0722/2007 - Por que o uso racional de medicamentos deve ser uma prioridade?
Why the rational drug use must be a priority?
Autor:
• Daniela Silva de Aquino - Aquino, D.S. - Recife, Pernambuco - Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão - <aquino.daniela@hotmail.com>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
A Organização Mundial de Saúde diz que há uso racional de medicamentos quando pacientes recebem medicamentos apropriados para suas condições clínicas, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e para a comunidade. Porém, o que se observa, mostra uma realidade bastante diferente. Pelo menos 35.0% dos medicamentos adquiridos no Brasil são feitos através de automedicação. Os medicamentos respondem por 27.0% das intoxicações no Brasil, e 16.0% dos casos de morte por intoxicações são causados por medicamentos. Além disso, 50.0% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente, e os hospitais gastam de 15 a 20.0% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso dos mesmos. A proposta de alívio imediato do sofrimento, como em um passe de mágica, é um apelo atraente, mas tem seu preço. Este preço nem sempre se restringe ao desembolso financeiro, e pode ser descontado na própria saúde. Os requisitos para o uso racional de medicamentos são muito complexos e envolvem uma série de variáveis, em um encadeamento lógico. Para que sejam cumpridos, devem contar com a participação de diversos atores sociais: pacientes, profissionais de saúde, legisladores, formuladores de políticas públicas, indústria, comércio, governo.Palavras-chaves: Medicamentos, Uso Racional, Intoxicação.
Abstract:
According to the Worldwide Health Organization there is rational drug use when patients receive appropriate drug for their clinical conditions, in adequate doses for a period of time with the lesser cost for themselves and the community. However, according to the observation, the reality is very different. At least, 35.0% of the drugs acquired in Brazil are made through self-medication. The drugs answer for 27.0% of poisonings in Brazil, and 16.0% of the cases of death for poisonings are caused by drugs. Moreover, 50.0% of all the drugs are prescribed or used inappropriately and the hospitals spend about 15 a 20.0% of their budgets to deal with the troubles caused for the bad use of the same ones. The proposal of immediate relief of the suffering is an attractive appeal, but it has a price. Not always this price is restricted to the finances, but in the health too. The requirements for the rational drugs use are very complex and involve a series of variable, in a logical chain. So that they are fulfilled, they must count on the participation of diverse social actors: patients, professionals of health, legislators, formulators of public politics, industry, commerce, government.Key-words: Drugs, Rational Use, Poisoning.
Conteúdo:
Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe que para o uso racional de medicamentos, é preciso, em primeiro lugar estabelecer necessidade do uso do medicamento; a seguir, que se receite o medicamento apropriado, a melhor escolha, de acordo com os ditames de eficácia e segurança comprovados e aceitáveis. Além disso, é necessário que o medicamento seja prescrito adequadamente, na forma farmacêutica, doses e período de duração do tratamento; que esteja disponível de modo oportuno, a um preço acessível, e que responda sempre aos critérios de qualidade exigidos; que se dispense em condições adequadas, com a necessária orientação e responsabilidade, e, finalmente, que se cumpra o regime terapêutico já prescrito, da melhor maneira possível1. Conceito semelhante também é proposto pela Política Nacional de Medicamentos2.
Todavia, o que tem sido observado no Brasil se contrapõe à proposta da OMS. Segundo Barros3 pelo menos 35% dos medicamentos adquiridos no Brasil são feitos através de automedicação. Entretanto, se o brasileiro tende a se automedicar é também porque não encontra disponibilidade dos serviços de saúde mais acessíveis, precisa ficar horas em uma fila e, às vezes, esperar dias e até meses para ser atendido por um médico. O baixo poder aquisitivo da população e a precariedade dos serviços de saúde contrastam com a facilidade de se obter medicamentos, sem pagamento de consulta e sem receita médica em qualquer farmácia, onde, não raro, se encontra o estímulo do balconista interessado em ganhar uma comissão pela venda4. Embora, o alto consumo e o consumo de medicamentos de forma inadequada têm sido observados também entre as camadas mais privilegiadas da sociedade, uma vez que essa prática se dá pela herança cultural, de forma instintiva sem qualquer base racional, pela facilidade de acesso, dentre outros.
Além disso, os médicos, muitas vezes, não têm acesso a informações completas a respeito da segurança dos fármacos. Parte deles sequer conhece o conjunto dos possíveis efeitos nocivos do que prescreve, ou não sabe identificar nem prevenir corretamente combinações perigosas entre as substâncias farmacológicas. Por outro lado, alguns pacientes ignoram os perigos de se misturar medicamentos e não declaram se já estão usando outros. Há também aqueles acompanhados por vários médicos, sem que haja intercomunicações entre eles5.
Soma-se a todos esses fatores, a propaganda de medicamentos, que tem sido um estímulo freqüente para o uso inadequado dos mesmos, sobretudo, porque tende a ressaltar os benefícios e omitir ou minimizar os riscos e os possíveis efeitos adversos, dando a impressão, especialmente, ao público leigo, que são produtos inócuos, influenciando-os a consumir como qualquer outra mercadoria.
Para agravar ainda mais esta situação, constatamos a utilização crescente da Internet para disseminar propaganda para os consumidores, muitas delas assumindo uma forma menos explícita já que tentam dar a impressão de que são instrumentos educativos ou de informação, objetivando promover a saúde6.
Segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF), um relatório concluído recentemente pela Organização das Nações Unidas (ONU) alerta as autoridades sanitárias do mundo inteiro para o rápido tráfico de drogas lícitas (medicamentos controlados) pelas farmácias virtuais, que têm como principal forma de atuação os e-mails. O CFF se pronunciou chamando a atenção de que a venda de medicamentos é muito mais grave do que se imagina, pois além do tráfico, acumula outros graves problemas à saúde da população. Os usuários de múltiplas drogas, os ex-pacientes que se tornam dependentes e permanecem fazendo uso de medicamentos, mesmo depois de terem concluído o tratamento, e as pessoas que preferem a comodidade de receber produtos em casa e a preços baixos são os alvos do “cibertráfico”7.
Ainda é importante lembrar que esse tipo de comércio remoto, por fugir à fiscalização e a outros tipos de controle, pode ainda fazer com que produtos falsificados ou com prazo de validade vencido vão parar nas mãos de usuários pouco cautelosos.
O papel simbólico dos medicamentos e a sociedade de consumo
Para um melhor entendimento sobre a problemática do uso irracional de medicamentos, faz-se necessário compreender as relações de consumo da sociedade e a interação das mesmas com o medicamento.
“O consumo é algo inerente ao homem”, havendo uma relação entre as transformações da sociedade e o fenômeno do consumo. Sendo assim, o medicamento não está desvinculado dessa característica social. Diferentemente de outras épocas históricas, o capitalismo pós-moderno incentiva o consumo através da publicidade e da idéia de substituição do “prazer vicário do ter sobre o ser”8. O uso de drogas pela humanidade, para os mais diversos fins, é antiqüíssimo e permanece como um ato, ainda hoje, cheio de conteúdos simbólicos nas mais diversas culturas9.
Cordeiro10 afirma que os “medicamentos ocupam o lugar de símbolos e representações que obscurecem os determinantes sociais das doenças, iludem os indivíduos com a aparência de eficácia científica e, como mercadoria, realizam o valor e garantem a acumulação de um dos seguimentos mais lucrativos do capital industrial”. Para Lefèvre11 esta afirmação é apenas parcial, pois os medicamentos conseguem iludir e funcionam como paliativos dos sofrimentos de milhares de indivíduos, não como aparência, mas com a realidade da sua eficácia científica.
A hipervalorização no alcance da tecnologia médica passa a considerar como doença problemas os mais diversos (situações fisiológicas ou problemas cuja determinação são, em última análise, fundamentalmente, de natureza econômico-social), como tal demandando, para sua solução procedimentos médicos6.
A crença excessiva e, até certo ponto ingênua no poder dos medicamentos, ao lado da crescente oferta e indicação desses produtos, com vigoroso suporte da mídia, tendem a aproximá-los da condição de fetiche inanimado da atualidade, encarnando o poder sacralizado da ciência e da tecnologia sobre a vida dos mortais. Considera-se o medicamento uma resposta imediata e fácil para condições que requerem ações individuais e sociais de fundo para sua resolução12.
Pierce13 afirma que “a sociedade de consumo, ao mesmo tempo em que promove, por todos os seus canais de comunicação, a idéia de que qualquer sofrimento, qualquer dor, qualquer estado, enfim, que fuja daquilo que ela institui como padrão, inclusive estético; por outro lado, oferece a solução mágica na ponta dos dedos: os comprimidos”.
A proposta de alívio imediato do sofrimento, como em um passe de mágica, é um apelo atraente, mas tem seu preço. Este preço nem sempre se restringe ao desembolso financeiro, e pode ser descontado na própria saúde. A noção de que existe uma ecologia do corpo, que merece ser preservada e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias vem emergindo, ainda que lentamente, em meio à névoa densa de promessas extraordinárias e dúbias5. Portanto, faz-se necessário que a sociedade se conscientize e entenda que o mesmo medicamento que cura, pode matar ou deixar danos irreversíveis. Que reflita um pouco mais, antes de sair consumindo medicamentos desenfreadamente, e percebam que a vida saudável não está no balcão de uma farmácia, e sim, mudando os hábitos, fazendo exercícios físicos, equilibrando a alimentação, procurando se estressar menos.
O que dizem as estatísticas
Os dados acerca do uso irracional de medicamentos no Brasil são alarmantes. Aproximadamente, um terço das internações ocorridas no País, têm como origem o uso incorreto de medicamentos. Estatísticas do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox)14 da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) revelam que os medicamentos respondem por 27.0% das intoxicações no Brasil, e 16.0% dos casos de morte por intoxicações são causados por medicamentos.
Contudo, o uso irracional de medicamentos não é uma prática exclusiva do Brasil, sendo, portanto, prática mundial. Abaixo, seguem informações da OMS15,16 sobre este hábito que ocorre em muitos países:
• 25 a 70% do gasto em saúde, nos países em desenvolvimento, correspondem a medicamentos, em comparação a menos de 15% nos países desenvolvidos.
• 50 a 70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa.
• 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente.
• 75% das prescrições com antibióticos são errôneas.
• 2/3 dos antibióticos são usados sem prescrição médica em muitos países.
• 50% dos consumidores compram medicamentos para 1 dia de tratamento.
• Cresce constantemente a resistência da maioria dos microorganismos causadores de enfermidades infecciosas prevalentes.
• 53% de todas as prescrições de antibióticos nos Estados Unidos, são feitas para crianças de 0 a 4 anos.
• Os hospitais gastam de 15 a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos.
Diante do exposto, a OMS estabeleceu como seu grande desafio para a próxima década a melhoria na racionalidade do uso de medicamentos, havendo uma necessidade de promover a avaliação desse uso e vigiar o seu consumo17.
Medidas para promover o uso racional de medicamentos
De acordo com a definição do uso racional de medicamentos proposta pela Política Nacional de Medicamentos, os requisitos para a sua promoção são muito complexos e envolvem uma série de variáveis, em um encadeamento lógico. Para que sejam cumpridos, devem contar com a participação de diversos atores sociais: pacientes, profissionais de saúde, legisladores, formuladores de políticas públicas, indústria, comércio, governo18.
Preocupado com este grave problema de saúde pública, o Ministério da Saúde do Brasil criou o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos por meio da Portaria de número 427/07, o que vem a atender uma recomendação da OMS. O Comitê desenvolverá ações estratégicas para ampliar o acesso da população à assistência farmacêutica e para melhorar a qualidade e segurança na utilização dos medicamentos.
De uma maneira geral, as soluções propostas para reverter ou minimizar este quadro devem passar pela educação e informação da população, maior controle na venda com e sem prescrição médica, melhor acesso aos serviços de saúde, adoção de critérios éticos para a promoção de medicamentos, retirada do mercado de numerosas especialidades farmacêuticas carentes de eficácia ou de segurança, e incentivo à adoção de terapêuticas não medicamentosas5.
Referências bibliográficas
1. World Health Organization. The rational use of drugs: report of the conference of experts. Nairobi 1985 Jul 25-29. Geneva: WHO; 1987.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Medicamentos. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios; 25). Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Política de Saúde, Departamento de Atenção Básica; 2001.
3. Barros JAC. Propaganda de medicamentos: atentado à saúde? São Paulo: Hucitec/Sobravime; 1995.
4. Barros JAC. A atuação dos balconistas de farmácia – ajudando a promover o uso racional de medicamentos? J Bras Med 1997; 73(2):120-7.
5. Nascimento MC. Medicamentos: ameaça ou apoio à saúde? Rio de Janeiro: Vieira e Lent; 2003.
6. Barros JAC. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses da saúde? Brasília:UNESCO/ANVISA; 2004.
7. Brandão A. Farmácia virtual pode trazer outros problemas à saúde, além do tráfico. Rev Pharm Bras 2004; (41): 9.
8. Rozenfeld S, Porto MA. Vigilância sanitária: uma abordagem ecológica da tecnologia em saúde. In: Buss PM, Sabroza P, Leal MC, organizadores. Saúde, ambiente e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 1992 (Pt 2): 171-196.
9. Haaiger-Ruskamp F, Hemminki E. The social aspects of drug use. In: Dukes MNG, editor. Drug utilization studies: methods and uses. Copenhagen: WHO Regional Publications/WHO Regional Office for Europe; 1993. (European Series; 45).
10. Cordeiro H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1980.
11. Lefèvre F. A função simbólica dos medicamentos. Rev Saúde Pública 1983; 17: 500-3.
12. Fefer E. Uso racional de medicamentos. In: Bermudez JAZ, Bonfim JRA, organizadores. Medicamentos e a reforma do setor saúde. São Paulo: Hucitec/Sobravime; 1999. p. 45-55.
13. Pierce CS. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix; 1975.
14. Sinitox. Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas. Fundação Osvaldo Cruz: Sinitox/Fiocruz; 2002.
15. World Health Organization. Global partnerships for health. WHO drug information 1999; 13 (2): 61-4.
16. World Health Organization. Global strategy for containment of antimicrobial resistance. 2001 [acessado 2002 mar 29]. Disponível em: http://www.who.int/emc/amr.html
17. Organización Mundial de la Salud. Perspectivas políticas de la OMS sobre medicamentos Promoción del uso racional de medicamentos: componentes centrales. [periódico na Internet] 2002 Set [acessado 2003 nov 20]; 5: [aproximadamente 6 p.]. Disponível em http://www.who.int/medicinedocs/collect/medicinedocs/pdf/s4874s/s4874s.pdf
18. Castro CGSO, coordenadora. Estudos de utilização de medicamentos: noções básicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe que para o uso racional de medicamentos, é preciso, em primeiro lugar estabelecer necessidade do uso do medicamento; a seguir, que se receite o medicamento apropriado, a melhor escolha, de acordo com os ditames de eficácia e segurança comprovados e aceitáveis. Além disso, é necessário que o medicamento seja prescrito adequadamente, na forma farmacêutica, doses e período de duração do tratamento; que esteja disponível de modo oportuno, a um preço acessível, e que responda sempre aos critérios de qualidade exigidos; que se dispense em condições adequadas, com a necessária orientação e responsabilidade, e, finalmente, que se cumpra o regime terapêutico já prescrito, da melhor maneira possível1. Conceito semelhante também é proposto pela Política Nacional de Medicamentos2.
Todavia, o que tem sido observado no Brasil se contrapõe à proposta da OMS. Segundo Barros3 pelo menos 35% dos medicamentos adquiridos no Brasil são feitos através de automedicação. Entretanto, se o brasileiro tende a se automedicar é também porque não encontra disponibilidade dos serviços de saúde mais acessíveis, precisa ficar horas em uma fila e, às vezes, esperar dias e até meses para ser atendido por um médico. O baixo poder aquisitivo da população e a precariedade dos serviços de saúde contrastam com a facilidade de se obter medicamentos, sem pagamento de consulta e sem receita médica em qualquer farmácia, onde, não raro, se encontra o estímulo do balconista interessado em ganhar uma comissão pela venda4. Embora, o alto consumo e o consumo de medicamentos de forma inadequada têm sido observados também entre as camadas mais privilegiadas da sociedade, uma vez que essa prática se dá pela herança cultural, de forma instintiva sem qualquer base racional, pela facilidade de acesso, dentre outros.
Além disso, os médicos, muitas vezes, não têm acesso a informações completas a respeito da segurança dos fármacos. Parte deles sequer conhece o conjunto dos possíveis efeitos nocivos do que prescreve, ou não sabe identificar nem prevenir corretamente combinações perigosas entre as substâncias farmacológicas. Por outro lado, alguns pacientes ignoram os perigos de se misturar medicamentos e não declaram se já estão usando outros. Há também aqueles acompanhados por vários médicos, sem que haja intercomunicações entre eles5.
Soma-se a todos esses fatores, a propaganda de medicamentos, que tem sido um estímulo freqüente para o uso inadequado dos mesmos, sobretudo, porque tende a ressaltar os benefícios e omitir ou minimizar os riscos e os possíveis efeitos adversos, dando a impressão, especialmente, ao público leigo, que são produtos inócuos, influenciando-os a consumir como qualquer outra mercadoria.
Para agravar ainda mais esta situação, constatamos a utilização crescente da Internet para disseminar propaganda para os consumidores, muitas delas assumindo uma forma menos explícita já que tentam dar a impressão de que são instrumentos educativos ou de informação, objetivando promover a saúde6.
Segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF), um relatório concluído recentemente pela Organização das Nações Unidas (ONU) alerta as autoridades sanitárias do mundo inteiro para o rápido tráfico de drogas lícitas (medicamentos controlados) pelas farmácias virtuais, que têm como principal forma de atuação os e-mails. O CFF se pronunciou chamando a atenção de que a venda de medicamentos é muito mais grave do que se imagina, pois além do tráfico, acumula outros graves problemas à saúde da população. Os usuários de múltiplas drogas, os ex-pacientes que se tornam dependentes e permanecem fazendo uso de medicamentos, mesmo depois de terem concluído o tratamento, e as pessoas que preferem a comodidade de receber produtos em casa e a preços baixos são os alvos do “cibertráfico”7.
Ainda é importante lembrar que esse tipo de comércio remoto, por fugir à fiscalização e a outros tipos de controle, pode ainda fazer com que produtos falsificados ou com prazo de validade vencido vão parar nas mãos de usuários pouco cautelosos.
O papel simbólico dos medicamentos e a sociedade de consumo
Para um melhor entendimento sobre a problemática do uso irracional de medicamentos, faz-se necessário compreender as relações de consumo da sociedade e a interação das mesmas com o medicamento.
“O consumo é algo inerente ao homem”, havendo uma relação entre as transformações da sociedade e o fenômeno do consumo. Sendo assim, o medicamento não está desvinculado dessa característica social. Diferentemente de outras épocas históricas, o capitalismo pós-moderno incentiva o consumo através da publicidade e da idéia de substituição do “prazer vicário do ter sobre o ser”8. O uso de drogas pela humanidade, para os mais diversos fins, é antiqüíssimo e permanece como um ato, ainda hoje, cheio de conteúdos simbólicos nas mais diversas culturas9.
Cordeiro10 afirma que os “medicamentos ocupam o lugar de símbolos e representações que obscurecem os determinantes sociais das doenças, iludem os indivíduos com a aparência de eficácia científica e, como mercadoria, realizam o valor e garantem a acumulação de um dos seguimentos mais lucrativos do capital industrial”. Para Lefèvre11 esta afirmação é apenas parcial, pois os medicamentos conseguem iludir e funcionam como paliativos dos sofrimentos de milhares de indivíduos, não como aparência, mas com a realidade da sua eficácia científica.
A hipervalorização no alcance da tecnologia médica passa a considerar como doença problemas os mais diversos (situações fisiológicas ou problemas cuja determinação são, em última análise, fundamentalmente, de natureza econômico-social), como tal demandando, para sua solução procedimentos médicos6.
A crença excessiva e, até certo ponto ingênua no poder dos medicamentos, ao lado da crescente oferta e indicação desses produtos, com vigoroso suporte da mídia, tendem a aproximá-los da condição de fetiche inanimado da atualidade, encarnando o poder sacralizado da ciência e da tecnologia sobre a vida dos mortais. Considera-se o medicamento uma resposta imediata e fácil para condições que requerem ações individuais e sociais de fundo para sua resolução12.
Pierce13 afirma que “a sociedade de consumo, ao mesmo tempo em que promove, por todos os seus canais de comunicação, a idéia de que qualquer sofrimento, qualquer dor, qualquer estado, enfim, que fuja daquilo que ela institui como padrão, inclusive estético; por outro lado, oferece a solução mágica na ponta dos dedos: os comprimidos”.
A proposta de alívio imediato do sofrimento, como em um passe de mágica, é um apelo atraente, mas tem seu preço. Este preço nem sempre se restringe ao desembolso financeiro, e pode ser descontado na própria saúde. A noção de que existe uma ecologia do corpo, que merece ser preservada e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias vem emergindo, ainda que lentamente, em meio à névoa densa de promessas extraordinárias e dúbias5. Portanto, faz-se necessário que a sociedade se conscientize e entenda que o mesmo medicamento que cura, pode matar ou deixar danos irreversíveis. Que reflita um pouco mais, antes de sair consumindo medicamentos desenfreadamente, e percebam que a vida saudável não está no balcão de uma farmácia, e sim, mudando os hábitos, fazendo exercícios físicos, equilibrando a alimentação, procurando se estressar menos.
O que dizem as estatísticas
Os dados acerca do uso irracional de medicamentos no Brasil são alarmantes. Aproximadamente, um terço das internações ocorridas no País, têm como origem o uso incorreto de medicamentos. Estatísticas do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox)14 da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) revelam que os medicamentos respondem por 27.0% das intoxicações no Brasil, e 16.0% dos casos de morte por intoxicações são causados por medicamentos.
Contudo, o uso irracional de medicamentos não é uma prática exclusiva do Brasil, sendo, portanto, prática mundial. Abaixo, seguem informações da OMS15,16 sobre este hábito que ocorre em muitos países:
• 25 a 70% do gasto em saúde, nos países em desenvolvimento, correspondem a medicamentos, em comparação a menos de 15% nos países desenvolvidos.
• 50 a 70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa.
• 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente.
• 75% das prescrições com antibióticos são errôneas.
• 2/3 dos antibióticos são usados sem prescrição médica em muitos países.
• 50% dos consumidores compram medicamentos para 1 dia de tratamento.
• Cresce constantemente a resistência da maioria dos microorganismos causadores de enfermidades infecciosas prevalentes.
• 53% de todas as prescrições de antibióticos nos Estados Unidos, são feitas para crianças de 0 a 4 anos.
• Os hospitais gastam de 15 a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos.
Diante do exposto, a OMS estabeleceu como seu grande desafio para a próxima década a melhoria na racionalidade do uso de medicamentos, havendo uma necessidade de promover a avaliação desse uso e vigiar o seu consumo17.
Medidas para promover o uso racional de medicamentos
De acordo com a definição do uso racional de medicamentos proposta pela Política Nacional de Medicamentos, os requisitos para a sua promoção são muito complexos e envolvem uma série de variáveis, em um encadeamento lógico. Para que sejam cumpridos, devem contar com a participação de diversos atores sociais: pacientes, profissionais de saúde, legisladores, formuladores de políticas públicas, indústria, comércio, governo18.
Preocupado com este grave problema de saúde pública, o Ministério da Saúde do Brasil criou o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos por meio da Portaria de número 427/07, o que vem a atender uma recomendação da OMS. O Comitê desenvolverá ações estratégicas para ampliar o acesso da população à assistência farmacêutica e para melhorar a qualidade e segurança na utilização dos medicamentos.
De uma maneira geral, as soluções propostas para reverter ou minimizar este quadro devem passar pela educação e informação da população, maior controle na venda com e sem prescrição médica, melhor acesso aos serviços de saúde, adoção de critérios éticos para a promoção de medicamentos, retirada do mercado de numerosas especialidades farmacêuticas carentes de eficácia ou de segurança, e incentivo à adoção de terapêuticas não medicamentosas5.
Referências bibliográficas
1. World Health Organization. The rational use of drugs: report of the conference of experts. Nairobi 1985 Jul 25-29. Geneva: WHO; 1987.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Medicamentos. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios; 25). Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Política de Saúde, Departamento de Atenção Básica; 2001.
3. Barros JAC. Propaganda de medicamentos: atentado à saúde? São Paulo: Hucitec/Sobravime; 1995.
4. Barros JAC. A atuação dos balconistas de farmácia – ajudando a promover o uso racional de medicamentos? J Bras Med 1997; 73(2):120-7.
5. Nascimento MC. Medicamentos: ameaça ou apoio à saúde? Rio de Janeiro: Vieira e Lent; 2003.
6. Barros JAC. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses da saúde? Brasília:UNESCO/ANVISA; 2004.
7. Brandão A. Farmácia virtual pode trazer outros problemas à saúde, além do tráfico. Rev Pharm Bras 2004; (41): 9.
8. Rozenfeld S, Porto MA. Vigilância sanitária: uma abordagem ecológica da tecnologia em saúde. In: Buss PM, Sabroza P, Leal MC, organizadores. Saúde, ambiente e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 1992 (Pt 2): 171-196.
9. Haaiger-Ruskamp F, Hemminki E. The social aspects of drug use. In: Dukes MNG, editor. Drug utilization studies: methods and uses. Copenhagen: WHO Regional Publications/WHO Regional Office for Europe; 1993. (European Series; 45).
10. Cordeiro H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1980.
11. Lefèvre F. A função simbólica dos medicamentos. Rev Saúde Pública 1983; 17: 500-3.
12. Fefer E. Uso racional de medicamentos. In: Bermudez JAZ, Bonfim JRA, organizadores. Medicamentos e a reforma do setor saúde. São Paulo: Hucitec/Sobravime; 1999. p. 45-55.
13. Pierce CS. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix; 1975.
14. Sinitox. Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas. Fundação Osvaldo Cruz: Sinitox/Fiocruz; 2002.
15. World Health Organization. Global partnerships for health. WHO drug information 1999; 13 (2): 61-4.
16. World Health Organization. Global strategy for containment of antimicrobial resistance. 2001 [acessado 2002 mar 29]. Disponível em: http://www.who.int/emc/amr.html
17. Organización Mundial de la Salud. Perspectivas políticas de la OMS sobre medicamentos Promoción del uso racional de medicamentos: componentes centrales. [periódico na Internet] 2002 Set [acessado 2003 nov 20]; 5: [aproximadamente 6 p.]. Disponível em http://www.who.int/medicinedocs/collect/medicinedocs/pdf/s4874s/s4874s.pdf
18. Castro CGSO, coordenadora. Estudos de utilização de medicamentos: noções básicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000.