0286/2006 - Pode o conceito de Vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva?
Can the concept of Vulnerability support the construction of the knowledge in Collective Health?
Autor:
• Alba Idaly Muñoz Sanchez - Alba Idaly Muñoz Sanchez - Bogotá/Colombia Sao Paulo- Brasil, Bogota - Universidade de Sao Paulo (estudo)-Universidade Nacional de Colombia (local de Trabalho) - <edualla@yahoo.com>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Resumo O termo vulnerabilidade tem sido usado freqüentemente na literatura científica, especialmente após a década de 80, em vários estudos epidemiológicos, principalmente focalizado para a perspectiva de risco. Este artigo tem por objetivo apresentar uma revisão sobre o conceito de vulnerabilidade, a partir de um estudo sistemático em periódicos de circulação nacional e internacional, para subsidiar o conhecimento e a prática da Saúde Coletiva. Apresenta, ainda, como no Brasil esse conceito tem sido re-visitado, incorporando questões que sustentam a dimensão estrutural da realidade, articulando-a às necessidades que emanam do plano singular, que se refere aos usuários de saúde/pacientes e suas respectivas famílias. A importância de se estudar o conceito de vulnerabilidade reside no fato de que pode embasar as práticas de saúde, em este caso de Saúde Coletiva, integrando os planos relativos aos indivíduos, aos programas e às políticas de saúde.Palavras-chave: Vulnerabilidade, Saúde coletiva, Fatores de risco.
Abstract:
Resumo O termo vulnerabilidade tem sido usado freqüentemente na literatura científica, especialmente após a década de 80, em vários estudos epidemiológicos, principalmente focalizado para a perspectiva de risco. Este artigo tem por objetivo apresentar uma revisão sobre o conceito de vulnerabilidade, a partir de um estudo sistemático em periódicos de circulação nacional e internacional, para subsidiar o conhecimento e a prática da Saúde Coletiva. Apresenta, ainda, como no Brasil esse conceito tem sido re-visitado, incorporando questões que sustentam a dimensão estrutural da realidade, articulando-a às necessidades que emanam do plano singular, que se refere aos usuários de saúde/pacientes e suas respectivas famílias. A importância de se estudar o conceito de vulnerabilidade reside no fato de que pode embasar as práticas de saúde, em este caso de Saúde Coletiva, integrando os planos relativos aos indivíduos, aos programas e às políticas de saúde.Palavras-chave: Vulnerabilidade, Saúde coletiva, Fatores de risco.
Conteúdo:
O termo Vulnerabilidade tem sido bastante empregado nos últimos anos, expressando distintas perspectivas de interpretação. Wisner1, analisa o conceito sob a perspectiva da vulnerabilidade que as pessoas/populações podem apresentar em caso de exposição à acidentes extensivos, como terremotos. O autor aponta que a vulnerabilidade e a capacidade são lados de um mesmo processo, pois a primeira está intimamente relacionada à capacidade de luta e de recuperação que o indivíduo pode apresentar. Argumenta, ainda, que o nível socioeconômico, a ocupação e a nacionalidade também se relacionam a esse processo, pois repercutem sobre o acesso à informação, aos serviços e à disponibilidade de recursos para a recuperação, os quais, por sua vez, potencializam ou diminuem a vulnerabilidade.
Dilley e Boudreau2 empregam o termo na área de nutrição, definindo-o como a possibilidade de sofrer danos e a capacidade para o seu enfrentamento. Nessa abordagem, defende-se a necessidade de se identificar: quem, por que e em que nível os grupos são vulneráveis.
Numa outra perspectiva, Kalipeni3 aponta que Watts e Bohle, em 1993, propuseram uma estrutura tripartite para constituir uma teoria sobre a vulnerabilidade, que consiste em entitlement, empowerment e política econômica. A vulnerabilidade é definida na intersecção desses três poderes, sendo que entitlement refere-se ao direito das pessoas; empowerment, o empoderamento, que se refere à sua participação política e institucional; e a política econômica, se refere à organização estrutural-histórica da sociedade e suas decorrências. Desse modo, a vulnerabilidade às doenças e situações adversas da vida, distribui-se de maneira diferente segundo os indivíduos, regiões e grupos sociais e relaciona-se com a pobreza, com as crises econômicas, e com o nível educacional. Ao multifatorializar a vulnerabilidade, acrescenta, ainda, que a vulnerabilidade depende do local e do clima, restringindo-se, portanto à dimensão geográfica (Kalipeni3). Especificamente na área da saúde, o quadro analítico da vulnerabilidade emerge no começo da década 80, como possibilidade de interpretação à epidemia da AIDS, na perspectiva de re-conceituar a tendência individualizante da doença. Assim, Delor e Hubert4 apresentam uma matriz heurística, construída a partir de pesquisa realizada com pessoas portadoras do HIV/AIDS, na Bélgica, em 1997. Os resultados da investigação são analisados sob três dimensões: trajetória social, interação e contexto social. A trajetória social refere-se às diferentes etapas que as pessoas atravessam no curso da vida, assim como as condutas assumidas nesse curso. A dimensão relativa à interação refere-se à relação entre os indivíduos e o contexto social e incorpora os fatores econômicos, políticos e culturais, numa dada sociedade, assim como as várias maneiras de atuação e de relação entre os indivíduos. Esses níveis podem ser analisados desde dois ângulos, objetiva e subjetivamente (o que os autores denominam como dimensão sócio-simbólica). A análise final que se apresenta propõe a construção de processos de identidade e de vulnerabilidade dos indivíduos estudados.
Nessa mesma linha, Mann et al.5, no livro “Aids no mundo”, apresentam uma metodologia para avaliar a vulnerabilidade à infecção pelo HIV e AIDS. Segundo os autores, o comportamento individual é o determinante final da vulnerabilidade à infecção, o que justifica focalizar ações no indivíduo, embora isto não seja suficiente para o controle da epidemia. Deste modo, é importante considerar outros fatores que podem influenciar tal controle no âmbito individual. Propõem uma estrutura de análise que incorpora o comportamento individual, o âmbito coletivo e o social. O primeiro refere-se à auto-avaliação, através de perguntas, para se verificar o conhecimento, os comportamentos, o status social e o acesso à informação, avaliando-se como pode ocorrer a transmissão da doença. A vulnerabilidade coletiva refere-se à avaliação da capacidade estrutural e funcional dos programas de controle da epidemia e a vulnerabilidade social consiste na avaliação das realidades sociais através de indicadores do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Finalmente, os autores propõem a aplicação de um sistema de escores, que classificam a vulnerabilidade como alta, média e baixa. Nessa perspectiva, enfatizam a necessidade de que os indivíduos se responsabilizem pela prevenção da doença, imputando aos mesmos essa tarefa.
Segundo Paris6, o modelo original, proposto por Mann et al.5, apresenta-se impregnado da tradição norte-americana de pesquisa social, ao focalizar o âmbito individual segundo aspectos comportamentais e cognitivos. Paris6 apresenta um estudo sobre vulnerabilidade à Aids, numa perspectiva psicossocial, a partir da população de mulheres acometidas. Apresenta uma decodificação do conceito em: vulnerabilidade relacionada aos fatores estruturais da sociedade, que se refere à desigualdade de renda, educação e de acesso à serviços; vulnerabilidade relacionada aos aspectos fisiológicos e decorrentes das relações de gênero na sociedade e a vulnerabilidade na esfera da significação, que integra o conceito de risco e a maneira como se expressa, no imaginário social, além de seus diferentes significados através da história.
Na tentativa de ampliar o conceito proposto por Mann et al.5, Ayres et al.7 no Brasil, apontam que o modelo de vulnerabilidade está conformado por três planos interdependentes de determinação e, conseqüentemente, de apreensão da maior ou da menor vulnerabilidade do indivíduo e da coletividade. O olhar do autor busca a compreensão do comportamento pessoal ou a vulnerabilidade individual, do contexto social ou vulnerabilidade social e do programa de combate à doença, no caso a AIDS, ou vulnerabilidade programática.
O significado do termo vulnerabilidade, nesse caso, refere-se à chance de exposição das pessoas ao adoecimento, como resultante de um conjunto de aspectos que ainda que se refiram imediatamente ao indivíduo, o recoloca na perspectiva da dupla-face, ou seja, o indivíduo e sua relação com o coletivo. Explicando melhor, o indivíduo não prescinde do coletivo: há relação intrínseca entre os mesmos. Além disso, o autor propõe que a interpretação da vulnerabilidade incorpore, necessariamente, o contexto como lócus de vulnerabilidade, o que pode acarretar maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, à maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para a proteção das pessoas contra as enfermidades (Ayres et al.7).
O marco conceitual que propõe o autor difere do marco inicial proposto por Mann, et al.5, pois Ayres et al.7 não enfatiza excessivamente a vulnerabilidade à determinação individual. Para esse autor, a unidade analítica está constituída no indivíduo-coletivo. Nessa perspectiva, propõe a sua operacionalização através da: Vulnerabilidade Individual: que se refere ao grau e à qualidade da informação que os indivíduos dispõem sobre os problemas de saúde, sua elaboração e aplicação na prática; a Vulnerabilidade Social: que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibilidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em instituições; e, a Vulnerabilidade Programática, consiste na avaliação dos programas para responder ao controle de enfermidades, além do grau e qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção (Ayres et al.7).
Cada um desses planos pode ser tomado como referência para interpretar-se também outros agravos, além da AIDS. Essa abordagem pode ampliar a atuação em saúde e gerar reflexões que podem ser úteis para a formulação de políticas de saúde a partir das necessidades da coletividade.
Nesse sentido, o modelo propõe construir políticas voltadas às necessidades dos seres humanos, trabalhar com as comunidades e realizar diagnósticos sobre as condições dos grupos sociais, de maneira participativa, assim como a redefinição dos objetos de intervenção e a análise crítica das práticas de saúde para a sua reconstrução orientada às necessidades dos indivíduos e da coletividade.
Entende-se, portanto, a partir dessa última perspectiva apresentada, o conceito de vulnerabilidade, como um convite para renovar as práticas de saúde como práticas sociais e históricas, através do trabalho com diferentes setores da sociedade e da transdisciplinaridade. Isso permite o repensar sobre as práticas, de maneira crítica e dinâmica, para contribuir na busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, que promovam impacto nos perfis epidemiológicos (Ayres8).
Este último conceito de vulnerabilidade traz implícita, ainda, a intervenção e exige a adoção de um marco referencial diverso do utilizado historicamente pela Epidemiologia Clássica. Desse modo, a vulnerabilidade não nega o modelo biológico tradicional, muito pelo contrário, o reconhece, mas busca superá-lo. Vale lembrar que o modelo privilegia, como unidade analítica, o plano do coletivo, e que a estrutura é marcada por um referencial ético-filosófico, que busca a interpretação crítica dos dados. Essa perspectiva analítica amplia o horizonte para além da abordagem que se restringe à responsabilidade individual, que é empregada, tradicionalmente, em vários estudos que analisam o papel da pessoa na trama da causalidade. Ademais, incorpora o trabalho participante com a população, de maneira a contribuir para que esta seja “sujeito de sua vida” (Paiva et al.9).
Outros autores também têm feito uso do conceito de vulnerabilidade para a explicação de certos processos, como Palma e Mattos10, que definem o conceito de vulnerabilidade social, relacionando-o à processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos grupos sociais, e sua capacidade de reação. É necessário destacar que essa abordagem é muito similar à proposta conceitual de Ayres, pois envolve aspectos que dizem respeito à dimensão estrutural, quando os autores se reportam aos processos de exclusão social, e relativos às dimensões particular e singular, quando fazem menção à capacidade de reação dos indivíduos/grupos sociais, para o enfrentamento da doença.
Especificamente em relação à operacionalização do conceito de vulnerabilidade, Figueiredo e Ayres11 apresentam um processo de intervenção comunitária para a redução da vulnerabilidade de mulheres às doenças de transmissão sexual, numa favela de São Paulo. Os autores verificaram que as estratégias que respondiam às necessidades e interesses da comunidade, além daquelas que respondiam às representações sobre essas enfermidades, tiveram sucesso, o que mostra a importância de se aproximar à população, e conhecer suas necessidades, já que é a partir dela que se podem encontrar alternativas de intervenção às vulnerabilidades.
Com o intuito de analisar o curso da epidemia da AIDS, nos últimos 10 anos, Paiva et al.9 discutem a necessidade de superação das noções de "grupo de risco" e de “comportamentos de risco” em relação à doença. Os autores mostram as importantes contribuições que os trabalhos, sob a ótica da vulnerabilidade, têm aportado em relação à educação e à saúde. Alguns destaques que os autores apontam são o trabalho junto à população, fomentando a solidariedade, através de processo mútuo de aprendizagem entre os profissionais de saúde e a população.
Um exemplo de operacionalização do conceito de vulnerabilidade
Partindo-se do conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres8, e alicerçadas na interpretação da saúde-doença como processo social, Muñoz Sánchez e Bertolozzi12 analisaram como se processava a vulnerabilidade à tuberculose, num grupo de estudantes universitários. Com base em critérios da Sociedade Americana Torácica e do Centro para o Controle de Doenças (CDC) (Curley13), as autoras construíram uma matriz, utilizando categorias e definindo escores de vulnerabilidade: média e alta. As categorias utilizadas foram: menção à contato com portadores de tuberculose, procedência de países e/ou de regiões do Brasil com taxas de tuberculose maiores que 30, uso de drogas e dormir em local com mais de 3 pessoas. Essas categorias foram analisadas em conjunto com outras, que se referem à vulnerabilidade individual e social, verificando-se, também como fundamentais, a situação de empregabilidade dos pais e dos próprios alunos, o acesso à informação, as crenças religiosas, as possibilidades de acesso ao lazer, dentre outras, que minimizam ou potencializam a vulnerabilidade à tuberculose.
No mesmo estudo, Muñoz Sánches e Bertolozzi12 analisaram a Vulnerabilidade Programática, com relação à unidade de saúde que era referência para o grupo de alunos estudados. Verificou-se que a dificuldade de acesso ao serviço de saúde se constituiu como importante marcador de vulnerabilidade.
Algumas questões que podem apoiar as práticas de Saúde Coletiva
O modelo de vulnerabilidade que interliga os aspectos individuais, sociais e programáticos, reconhece a determinação social da doença e se coloca como um convite para renovar as práticas de saúde, como práticas sociais e históricas, envolvendo diferentes setores da sociedade. Assim, é mister superar estudos que restringem as análises à perspectiva da multifatorialidade, e ocultam a complexidade das verdadeiras causas da doença. A Teoria da Determinação Social apreende a saúde-doença como uma síntese do conjunto de determinações e que acaba por resultar em riscos ou potencialidades, que se evidenciam em perfis ou padrões saúde-doença. Deste modo, essa Teoria analisa como, em última instância, os fatores estruturais estão vinculados à emergência de processos saúde-doença, diferentes na sua expressão, de acordo com a inserção de classe dos indivíduos 14.
A abordagem na perspectiva da determinação social da saúde-doença, e que o modelo de vulnerabilidade apresentado incorpora (Muñoz Sánches, Bertolozzi12) aponta para a necessidade da transdisciplinaridade, o que é fundamental quando se trata de problemas ou de necessidades de saúde, na medida em que a complexidade do objeto da saúde requer diferentes aportes teórico-metodológicos, sob pena de reduzir as ações à “tarefas” pontuais, de caráter emergencial que não modificam a estrutura da teia de causalidade.
Vale enfatizar que a interpretação da saúde-doença, além de se apoiar nos processos de produção e de reprodução social, não deve descolar-se da dimensão subjetiva, que diz respeito às representações/significados que os indivíduos atribuem a fatos e à vida em si, acaba por refletir-se nos comportamentos e atitudes das pessoas.
Assim, a vulnerabilidade deve levar em conta a dimensão relativa ao indivíduo e o local social por ele ocupado. Ao propor outras perspectivas de abordagem, como a programática e a social, permite a integralização da análise da situação de saúde e de diferentes possibilidades de intervenção, sempre contemplando a participação dos indivíduos.
Para intervir em situações de vulnerabilidade, é imperativo o desenvolvimento de ações que envolvam “resposta social” que, segundo Ayres et al.7, diz respeito à participação ativa da população na procura solidária de estratégias passíveis de execução e de encaminhamento/equacionamento de problemas e de necessidades de saúde.