0420/2024 - Tendência temporal e perfil epidemiológico das intoxicações exógenas no Brasil: um estudo ecológico de 2007 a 2019
Autor:
• Braian Valério Cassiano de Castro - Castro, B.V.C - <braianvcc@gmail.com>ORCID: orcid.org/0000-0001-7039-287X
Coautor(es):
• Marlene Zannin - Zannin, M. - <marlenezannin@gmail.com>ORCID: orcid.org/0000-0001-7956-9969
• Jéssica Donato Antônio - Antônio, J.D - <jdadonato@gmail.com>
ORCID: orcid.org/0009-0005-6715-1983
• Renan Choi Bustamante - Bustamante, R.C - <renan.choi@unifesp.br>
ORCID: orcid.org/0000-0003-2738-2275
• Thais Cláudia Roma de Oliveira Konstantyner - Konstantyner, T.C.R.O - <t.konstantyner@unifesp.br>
ORCID: orcid.org/0000-0002-2289-1866
• Lucas Leite Cunha - Cunha, L.L - <lucas.leite@unifesp.br>
ORCID: orcid.org/0000-0002-1513-1455
Resumo:
As intoxicações são um problema de saúde pública global. Com o objetivo de descrever o perfil epidemiológico no Brasil, realizamos um estudo ecológico de séries temporais de 2007 a 2019, caracterizando variáveis demográficas individuais (sexo; idade), variáveis de exposição (circunstância; agentes tóxicos), indicadores de saúde (incidência; mortalidade; letalidade) e a tendência temporal. Extraímos os dados sobre as notificações pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e os estratificamos por macrorregiões, sexo, idade, circunstância e agentes tóxicos. Foram calculadas a incidência, letalidade, mortalidade e analisada a tendência temporal pelo modelo Prais-Winsten. Obteve-se 1.166.299 notificações, sendo majoritária no sexo feminino (55,6%). A maioria dos casos que evoluíram para óbito eram do sexo masculino (59,6%). A faixa etária dos adultos foi a mais notificada (60,4%), mas a incidência (50,49/100.000 habitantes) foi maior nas crianças. Medicamento foi o principal agente (43,7%) e a tentativa de suicídio a principal circunstância relacionados as notificações, óbitos, incidência e mortalidade. Observamos baixa letalidade (1,0%) e tendência crescente da incidência e mortalidade. Assim, os resultados poderão nortear ações de promoção e prevenção de saúde no país.Palavras-chave:
Intoxicações; Epidemiologia; Brasil; Vigilância em Saúde PúblicaAbstract:
Poisonings are a global public health problem. With the aim of describing the epidemiological profile in Brazil, we carried out an ecological time series study, from 2007 to 2019, characterizing individual demographic variables (sex; age), exposure variables (circumstance; toxic agents), health indicators (incidence; mortality; lethality) and temporal trends. We extracted data on notifications through the Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) and stratified them by macro-regions, sex, age, circumstance and toxic agents. The following indicators were calculated: incidence, lethality, mortality and the temporal trend was analyzed using the Prais-Winsten model. Our search obtained 1,166,299 notifications, the majority of which were female (55.6%). The preponderance of cases that resulted in death were male (59.6%). The adult age group was the most reported (60.4%), however the incidence (50.49/100,000 inhabitants) was higher in children. Drug intoxication was the main agent (43.7%) and attempted suicide was the main circumstance related to notifications, deaths, incidence and mortality. We observed low lethality (1,0%) and an increasing trend in incidence and mortality. Thus, the results can guide health promotion and prevention actions in the country.Keywords:
Poisoning; Epidemiology; Brazil; Public Health SurveillanceConteúdo:
As intoxicações são um problema de saúde pública global1 e causas comuns de procura por atendimento de urgência nos serviços de saúde no mundo2. Além da alta prevalência das intoxicações agudas1,2, de serem uma das principais causas de atendimento hospitalar de emergência3 e de terem um alto potencial de gerar casos graves4, elas são frequentemente utilizadas como método de tentativa de suicídio5. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que em 2016 houve 106.683 mortes por intoxicações não intencionais no mundo6. Comparando esse número com outras condições de saúde, fica evidente a real grandeza desse valor, pois a dengue que é endêmica no Brasil e em mais de 100 países é responsável por cerca de 21 mil óbitos por ano no globo7.
Embora no Brasil o entendimento da importância da assistência toxicológica tenha começado recentemente8, já existem 32 Centros de Informação e Assistência Toxicológicas (CIATox) em 19 estados9, sendo estabelecimentos de saúde integrantes da Linha de Cuidado ao Trauma e da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)10. Mediante a importância desses locais, o estabelecimento de novos centros foi reconhecido como uma prioridade pela Agenda 21 da Organização das Nações Unidas (ONU) na conferência Rio-92 e mais recentemente no plano de ação global acordado pela International Conference on Chemicals Management (ICCM) em 20073.
Paralelamente à criação de novos centros, a regulamentação da notificação desta entidade no país foi um marco importante para a coleta de dados. Em 200411 estabeleceu-se que as intoxicações seriam de notificação compulsória quando relacionadas ao trabalho, sendo registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Posteriormente, em 2011, as intoxicações exógenas se tornaram agravo de notificação compulsória universal12.
Considerando a relevância do tema e que não existem estudos que tenham buscado a descrição epidemiológica detalhada das intoxicações exógenas no país de 2007 a 201913,14,15,16, nosso estudo objetivou descrever o perfil epidemiológico desta condição no Brasil caracterizando variáveis demográficas individuais (sexo e idade), variáveis de exposição (circunstância e agentes tóxicos), indicadores de saúde (incidência, mortalidade, e letalidade) e a tendência temporal.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo ecológico de séries temporais, sobre intoxicações exógenas no Brasil, no período de 2007 a 2019. Foram extraídos os dados em 2020 e 2021 do SINAN, por meio do TABNET, software gratuito desenvolvido pelo DATASUS que dá acesso a base de dados de domínio público do Ministério da Saúde. Essas informações são coletadas através da Ficha de Notificação Individual preenchida pelas unidades assistenciais, que complementam posteriormente com dados sobre a evolução para óbito, utilizados nesta pesquisa para contabilização das notificações e para o cálculo de alguns indicadores de saúde como mortalidade e letalidade. A escolha do período se deu pelo fato de 2007 ser o primeiro ano em que o SINAN disponibilizou as informações de acesso público sobre intoxicação e 2019 foi o último ano em que os dados estavam disponíveis para acesso no momento da coleta. Não incluímos os dados dos anos da pandemia pois houve mudança do padrão populacional mundial nesse período em relação às intoxicações17. Os resultados foram estratificados para análise por macrorregiões (Sudeste, Norte, Nordeste, Sul, Centro-Oeste) de acordo com variáveis demográficas individuais (sexo e idade) e variáveis de exposição (circunstância da intoxicação e agentes tóxicos). Ademais, foram calculados a incidência, a letalidade, a mortalidade geral e específica.
Com relação as variáveis demográficas individuais, o sexo foi estratificado nas categorias masculino e feminino e a faixa etária foi categorizada de acordo com a classificação proposta pela OMS18 e pela ONU19 que agrupa as idades em ? 9 anos (criança), 10 a 19 anos (adolescente), 20 a 59 anos (adulto) e ? 60 anos (idoso). Em relação as variáveis de exposição, as circunstâncias disponibilizadas pelo SINAN são: uso acidental; uso terapêutico; erro de administração; abuso; tentativa de suicídio; violência/homicídio; uso habitual; ambiental; prescrição médica; automedicação; ingestão de alimentos; tentativa de aborto; outra. Os agentes tóxicos possíveis são agrotóxicos (agrícolas; em saúde pública; domésticos); produto veterinário; cosméticos; metais; plantas tóxicas; medicamentos; raticidas; produtos de uso domiciliar; produtos químicos; drogas de abuso; alimentos e bebidas; outros.
Quanto à taxa de incidência e à taxa de mortalidade geral (divisão do número total de notificações de óbitos por intoxicação de 2007 a 2019 em uma determinada macrorregião ou no Brasil, pela população total exposta ao risco), no intuito de tornar a análise mais visual e de fácil comparação, foram calculadas as taxas, respectivamente, por 100.000 habitantes e por 1.000.000 de habitantes. A taxa de mortalidade específica foi calculada dividindo-se o número de notificações de óbitos por sexo ou faixa etária ou agente tóxico ou circunstância de 2007 a 2019, em uma determinada macrorregião ou no Brasil, pela população total exposta ao risco. Descrevemos as séries temporais da incidência, mortalidade e letalidade das intoxicações exógenas no Brasil por macrorregiões, sexo, faixa etária, circunstância e agentes tóxicos. As informações demográficas foram retiradas do TABNET através de estimativas populacionais realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para análise de tendência temporal, foi utilizado o modelo de Prais-Winsten20. A variável dependente foi considerada a transformação da incidência e da mortalidade na base logarítmica 10 e a variável independente foi considerada os anos da série histórica (2007 a 2019). Com o intuito de a avaliar a possível tendência de aumento ou diminuição da incidência e da mortalidade ao longo do tempo, estimou-se a variação percentual anual (APC, sigla em inglês para annual percent change) através da fórmula [-1+10b1]100%, sendo b1 o coeficiente de regressão linear, e estimou-se seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%) através da fórmula [-1+10b1min]100%; [-1+10b1max]*100%, sendo "min" mínimo e "max" máximo. A tendência foi considerada presente quando o zero não esteve contido no IC 95% do APC, sendo crescente quando APC positivo e decrescente quando APC negativo. Quando o zero esteve contido no IC 95% do APC, a tendência foi denominada estacionária20. Estas análises foram realizadas com o uso do software R versão 3.6.3. Além disso, todo conteúdo compilado foi inserido, tabulado e avaliado pelo software Microsoft Office Excel 2016.
Em acordo com as orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unifesp e alinhado com a resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, não houve necessidade de submissão do presente estudo ao CEP, pois se trata de um estudo que se utilizou de um banco de dados secundários de acesso público.
RESULTADOS
Entre 2007 e 2019, foram registradas 1.166.299 notificações e 11.867 óbitos por intoxicações exógenas no Brasil. Isso representou, respectivamente, um aumento de 6,84 vezes e de 3,47 vezes entre 2007 e 2019. Em torno de 75,0% das notificações foram decorrentes de exposição aguda, 3,0% de exposição crônica e o restante o campo de preenchimento foi ignorado ou deixado em branco. A maior ocorrência de casos e óbitos se deu na região Sudeste (47,5%; n=554.350 e 44,0%; n=5.220) e a menor na região Norte (3,5%; n=40.143 e 3,6%; n=415). Considerando a distribuição das notificações por sexo no Brasil e nas macrorregiões, vê-se um acometimento predominantemente feminino (Tabela 1), mas a frequência de óbitos foi maior no sexo masculino, perfazendo cerca de 59,6% da casuística de mortes por esse agravo no país.
Quanto à faixa etária, os dados mostram que a maioria das intoxicações ocorreu em indivíduos adultos (60,4%), seguido do grupo dos adolescentes (18,6%), crianças (17,0%) e idosos (4,0%). Em relação aos óbitos observou-se um padrão similar, identificando-se indivíduos com 20 a 59 anos como sendo o grupo principal no período (72,1%; n=8.553).
Avaliando os agentes tóxicos e as circunstâncias da intoxicação, as notificações foram preponderantemente decorrentes do uso de medicamentos no contexto de tentativa de suicídio (Tabela 1). Além disso, o agente tóxico e a circunstância mais relacionados ao óbito também foram medicamentos (27,0%; n=3.196) e tentativa de suicídio (60,7%; n=7.290).
Nossos dados mostram que o sexo feminino se intoxicou majoritariamente por medicamento (56,0%; n=363.483) sendo a tentativa de suicídio a circunstância mais notificada nesse grupo (49,4%; n=324.538). Por outro lado, embora este tenha sido o principal agente tóxico responsável pelas intoxicações (28,2%; n=146.115), esse compôs uma porcentagem menor do total visto a maior representatividade das drogas de abuso (19,9%; n=103.168) e dos alimentos e bebidas (10,7%; n=55.271).
No que se refere aos indicadores de saúde, evidencia-se na Figura 1 e na Figura 2 o aumento anual das taxas de incidência e de mortalidade geral no Brasil e em cada uma das suas macrorregiões, destacando-se a região Sul com a maior incidência (59,61 casos por 100.000 habitantes) e mortalidade (6,91 óbitos por 1.000.000 de habitantes) e a região Norte com as menores (18,21 casos por 100.000 habitantes; 1,88 óbitos por 1.000.000 de habitantes). À semelhança do observado em relação a frequência absoluta das notificações segundo o sexo, a maior incidência se deu no sexo feminino em todas as grandes regiões do Brasil, principalmente na região Sul (68,6 casos por 100.000 habitantes). A mortalidade específica foi maior no sexo masculino (5,56 óbitos por 1.000.000 de habitantes).
Acerca da incidência por faixa etária, ela foi diferente das notificações em números absolutos relatadas anteriormente neste estudo. Evidenciou-se uma maior incidência de intoxicação no grupo das crianças (50,49 casos por 100.000 habitantes), em sequência no grupo dos adolescentes (49,65 casos por 100.000 habitantes), adultos (48,06 casos por 100.000 habitantes) e idosos (15,5 casos por 100.000 habitantes).
Nossos dados mostram que quase metade dos casos incidentes no período analisado foram decorrentes do uso de medicamentos (19,61 casos por 100.000 habitantes), seguido pelas drogas de abuso (5,33 casos por 100.000 habitantes) e alimentos e bebidas (3,69 casos por 100.000 habitantes). No que diz respeito à incidência das circunstâncias envolvidas, nota-se a tentativa de suicídio (17,09 casos por 100.000 habitantes) como principal, seguido do uso acidental (8,3 casos por 100.000 habitantes) e abuso (5,57 casos por 100.000 habitantes). Ao analisar a expressão desse agravo em cada macrorregião, vemos a manutenção dos medicamentos como agente tóxico mais incidente e drogas de abuso como segundo.
Analisando os agentes tóxicos segundo faixa etária, ficou notório que os medicamentos são os agentes mais incidentes independentemente do intervalo de idade. Salienta-se ainda que o segundo agente mais incidente em indivíduos com ? 9 anos são os produtos de uso domiciliar, de 10 a 59 anos drogas de abuso e ? 60 anos alimentos e bebidas. Finalmente, no que tange as circunstâncias, a de maior incidência em crianças foi o uso acidental e nas demais faixas etárias a tentativa de suicídio.
A presente pesquisa também estratificou a mortalidade em relação às circunstâncias e encontrou-se a tentativa de suicídio (2,8 óbitos por 1.000.000 de habitantes) como sendo a principal em cada uma das grandes regiões. No que concerne a estratificação deste indicador pela idade, identificou-se a mortalidade majoritariamente no grupo dos adultos (72,1%; n=8.553; 5,84 óbitos por 1.000.000 de habitantes).
Ao longo dos anos houve expressiva heterogeneidade de agentes tóxicos nas macrorregiões relacionados a mortalidade por intoxicação, porém, destaca-se a mudança de cenário no país, visto que em 2007 os agrotóxicos agrícolas (37,4%; 0,7 óbitos por 1.000.000 de habitantes) ocupavam a posição de principais agentes envolvidos no contexto de morte. Já em 2019 essa realidade mudou levando esses agentes ao terceiro lugar (12,9%; 0,75 óbitos por 1.000.000 de habitantes) e os medicamentos (37,5%; 2,19 óbitos por 1.000.000 de habitantes) ao topo da lista (Tabela 3). Nossos resultados mostram aumento dos óbitos por uso de drogas de abuso em todas as regiões do Brasil, colocando esse agente (24,1%; 1,4 óbitos por 1.000.000 de habitantes) como o segundo mais frequentemente relacionado à morte por intoxicação no país em 2019.
A letalidade foi calculada mostrando que 1,0% dos indivíduos que se intoxicaram morreram. Ao estratificar por sexo e idade verificou-se que o agravo estudado é mais letal no sexo masculino (1,4%) e em idosos (3,2%). Destaca-se ainda os agrotóxicos agrícolas (4,2%) e os raticidas (2,7%) como os agentes mais letais no país durante o período estudado e a violência/homicídio (2,1%) e a tentativa de suicídio (1,6%) como circunstâncias mais letais. Sobre o uso de agrotóxicos agrícolas, ressalta-se que as regiões Nordeste e Norte, diferentemente das demais, apresentaram uma letalidade muito acima, sendo, respectivamente, 7,3% e 4,2%.
Por fim, averiguando a tendência temporal da incidência e da mortalidade observou-se um APC positivo em todas as grandes regiões e no país ao longo do tempo (Tabela 2), ou seja, houve uma tendência crescente em todos estes cenários. No que se refere à incidência, as regiões Norte (APC 19,8%; IC95% 15,19-24,57) e Sudeste (APC 18,2%; IC95% 11,83-24,84) foram as que apresentaram os maiores valores de APC, portanto as maiores tendências de aumento ao longo do tempo. Por outro lado, a região Sul foi a que apresentou o menor valor. Já em relação a mortalidade, a região Centro-Oeste (APC 16,1%; IC95% 7,05-25,97) foi a que demonstrou maior APC e a região Sul (APC 4,7%; IC95% 0,58-9) novamente o menor (Tabela 2).
DISCUSSÃO
No período analisado, houve um crescimento expressivo do número absoluto de notificações e de óbitos por intoxicação exógena em todas as macrorregiões do país, sobretudo relativo ao uso de medicamentos e no contexto de tentativa de suicídio. Congruente com o que ocorre na epidemiologia mundial21, notou-se maior ocorrência por exposição aguda visto a principal circunstância associada. Verificou-se ainda uma maior incidência em crianças e maior mortalidade no sexo masculino e ambos indicadores apresentaram tendência temporal crescente.
Globalmente, a OMS considera a intoxicação como uma preocupação de saúde pública subestimada e subnotificada22. Diante dessa realidade, podemos inferir que parte do incremento nas notificações, dos óbitos, da incidência e mortalidade se deram pela redução da subnotificação, algo estimulado pelo Ministério da Saúde em 2011 pela portaria nº 104 que tornou a notificação compulsória e universal12, pela melhora da operacionalização dos CIATox através da Portaria nº 1.67810 que determinou um incentivo financeiro fixo para cada um desses Centros, e pelo aumento do número de casos de suicídio no Brasil23 visto que muitos são atrelados as intoxicações agudas24.
Conforme esperado pela grande prevalência feminina em cada macrorregião25 e pelo padrão epidemiológico mundial da tentativa de suicídio, verificou-se uma maior ocorrência do agravo no sexo feminino. Referente a faixa etária, levando em consideração o protagonismo crescente da tentativa de suicídio como principal circunstância envolvida nas intoxicações no Brasil em indivíduos com 10 anos ou mais e que países subdesenvolvidos apresentam altas taxas de incidência de suicídio em adultos jovens26, torna-se compreensível o predomínio das notificações e dos óbitos nesse grupo etário.
Além disso, medicamentos e drogas de abuso compuseram aproximadamente 55,0% de todos os agentes utilizados no período. Segundo o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira realizado em 2015, em torno de 17 mil pessoas com idade entre 12 e 65 anos foram entrevistadas em todo o país em relação ao uso de drogas. Os entrevistados relataram a obtenção de agentes como maconha, solventes, crack e cocaína como sendo “muito fácil”27, corroborando para o entendimento da ascensão da incidência de drogas de abuso e da circunstância de abuso em todos os grupos etários, particularmente nos adultos e adolescentes do sexo masculino. No tocante aos medicamentos, um estudo avaliando uma série histórica de 10 anos no Brasil demonstrou que 57,2% dos casos de intoxicação por este agente estavam associados a suicídio28, informação que vai ao encontro dos achados do presente estudo visto que este representou o principal agente tóxico utilizado em intoxicações no país e o principal agente utilizado por pacientes que foram a óbito.
Referente aos óbitos por intoxicação, encontramos uma íntima relação com o cenário de suicídio visto que cerca de 60,7% das mortes por intoxicação foram no contexto de tentativa de suicídio. Isso pode ser justificado pelo fato de que a intoxicação é o método mais comum de tentativa de suicídio no mundo24 e está comumente associado a pessoas com transtorno depressivo, condição que tem aumentado no Brasil29.
Quando analisamos os dados pela perspectiva populacional, vemos que tanto o indicador de incidência como o de mortalidade aumentaram durante o período de estudo mostrando uma tendência crescente de aumento nos próximos anos (Tabela 2).
Interessante notar que embora a incidência tenha sido maior no sexo feminino em todas as macrorregiões de 2007 a 2019, a mortalidade foi maior no sexo masculino. Esse é um padrão classicamente documentado na literatura no contexto de tentativa de suicídio30. Conforme relatado anteriormente, é sabido que a lesão autoprovocada é majoritariamente atrelada a quadros depressivos. Como este transtorno é 2 vezes mais comum no sexo feminino, essa realidade corrobora para esclarecer os resultados encontrados31. Outrossim, existe uma questão comportamental que pode estar relacionada a esses achados já que a literatura evidencia uma maior tendência do indivíduo do sexo feminino a procurar um serviço de saúde mediante a algum problema de saúde32.
Existem grupos de risco na toxicologia, como as crianças abaixo de 5 anos, que por estarem em uma fase de descobertas, associado ao descuido dos pais e à coloração chamativa e atraente das embalagens de medicamentos e produtos de limpeza, frequentemente são vítimas da exposição e intoxicação aguda33. Embasado nessa realidade, os resultados do presente estudo concluem que o uso acidental representa a 2º principal circunstância de 2007 a 2019 e representa cerca de 71,0% das intoxicações agudas em crianças, que é a faixa etária mais incidente no país.
Em 2007, o maior responsável pela mortalidade no país por intoxicação era o agrotóxico agrícola (Tabela 3). Com o passar dos anos, provavelmente em decorrência ao alto consumo de medicamentos no Brasil (5º maior do mundo)34, da facilidade com que o brasileiro consegue culturalmente adquirir medicamentos no popular “balca?o da farma?cia”34, das subnotificações dos casos35, 36 e da ausência da vigilância em saúde do trabalhador em regiões agrícolas36, os medicamentos assumiram a posição de principal agente tóxico relacionado ao número de casos novos de intoxicação, de óbito, de incidência e mortalidade.
A letalidade encontrada sobretudo nos agrotóxicos, diz respeito a sua alta periculosidade e as suas diversas vias de contaminação13. Segundo dados do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) publicados em sua nota técnica nº 2837 em que analisaram 14 indicadores de saúde das macrorregiões brasileiras de 2010 a 2020, o Norte e o Nordeste apresentaram os piores índices do sistema de saúde do país, motivo pelo qual pode-se justificar uma maior letalidade dos agentes tóxicos nessas regiões. Por outro lado, apesar do melhor desempenho dos indicadores de saúde reportados neste documento do IEPS37, a região Sul apresenta a maior taxa de mortalidade por tentativa de suicídio no país há anos23, fato esse que dialoga com resultados encontrados no presente estudo em que a maior incidência e mortalidade por intoxicações exógenas ocorreu nesta região. Essa constatação pode estar relacionada ao elevado crescimento socioeconômico da macrorregião que acentua as disparidades socioeconômicas, mas também à presença de centros de saúde especializados que facilitam o acesso e contribuem com um número maior de notificações31. De uma maneira geral, tanto a mortalidade quanto a letalidade foram baixas no país. Esse dado também está presente na literatura brasileira em estudos locais14, podendo indicar que os agentes tóxicos utilizados no Brasil, principalmente os medicamentos, possuem baixa probabilidade de levar a quadros graves. Contudo, há de se destacar que a maior letalidade observada foi com o uso de agrotóxicos agrícolas e os mesmos continuam sendo altamente tóxicos para a saúde humana e meio ambiente36.
Como limitação do estudo, aponta-se a utilização de banco de dados secundários dependentes de notificações, que apresenta variabilidade regional e no tempo. Muitos dados coletados tiveram alterações sutis ao longo de 2020, 2021 e 2022 na medida que iam sendo atualizados e revisados pelo SINAN no TABNET, assim, nota-se discreta disparidade dos números coletados principalmente referentes ao total das notificações de cada variável. Essas atualizações e revisões periódicas têm como objetivo garantir ao máximo a consistência, integridade, completitude, regularidade e evitar eventual duplicidade dos registros das notificações, cabendo à União, Estados e Municípios essa avaliação, portanto é possível que haja inconsistências nesse sentido que podem comprometer de algum modo a precisão dos resultados. No que tange a análise da tendência temporal, a amplitude dos intervalos de confiança sugere que há uma oscilação não uniforme dos pontos das séries históricas, refletindo na precisão das estimativas e dos intervalos de confiança. Tratando-se de um estudo que utiliza dados secundários, esta limitação deve ser considerada para interpretação dos resultados e inferências realizadas. Outra limitação diz respeito à impossibilidade de determinar quais são as classes medicamentosas mais frequentemente usadas nas intoxicações exógenas e isso foi devido a uma limitação da própria plataforma do DATASUS que não disponibiliza esse tipo de dado pelo TABNET. Devido ao desenho do estudo, a relação entre o fator de exposição e o evento pode não estar ocorrendo ao nível do indivíduo, podendo incorrer em falácia ecológica. Portanto, os achados foram cuidadosamente interpretados no nível populacional. Finalmente, não se pode estabelecer causalidade referente aos achados, sendo possível apenas gerar hipóteses.
CONCLUSÃO
O estudo analisou uma série histórica brasileira de 13 anos, usando dados oficiais para descrever as intoxicações em relação a fatores demográficos e de exposição. Concluiu-se que as intoxicações exógenas são mais comuns entre mulheres, associadas principalmente ao uso de medicamentos e ao suicídio, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. Apesar do número de notificações terem sido maior nos adultos, a incidência foi maior nas crianças, especialmente devido a exposições acidentais. Houve um aumento significativo de intoxicações por drogas de abuso, principalmente entre adolescentes e adultos, classificando-as como a segunda causa mais frequente de intoxicação no país. Em relação aos óbitos, predominam entre homens adultos, principalmente devido ao uso de medicamentos, com uma tendência crescente de mortalidade ao longo do tempo. Os resultados sugerem a necessidade de políticas públicas direcionadas, especialmente para prevenção do suicídio, exposições acidentais e abuso de substâncias, com potencial para orientar ações de promoção e prevenção da saúde no Brasil.
FINANCIAMENTO
Instituição Financiadora: Bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Código de Financiamento: 33009015.
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