’s formation: social, procedural, affective, of knowledge, of conduct and of intent expression. Key-Words: Health, Work and Education; Family’s Health Program; Multiprofessional Healthcare Team

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
A pesquisa realizada inseriu-se no esforço de produção do conhecimento sobre a realidade de programas estruturados para oferecer Atenção Básica à Saúde, buscando contribuir para a identificação e discussão de questões relacionadas ao trabalho e às condições de trabalho dos programas no campo da Saúde Coletiva. Para o desenvolvimento da pesquisa buscou-se referenciais e concepções sobre processo de trabalho e o trabalho coletivo em saúde, com ênfase sobre a multiprofissionalidade e interdisciplinaridade do trabalho em equipe, a interação e a formação em saúde no contexto do PSF.
Nos tópicos a seguir apresentaremos inicialmente elementos dos referenciais teóricos que orientaram a pesquisa, em especial os relativos aos conceitos de trabalho, trabalho em saúde, interação e formação em saúde. Em seguida explicitaremos os procedimentos metodológicos seguidos do desenvolvimento da pesquisa e na sequência faremos uma apresentação sintética dos principais resultados encontrados, concluindo com algumas considerações sobre o estudo realizado e sobre a necessidade de aprofundar estudos relativos à temática.
O PROCESSO DE TRABALHO, A INTERAÇÃO E A FORMAÇÃO EM SAÚDE
Para Marx, o ser humano não é algo dado, acabado. Ele é processo, torna-se homem. Primeiro, produz-se a si mesmo e, ao fazê-lo, se determina como um ser em transformação, e, segundo essa realização, só pode ter lugar na história, em relação aos outros homens e às condições naturais encontradas em sua época1.
Através do trabalho o ser humano, enquanto ser social, responde à necessidade ontológica fundamental de existência como ente objetivo, real, corpóreo2. Como atividade humana tem em sua essência o objetivo de alterar o estado natural dos materiais existentes no meio ambiente para serem melhor utilizados, adequando a satisfação das necessidades de produção e reprodução social3;4.
Ao realizar o trabalho e atuar sobre essa natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, transforma-se a si mesmo, pois é produto de seu trabalho num movimento dialético de exploração/alienação e de criação/emancipação7. Ele produz algo que já estava, antecipadamente, idealizado em sua imaginação, e este fato o diferencia de outros animais; é a dimensão/concepção ontológica do trabalho2;3;4;5;6.
Diferentes estudos8;9;10;11;12;13que abordam o processo de trabalho em saúde afirmam que é um trabalho essencial para a vida humana, compartilha características comuns a outros processos de trabalho e é parte do setor de serviços. Se funda numa inter-relação pessoal intensa, decisiva para a própria eficácia do ato, possuindo dimensões intercomplementares e interatuantes11. É especial, da esfera não-material, centrado no trabalho vivo em ato permanente que se completa na sua realização; Seu produto é indissociável do processo que o produz, ocorrendo na própria realização da ação14.
Mendes-Gonçalves8;9;10 analisou o objeto, os instrumentos, a finalidade e os agentes do trabalho e relevou a necessidade de que estes precisavam ser estudados de forma articulada, já que em sua relação recíproca configura um processo de trabalho específico. Demonstrou que o objeto de trabalho vai se transformando pela ação do trabalhador e se configura como as necessidades humanas de saúde.
Aponta, ainda, os instrumentos do processo de trabalho em saúde, classificando-os em materiais (equipamentos, material de consumo, medicamentos, dentre outros) e não-materiais (os saberes dos agentes do trabalho)8. O saber operante se articula com determinados arranjos realizados pelos agentes do trabalho e pelos instrumentos materiais, permitindo a apreensão do objeto de trabalho.
A dinâmica entre objeto, instrumento e atividade dá-se mediada pela presença e ação do agente, o que configura o processo de trabalho. Nesse processo, o agente pode ser interpretado como instrumento do trabalho e, imediatamente, sujeito da ação, incluindo, além de um projeto prévio e sua finalidade, outros de caráter coletivo e pessoal.15
Os estudos sobre o trabalho médico de Mendes-Gonçalves8 tornaram-se importante base teórico-conceitual para o estudo dos processos de trabalho de outras áreas profissionais da saúde. As especificidades do trabalho em saúde residem nas características nucleares de seus objetos e instrumentos que garantirão maior autonomia de seus agentes, mesmo como trabalho social e reflexividade frente ao saber na ação15. A produção do cuidado é objeto do trabalho em saúde, são referidos ao ser humano e terão que ser apreendidos na objetividade e subjetividade a que lhe são inerentes.8;14;16
O processo de trabalho em saúde é dependente da construção de um vínculo entre os envolvidos (usuário e agente) para a eficácia do ato14;16. Por ser de natureza dialógica e dependente, constitui-se também num processo pedagógico de ensino-aprendizagem, dá-se sobre pessoas, numa intercessão partilhada usuário-agente do trabalho. O primeiro é parte essencial de todo processo.
Neste contexto, a adequação entre os processos formativos e a filosofia preconizada para o PSF no SUS coloca-se como questão central no programa. Percebe-se que, para a efetiva implementação de ações, existe a necessidade de constituição de novos padrões de relacionamento entre os profissionais e usuários durante a atuação das equipes multiprofissionais de saúde.
Desse modo, os profissionais devem estar inseridos num processo de gestão do trabalho no SUS que preconize a educação permanente no trabalho mediante ações concretas direcionadas às necessidades da população, tornando-se necessária a qualificação profissional, e que contemple a sociedade, conhecendo, fiscalizando e contribuindo para o fortalecimento do controle social no SUS17. Isso é fundamental, pois coloca em discussão o contexto sócio-cultural e ambiental da produção prática do agir em saúde das equipes multiprofissionais do PSF.
Essas considerações sobre o processo de trabalho e formação dos profissionais de saúde justificam a necessidade da realização de pesquisas que investiguem a prática da assistência à saúde e o seu desenvolvimento, as quais envolvem os mais diferentes contextos, como a formação dos trabalhadores, as articulações destes entre si, as tecnologias disponíveis e os fatores sociais existentes; e buscam compreender os fenômenos subjetivos e objetivos que interferem nas atividades desenvolvidas pelas equipes multiprofissionais em Saúde da Família.
O Programa Saúde da Família tem se constituído como projeto dinamizador do SUS, uma estratégia essencial condicionada pela evolução histórica e a organização do sistema de saúde no Brasil. Nesse sentido, estabelecer uma Atenção Básica resolutiva e de qualidade significa reafirmar os princípios constitucionais estabelecidos para o Sistema Único de Saúde, reforçando a consecução da universalidade do acesso, da eqüidade e da integralidade das ações18;19. O PSF requer reorganização e alta complexidade tecnológica nos campos do conhecimento e desenvolvimento de habilidades e de mudanças de atitudes20 no cotidiano dos profissionais.
As relações de trabalho e a formação profissional do trabalhador de saúde são complexas e determinantes na qualificação da Atenção Básica. Buscou-se contribuir para essa problemática com reflexões e possíveis respostas em prol da melhor qualificação dos trabalhadores da equipe multiprofissional do PSF, tendo em vista iniciativas que prepararem o indivíduo para a vida e para o exercício da cidadania, capacitando-o a atuar frente às peculiaridades locais dos ambientes de trabalho.
Consideramos o saber do trabalhador como um saber socialmente construído, produto de sua práxis (reflexão-ação) engendrada numa perspectiva em que são inseparáveis os aspectos intelectual e manual. Consideramos também a formação do trabalhador como o processo de elaboração do conhecimento, que se constrói no caráter dialético e consciente em torno do poder e da resistência que revestem os seus saberes. Neste panorama, os principais desafios para a formação do trabalhador residem em superar visões reducionistas e monolíticas acerca de categorias como educação, trabalho e saúde.
Destaca-se a importância da construção dialogada entre o trabalho e a escola, a partir da explicitação de diferentes interesses, valores e conhecimentos, para uma qualificação profissional entendida como construção e relação social, o que implica examinar e relacionar, em cada momento histórico, os vários elementos inerentes ao trabalho e suas formas de construção de redes de relação social e intercâmbio de saberes.
Tendo estes referenciais teóricos como elementos norteadores, a pesquisa teve como objetivo geral investigar as condições existentes e necessárias para a interação e troca de conhecimentos entre os profissionais das equipes do PSF, para a prática do agir em saúde de forma multiprofissional, coletiva e interdisciplinar, visando à integralidade da Atenção Básica em Saúde.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa foi realizada no período de 2005 a 2007 na Unidade de Saúde da Família Jardim Pinheiro, Distrito Sanitário de Santa Felicidade, em Curitiba, PR. Realizou-se um estudo qualitativo descritivo, utilizando a entrevista semi-estruturada com perguntas abertas e fechadas que foi gravada e a observação direta para coleta de dados. O universo pesquisado foram 41 profissionais que compõem as equipes multiprofissionais de Saúde da Família, quais sejam: médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares de enfermagem, técnicos de higiene dental, auxiliares de consultório dentários e agentes comunitários de saúde. E seguiu a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde. Os sujeitos foram informados e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Para sua sistematização foram construídos três eixos de perguntas que buscaram responder aos objetivos. Estes eixos favoreceram, durante as análises, a elaboração de categorias e temas em diálogo constante com o referencial teórico. No eixo I, Processo de Trabalho construiu-se as categorias: Trabalho de cada um e Organização do processo de trabalho. No eixo II, Interação no Trabalho, as categorias: Trabalho em equipe, Alternativas de espaços, Construção de Vínculos e Percepções e o sentido do trabalho. E o eixo III, Formação em Saúde, com a categoria Formação dos profissionais no contexto estudado: o ‘instituído’.
Neste artigo, descreveremos e comentaremos de forma breve alguns achados das categorias referidas nos eixos considerados mais relevantes para a construção deste texto.
COMENTANDO OS RESULTADOS
O universo da pesquisa foi composto de 41 profissionais que compõem as três equipes multiprofissionais (TABELA 1). Dos 41 profissionais de saúde entrevistados, 15% eram do sexo masculino e 85% do sexo feminino. Cerca de 67% encontrava-se na faixa etária entre 30-40 anos e 33%, entre 41-50 anos. Os profissionais são concursados para cargo efetivo de carreira no serviço público municipal, excetuando-se os Agentes Comunitários de Saúde, que são contratados pela Fundação Assistência Social (FAS/Prefeitura de Curitiba). Quanto à jornada de trabalho, o PSF cumpre uma carga horária de oito horas diárias e 40 horas semanais.
Eixo I: Processo de Trabalho
(a) O Trabalho de cada um - A unidade tornou-se PSF no ano de 2001 e essa transformação deu-se “de um momento para o outro”, é o que relata NS3 e NM8,
E então, eu trabalhava nessa mesma unidade de saúde já há três anos, quando de um dia para outro ela se transformou num PSF. Em quatro dias foi definido que ela mudaria de unidade básica para PSF, foi realizado apenas entrevistas com os funcionários e ela mudou. (...) Mas não teve nenhum preparo. (NS3)
Foi tipo assim, ficamos sabendo num dia, e no outro dia (o)a chefe do Distrito veio já avisando pra onde cada um tinha que ir. Foi uma entrevista apenas. Mas todos tiveram a oportunidade de participar, todos, todos. Não ficou ninguém de fora (NM8).
Caracteriza uma implantação do modelo Saúde da Família dissociada de uma discussão coletiva com os profissionais diretamente implicados, fato que justifica outros depoimentos, quando será abordada a forma de inserção, em que estes profissionais demonstram insegurança e incertezas a respeito do programa.
O processo de seleção, a aplicação de teste seletivo ou concurso para ingresso no PSF estão aqui destacados. Os profissionais participaram apenas de uma entrevista quando a unidade se ‘transformou’ em PSF. Revela-se tanto certa ‘informalidade’ quanto uma acomodação às contingências do processo, é o que está refletido também nos depoimentos NS3 e NS6:
Quando aqui “virou” PSF, eu não tinha nem tempo na época para fazer PSF, porque estava com consultório particular, mas a chefe do Distrito me disse: “você vai ficar” e eu: “não vou ficar, não posso, não tenho condição de ficar oito horas aqui na unidade” [...] Eu tinha hospital e tinha consultório, e ainda que o hospital fosse só plantão [...], eu tinha o consultório à tarde, atendia três vezes por semana na época [...] Isso ficou muito confuso e inseguro para mim. [...] Mas não tive outra opção! Acabou que eu fiquei e já tenho quase concluído cinco anos de PSF. (NS3)
Meu ingresso foi através de uma entrevista e tive muito receio inicialmente de trabalhar no PSF, pois achava que não ia mais “ter jeito” de trabalhar com adulto, sabe [...] e o trabalho que eu vinha desenvolvendo até aquela data, era um trabalho que não me deixava satisfeita profissionalmente. Mas eu costumo dizer que “caí de pára-quedas no PSF” (NS6).
Evidenciam-se a incerteza existente no processo de inserção no PSF, o desconhecimento da proposta do programa e, sobretudo, certa fragilidade institucional. No entanto, pelo que comenta o entrevistado NS1, a garantia de continuidade do trabalho e uma certa “estabilidade profissional” foram atrativos justos para a motivação ao ingresso:
Quando eu tive a primeira oportunidade de trabalhar no PSF eu não sei se eu não estava preparado, ou por não conhecer exatamente a proposta deste programa é que eu não entrei. [...] Daí, em 1998 novamente houve a oportunidade de trabalhar no PSF e vi que era mais tranqüilo trabalhar num só lugar e deixar de tanta correria. Eu já estava mais inteirado de como era o programa, sabia qual era a proposta e tudo, sabia que era uma coisa realmente séria e que não era uma situação que iria iniciar e já acabar. Eu estava também mais seguro e fui aos poucos descobrindo e aprendendo a fazer o PSF (NS1).
Por outro lado, vê-se que o desconhecimento sobre o programa é motivo de insegurança:
Mas eu estava infeliz como pessoa, então eu resolvi aceitar o desafio de fazer o tal PSF. E tinha vários colegas de profissão que já estavam fazendo, e falavam que não era um bicho de sete cabeças que parecia ser, então eu decidi... (NS6).
Quando começou a surgir os PSF’s na prefeitura, eu ia tentar trabalhar no PSF, [...] mas quando pensei em ir, desisti porque o meu chefe na época [...] me disse que eu não devia ir, pois segundo ele, não se sabia o que se pretendia fazer com o tal do PSF ainda. Na época ele dizia: “Olha, vê o que vocês vão fazer porque esse negócio é meio arriscado e não sei o que...” “Vocês vão ver que é mais complicado que na unidade básica...”. [...] Ele dizia isso a todos que queriam ir para o PSF. Daí, ele me pôs medo, e eu desisti. Quando aqui se tornou PSF, fiz a entrevista e passei. Ai, que nervoso aquele dia, sabe? Aqueles que tiveram que sair me diziam: “Ai, estou com pena de você”. Fui embora daqui apavorada! [...] Eu não sei por que eles falavam de uma maneira tão ruim, do PSF! Mas era geral, todos diziam a mesma coisa! Gente, eu fiquei apavorada! Neste dia, comecei também a chorar, chorar... [...] Quando o pessoal novo chegou, e como eu não conhecia ninguém, apenas sentei num canto e fiquei quieta [...]. No outro dia eu fiquei doente. Eu tive uma convulsão e foi nervosismo do dia anterior que provocou essa situação (NM1).
Uma hipótese para essas colocações talvez seja a precariedade na implantação do PSF, desprovido de amplo diálogo com a comunidade a ser assistida e com os profissionais diretamente envolvidos. Outra é o processo de inclusão no PSF relatado, que também denota a falta de perfil esperado, gerando incertezas.
(b) Organização do Processo de Trabalho
Quando solicitado que descrevessem um dia de trabalho no PSF, os depoimentos referiram que o atendimento à demanda era a atividade central no PSF, chegando a constituir-se quase como a “razão de ser” do trabalho na unidade, seja como objeto ou resultado do trabalho em saúde. No entanto, em certos depoimentos, tal dimensão apresentou-se como fator impeditivo de interação dos profissionais; ora era indutora das atividades realizadas pelos trabalhadores, ora causadora de estresse devido à sobrecarga de trabalho.
Esta sobrecarga é referida como uma dificuldade no desenvolvimento das atividades cotidianas do trabalho, agravada pela carência de pessoal e pela demanda diária crescente de usuários. Este fato revela um aspecto importante para futuras pesquisas: Se por um lado o aumento da demanda usuária traz desgaste e correria no dia-a-dia do trabalho, por outro ela pode significar aumento de credibilidade e confiabilidade nas ações do PSF e na equipe multiprofissional, e que estes estejam sendo reconhecidos pela comunidade assistida.
A demanda aparece como foco da organização do processo de trabalho na unidade e como dificuldade de interação entre os profissionais em NS1 e NS7:
Chego às sete da manhã, e corro o dia todo para dar conta da demanda! Estamos sempre correndo para dar respostas à demanda. [...] No pronto atendimento, realizado pela manhã as situações de contato com os colegas de trabalho tornam-se limitadas, e obviamente a questão da interação no trabalho torna-se prejudicada. [...] Não temos muito tempo para trocar para interagir, embora seja necessário. [...]Ficamos bastante envolvidos na parte clínica tentando dar conta do atendimento ao usuário, e acabamos por ser prejudicados em nossa interação com os membros da equipe (NS1).
Na avaliação de satisfação do usuário realizada pela secretaria observou-se (na avaliação), que a gente precisava melhorar ‘mais’ no que se refere ao atendimento do cidadão, devemos encurtar o tempo de espera e otimizar nossas agendas profissionais. Ou seja, atender em menos tempo mais pessoas. Ninguém quer saber da qualidade, a quantidade é que vale (NS7).
Frente às narrativas acima, traçamos algumas hipóteses para esta situação. Uma primeira vincula-se à grande carga de trabalho dos profissionais, exclusivamente voltada para o atendimento às demandas mais emergenciais. Desta, deriva-se a segunda hipótese, que seria a predominância de iniciativas relativas à organização do processo de trabalho, as quais priorizam o atendimento e relegam objetivos tão importantes quanto à demanda, como a interação e a multiprofissionalidade da atuação a esferas de menor importância.
Uma terceira hipótese, a qual talvez requeira maior atenção, refere-se ao conceito de interação em equipe. Percebe-se que, para os profissionais, esse conceito está diretamente ligado a uma noção de integração do grupo. Consequentemente, eles exercem práticas integracionistas as quais, contudo, estão adstritas a um trabalho que ocorre num espaço formado por um conjunto de pessoas cujas atribuições são tarefas multifunções. Vê-se abaixo:
O que eu vejo hoje é assim: às vezes temos múltiplas pessoas, com múltiplas funções trabalhando juntas, sendo puxadas na verdade, para serem feitos aqueles trabalhos, porque elas estão se sentindo tolhidas e sobrecarregadas. (...) acho que as pessoas lidam com isso como se fosse um campo de treino, onde podem colocar os personagens onde querem e o time tem que jogar. E eu não acho isso legal porque as pessoas não vieram preparadas para serem times de treino, vieram preparadas para serem pessoas, e desenvolver suas habilidades profissionais. Então, sinto que a equipe um pouco ressabiada e administrativamente ela está muito justa, então, não tem para onde escapar. (NS6)
As narrativas seguintes destacam as cobranças, a sobrecarga no trabalho e a carência de profissionais como fatores de desgaste e estresse que dificultam o desenvolvimento das atividades diárias.
O que mais gera LTS é o excesso de carga no trabalho, pelo estresse, [...] pela própria forma como isso é administrado aqui no serviço, pela autoridade sanitária. Existem cobranças incabíveis aqui! [...] o que mais judia a equipe não é nem tanto a sobrecarga de trabalho pura e simples, pois você vê que faltam pessoas no trabalho e os que estão trabalhando, continuam a fazer o trabalho mesmo assim. O pior é o estresse e a pressão de uma supervisão não adequada, principalmente quando estamos com ausência de colegas no trabalho... isso parece duplicar! (NS2)
A dificuldade que enfrentamos aqui no trabalho, sem dúvida alguma, tem relação com o número de profissionais das equipes; faltam profissionais de todas as áreas, e com a demanda que cada dia só faz aumentar, acumula e sobrecarrega a todos, em todas as atividades do serviço. Dá para perceber que as pessoas daqui com essa sobrecarga de trabalho estão também ficando cada vez mais doentes. (NM6)
Temos dificuldades pela falta de funcionários mesmo! Desde janeiro, a coisa vem pegando mesmo aqui, só temos cinco auxiliares aqui, e quando uma sai de férias, as que ficam, se sobrecarregam. [...] A demanda também aumentou muito, aumentou bastante, e isso está estrangulando a gente. (NM7)
Eixo II – A interação no trabalho: as condições necessárias para a troca de conhecimentos
A categoria Trabalho em Equipe ficou dividida nos temas: Trabalho no grande grupo e em microárea.
Trabalho em Equipe no grande grupo
Os depoimentos revelam uma compreensão muito limitada do trabalho em equipe no PSF: o grupo é caracterizado pela competição e pelo individualismo. A interação ocorre em baixo grau ou, segundo os depoimentos, não ocorre nenhuma interação, colaboração e articulação técnica das ações. De modo geral, os profissionais compreendem o trabalho “em equipe” naquelas situações e especificidades de cada profissão, ou seja, equipes médicas, de enfermagem, odontológica:
Não sei se tem realmente, não podemos dizer que é equipe. As pessoas são muito individualistas, isso sim. Vejo na enfermagem, e aqui na ‘odonto’; aqui temos uma “equipe”. Também ficamos fechados aqui... daí temos que nos resolver (NM1).
Para alguns, no PSF estudado não existem equipes multiprofissionais, mas sub-equipes fechadas, permeadas de ações individualistas. A multiprofissionalidade e a interdisciplinaridade não são percebidas:
Não, não existe! Os profissionais do grande grupo se fecham, tá, e são completamente individualistas. Por um bom período começou a “ter competição entre as equipes das áreas”. Tinha competição de quem mais tirava fotos... de quem atendia mais... Teve até quem mandasse fazer adesivo para pôr na roupa do usuário, e punham adesivo nas atividades até dos programas, quando era a equipe que fazia. Eu sempre disse para a nossa equipe, não vamos fazer nada disso, eu não estou aqui para aparecer, nem para competir, vamos fazer nosso trabalho e fim de papo! [...] Até com relação a divisão de área virou motivo para se competir... acabou virando uma competição infernal e desagradável, não fazia ninguém crescer, só inimizade... Não existe uma grande equipe que se reúna para trazer resolutividade pro serviço, não existe isso! (NS3)
Uma hipótese sobre a competição fortemente evidenciada acima poderia ser que o espírito de trabalho em equipe não foi corretamente desenvolvido durante a formação inicial desses profissionais e, ainda, que as relações alicerçadas por esse processo pautam-se em ações individualistas e corporativas. Outra hipótese está relacionada à visão idealizada de equipe, a qual se demonstra desprovida de caráter processual de construção grupal, implicando num sofrimento desmedido.
Os depoimentos sobre o trabalho em equipe evidenciam todo um conjunto de conhecimentos e mediações presentes na construção da equipe realmente existente e mantêm a fragilidade e insuficiência de explicações baseadas na idealização da equipe:
(...) falando administrativamente, as pessoas trabalham aqui com a equipe como um campo de treino, em que elas podem colocar os personagens onde que elas querem, sem levar em conta que são pessoas que tem vontades, que tem desejos de trabalhar em determinada parte ou não trabalhar, que tem facilidades com umas coisas e dificuldades com outras, né? Então, eu já me senti assim e não gostei (NS7).
(...) Quando alguém fala aqui: “Hoje você vai cobrir tal coisa”. Como cobrir tal coisa? Eu não fui consultada pra cobrir tal coisa! Se alguém tivesse me falado: Olha fulana, sicrano faltou digamos assim, e tivesse ligado para mim: “olha Fulana eu não vou poder fazer tal coisa, e tem isso, isso e isso pra ser feito, você pode fazer pra mim?” Nossa, seria bem interessante, pois isso demonstra respeito por mim, “eu existo” (NS6).
Trabalho em equipe na microárea
O trabalho em equipe é permeado de trocas, colaboração, consenso, interação; no qual o relacionamento “entre” os agentes do trabalho é melhor. A interação e a multiprofissionalidade é percebida pelos trabalhadores nas narrativas NM2 e NM5:
No grande grupo a gente até trabalha, mas parece que não tem tanto resultado. Mas no pequeno grupo, que você trabalha com uma auxiliar de enfermagem, com a enfermeira e o médico, e com os agentes comunitários, o trabalho flui de outra forma. O trabalho aparece mais eu acho, não tem competição, todos procuram entrar num consenso e caminham juntos, num caminho só. Juntos procuram solução e resolver as situações das pessoas (NM2).
[...] Já no trabalho na equipe da microárea é totalmente diferente a relação que temos e para mim, é maravilhoso... e eu me sinto muito bem no trabalho na minha equipe. Nós somos em quatro auxiliares de enfermagem nesta equipe, né? Cada auxiliar é responsável por uma área junto com um agente comunitário; o médico e o enfermeiro ficam nos dando apoio quando não resolvemos as situações sozinhas. E trazemos nas reuniões as situações mais complicadas e resolvemos juntos. Temos que fazer tudo, você tem que atender a família como um todo, você conhece os pacientes e faz um vínculo maior com eles. Então, eu percebo quando eu não estou na grande equipe (no grupão), eu acho melhor até para realizar os procedimentos, é diferente no grande grupo, entendeu? Eu vejo assim, a equipe multiprofissional daqui de fora não tem muito espaço lá dentro. (...) E aqui eu me sinto no céu. (NM5).
Uma dicotomia nos salta aos olhos com essas narrativas, por que a percepção do trabalho no grande grupo da unidade não é vista pelos profissionais como o desenvolvido na microárea, ou seja, pela pequena equipe? Por que os profissionais parecem referir que no trabalho na microárea parece ser o mundo maravilhoso da interação e produção em saúde, enquanto no grande grupo impera a competição, a desunião e o individualismo? Pode-se levantar a hipótese, neste caso, de que o grupo interage melhor quanto mais clara a tarefa, como refere os estudos de Pichon Rivière22. Para ele, o grupo é um conjunto restrito de pessoas, ligadas por constante de tempo e espaço, articuladas por mútua representação interna, que se propõe, de forma explícita, uma tarefa que constitui sua finalidade.
Outra hipótese se concentra na confiança interpessoal construída entre os agentes do trabalho em microárea, seja pela afinidade entre eles ou proximidade das relações cotidianas de trabalho. Reconhecer que o trabalho envolve aspectos de extrema importância, a responsabilidade pelo resultado aumenta, exigindo maior dedicação por parte dos envolvidos. O depoimento aponta que o trabalho em equipe na microárea reflete engajamento e complementação:
[...] cada um tem uma parcela fundamental nesse trabalho. Por exemplo, o trabalho de um agente comunitário, em relação aos trabalhos dos outros membros. Vejo o agente comunitário como uma interface que vai ligar a gente do programa saúde da família à comunidade. Se ele não existisse isso aqui viraria um posto básico. Então o trabalho deles é de extrema importância. O fato de eles trazerem as coisas, em grupo essas coisas são levadas em consideração. Assim como a percepção de cada um na equipe, o que eu vejo é uma qualidade importantíssima: vejo pessoas com uma capacidade de logística fantástica, uns já utilizam isso, e as coisas que eu não tenho como fazer, eu percebo que tem que ser feito e às vezes a forma como deve ser feito eu posso jogar assim: “eu gostaria que fosse feito assim, mas é legal de ver como é que eles se arrumam no mundo das coisas e da profissão de cada um” (NS6).
A partir do depoimento anterior, aponta-se uma contradição com estudos recentes sobre o trabalho em equipe no PSF que revelaram ausência de responsabilidade coletiva do trabalho e baixo grau de interação entre as categorias profissionais23. Percebe-se que, mesmo timidamente, os profissionais estão agindo com interação e responsabilidade coletiva, o que é um avanço bastante positivo.
(b) Percepção e o sentido do trabalho
O sentido e o significado de criação, transformação, autoria e realização do ser mediante o trabalho é plenamente evidenciado nas narrativas de NS1 e NS6:
Eu acho que o trabalho é assim, além de você estar vivendo e fazendo aquilo que você gosta mais de fazer, de estar botando sua habilidade na prática, é tua satisfação pessoal, é teu crescimento enquanto pessoa, enquanto homem. (NS1)
[...] é o local onde eu posso aplicar a minha capacidade, o meu talento, o meu dom. Trabalho é um local onde possa aplicar o meu conhecimento e talento e que me satisfaz. Mas tem que ser o local em que me sinta satisfeita, feliz com aquilo que estou fazendo, que eu tenha vontade de me desenvolver ali dentro [...], um local onde eu possa modificar e de alguma forma me modificar também. (NS6)
Nos depoimentos de NM8 e NS3, trabalho é entendido como processo e projeto de vida, mediante o qual o ser se faz “a cada dia”, e transforma a si e o mundo, é quando o ser imprime sua marca no mundo; como destacam:
O trabalho me ensina e me enriquece, me faz melhor. [...] Afinal, estamos aqui para atender o mínimo possível, estamos aqui para realizar um trabalho com qualidade (NM8).
É no trabalho e nas relações que faço aqui dentro que me constituo como pessoa, é meu crescimento pessoal. Eu tenho certeza, que é no meu trabalho que de alguma forma, onde tem o meu estilo de vida e tudo o que me faz bem, né,? (NS3)
Para NM5 e NM7 ‘trabalho da saúde’ é diferenciado, envolve empatia e diálogo, estando presentes a emoção, a ansiedade, o sofrimento e a dor. Além disso, o percebem como um processo interativo, como relação e troca, além de destacar aspectos caracterizadores do trabalho no PSF, como a construção de vínculo e a responsabilidade na relação com o paciente/usuário:
[...] Trabalhar na saúde é bem especial, pois é uma troca. Você deve estar procurando sempre mais conhecimento, pois exige muita reflexão, responsabilidade e construção de vínculo para auxiliar na relação com o paciente/usuário proporcionando eficiência ao cuidado que realizo (NM5).
É uma atuação, uma ação junto ao ser humano para tentar sanar algum problema ou amenizar as situações de uma doença presente. Uma ação que não faço sozinha como uma outra ação qualquer...existe uma pessoa junto comigo, e para a minha ação dar certo, eu preciso agir com a ajuda dela, é uma relação também, você me entende? O trabalho na saúde é uma coisa tão reflexiva, toda hora acontecem coisas... é uma situação muito dinâmica (NM7).
NM8 ressalta diferenças entre o trabalho industrial e o da saúde destacando o aspecto relacional da interação entre quem presta e quem recebe a assistência; refere à construção de vínculos, aspectos que são caracterizadores do trabalho em saúde no PSF:
É um trabalho que envolve muita interação entre as pessoas. Você tem que ter empatia com o paciente. Não é a mesma coisa de uma fábrica que faz uma cadeira. Você não vai chorar se a cadeira for embora ou quebrar. Aqui é diferente. São pessoas que estão ali com suas emoções, seus problemas, com seus desejos, seus defeitos.. No PSF, que você interage mais com o paciente, você conhece a família, a casa dele. Você conhece a história dele, constrói vínculo com ele (NM8).
Os dados analisados remetem à compreensão do trabalho em saúde no sentido ontológico como processo e projeto de vida, mediante o qual o ser se faz “a cada dia”, é quando o ser imprime sua marca no mundo; é também entendido como satisfação das necessidades básicas, como auto-realização e como um processo reflexivo, permeado de situações imprevistas. A diversidade de pessoas e das atividades de trabalho presentes no processo, se por um lado é razão de ansiedade, por outro é estímulo justificante para um trabalho que exige criação e aprendizagem cotidiana.
Eixo III: Formação dos profissionais no contexto estudado: o ‘instituído’.
Os depoimentos acentuam que a formação inicial e continuada está desvinculada do contexto do PSF e da Atenção Básica.
(...) os cursos que tive auxiliaram somente na parte técnica, da doença clínica mesmo. Só que eu sinto uma deficiência muito grande em termos de sociologia, em termos de psicologia, de antropologia. (...) nossos cursos ainda só focam tratamento das doenças prevalentes. (NS6).
Percebe-se que a educação continuada em saúde também reproduz o quadro descrito para a graduação. Enfatizam-se especializações que confirmam o modelo mercantilista e elitista de muitas profissões, tendendo a “especializar” mais o especialista no mesmo marco conceitual pedagógico, ratificando um tipo de prática há muito ultrapassada e cada vez mais alienada da realidade nacional.
Em parte, isto se relaciona a não adequação/atualização dos currículos formativos iniciais, anteriores ao programa Saúde da Família. No entanto, não justifica o fato de a formação continuada desses profissionais permanecer desvinculada do contexto do PSF.
A gente está muito acostumado atrás do vidro, só restrito na doença, organicista, e a gente apesar de saber do tratamento que existe, muita coisa é psicossomática mesmo, mas só que quando a gente vai ver não temos ferramenta externa e interna nenhuma para enfrentar essa realidade lá fora. [...] A prevenção é colocada sempre junto, mas não tem aquilo que tem um treinamento sobre hipertensão, ou sobre o manejo de uma droga tem (NS6).
(...) o trabalho na saúde envolve tantas coisas, tantas situações que muitas vezes sai da área da saúde, inclusive, e que vai pra sociologia, pra antropologia, jurídica, sabe? E também é uma coisa técnica, exige muita técnica (NS7).
Destaca-se aqui a importância de conhecimentos na área das Ciências Sociais para o agir em saúde, visando o enfrentamento das situações cotidianas de trabalho. É necessário a religação dos saberes, trazendo aportes para a compreensão do significado dos problemas coletivos e individuais de saúde.
Para Gil23 todos os que atuam na Atenção Básica deveriam estar aptos para compreender e agir sobre os determinantes do processo saúde/doença, o que implicaria realizar uma síntese de saberes a serem utilizados na definição dos cuidados dos indivíduos e famílias. No entanto, percebe-se que as práticas profissionais impressas pelo modelo biomédico não valorizam tal percepção, limitando o cuidado às práticas pontuais e curativas. Logo, os dados apurados permitem refletir sobre a efetividade das capacitações ofertadas para o desempenho cotidiano dos profissionais da Atenção Básica. Fica evidente a necessidade de mudanças e transformação na formação profissional em saúde.
Redefinir o modelo de formação dos profissionais de Saúde, referenciando a realidade social na qual estão inseridos, desenvolvendo, também, habilidades necessárias ao trabalho no âmbito do SUS, é um fato.
Um modelo de formação orientado pela compreensão crítica das necessidades sociais em saúde, vinculando-se a compreensão dos processos do ciclo de vida dos indivíduos e de suas famílias, a sua repercussão biopsicossocial e cultural, em face da qual se impõe a necessidade do trabalho interdisciplinar à luz de novos paradigmas sobre saúde-doença, revendo-se os papéis e objetivos dos profissionais de saúde no desenvolvimento do agir em equipe. Estes pressupostos importam no conteúdo e habilidades a serem desenvolvidos e adquiridos pelas capacitações recebidas no cotidiano do trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como condições existentes, pode-se constatar que a implantação do PSF investigado deu-se dissociada de uma discussão coletiva com os profissionais diretamente implicados, fato que justifica discursos que manifestam inseguranças incertezas quanto à implantação da proposta. Conscientes deste distanciamento os profissionais quando falam sobre seu trabalho no PSF, se referem às questões concretas do trabalho, porém, muitas vezes falam da idealidade do PSF, ou seja, falam de um trabalho ideal no PSF para o real. Assim, a concepção de trabalho em equipe que esse trabalhador traz consigo foi construída tendo por referência o PSF ideal que traz a ele expectativas. Porém, dado que essa idealização traz expectativas difíceis de ser atendido, o profissional, muitas vezes é levado a situações de frustração e sofrimento, tornando-se um trabalhador insatisfeito.
Além disso, o processo de inclusão dos profissionais relatado, denota também a falta de critérios para alcançar o perfil esperado para o desenvolvimento das ações no PSF. Estes aspectos causam impactos diversos na configuração e efetividade do programa, com conseqüências para desempenho do trabalho das equipes multiprofissionais voltados para a integralidade, resolutividade de ações, formação de vínculos com a comunidade adstrita e a co-responsabilidade nas ações do programa.
A sobrecarga no trabalho, relatada e observada durante a coleta de dados, se deve a fatores, como a falta quantitativa de recursos humanos no serviço e ao aumento constante da demanda usuária para o serviço na unidade. Uma evidência em relação ao aumento da demanda usuária: se por um lado ela trás desgaste, estresse e correria no dia-a-dia do trabalho, por outro ela pode ser indicativo de que o PSF e a atuação dos profissionais está sendo reconhecida e requerida pela comunidade assistida.
Há um descompasso tanto entre a formação inicial e a concepção do agir em Saúde da Família, bem como entre a formação continuada e as expectativas das necessidades dos profissionais no cotidiano de trabalho, e, portanto a incoerência entre as necessidades e as finalidades do trabalho em saúde, aliada a existência de uma fragilidade teórica por um lado, e de uma cristalização da prática, por outro; e a adesão ainda presente ao modelo biomédico de saúde. É interessante pensar que na formação ocorre o mesmo processo que na assistência à saúde.
Existe uma tensão permanente entre o modelo de formação biomédica e a prática do agir em saúde, ao tempo que se percebe uma reprodução deste modelo de atenção referido nos discursos dos profissionais. A concepção biomédica da formação dos profissionais está presente tanto na compreensão da comunidade assistida como também se reproduz no interior da própria equipe de saúde. Ou seja, a comunidade do PSF e a sociedade, de certa forma, veneram o modelo médico centrado. A pesquisa evidenciou que a presença dessas concepções na equipe talvez ainda esteja no atrelamento à formação biomédica dos seus profissionais. Outra evidencia constatada para a manutenção dessa concepção no imaginário social coletivo da sociedade se deve talvez às poucas transformações que até o momento ocorreram no contexto da formação dos profissionais de saúde e por sua vez influenciam o contexto sócio cultural da sociedade; no entanto, sabe-se do grande potencial que os profissionais do PSF possuem através da educação em saúde, e atuar como agente pedagógico reconduzindo essa concepção junto à sociedade.
Para que a concepção de PSF se torne realidade, temos que repensar formas concretas de formação de redes entre setores da sociedade civil e as unidades de Saúde da Família, possibilitando aos sujeitos envolvidos novas estratégias para a formação profissional.
A construção, fortalecimento e a interação do trabalho em equipes podem ser oportunizadas durante as reuniões de equipe realizadas, seja nas reuniões de grande grupo, ou naquelas por microárea, por se constituem espaço concreto para interação e troca de conhecimentos. Estas oportunidades podem ser proporcionadas por gerentes e gestores, através de uma atuação diferenciada de supervisão possibilitando que profissionais sejam capazes de interagir de forma permanente, construindo e reconstruindo dialeticamente novos conhecimentos, frente as peculiaridades locais em que trabalham.
Vivenciar espaços diferenciados de aprendizagem ativam o potencial transformador dos sujeitos implicados, na direção de um entendimento do conhecimento como algo que não apenas conhece as coisas, e sim como algo que pode mudar as coisas24. A reflexão sobre as aprendizagens diárias, de modo que sejam compartilhadas, tornadas explícitas, requer planejamento de atividades com esta finalidade exigindo assim, uma aplicabilidade. Evidenciamos as condições necessárias para a interação e troca de conhecimentos entre os profissionais das equipes do PSF para a prática do agir em saúde de forma multiprofissional e interdisciplinar.
As dificuldades encontradas no cotidiano de trabalho ao mesmo tempo em que são dificuldades, apontam para a necessidade e capacidade de criar que se impõe na superação dessas dificuldades. É necessário repensar e agir sobre os processos de trabalho, acionando dispositivos para alterar relações técnicas e sociais (políticas, ideológicas e simbólicas) nas organizações e no dia-a-dia das equipes.
É importante reconhecer que a formação de profissionais em saúde abrange distintas esferas humanas: cognitiva, atitudinal, procedimental, social e afetiva e de manifestação da vontade. Junto a mudanças no contexto da formação e qualificação profissional, destacamos a necessidade premente de se repensar e agir sobre os processos de trabalho, sua gestão, supervisão e auto-análise, aliados, pois sem isto nenhuma transformação ou mudança na formação dos profissionais se dará por concreto. É importante observar também a participação dos usuários em busca de seus direitos e de educação a saúde.
Formar sujeitos, utilizando diferentes linguagens, estratégias e recursos, traduz a intenção de desenvolver espaços e cenários formativos que valorizem os sujeitos e seus saberes prévios, assumindo a co-responsabilidade de desencadear re elaborações teórico práticas que superem o fazer empírico e mobilizem patamares mais complexos de capacidade e atuação profissional, promovendo autonomia, responsabilidade e auto-estima.
Destacamos a importância fundamental do papel dos gerentes e gestores como supervisor dessas equipes, de modo a romperem com as próprias matrizes de produção de procedimentos e de gestão do trabalho; lidando com a divisão técnica e social do trabalho em equipe, buscando um trabalho mais participativo e de respeito às diferenças; apoiar a equipe na análise das implicações inerentes ao seu processo de trabalho; auxiliando-os a lidar com preconceitos e com as pré-concepções dos trabalhadores em relação aos usuários e famílias, com a desconstrução da relação poder/saber. Desse modo, fica claro a importância de se desenvolver uma supervisão centrada em práticas político-pedagógicas e não apenas gerenciais. Devemos discutir sem medo a prática que se tem construído entre os profissionais de saúde; o mínimo que poderá acontecer será a construção de novas referências, e mesmo que isso possa atordoar os que se apegam às certezas, parece ser menos danoso que a obediência cega. Só criamos algo novo quando corremos o risco de por a prova os paradigmas existentes.
Como trabalhos futuros, relacionados ao tema, apontamos a necessidade de realização de pesquisas sobre a questão da educação permanente no campo da formação dos profissionais de saúde e as práticas interdisciplinares em equipes multiprofissionais, incluindo aspectos que desvendem como o particular e o coletivo se entrelaçam na prática cotidiana dos serviços de saúde.
REFERÊNCIAS
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24. Demo, P. Educar pela Pesquisa. Autores Associados, Campinas, 4ª ed. 1998.
Colaboradores
MGRCS Noronha foi autora da pesquisa original e foi responsável pela concepção do artigo, pela interpretação e da redação.
DL Lima Filho orientou o estudo original e participou da revisão do artigo.
Agradecimentos a Amanda Pessoa pela revisão final do texto


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Noronha, Maria Glícia Rocha da Costa e Silva. O AGIR EM SAÚDE DA FAMÍLIA: AS CONDIÇÕES EXISTENTES E NECESSÁRIAS PARA A INTERAÇÃO E TROCA DE CONHECIMENTOS NA PRÁTICA PROFISSIONAL. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2009/jul). [Citado em 05/05/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/o-agir-em-saude-da-familia-as-condicoes-existentes-e-necessarias-para-a-interacao-e-troca-de-conhecimentos-na-pratica-profissional/4105?id=4105

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