0148/2007 - O SEGREDO DA LONGEVIDADE SEGUNDO AS PERCEPÇÕES DOS PRÓPRIOS LONGEVOS
THE SECRET OF LONGEVITY ACCORDING TO ELDER´S PERCEPTIONS
Autor:
• Karina Pavao Patricio - Patricio, K.P - Botucatu, SP - Faculdade de Medicina de Botucatu/UNESP - <pavao@fmb.unesp.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2112-5956
Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Estudos apontam fatores que podem aumentar a longevidade, no entanto, muitas questões pertinentes a este tema ainda não foram elucidadas. Percepções do próprio longevo a respeito dos fatores contribuintes para longevidade são importantes, permitindo levantamento de cada fator e suas interações com demais variáveis que promovem a longevidade. O presente artigo relata dados da investigação sobre “o segredo da longevidade”, segundo percepções dos próprios longevos, analisados pelo referencial metodológico da grounded theory. Entrevistou-se 30 ferroviários longevos do município de Botucatu (SP). A análise das falas dos longevos possibilitou determinar que a percepção dos fatores se aglutina em torno de categorias progressivamente abrangentes que culminam na representação coletiva de que a longevidade é dependente do embate entre fatores prejudiciais que aniquilam a vida e fatores saudáveis que geram e preservam a vida, sobre o qual a falta de controle social e do Estado torna pessimista a visão do futuro.Palavras-chave: Longevidade; Grounded theory; Envelhecimento
Abstract:
Many studies point factors that can increase longevity. However many questions regarding this theme have not been elucidated. Perceptions of elders regarding factors that contribute to increase longevity are important and allow to the identification of each factor and its interactions with other variables that promote longevity. This article presents results of an investigation about “the secret of longevity”, according to elder’s own perceptions, analyzed through grounded theory. Thirty old aged men former railroad workers were interviewed in the municipality of Botucatu (SP). The analysis of their talks allowed to determine that the perception of the factors can be grouped around categories progressively inclusive that culminate in a collective representation that longevity depends on the struggle between negative factors that destroy life and healthy factors that generate and preserve life, over which there is a lack of social and state control, generating a pessimistic view of the future.Key words: Longevity; Grounded Theory; Ageing
Conteúdo:
INTRODUÇÃO
O aumento da expectativa de vida, no século XXI, tem sido uma preocupação e um campo de muitas discussões. No entanto, vários esforços acabam sendo centralizados em pesquisas voltadas mais para tentar aumentar a longevidade humana do que para compreendê-la1. Hayflick2 chama a atenção para o fato de que os determinantes da longevidade devem ser diferenciados daqueles do envelhecimento, embora os temas se sobreponham parcialmente. Ele coloca duas perguntas fundamentais: Por que envelhecemos? Por que vivemos tanto tempo quanto vivemos? Apesar das pesquisas sobre envelhecimento terem se intensificado há 30 anos, pouco se avançou também no sentido de compreender o complexo fenômeno do envelhecimento, pois elas enfocaram mais as patologias associadas com o envelhecer, como critica esse autor.
Acreditava-se anteriormente que o tempo máximo de vida do ser humano seria de 100 anos, mas, atualmente, considera-se 125 anos 2. Por outro lado, estudos têm demonstrado que o ser humano, em condições ambientais ótimas e tendo comportamentos saudáveis, pode alcançar uma expectativa de vida média de 85 anos 3. O aumento no tempo de vida está muito associado aos avanços da tecnologia da saúde, que diminuíram as taxas de mortalidade. Atualmente, nota-se que a queda da mortalidade não teria mais tanto impacto no aumento da expectativa de vida, como teve no século XX, com o controle das doenças infecto-parasitárias, medidas de saneamento básico e imunizações, entre outros avanços4.
Em um cenário de envelhecimento populacional e aumento da expectativa de vida, aliados à motivação instintiva humana de preservar a vida ao máximo quando se pode usufruí-la com qualidade, gerou a necessidade de se estudar quais os fatores reais que interferem ou que promovem aumento da longevidade. A questão alimentar tem sido bastante enfatizada. Sabe-se que a ingestão excessiva de alimentos pode estar associada à obesidade e a outras doenças que acabam por encurtar o tempo de vida. Demonstrou-se, em experimentos laboratoriais, inicialmente com camundongos, que a restrição alimentar (redução percentual da quantidade de alimentos ou redução calórica) de 30 a 50% sobre a oferta de alimentos, nos períodos iniciais da vida, aumentava em até 40% a expectativa de vida desses animais5,6,7,8,9,10. Entretanto, ainda não se conseguiu comprovar esta propriedade na espécie humana11.
Já, o papel desempenhado pela genética é fato verificado e, cada vez mais, tenta-se identificar genes responsáveis pela longevidade12,13. A maioria dos estudos, com enfoque genético, tem demonstrado que, aproximadamente, 25% do tempo de vida das pessoas são determinados por componente genético. Uma das dificuldades metodológicas em se estudar estes fatores é que a longevidade envolve um complexo fenômeno14,15. Paralelamente à procura dos genes, existem estudos que analisam a contribuição da hereditariedade16,17,18. Observou-se que os filhos dos centenários tinham riscos reduzidos para as doenças associadas com a idade, como infarto, hipertensão e diabetes. Além disso, percebeu-se que eles apresentavam um processo de envelhecimento mais lento e que as doenças, quando se manifestavam, ocorriam em idade bem avançada19.
Observou-se, também, que mulheres que tinham filhos após os seus 40 anos mostravam maior chance de viver mais. Isto não estava associado simplesmente ao fato de terem filho com esta idade, mas porque seu sistema reprodutor funcionava muito bem e, provavelmente, os outros órgãos também, tendo um processo de envelhecimento mais lento20.
Com base em trabalhos realizados com população de centenários italianos, notou-se que os idosos que mantinham uma boa atividade mental viviam mais quando comparados aos que apresentavam algum problema, como isolamento e falta de atividade intelectual, que tendiam a morrer mais precocemente21,22. Por outro lado, pessoas com hábitos não-saudáveis, como uso de álcool e falta de atividade física, podem apresentar envelhecimento e doenças crônicas prematuramente3. Outros autores confirmam que a atividade física é uma grande aliada da longevidade, além de diminuir o risco de aparecimento de algumas doenças. Jones e Eaton23, entretanto, demonstraram que somente exercícios vigorosos teriam a propriedade de aumentar diretamente a longevidade.
A existência de uma área do noroeste e outra no sul do Estado de São Paulo onde predominavam idosos do sexo masculino na década de 1990, ao contrário da maior longevidade feminina em todas as regiões adjacentes, aponta um possível envolvimento de fatores ambientais na longevidade. Atualmente, na região sul do estado, este predomínio ainda existe24,25.
Frente a essa diversidade de pesquisas e fatores apresentados, verifica-se que a longevidade humana é um tema bastante complexo e que muitas perguntas ainda precisam ser respondidas. Kirkwood26, que tem publicado vários artigos discutindo envelhecimento e longevidade, em um de seus artigos mais recentes coloca:
“Feito o progresso para entender a função e evolução dos fatores genéticos e não-genéticos na longevidade humana, são necessários mais detalhes de estudos teóricos sobre como ocorrem as variações dentro das populações, e como fatores socioeconômicos influenciam a seleção de forças que modelam a história de vida”. (p.737)
Esses fatores socioeconômicos não podem ser separados dos fatores psicológicos, principalmente emocionais, pois os próprios idosos associam como fatores, responsáveis por uma vida mais longa, a postura perante a vida (modo de ser -“viver bem e ser feliz na vida”; serenidade; autocontrole emocional) e o engajamento social (profissão, sociedade, família e lazer)27. O principal obstáculo para se estudar esses fatores são as dificuldades de se abordá-los diretamente em seres humanos, pois, além do tempo que as pesquisas demandam, há escassez de métodos epidemiológicos para a sua investigação17,14.
A dificuldade metodológica das pesquisas que dependem de informações verbais de entrevistados é patente quando se considera a natureza de dados obtidos, cujo exemplo é “viver bem e ser feliz na vida”. Ser feliz na vida é relativo, pois uns podem ser felizes com pouco, outros somente com muito. Isto leva a crer que ser feliz é resultante da percepção de um conjunto de eventos agradáveis, ou seja, uma representação perceptual geral atribuída à soma dos elementos comuns existentes nas coisas ou eventos particulares que formam uma categoria. A pesquisa qualitativa é adequada para a abordagem dessas representações perceptuais e a técnica da grounded theory28 tem mostrado grande poder heurístico na abordagem e determinação dessas categorias que leva à formulação de um modelo teórico geral que, por sua vez, fundamenta todos os dados particulares coletados. Sua aplicação na abordagem dos fatores psicológicos e sociais da longevidade se afigura, portanto, como promissor na geração de novos conhecimentos.
As percepções do próprio longevo a respeito dos fatores contribuintes para a sua longevidade são de extrema importância, pois permitem o levantamento geral inicial que possibilitará o estudo subseqüente de cada fator e sua interação com as demais variáveis na promoção da longevidade. As percepções e significados das coisas e dos acontecimentos são construídos pelas relações dos indivíduos com um meio ambiente determinado e ao longo da história que nele transcorre. Assim, é justificável que estas percepções sejam determinadas em cada região e em função do tempo para que se obtenha o conhecimento amplo e correto dos fatores envolvidos na longevidade.
OBJETIVO
O presente artigo tem como objetivo ampliar a compreensão sobre os possíveis fatores associados ao aumento da longevidade humana, através do relato e análise de dados oriundos de investigação sobre “o segredo da longevidade”, segundo as percepções dos próprios longevos.
MATERIAL E MÉTODOS
A presente pesquisa foi realizada em uma amostra 30 ex-ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana, residentes no município de Botucatu (SP). Diante da inexistência de uma definição internacionalmente aceita para longevo, na pesquisa definiu-se como sendo aqueles indivíduos com idade dentro do último quartil da população de idosos do município, considerando como idosos aqueles com sessenta anos e mais27. Segundo este critério, foram identificados como longevos aqueles com idade igual ou superior a 74,8 anos para o município de Botucatu em 2002.
Elaborou-se uma entrevista semi-estruturada, que foi realizada individualmente na amostra delineada, atingindo a saturação da amostra na 30ºentrevista, ou seja, quando as respostas começaram a se repetir, seguindo um mesmo padrão de resposta e não acrescentando novos elementos aos pontos investigados29.
Para a análise das entrevistas, que foram todas gravadas em fitas magnéticas K7 e posteriormente transcritas na íntegra, foi utilizada a técnica da Grounded theory28. Esta técnica consiste na obtenção de dados, sistematicamente coletados e analisados ao longo do processo da pesquisa. É um método de indução sistemático, desde a coleta de dados até a análise, para construir um modelo teórico que explique as vivências relatadas. Ou seja, hipóteses e teorias emergem durante o procedimento de coleta e análise de dados, gerando categorias analíticas com base nos dados, chegando a um modelo teórico que explique todo o processo investigado29.
A base central da Grounded é fazer comparações – comparações teóricas, de forma sistemática e criativa, levantando questões e descobrindo propriedades e dimensões que podem estar nos dados30,31,32. Os passos iniciais da Grounded Theory são semelhantes a outras metodologias qualitativas, ou seja, as entrevistas são transcritas na íntegra e, depois, passam por uma micro-análise, linha por linha, gerando as categorias e os códigos iniciais. Deve-se ter senso analítico, não somente descritivo. Desta forma, as falas são quebradas em pequenos pedaços, para se entender a lógica do processo. Depois, faz-se uma organização conceitual (organizando os dados em categorias de acordo com suas propriedades e dimensões). Enquanto se estudam os dados, são elaboradas categorias. O processo de se elaborar categorias é feito por meio do exame de cada linha de dados e definindo-se ações ou eventos dentro destes – linha por linha, apontando nexos e guiando em direção ao foco, durante a coleta subseqüente dos dados. Ao longo da análise, trabalha-se com diagramas, que são artifícios visuais que retratam a relação entre os conceitos e auxiliam a descobrir as categorias, subcategorias, elementos, chegando a uma matriz axial condicional, que é um diagrama analítico, que mapeia as mudanças de condições e conseqüências relativas ao fenômeno ou categoria.
A grounded theory preconiza um rigor sistemático desde o delineamento da amostra, a coleta de dados, a análise, culminando com a teoria. Todos os passos, todas as etapas são feitas de forma sistemática, permitindo que a mesma pesquisa seja reproduzida, no sentido de ser reavaliada e validada. Para fazer a validação deste modelo existem algumas técnicas. Uma é voltar aos dados, às falas e verificar se este modelo explica a maioria delas. Outro é apresentar os resultados aos sujeitos entrevistados e averiguar se eles julgam que o modelo representa a maioria de suas vivências. As duas técnicas foram utilizadas neste trabalho.
Em relação aos aspectos éticos, o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da USP, tendo cumprido todos os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki.
RESULTADOS
O procedimento metodológico empregado permitiu detectar três fenômenos principais na matriz axial: aniquilando a vida; gerando vida; faltando controle social e do Estado. Neste artigo será discutido somente o segundo fenômeno axial: “gerando vida”, visto que nele aparecerem os fatores que favorecem a longevidade. Este eixo emergiu da composição de quatro temas, dos quais o mais específico foi Favorecendo alcançar maior longevidade. Os outros temas do eixo considerado apontam também os fatores que podem ter contribuído para a longevidade dos ferroviários, que vêm reforçar os do tema anterior. O terceiro tema descreve como a saúde pode ser influenciada pelo meio ambiente, sendo a poluição prejudicial à saúde e sendo esta melhor em locais com maior área verde. Outro tema dentro deste fenômeno trata das riquezas geradas pela ferrovia, levando desenvolvimento e progresso às cidades. Os quatro temas que compõem este fenômeno axial são apresentados visualmente no diagrama 1.
Diagrama 1. Fenômeno 2 – Gerando vida: temas.
O primeiro tema derivou de fatores que puderam ser agrupadas nas categorias mostradas no diagrama 2.
Diagrama 2. Favorecendo a alcançar maior longevidade: Categorias.
Categoria 1 - Adotando estilo de vida saudável e sociável
Os entrevistados acreditam que é necessário manter-se ativo física e mentalmente e com pensamentos positivos, relacionando-se bem com as pessoas e a família. Além disto, consideram importante ter um sono regrado, adotar um hábito alimentar saudável e, principalmente, não ter vícios e não ser extravagante.
Mantendo-se ativo física e mentalmente e com pensamentos positivos
O primeiro fator remete à atividade física e mental. Assinalam que é importante a pessoa manter-se sempre ativa, fazer exercícios físicos, como caminhadas, e nunca ficar parada dentro de casa, procurando sempre estar disposta a fazer outras atividades. Os ferroviários longevos destacam também a importância da atividade mental, dizendo que o segredo para se viver bastante é sempre exercitar a mente, mas não com pensamentos ruins ou preocupações que prejudicam.
“Acho que tem que movimentar as coisas, tem que andar, não pode parar, sempre tem que ter uma preocupação para o cérebro funcionar. Minha paixão é o Palmeiras, quando Palmeiras perde é uma tristeza.” (18.7)
“É usar a mente eu acho, uma vida sadia (...) atividade física né, e a mente, eu acho que a mente influi barbaridade, sem pensar em doença né, mais se você pensar em ficar doente você fica, você sem pensando num fica viu. Eu acho que deve existir uma relação muito estreita entre ambiente e o corpo que funcionando harmoniosamente daí tudo bem e vice versa né, por motivo assim, a mente pode ser afetada e vice- versa. E outra, ficar tranqüilo, num esquentar muito a cuca não, tem gente que se preocupa com tudo né, nunca vi coisa igual né, eu não me preocupo com as coisas não.” (24.11)
Tendo um sono regrado
Eles valorizam a importância de dormir bem, indo cedo para a cama e não perdendo noites de sono em passeios.
“Nunca fui em noite, nada dessas coisas, sempre só no trabalho, em casa, trabalho, em casa, só.” (3.6)
“Quando era mocinho, 9 horas meu pai colocava a gente para dormir, nem esperava chegar para falar, se não dava surra...” (29.2)
Não tendo vícios e não sendo extravagante
Associam a maior longevidade ao fato de não terem vícios e não serem extravagantes. Julgam que vícios, como beber e fumar, prejudicam a saúde e podem encurtar a vida. Colocam que ser extravagante (fazer bagunça, jogar, fumar, beber) estraga a vida e faz viver menos, deve-se ter disciplina e comportar-se bem. Justificam isto apontando que os ferroviários que tinham vícios ou vida extravagante já morreram todos.
“Não fumar, nem beber, dormir cedo, não fazer besteira... difícil né?” (29.2)
“...mais tem uns que, já lá no começo, começa a beber, começa a estragar a vida, o sujeito estraga a vida porque qué, num é mesmo? Estraga a vida porque... nós, nós sim estragamos nossa vida porque nós queremos...” (27.11)
Tendo um hábito alimentar saudável
Relacionam que ter uma alimentação de qualidade - com frutas, leite e alimentos bem selecionados, conforme a escolha da pessoa, evitando gordura - e não ter falta de comida garantem uma maior longevidade.
“... era tudo bom né, o alimento daquele tempo era bom, arroz, feijão, tudo, tudo as coisas eram, eram melhores. Na cooperativa a gente tirava Bacalhau, carne seca, lingüiça de todo o tipo tinha, a gente tirava né, tirava dava pro mês inteiro, sempre comia bem né... sempre comia, fora a mistura da horta, comia repolho, tomate, cebola, pimentão.” (28.7)
“Eu acho que a primeira coisa é comer bem...” (14.6)
Relacionando-se bem com as pessoas e com a família
Acreditam que é importante não fazer ou não desejar o mal ao próximo e não se preocupar com a vida alheia. É importante procurar ter um bom relacionamento social e familiar, tendo boas amizades.
“...começou pensar mal, desejar mal pros outros, essas coisas, num presta (nt) se eu não puder fazer o bem, mal também não faço para ninguém...” (28.6)
“... eu acho que a vida, o segredo de viver bem é a gente não ligar pra vida do outro e ver a da gente né, o que eu estou fazendo de bem, de mal, procurar se emendar também, né.” (25.9)
“... boas amizades, é muito importante, convivência com a família também, né” (15.8)
Categoria 2 – Não existindo consenso se habitat harmônico e sem poluição é positivo para a longevidade
Um grupo dos entrevistados acredita que existe associação entre meio ambiente e longevidade, percebendo que o ambiente mais controlado e o modo de criação interferem, considerando que a contaminação do ambiente leva ao envelhecimento precoce. Destacam que as pessoas que têm mais contato com a natureza, como quem mora no sítio, têm possibilidade de viver mais. Vale ressaltar que alguns julgam não haver associação entre meio ambiente e longevidade, justificando que a longevidade depende de cada organismo ou que a idade é predestinada. Outros se classificaram como leigos, não podendo opinar neste assunto.
“Eu acho, dúvida nenhuma, dúvida nenhuma, o ambiente é o principal da vivência da vida de qualquer pessoa, isso... o principal disso é o ambiente, não é mesmo, esse é o primeiro passo, número um, eu acho que é, né. Que a alimentação põe em segundo plano, eu acho que o primeiro, pra mim no meu entender, primeiro é... eu acho que é o ambiente.” (15.9)
“... o meio ambiente é o viver né, é as pessoa que vivem, agora tem....tem pessoas que vivem melhor e tem outras pessoas que vivem mais ou menos, isso depende da.....do modo da família que cria os filho, isso já vem dos modo que se...que a gente vê né...” (8.5)
“Não... não a natureza, a natureza é pra você, por exemplo, se você tiver um destino de viver 80 anos, ou 90 anos, você vive 80 anos... agora se você começar estravagar aí você num chega aos 80, num chega nem os 60. Muitos colegas meus num chegou nem aos 60...” (27.12)
As subcategorias aqui associadas foram:
Sendo difícil avaliar, pois as condições ambientais do município sempre foram boas
Acreditam que o ar puro e a água limpa são componentes importantes para a longevidade. Refletem que, para Botucatu, é difícil fazer esta comparação, porque a água e o clima da cidade sempre foram bons.
“A água ajuda muito viu, a água é... O ar puro não tem uma coisa melhor na vida da gente, tem que ser ar puro, você desce em São Paulo, você vê o ar de São Paulo, poluição, você vai no sítio é outra coisa.” (14.7)
“Aqui em Botucatu, eu acho que não. Eu acho que não, porque nosso clima é muito bom, né Dirce? É, aqui é ótimo. A água também é muito boa, a água daqui mesmo, que era poço, era água tudo de pedra embaixo... É o que estou dizendo, nós estamos sentados em cima de pedra (risos). Por isso que a água é boa! A água é muito boa! (4.6/7)
Bons estímulos da natureza gerando vida
Destacam que apreciar os bons estímulos que a natureza nos proporciona pode contribuir para uma maior longevidade. Consideram como bons estímulos o aroma do mato e da terra, as belezas da natureza, o conforto proporcionado pela mata, o som dos passarinhos, que trazem alegria, distraem as pessoas e aumentam a possibilidade de viver mais.
“Não, por exemplo, que nem esse negócio das matas, tudo que eles estão cortando, a mata trazia mais, mais conforto pra turma e tudo né, e... ao passo do jeito que estão cortando, acabando com tudo, então vai, vai piorando a situação de todo mundo né.” (23.6)
“Eu acho que sim, quando eu vou... entrar no meio do mato, escuta o passarinho cantar, esquece até que é vivo, é uma beleza, aquele cheiro de mato, passarinho catando. Isso ai que dá a vida pra gente, viu. É uma maravilha, viu.” (18.7)
“Faz viver mais sim, faz viver mais. Por que o senhor acha? Ah! Fica mais alegre, as árvores bonitas e você fica prestando atenção aquele ar puro, vem aquele cheirinho do mato, aquele cheirinho de terra gostoso, tudo isso... ah, não tem dúvida.” (12.16)
Associando instabilidade climática ao adoecimento
Julgam que a instabilidade atual em relação às estações do ano favorece o adoecimento e a mortalidade mais precoce.
“Eu acho que é... A natureza, como se diz – ela é variável, né, variável como se diz, uma ora é calor, outra ora frio, não tem aquela temperatura certa né.”(10.7)
Categoria 3 - Sentindo prazer nas ações realizadas
Julgam que, se as pessoas fizerem só as atividades de que gostam e dão prazer, tendo lazer também, aumentam as possibilidades de se viver mais. De forma semelhante, consideram que os ferroviários que desempenhavam suas funções na ferrovia com prazer e amor viviam mais.
“...o segredo de viver bem, comigo eu trago isso da minha avó, minha vó gostava de tudo que era bom sabe, ela as vezes até tomava um golinho de pinga mesmo, 95 anos, ela ia pescar, ela gosta de andar, ela gostava de passear, ela gostava de comer bem, criava os frango dela próprio né, tinha pomar, sempre fruta, então eu acho que isso é a vida né.” (25.9)
“Eu acho que é... se pudesse soltar mais a vida, solta mesmo, pra vale, a gente ia vive mais né. Soltar a vida de que jeito assim? É, fazer o que quiser.” (6.3)
Categoria 4 - Envolvendo-se com o trabalho e tendo renda para se sustentar
Acreditam que o trabalho é importante no processo da longevidade, pois distrai e não permite que fiquem com pensamentos ruins. Além disto, julgam essencial ter uma remuneração e não ter dívidas. Ressaltam o papel negativo da aposentadoria na vida e destacam a questão da sabedoria como componente que leva a maior longevidade.
As subcategorias associadas à categoria 4 foram:
Aposentadoria gerando desestímulo à vida
Observam o papel negativo da aposentadoria, percebendo que muitos morrem logo que se aposentam, porque perdem a coragem e as amizades, começam a ter uma vida mais extravagante, bebendo, e vão perdendo tempo de vida mais rapidamente.
“...porque o camarada não queria aposentar, porque logo morria, é ferroviário é assim: ih! Vai aposentar, então vai morre logo, ... porque a pessoa aposenta fica sem fazer nada, fica abandonada, não é abandonada, perde a coragem, é como meu pai falava, já pensou perde a coragem? Aí não reanima mais, aí não tem.(...) senta no jardim fica lá.... não é verdade? Fazendo o quê? Chega na hora lá vem almoçar, depois chega lá fica lá no jardim, fica lá vendo livro, vendo besteira, ouvindo conversa que num precisa ouvir... mas homem perdeu a coragem ele está liquidado.” (17.7)
Valorizando o conhecimento adquirido
Acreditam que é importante para a longevidade ter sabedoria, ir adquirindo conhecimentos ao longo da vida para viver mais.
“... ter mais sabedoria, aquela coisarada toda, está dentro da... dos limites da gente de viver melhor...” (26.6)
Categoria 5 - Crendo na espiritualidade e na sorte
Associam a maior longevidade ao desígnio divino e à sorte.
“Aí, você fez uma pergunta difícil de responder. A minha irmã morreu com 55 anos, meu irmão morreu com 60, mas eu tenho muita fé de Deus. Mas, então tem uma verdade absoluta: só Deus.” (20.5)
“... criançada tudo de um pai só uma mãe só, eles todos não chegaram na idade que eu cheguei, estou com 88.Deus é bom, eles deram menos sorte né, tiveram mais doença né.” (16.6)
Categoria 6 - Sendo e estando tranqüilo e feliz
Percebem o valor de ser e estar mais tranqüilo, mais sossegado, e criticam a correria diária das pessoas. Procuram ser e estar felizes, alegres, de bem com a vida, pois a tristeza representa a morte para eles.
“Sossego de vida, sossego de vida..., eu presto muita atenção nas coisa, invocar com as coisa eu num gosto... por exemplo minha filha faz um erro eu fico invocado com aquilo, em um estado de nervo, aquilo perde possibilidade de vida...” (27.10)
“Não ser muito arvorado, agora hoje em dia está ruim, porque sai na rua aí tem que correr e tudo, num tem mais jeito.” (11.5)
“Pra viver bastante... olha pra dizer a verdade, tem que estar sempre alegre, disposto né, na nossa vida tem as partes alegres e as partes mais tristes né, mas não pensar só na tristeza, pensar na alegria no dia de amanhã, num é isso? “ (15.8)
“Ser feliz... sabe o que que é? O segredo é esse... estar de bem com a vida... eu vivo bem com a vida viu... tristeza é morte...” (25.8/9)
Categoria 7 - Possuindo fatores biológicos e genéticos favoráveis
Fazem associação da longevidade com a variabilidade genética e individual, observando pessoas de uma mesma família, que viveram bastante e, ao mesmo tempo, irmãos que morreram com diferentes idades. Fazem associação direta entre longevidade e saúde, ou seja, constroem um raciocínio lógico: se a pessoa tem saúde e não tem doença, vive mais. Destacam a importância de controlar e conservar a própria saúde, fazendo exames regularmente, cuidando do corpo, principalmente quando ficam doentes.
“Bom, um dia me perguntaram aqui uns parentes: sabe, o que você faz que, prá...pra ficar sempre assim? Eu não faço nada! (risos) Então é isso aí né. Eu acho que é, é isso aí, é, é congênito né. Que meu pai 96 anos, minha mãe 92, né, meus irmão também foram longe! E eu também estou indo, viu...” (2.4)
Categoria 8 – Controlando a própria saúde
Acreditam que é importante cuidar da própria saúde e do corpo, fazendo uma revisão médica (check-up), quando possível.
“A gente tem que se conserva né, o que estraga muito é extravagância, a gente se relaxa com o corpo né, fica resfriado num cuida dele né, aquilo vai aumentando e... isso aí prejudica bastante né, quer dizer, tem que se cuidar né...” (16.6)
“...e fazer que nem eu faço, de vez em quando, porque tem o que pode e o que não pode, fazer um checape lá pra saber se tem alguma coisa, né...”(15.8)
Categoria 9 - Percebendo vários fatores associados
Percebem que existem vários fatores, um conjunto de elementos, que podem garantir uma maior longevidade.
“Tomar um ventinho de vez em quando, se alimentar bem, andar um pouco também, não ficar feito coruja... é isso aí, ter uma... participa de uma boa sociedade, pra conversar, ter mais sabedoria, aquela coisarada toda, está dentro da... dos limite da gente de viver melhor...” (26.6)
“Ter tranqüilidade, saúde e dinheiro (risos). Tranqüilidade, saúde e dinheiro, que mais que quer? Mais nada!” (13.7)
O aumento da expectativa de vida, no século XXI, tem sido uma preocupação e um campo de muitas discussões. No entanto, vários esforços acabam sendo centralizados em pesquisas voltadas mais para tentar aumentar a longevidade humana do que para compreendê-la1. Hayflick2 chama a atenção para o fato de que os determinantes da longevidade devem ser diferenciados daqueles do envelhecimento, embora os temas se sobreponham parcialmente. Ele coloca duas perguntas fundamentais: Por que envelhecemos? Por que vivemos tanto tempo quanto vivemos? Apesar das pesquisas sobre envelhecimento terem se intensificado há 30 anos, pouco se avançou também no sentido de compreender o complexo fenômeno do envelhecimento, pois elas enfocaram mais as patologias associadas com o envelhecer, como critica esse autor.
Acreditava-se anteriormente que o tempo máximo de vida do ser humano seria de 100 anos, mas, atualmente, considera-se 125 anos 2. Por outro lado, estudos têm demonstrado que o ser humano, em condições ambientais ótimas e tendo comportamentos saudáveis, pode alcançar uma expectativa de vida média de 85 anos 3. O aumento no tempo de vida está muito associado aos avanços da tecnologia da saúde, que diminuíram as taxas de mortalidade. Atualmente, nota-se que a queda da mortalidade não teria mais tanto impacto no aumento da expectativa de vida, como teve no século XX, com o controle das doenças infecto-parasitárias, medidas de saneamento básico e imunizações, entre outros avanços4.
Em um cenário de envelhecimento populacional e aumento da expectativa de vida, aliados à motivação instintiva humana de preservar a vida ao máximo quando se pode usufruí-la com qualidade, gerou a necessidade de se estudar quais os fatores reais que interferem ou que promovem aumento da longevidade. A questão alimentar tem sido bastante enfatizada. Sabe-se que a ingestão excessiva de alimentos pode estar associada à obesidade e a outras doenças que acabam por encurtar o tempo de vida. Demonstrou-se, em experimentos laboratoriais, inicialmente com camundongos, que a restrição alimentar (redução percentual da quantidade de alimentos ou redução calórica) de 30 a 50% sobre a oferta de alimentos, nos períodos iniciais da vida, aumentava em até 40% a expectativa de vida desses animais5,6,7,8,9,10. Entretanto, ainda não se conseguiu comprovar esta propriedade na espécie humana11.
Já, o papel desempenhado pela genética é fato verificado e, cada vez mais, tenta-se identificar genes responsáveis pela longevidade12,13. A maioria dos estudos, com enfoque genético, tem demonstrado que, aproximadamente, 25% do tempo de vida das pessoas são determinados por componente genético. Uma das dificuldades metodológicas em se estudar estes fatores é que a longevidade envolve um complexo fenômeno14,15. Paralelamente à procura dos genes, existem estudos que analisam a contribuição da hereditariedade16,17,18. Observou-se que os filhos dos centenários tinham riscos reduzidos para as doenças associadas com a idade, como infarto, hipertensão e diabetes. Além disso, percebeu-se que eles apresentavam um processo de envelhecimento mais lento e que as doenças, quando se manifestavam, ocorriam em idade bem avançada19.
Observou-se, também, que mulheres que tinham filhos após os seus 40 anos mostravam maior chance de viver mais. Isto não estava associado simplesmente ao fato de terem filho com esta idade, mas porque seu sistema reprodutor funcionava muito bem e, provavelmente, os outros órgãos também, tendo um processo de envelhecimento mais lento20.
Com base em trabalhos realizados com população de centenários italianos, notou-se que os idosos que mantinham uma boa atividade mental viviam mais quando comparados aos que apresentavam algum problema, como isolamento e falta de atividade intelectual, que tendiam a morrer mais precocemente21,22. Por outro lado, pessoas com hábitos não-saudáveis, como uso de álcool e falta de atividade física, podem apresentar envelhecimento e doenças crônicas prematuramente3. Outros autores confirmam que a atividade física é uma grande aliada da longevidade, além de diminuir o risco de aparecimento de algumas doenças. Jones e Eaton23, entretanto, demonstraram que somente exercícios vigorosos teriam a propriedade de aumentar diretamente a longevidade.
A existência de uma área do noroeste e outra no sul do Estado de São Paulo onde predominavam idosos do sexo masculino na década de 1990, ao contrário da maior longevidade feminina em todas as regiões adjacentes, aponta um possível envolvimento de fatores ambientais na longevidade. Atualmente, na região sul do estado, este predomínio ainda existe24,25.
Frente a essa diversidade de pesquisas e fatores apresentados, verifica-se que a longevidade humana é um tema bastante complexo e que muitas perguntas ainda precisam ser respondidas. Kirkwood26, que tem publicado vários artigos discutindo envelhecimento e longevidade, em um de seus artigos mais recentes coloca:
“Feito o progresso para entender a função e evolução dos fatores genéticos e não-genéticos na longevidade humana, são necessários mais detalhes de estudos teóricos sobre como ocorrem as variações dentro das populações, e como fatores socioeconômicos influenciam a seleção de forças que modelam a história de vida”. (p.737)
Esses fatores socioeconômicos não podem ser separados dos fatores psicológicos, principalmente emocionais, pois os próprios idosos associam como fatores, responsáveis por uma vida mais longa, a postura perante a vida (modo de ser -“viver bem e ser feliz na vida”; serenidade; autocontrole emocional) e o engajamento social (profissão, sociedade, família e lazer)27. O principal obstáculo para se estudar esses fatores são as dificuldades de se abordá-los diretamente em seres humanos, pois, além do tempo que as pesquisas demandam, há escassez de métodos epidemiológicos para a sua investigação17,14.
A dificuldade metodológica das pesquisas que dependem de informações verbais de entrevistados é patente quando se considera a natureza de dados obtidos, cujo exemplo é “viver bem e ser feliz na vida”. Ser feliz na vida é relativo, pois uns podem ser felizes com pouco, outros somente com muito. Isto leva a crer que ser feliz é resultante da percepção de um conjunto de eventos agradáveis, ou seja, uma representação perceptual geral atribuída à soma dos elementos comuns existentes nas coisas ou eventos particulares que formam uma categoria. A pesquisa qualitativa é adequada para a abordagem dessas representações perceptuais e a técnica da grounded theory28 tem mostrado grande poder heurístico na abordagem e determinação dessas categorias que leva à formulação de um modelo teórico geral que, por sua vez, fundamenta todos os dados particulares coletados. Sua aplicação na abordagem dos fatores psicológicos e sociais da longevidade se afigura, portanto, como promissor na geração de novos conhecimentos.
As percepções do próprio longevo a respeito dos fatores contribuintes para a sua longevidade são de extrema importância, pois permitem o levantamento geral inicial que possibilitará o estudo subseqüente de cada fator e sua interação com as demais variáveis na promoção da longevidade. As percepções e significados das coisas e dos acontecimentos são construídos pelas relações dos indivíduos com um meio ambiente determinado e ao longo da história que nele transcorre. Assim, é justificável que estas percepções sejam determinadas em cada região e em função do tempo para que se obtenha o conhecimento amplo e correto dos fatores envolvidos na longevidade.
OBJETIVO
O presente artigo tem como objetivo ampliar a compreensão sobre os possíveis fatores associados ao aumento da longevidade humana, através do relato e análise de dados oriundos de investigação sobre “o segredo da longevidade”, segundo as percepções dos próprios longevos.
MATERIAL E MÉTODOS
A presente pesquisa foi realizada em uma amostra 30 ex-ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana, residentes no município de Botucatu (SP). Diante da inexistência de uma definição internacionalmente aceita para longevo, na pesquisa definiu-se como sendo aqueles indivíduos com idade dentro do último quartil da população de idosos do município, considerando como idosos aqueles com sessenta anos e mais27. Segundo este critério, foram identificados como longevos aqueles com idade igual ou superior a 74,8 anos para o município de Botucatu em 2002.
Elaborou-se uma entrevista semi-estruturada, que foi realizada individualmente na amostra delineada, atingindo a saturação da amostra na 30ºentrevista, ou seja, quando as respostas começaram a se repetir, seguindo um mesmo padrão de resposta e não acrescentando novos elementos aos pontos investigados29.
Para a análise das entrevistas, que foram todas gravadas em fitas magnéticas K7 e posteriormente transcritas na íntegra, foi utilizada a técnica da Grounded theory28. Esta técnica consiste na obtenção de dados, sistematicamente coletados e analisados ao longo do processo da pesquisa. É um método de indução sistemático, desde a coleta de dados até a análise, para construir um modelo teórico que explique as vivências relatadas. Ou seja, hipóteses e teorias emergem durante o procedimento de coleta e análise de dados, gerando categorias analíticas com base nos dados, chegando a um modelo teórico que explique todo o processo investigado29.
A base central da Grounded é fazer comparações – comparações teóricas, de forma sistemática e criativa, levantando questões e descobrindo propriedades e dimensões que podem estar nos dados30,31,32. Os passos iniciais da Grounded Theory são semelhantes a outras metodologias qualitativas, ou seja, as entrevistas são transcritas na íntegra e, depois, passam por uma micro-análise, linha por linha, gerando as categorias e os códigos iniciais. Deve-se ter senso analítico, não somente descritivo. Desta forma, as falas são quebradas em pequenos pedaços, para se entender a lógica do processo. Depois, faz-se uma organização conceitual (organizando os dados em categorias de acordo com suas propriedades e dimensões). Enquanto se estudam os dados, são elaboradas categorias. O processo de se elaborar categorias é feito por meio do exame de cada linha de dados e definindo-se ações ou eventos dentro destes – linha por linha, apontando nexos e guiando em direção ao foco, durante a coleta subseqüente dos dados. Ao longo da análise, trabalha-se com diagramas, que são artifícios visuais que retratam a relação entre os conceitos e auxiliam a descobrir as categorias, subcategorias, elementos, chegando a uma matriz axial condicional, que é um diagrama analítico, que mapeia as mudanças de condições e conseqüências relativas ao fenômeno ou categoria.
A grounded theory preconiza um rigor sistemático desde o delineamento da amostra, a coleta de dados, a análise, culminando com a teoria. Todos os passos, todas as etapas são feitas de forma sistemática, permitindo que a mesma pesquisa seja reproduzida, no sentido de ser reavaliada e validada. Para fazer a validação deste modelo existem algumas técnicas. Uma é voltar aos dados, às falas e verificar se este modelo explica a maioria delas. Outro é apresentar os resultados aos sujeitos entrevistados e averiguar se eles julgam que o modelo representa a maioria de suas vivências. As duas técnicas foram utilizadas neste trabalho.
Em relação aos aspectos éticos, o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da USP, tendo cumprido todos os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki.
RESULTADOS
O procedimento metodológico empregado permitiu detectar três fenômenos principais na matriz axial: aniquilando a vida; gerando vida; faltando controle social e do Estado. Neste artigo será discutido somente o segundo fenômeno axial: “gerando vida”, visto que nele aparecerem os fatores que favorecem a longevidade. Este eixo emergiu da composição de quatro temas, dos quais o mais específico foi Favorecendo alcançar maior longevidade. Os outros temas do eixo considerado apontam também os fatores que podem ter contribuído para a longevidade dos ferroviários, que vêm reforçar os do tema anterior. O terceiro tema descreve como a saúde pode ser influenciada pelo meio ambiente, sendo a poluição prejudicial à saúde e sendo esta melhor em locais com maior área verde. Outro tema dentro deste fenômeno trata das riquezas geradas pela ferrovia, levando desenvolvimento e progresso às cidades. Os quatro temas que compõem este fenômeno axial são apresentados visualmente no diagrama 1.
Diagrama 1. Fenômeno 2 – Gerando vida: temas.
O primeiro tema derivou de fatores que puderam ser agrupadas nas categorias mostradas no diagrama 2.
Diagrama 2. Favorecendo a alcançar maior longevidade: Categorias.
Categoria 1 - Adotando estilo de vida saudável e sociável
Os entrevistados acreditam que é necessário manter-se ativo física e mentalmente e com pensamentos positivos, relacionando-se bem com as pessoas e a família. Além disto, consideram importante ter um sono regrado, adotar um hábito alimentar saudável e, principalmente, não ter vícios e não ser extravagante.
Mantendo-se ativo física e mentalmente e com pensamentos positivos
O primeiro fator remete à atividade física e mental. Assinalam que é importante a pessoa manter-se sempre ativa, fazer exercícios físicos, como caminhadas, e nunca ficar parada dentro de casa, procurando sempre estar disposta a fazer outras atividades. Os ferroviários longevos destacam também a importância da atividade mental, dizendo que o segredo para se viver bastante é sempre exercitar a mente, mas não com pensamentos ruins ou preocupações que prejudicam.
“Acho que tem que movimentar as coisas, tem que andar, não pode parar, sempre tem que ter uma preocupação para o cérebro funcionar. Minha paixão é o Palmeiras, quando Palmeiras perde é uma tristeza.” (18.7)
“É usar a mente eu acho, uma vida sadia (...) atividade física né, e a mente, eu acho que a mente influi barbaridade, sem pensar em doença né, mais se você pensar em ficar doente você fica, você sem pensando num fica viu. Eu acho que deve existir uma relação muito estreita entre ambiente e o corpo que funcionando harmoniosamente daí tudo bem e vice versa né, por motivo assim, a mente pode ser afetada e vice- versa. E outra, ficar tranqüilo, num esquentar muito a cuca não, tem gente que se preocupa com tudo né, nunca vi coisa igual né, eu não me preocupo com as coisas não.” (24.11)
Tendo um sono regrado
Eles valorizam a importância de dormir bem, indo cedo para a cama e não perdendo noites de sono em passeios.
“Nunca fui em noite, nada dessas coisas, sempre só no trabalho, em casa, trabalho, em casa, só.” (3.6)
“Quando era mocinho, 9 horas meu pai colocava a gente para dormir, nem esperava chegar para falar, se não dava surra...” (29.2)
Não tendo vícios e não sendo extravagante
Associam a maior longevidade ao fato de não terem vícios e não serem extravagantes. Julgam que vícios, como beber e fumar, prejudicam a saúde e podem encurtar a vida. Colocam que ser extravagante (fazer bagunça, jogar, fumar, beber) estraga a vida e faz viver menos, deve-se ter disciplina e comportar-se bem. Justificam isto apontando que os ferroviários que tinham vícios ou vida extravagante já morreram todos.
“Não fumar, nem beber, dormir cedo, não fazer besteira... difícil né?” (29.2)
“...mais tem uns que, já lá no começo, começa a beber, começa a estragar a vida, o sujeito estraga a vida porque qué, num é mesmo? Estraga a vida porque... nós, nós sim estragamos nossa vida porque nós queremos...” (27.11)
Tendo um hábito alimentar saudável
Relacionam que ter uma alimentação de qualidade - com frutas, leite e alimentos bem selecionados, conforme a escolha da pessoa, evitando gordura - e não ter falta de comida garantem uma maior longevidade.
“... era tudo bom né, o alimento daquele tempo era bom, arroz, feijão, tudo, tudo as coisas eram, eram melhores. Na cooperativa a gente tirava Bacalhau, carne seca, lingüiça de todo o tipo tinha, a gente tirava né, tirava dava pro mês inteiro, sempre comia bem né... sempre comia, fora a mistura da horta, comia repolho, tomate, cebola, pimentão.” (28.7)
“Eu acho que a primeira coisa é comer bem...” (14.6)
Relacionando-se bem com as pessoas e com a família
Acreditam que é importante não fazer ou não desejar o mal ao próximo e não se preocupar com a vida alheia. É importante procurar ter um bom relacionamento social e familiar, tendo boas amizades.
“...começou pensar mal, desejar mal pros outros, essas coisas, num presta (nt) se eu não puder fazer o bem, mal também não faço para ninguém...” (28.6)
“... eu acho que a vida, o segredo de viver bem é a gente não ligar pra vida do outro e ver a da gente né, o que eu estou fazendo de bem, de mal, procurar se emendar também, né.” (25.9)
“... boas amizades, é muito importante, convivência com a família também, né” (15.8)
Categoria 2 – Não existindo consenso se habitat harmônico e sem poluição é positivo para a longevidade
Um grupo dos entrevistados acredita que existe associação entre meio ambiente e longevidade, percebendo que o ambiente mais controlado e o modo de criação interferem, considerando que a contaminação do ambiente leva ao envelhecimento precoce. Destacam que as pessoas que têm mais contato com a natureza, como quem mora no sítio, têm possibilidade de viver mais. Vale ressaltar que alguns julgam não haver associação entre meio ambiente e longevidade, justificando que a longevidade depende de cada organismo ou que a idade é predestinada. Outros se classificaram como leigos, não podendo opinar neste assunto.
“Eu acho, dúvida nenhuma, dúvida nenhuma, o ambiente é o principal da vivência da vida de qualquer pessoa, isso... o principal disso é o ambiente, não é mesmo, esse é o primeiro passo, número um, eu acho que é, né. Que a alimentação põe em segundo plano, eu acho que o primeiro, pra mim no meu entender, primeiro é... eu acho que é o ambiente.” (15.9)
“... o meio ambiente é o viver né, é as pessoa que vivem, agora tem....tem pessoas que vivem melhor e tem outras pessoas que vivem mais ou menos, isso depende da.....do modo da família que cria os filho, isso já vem dos modo que se...que a gente vê né...” (8.5)
“Não... não a natureza, a natureza é pra você, por exemplo, se você tiver um destino de viver 80 anos, ou 90 anos, você vive 80 anos... agora se você começar estravagar aí você num chega aos 80, num chega nem os 60. Muitos colegas meus num chegou nem aos 60...” (27.12)
As subcategorias aqui associadas foram:
Sendo difícil avaliar, pois as condições ambientais do município sempre foram boas
Acreditam que o ar puro e a água limpa são componentes importantes para a longevidade. Refletem que, para Botucatu, é difícil fazer esta comparação, porque a água e o clima da cidade sempre foram bons.
“A água ajuda muito viu, a água é... O ar puro não tem uma coisa melhor na vida da gente, tem que ser ar puro, você desce em São Paulo, você vê o ar de São Paulo, poluição, você vai no sítio é outra coisa.” (14.7)
“Aqui em Botucatu, eu acho que não. Eu acho que não, porque nosso clima é muito bom, né Dirce? É, aqui é ótimo. A água também é muito boa, a água daqui mesmo, que era poço, era água tudo de pedra embaixo... É o que estou dizendo, nós estamos sentados em cima de pedra (risos). Por isso que a água é boa! A água é muito boa! (4.6/7)
Bons estímulos da natureza gerando vida
Destacam que apreciar os bons estímulos que a natureza nos proporciona pode contribuir para uma maior longevidade. Consideram como bons estímulos o aroma do mato e da terra, as belezas da natureza, o conforto proporcionado pela mata, o som dos passarinhos, que trazem alegria, distraem as pessoas e aumentam a possibilidade de viver mais.
“Não, por exemplo, que nem esse negócio das matas, tudo que eles estão cortando, a mata trazia mais, mais conforto pra turma e tudo né, e... ao passo do jeito que estão cortando, acabando com tudo, então vai, vai piorando a situação de todo mundo né.” (23.6)
“Eu acho que sim, quando eu vou... entrar no meio do mato, escuta o passarinho cantar, esquece até que é vivo, é uma beleza, aquele cheiro de mato, passarinho catando. Isso ai que dá a vida pra gente, viu. É uma maravilha, viu.” (18.7)
“Faz viver mais sim, faz viver mais. Por que o senhor acha? Ah! Fica mais alegre, as árvores bonitas e você fica prestando atenção aquele ar puro, vem aquele cheirinho do mato, aquele cheirinho de terra gostoso, tudo isso... ah, não tem dúvida.” (12.16)
Associando instabilidade climática ao adoecimento
Julgam que a instabilidade atual em relação às estações do ano favorece o adoecimento e a mortalidade mais precoce.
“Eu acho que é... A natureza, como se diz – ela é variável, né, variável como se diz, uma ora é calor, outra ora frio, não tem aquela temperatura certa né.”(10.7)
Categoria 3 - Sentindo prazer nas ações realizadas
Julgam que, se as pessoas fizerem só as atividades de que gostam e dão prazer, tendo lazer também, aumentam as possibilidades de se viver mais. De forma semelhante, consideram que os ferroviários que desempenhavam suas funções na ferrovia com prazer e amor viviam mais.
“...o segredo de viver bem, comigo eu trago isso da minha avó, minha vó gostava de tudo que era bom sabe, ela as vezes até tomava um golinho de pinga mesmo, 95 anos, ela ia pescar, ela gosta de andar, ela gostava de passear, ela gostava de comer bem, criava os frango dela próprio né, tinha pomar, sempre fruta, então eu acho que isso é a vida né.” (25.9)
“Eu acho que é... se pudesse soltar mais a vida, solta mesmo, pra vale, a gente ia vive mais né. Soltar a vida de que jeito assim? É, fazer o que quiser.” (6.3)
Categoria 4 - Envolvendo-se com o trabalho e tendo renda para se sustentar
Acreditam que o trabalho é importante no processo da longevidade, pois distrai e não permite que fiquem com pensamentos ruins. Além disto, julgam essencial ter uma remuneração e não ter dívidas. Ressaltam o papel negativo da aposentadoria na vida e destacam a questão da sabedoria como componente que leva a maior longevidade.
As subcategorias associadas à categoria 4 foram:
Aposentadoria gerando desestímulo à vida
Observam o papel negativo da aposentadoria, percebendo que muitos morrem logo que se aposentam, porque perdem a coragem e as amizades, começam a ter uma vida mais extravagante, bebendo, e vão perdendo tempo de vida mais rapidamente.
“...porque o camarada não queria aposentar, porque logo morria, é ferroviário é assim: ih! Vai aposentar, então vai morre logo, ... porque a pessoa aposenta fica sem fazer nada, fica abandonada, não é abandonada, perde a coragem, é como meu pai falava, já pensou perde a coragem? Aí não reanima mais, aí não tem.(...) senta no jardim fica lá.... não é verdade? Fazendo o quê? Chega na hora lá vem almoçar, depois chega lá fica lá no jardim, fica lá vendo livro, vendo besteira, ouvindo conversa que num precisa ouvir... mas homem perdeu a coragem ele está liquidado.” (17.7)
Valorizando o conhecimento adquirido
Acreditam que é importante para a longevidade ter sabedoria, ir adquirindo conhecimentos ao longo da vida para viver mais.
“... ter mais sabedoria, aquela coisarada toda, está dentro da... dos limites da gente de viver melhor...” (26.6)
Categoria 5 - Crendo na espiritualidade e na sorte
Associam a maior longevidade ao desígnio divino e à sorte.
“Aí, você fez uma pergunta difícil de responder. A minha irmã morreu com 55 anos, meu irmão morreu com 60, mas eu tenho muita fé de Deus. Mas, então tem uma verdade absoluta: só Deus.” (20.5)
“... criançada tudo de um pai só uma mãe só, eles todos não chegaram na idade que eu cheguei, estou com 88.Deus é bom, eles deram menos sorte né, tiveram mais doença né.” (16.6)
Categoria 6 - Sendo e estando tranqüilo e feliz
Percebem o valor de ser e estar mais tranqüilo, mais sossegado, e criticam a correria diária das pessoas. Procuram ser e estar felizes, alegres, de bem com a vida, pois a tristeza representa a morte para eles.
“Sossego de vida, sossego de vida..., eu presto muita atenção nas coisa, invocar com as coisa eu num gosto... por exemplo minha filha faz um erro eu fico invocado com aquilo, em um estado de nervo, aquilo perde possibilidade de vida...” (27.10)
“Não ser muito arvorado, agora hoje em dia está ruim, porque sai na rua aí tem que correr e tudo, num tem mais jeito.” (11.5)
“Pra viver bastante... olha pra dizer a verdade, tem que estar sempre alegre, disposto né, na nossa vida tem as partes alegres e as partes mais tristes né, mas não pensar só na tristeza, pensar na alegria no dia de amanhã, num é isso? “ (15.8)
“Ser feliz... sabe o que que é? O segredo é esse... estar de bem com a vida... eu vivo bem com a vida viu... tristeza é morte...” (25.8/9)
Categoria 7 - Possuindo fatores biológicos e genéticos favoráveis
Fazem associação da longevidade com a variabilidade genética e individual, observando pessoas de uma mesma família, que viveram bastante e, ao mesmo tempo, irmãos que morreram com diferentes idades. Fazem associação direta entre longevidade e saúde, ou seja, constroem um raciocínio lógico: se a pessoa tem saúde e não tem doença, vive mais. Destacam a importância de controlar e conservar a própria saúde, fazendo exames regularmente, cuidando do corpo, principalmente quando ficam doentes.
“Bom, um dia me perguntaram aqui uns parentes: sabe, o que você faz que, prá...pra ficar sempre assim? Eu não faço nada! (risos) Então é isso aí né. Eu acho que é, é isso aí, é, é congênito né. Que meu pai 96 anos, minha mãe 92, né, meus irmão também foram longe! E eu também estou indo, viu...” (2.4)
Categoria 8 – Controlando a própria saúde
Acreditam que é importante cuidar da própria saúde e do corpo, fazendo uma revisão médica (check-up), quando possível.
“A gente tem que se conserva né, o que estraga muito é extravagância, a gente se relaxa com o corpo né, fica resfriado num cuida dele né, aquilo vai aumentando e... isso aí prejudica bastante né, quer dizer, tem que se cuidar né...” (16.6)
“...e fazer que nem eu faço, de vez em quando, porque tem o que pode e o que não pode, fazer um checape lá pra saber se tem alguma coisa, né...”(15.8)
Categoria 9 - Percebendo vários fatores associados
Percebem que existem vários fatores, um conjunto de elementos, que podem garantir uma maior longevidade.
“Tomar um ventinho de vez em quando, se alimentar bem, andar um pouco também, não ficar feito coruja... é isso aí, ter uma... participa de uma boa sociedade, pra conversar, ter mais sabedoria, aquela coisarada toda, está dentro da... dos limite da gente de viver melhor...” (26.6)
“Ter tranqüilidade, saúde e dinheiro (risos). Tranqüilidade, saúde e dinheiro, que mais que quer? Mais nada!” (13.7)