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0363/2024 - Ações de vigilância das violências em serviços da atenção primária, hospitalar e de reabilitação no Brasil
Surveillance actions of violences in primary care, hospital and rehabilitation services in Brazil

Autor:

• Joviana Quintes Avanci - Avanci, J.Q - <jovi.avanci@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7779-3991

Coautor(es):

• Queiti Batista Moreira Oliveira - Oliveira, Q.B.M.O - <queitibmoliveira@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1721-4649

• Simone Gonçalves de Assis - Assis, S.G - <simone.assis60@gmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5460-6153



Resumo:

Este artigo analisa como as ações de monitoramento e notificação das violências estão incorporadas nos diferentes níveis da atenção no Brasil, segundo porte populacional e pertencimento regional. Caracteriza-se por um estudo transversal, com caráter descritivo, combinando técnicas quantitativas e qualitativas, com a aplicação de questionários em 290 serviços da atenção básica, 128 hospitalares e 113 de reabilitação em 379 municípios brasileiros. Na abordagem qualitativa foram entrevistados 63 profissionais de saúde ou gestores dos serviços. Os dados são analisados segundo frequências por nível da atenção, região e porte populacional. As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo na modalidade temática. Os resultados mostram que as unidades hospitalares se destacam na notificação, que os serviços de atenção primária ressaltam na pactuação de fluxos e divulgação de informações e as ações de formação permanente precisam ser ampliadas. Recomendam-se: integração entre os sistemas de informação; retroalimentação das informações na atenção e vigilância; melhoria dos registros sobre violência autoprovocada e a criação de prontuários eletrônicos para a articulação na rede.

Palavras-chave:

violência, notificação, vigilância em saúde pública.

Abstract:

This article analyzes how violence monitoring and notification actions are incorporated into different levels of care in Brazil, according to population size and regional belonging. It is characterized by a cross-sectional, descriptive study, combining quantitative and qualitative techniques, with the application of questionnaires in 290 primary care, 128 hospital and 113 rehabilitation services in 379 Brazilian cities. In the qualitative approach, 63 health professionals/service managers were interviewed. The data is analyzed through frequencies by level of care, region and population size. The interviews were analyzed by thematic content. The results show that hospital units stand out in reporting, that primary care services stand out in agreeing flows and disseminating information and that ongoing training actions need to be expanded. The recommendations are integration between information systems, feedback of information in care and surveillance, improvement in the recording of self-inflicted violence and the existence of electronic medical records for integration into the network.

Keywords:

violence, notification, public health surveillance.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Desde o histórico relatório sobre violência e saúde, no início do século XXI, a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressalta a importância em investir esforços na vigilância das violências em todo mundo1. Nos anos seguintes, o destaque se voltou não apenas para a notificação dos casos, mas para a qualificação da informação sobre morbidade, mortalidade e custos econômicos resultantes de violências, essencial para a tomada de decisões baseada em evidências2-4. No Brasil, desde os anos 2000, políticas públicas e uma série de estratégias têm sido implementadas, dentre as quais destacam-se a estruturação da Rede Nacional de Prevenção de Acidentes e Violências e a implantação do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA)5-8.
A magnitude da expressão das violências no Brasil e a forma desigual com que afeta grupos específicos convocam o setor saúde para atuar na prevenção, no monitoramento epidemiológico, na orientação por meio de políticas públicas e na intervenção9,10. O Relatório "Global Study on Homicide 2021" mostra que a taxa global de homicídios é de aproximadamente 6,1 por 100.000 habitantes, com destaque para regiões da América Latina e Caribe. No Brasil, a taxa de homicídios é cerca de cinco vezes maior que a média global e, na América do Sul, é o país com a segunda maior taxa11. Entre crianças, dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância12 indicam que uma em cada 4 crianças no mundo vive em territórios de elevadas taxas de violência física ou psicológica. E, aproximadamente uma em cada três mulheres em todo o mundo (30%) já foi vítima de violência física ou sexual por parte de um parceiro íntimo ou não-parceiros em algum momento da vida13. Conflitos armados e violências em áreas de guerra continuam a ser causas de grandes deslocamentos forçados de pessoas.
Os dados colocam a violência no centro da agenda de saúde pública e alerta a necessidade de gerar evidências sobre a magnitude do problema e de criar e aprimorar sistemas de vigilância e informação de saúde; de oferecer serviços qualificados; de sensibilizar e capacitar profissionais e gestores para responder às necessidades dos sobreviventes de forma integral e empática; de prevenir a recorrência da violência pela busca de identificação precoce; de informar sobre o funcionamento dos serviços; de promover encaminhamento e suporte apropriados; 13.
A vigilância se situa como importante diretriz da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV)8, orientando ações de notificação e acompanhamento dos eventos, de diagnóstico de mortes e agravos envolvendo crianças e adolescentes, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, com transtornos mentais, e, mais recentemente, foram incluídos na pauta da saúde a atenção à violência étnico-racial e contra a população LGBTQIA+7,14. A notificação das violências é obrigatória por atos normativos e legais15-19.
O registro e a sistematização dos dados sobre esse fenômeno permitem caracterizar o tipo de violência cometida e o perfil dos envolvidos, o que subsidia as três esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal, quanto à definição de prioridades e de políticas públicas de prevenção e de promoção da vida7.
A Política considera prioritária a melhoria das informações e, entre os anos de 2009 a 2014, o número de municípios notificantes no VIVA-Contínuo cresceu 370% e o percentual de notificações de violência doméstica, sexual ou outras violências aumentou 343%, dando visibilidade a esses agravos14. Minayo et al.14 explicam que do ponto de vista das internações hospitalares buscou-se qualificar o diagnóstico primário e secundário, o que ajudou a identificar não apenas o procedimento empregado, mas também a causa primária que provocou a lesão. Acrescentam que, em relação à mortalidade, o investimento ocorreu junto aos Institutos Médico Legais, visando a esclarecer a forma de violência que provocou o óbito e, assim, diminuir a participação das mortes classificadas como eventos com intenção indeterminada.
Apesar de avanços, ainda há muitas fragilidades no conhecimento de como de fato as ações de vigilâncias ocorrem nos serviços de saúde do país, mais ainda nos serviços de atenção primária, hospitalar e reabilitação. Este estudo oferece elementos-chave para o planejamento e alocação de recursos visando a melhoria do atendimento aos casos de violências e da avaliação de práticas e das políticas. Ressalta ainda a necessidade de apoio a pesquisas estratégicas, fomento a ações de educação permanente, criação e fortalecimento de redes intra e intersetoriais, e particularmente, sensibilização dos profissionais e gestores para melhoria da resposta institucional à violência e à proteção e cuidado das vítimas. O artigo analisa como as ações de monitoramento e notificação das violências estão incorporadas nos diferentes níveis da atenção no Brasil, segundo porte populacional e pertencimento regional.
MÉTODO
O estudo é parte de uma pesquisa nacional realizada entre os anos de 2020-2023, “Pesquisa Avaliativa da Implementação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (PNRMMAV)”. Caracteriza-se por seu caráter transversal e descritivo, combinando técnicas quantitativas e qualitativas desde sua concepção, da coleta e análise de dados20.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, com o CAAE 27932820.7.0000.5240. Todos os participantes assinaram o Termo de Esclarecimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Abordagem quantitativa
Foram elaborados questionários com questões fechadas e abertas sobre vigilância de acidentes e violências baseados em pesquisa avaliativa anterior21 e nas diretrizes preconizadas pela PNRMMAV8. Foram enviados 5.570 questionários online para secretários de saúde e gestores dos três níveis de atenção à saúde (primária, secundária e terciária) de todos os municípios brasileiros, com questões sobre estrutura dos serviços de atendimento às violências, o processo de formação de equipes, capacitação, ações prioritárias e resultados alcançados. Os contatos de endereços eletrônicos foram organizados a partir de listagens fornecidas pelo Ministério da Saúde. A plataforma RedCap foi utilizada entre julho e novembro de 2021, com respostas de 290 serviços da atenção básica, 128 serviços hospitalares e 113 de Recuperação/Reabilitação, distribuídos em 379 municípios brasileiros. A pesquisa, apoiada pelo Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), enfrentou dificuldades de adesão das pessoas e dos gestores dos municípios, em decorrência de ter sido realizada em plena pandemia de Covid-19.
As questões analisadas neste artigo referem-se à notificação, às ações de monitoramento e uso das informações das violências notificadas, discriminadas por nível da atenção, por região e porte populacional do município (grande –100.000 habitantes ou mais, médio e pequeno até 99.999 habitantes). A análise estatística foi feita em SPSS versão 24.022.

Abordagem qualitativa
Nesta etapa foram entrevistados gestores e profissionais de saúde, em especial os que atuavam em Núcleos de Prevenção de Acidentes e Violência e em serviços de vigilância. Na ausência desses, profissionais inseridos na urgência e emergência, e na atenção primária foram ouvidos. Gestores da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, do CONASS e do CONASEMS também participaram. Foram realizadas 63 entrevistas com gestores e profissionais de saúde, distribuídos em 26 capitais, Distrito Federal e dez municípios do interior do país, selecionados segundo o porte, região e grau de implementação da PNRMAV.
As entrevistas foram conduzidas a partir de roteiros semiestruturados, com a abordagem dos temas aqui apresentados e que dialogam com os dados quantitativos: serviços notificantes dos casos de violências, barreiras para a notificação, fluxos estabelecidos, e uso das informações. As entrevistas foram realizadas de forma remota no Google Meet, com duração média de uma hora; foram gravadas e transcritas. O procedimento de análise das entrevistas foi a modalidade temática23 e consideraram-se as categorias que tratavam do monitoramento e da notificação dos casos assim como foram levadas em conta as categorias de relevância apontadas pelos diferentes atores em seus respectivos papéis na implementação do SUS.

RESULTADOS

Notificação na atenção primária, hospitalar e reabilitação
Os serviços hospitalares são os que mais notificam os casos de violência nos municípios (87,4%) e os de reabilitação nas capitais (100,0%) (Tabela 1). Nos hospitais, os profissionais de saúde são os protagonistas na notificação, seguidos pelos núcleos hospitalares e os de assistência social, com mais destaque nas capitais. A evidência dos hospitais é muito explicada por serem locais de referência para trauma, o que impacta no registro dos agravos:
O maior número de registro das violências vem dos hospitais e UPA e depois do SAMU. A atenção primária é em torno de dois por cento apenas de notificação (Respondente da Vigilância de Salvador/BA).

Apesar de notificarem menos, os serviços da atenção primária são fundamentais no registro dos agravos por violência: 82,9% nos municípios e 77,8% nas capitais pesquisadas. Programa Equipe de Populações Ribeirinhas, Unidade/Centro de Saúde da Família/Clínica, Centro/Posto de Saúde, Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS AD) e Programa Melhor em Casa (90,7%) são os que mais notificam; já o Programa de Saúde Bucal (77,3%) e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (79,9%) são os serviços menos citados, além dos Serviços Residenciais Terapêuticos (88,6%) e o Programa Saúde na Escola (PSE) (85,7%) nas capitais, embora todos com frequência elevada. O perfil de serviços notificantes é semelhante nas diferentes regiões brasileiras. Porém, independentemente do nível de atenção, observou-se dificuldades para a notificar se determinados casos eram suspeitos ou poderiam se confirmados.
A Região Centro-Oeste se destacou nas notificações nos serviços de atenção primária e hospitalar. As Regiões Sudeste e Sul, nos registros dos serviços de reabilitação. Os municípios de maior porte (90,0%-100,0%) se ressaltam nas notificações da atenção hospitalar às vítimas de violência; ao passo que os de menor porte são menos expressivos nesse particular, embora com percentuais elevados. Apenas 2,5% dos serviços da atenção primária pesquisados nunca notificam eventos violentos, em especial, os das cidades de menor porte (Tabela 1).
TABELA 1
Na maioria das vezes, o monitoramento dos casos de violência vem ocorrendo no país, mais por iniciativa individual de um profissional mais sensibilizado para a temática, não constituindo uma ação planejada e com recursos financeiros e humanos adscritos. Essa situação que geralmente sobrecarrega poucas pessoas, provoca adoecimento e saída dos profissionais do cargo:
Durante um bom tempo [essa profissional] tinha a função de ler as fichas de notificações. A gente não tem perna para fazer tudo, mas aqueles casos mais graves ou que saltavam aos olhos ela retornava ao município e daqui ela orientava. O que não temos feito mais. [A pessoa] acabou adoecendo [...] O que eu tenho feito para não dizer que a gente não faz nada, os casos que saem na imprensa ou que estão no jornal de manhã, eu localizo na ficha, se não está na ficha eu ligo para o município, mando buscar, e fico vigiando. (Respondente do Núcleo Estadual de Prevenção à Violência do Espírito Santo).

A rotatividade de profissionais e o medo de retaliações entraves para notificação de violências, em especial, na atenção primária, por causa da atuação do setor saúde nos territórios. Neste nível de atenção, em cidades pequenas e em locais muito conflagrados pela violência urbana e criminal, as fronteiras entre notificação e denúncia ficam borradas, pois a identificação de supostas situações de violência, geralmente, dispara ações de cuidado das vítimas e responsabilização dos agressores. Frente a isso, diferentes estratégias vêm sendo criadas para oferecer suporte aos profissionais, a exemplo da responsabilização da unidade pela notificação.
É complicado quando o profissional não entende que é uma notificação e que não vai ser colocado o nome dele para a comunidade ou para a facção. A gente entende que eles são ameaçados mesmo, a gente tem locais aqui que as pessoas só podem ir ao serviço se a facção permitir (Respondente da Atenção Primária de Manaus/AM).

Ações de monitoramento
Ações padronizadas de vigilância, pactuação e avaliação de indicadores sobre violências como parte do monitoramento são destacadas em todos os níveis de gestão e porte populacional do município. O uso de novas tecnologias para qualificação das informações oriundas da ficha com a detecção automática de erros e inconsistências de preenchimento de informações tem sido recorrente. Um exemplo é o Programa de Qualificação das Ações de Vigilância em Saúde (PQA-VS), que estimula o aumento das notificações e o correto preenchimento de campos como raça/cor:
Nós temos conseguido atingir os 95% de notificação com dados válidos no campo de raça/cor, mas ainda assim tem que estar insistindo muito para que não venha o dado inválido como ignorado ou em branco. Obrigatoriamente é feito mensalmente esse levantamento inclusive de duplicidade. A gente faz essa checagem para ver se é uma recidiva ou se realmente era uma duplicidade, então a gente está sempre monitorando e faz essa busca em todos os agravos. Quando, às vezes, passa algo batido por nós, o estado sempre também sinaliza (Respondente de Macapá/AP).

O apoio à melhoria da qualidade da informação no SUS é evidenciado nos serviços da atenção primária, hospitalar e reabilitação, com boa frequência de sua execução (uma ou mais vezes ao ano) por boa parte dos serviços, em especial, nas capitais e em municípios de maior porte populacional. Chama atenção o expressivo apoio à melhoria da qualidade da informação na rede privada de saúde que oferece atenção hospitalar. No entanto, os registros de agravos toxicológicos e a elaboração de fichas para obtenção de informações sobre violências, que não a do SINAN, são pouco citados pelos serviços de atenção hospitalar. Igualmente, o apoio à melhoria da qualidade da informação dos serviços de reabilitação na rede privada é pouco citado (Tabela 2).
TABELA 2
Em geral, serviços de atenção primária são os que mais implementam ações relacionadas à pactuação de fluxos e divulgação de informações nos municípios e capitais (Tabela 3). As ações têm frequência elevada e a pactuação de fluxo intrasetorial se evidencia em todos os níveis de atenção nas regiões (acima de 73,7%), com exceção dos municípios de grande porte na região Sul (50,0%). Nas Regiões Norte e Nordeste, a análise e divulgação dos dados do SINAN são as ações mais citadas; já na Região Sudeste é a pactuação de um fluxo inter e intrasetorial o mais relevante; no Sul e Centro-Oeste se destacam a pactuação de fluxo intrasetorial (dados não apresentados).
TABELA 3
Os fluxos intersetoriais e intrasetoriais pactuados com a rede de proteção agregam informações sobre as violências a partir de diferentes serviços - rede de atenção à saúde, de proteção, de segurança pública, da justiça, dentre outros. Estratégias online são utilizadas para a aplicação dos fluxos, além de reuniões, fóruns intra e intersetoriais e demais dispositivos de comunicação nos quais ocorrem discussões, capacitações e pactuação dos encaminhamentos, protocolos e notas técnicas que orientam o atendimento e a produção de informação na realidade dos serviços.
O fluxo está estabelecido no município. A unidade notifica, traz para a Secretaria Municipal de Saúde. Com a pandemia eu abri um e-mail para que pudessem mandar escaneado. E ainda continuamos com algumas unidades mandando desse modo (Respondente da Atenção Primária de Porto Velho/RO).
Temos o nosso guia de prática clínica - PAC e os protocolos de enfermagem como ferramentas, que foram fundamentais na virada da chave no sentido de melhorar a notificação. O primeiro quadro do PAC é identificar situações de urgência, e dali vai direcionando o algoritmo que vai levando para a condução e para os fluxos que a gente tem na rede. E ao final sempre ele vai ter ali: “notifique o caso e encaminhe para o fluxo tal”. Cada profissional, médico e enfermeiro tem um PAC. E ele é treinado. (Respondente da Atenção Primária de Florianópolis/SC).
SAMU chega até o local, sempre é colocado como “acidente” [...] Na maioria das vezes, já é o hospital que identifica que foi uma violência, que foi uma agressão e não um acidente qualquer. Quando é identificado por parte do SAMU, essa notificação é feita também na entrada do hospital. A gente já leva para um profissional, aciona o pessoal do serviço social na chegada do hospital (Respondente da Atenção Pré-Hospitalar de São Luís/MA).

Uso das informações
A utilização de informações sobre violência geradas no monitoramento é mais expressiva nas capitais. Em geral, serviços de atenção primária se destacam nesse sentido, vindo a seguir os de reabilitação e o hospitalar. A utilidade dos dados para os momentos de formação e para a adequação das equipes de profissionais são os fins mais citados pelos entrevistados (Tabela 4). A publicização das informações através de boletins, portais e plataformas de domínio público torna-se dispositivo importante na construção da visibilidade do tema da violência, ao mostrar sua magnitude e diferentes formas de expressão. No entanto, há inúmeros relatos afirmando o não uso dos dados para a produção de boletins, indicando a subutilização das informações para a melhoria de práticas e de divulgação científica:
Eu não consigo implementar ou cobrar do meu gestor qualquer recurso ou assistência para as minhas ações se eu não expuser esses dados. Eu falo para as equipes: “como é que eu vou chegar para o meu Secretário e falar: a gente precisa de apoio, precisa de tais profissionais, precisa qualificar”. Quando vejo, está muito baixa a produção de dados sobre atendimentos. Eles não estão notificando. É um desafio! (Respondente da Atenção Primária de Carauari/AM).

Nos serviços de recuperação/reabilitação, o registro dos casos de acordo com a CID-10 são os mais citados (87,6% nos municípios e 83,3% nas capitais), vindo a seguir análises para o planejamento das ações (53,6% e 83,3%, respectivamente), análise sistemática de registro (44,8% e 50,0%) e formação de pessoal para registro e sistematização da informação (44,2% e 50,0%). Essa última, a ação menos mencionada.
TABELA 4
Especificidades regionais mostram a diversidade de estratégias utilizadas pelos serviços de saúde para melhorar as notificações e o monitoramento. Por exemplo, Palmas/TO criou um sistema próprio - Notifica SUS, destinado às notificações de acidentes e violências, que contou com a expansão para outras instituições. Recife/PE recebeu prêmio pelo investimento na notificação de tentativas de suicídios, com cruzamento de dados com intoxicações exógenas e incentivou o registro do quesito raça/cor. O estado do Espírito Santo melhorou a notificação e o monitoramento depois da implementação da linha de cuidado, com ações para aumentar a conscientização sobre a importância da notificação no estado, especialmente nas áreas de urgência/emergência, no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU, na Atenção Primária e outras. Com a elaboração e a implementação de lei estadual denominada "Lei do Cuidado” (no. 11.147/2020 atrelada a Portaria 204), intensificou-se a notificação dos casos de violências pelos setores da saúde, educação, assistência social, estimulando que o conselho tutelar seja instituição notificadora. A secretaria de saúde de Porto Alegre/RS desenvolveu aplicativo para celular a ser usado pelos profissionais da educação visando a ampliar o alcance das notificações envolvendo os estudantes; os dados são processados pela vigilância epidemiológica que os insere no SINAN e a rede de atendimento é mobilizada para o acompanhamento dos casos. Em Mato Grosso/MT, apesar dos avanços no que concerne às notificações de violência no estado, ainda existem muitos locais com números baixos de registro, sendo realizado monitoramento presencial nos municípios a cada três meses, visando tornar o trabalho mais efetivo.
A tabela 5 indica a baixa realização (entre 29,4% e 38,2% dependendo do nível da atenção) de ações de formação permanente para o monitoramento dos casos de violência nos municípios. Nas capitais, estes valores são bem superiores, entre 58,8% e 83,3%. As regiões brasileiras mostram tendências distintas, com percentuais um pouco menores em algumas ações nas regiões Norte e Centro-Oeste. A maioria dos municípios e especialmente as capitais realizam ações de formação para o monitoramento dos casos de acidentes e violência na atenção hospitalar e na reabilitação com frequência de pelo menos uma vez no ano (tabela 5). De forma geral, em todo o país a formação profissional tem tido como um dos focos o monitoramento e a notificação dos casos de violência, mesmo na rede privada. E observa-se que uma das escusas para não fazer o detalhamento completo dos casos nas fichas de notificação é o tempo gasto no preenchimento que se soma ao intenso ritmo de trabalho demandado dos profissionais.
TABELA 5
Alguns gestores ressaltaram que é preciso desmistificar a ideia de que a notificação é apenas “mais um papel” ou uma ação meramente burocrática. Por isso, a abordagem de temas mais sensíveis como homofobia, racismo e atenção aos povos originários tem demandado ações de capacitação voltadas às questões socioculturais da violência que chega aos serviços:
A gente sempre leva a discussão para os municípios, de que é um indicador importante, de que o campo raça/cor traz aí várias análises de desigualdades sociais, para a construção de políticas públicas para aquelas pessoas que estão em maior vulnerabilidade (Respondente do Núcleo Estadual de Prevenção aos Acidentes e Violências da Paraíba).

O recurso aos meios remotos tem se revelado uma potente estratégia no alcance à formação dos profissionais. Essas ações vêm ocorrendo de forma sistemática e sua necessidade é orientada pelo monitoramento, que indica a baixa notificação, as lacunas e os erros recorrentes de preenchimento da ficha. Nos hospitais, essas atividades precisam envolver um tempo mais restrito em função do esquema de plantões dos profissionais, sobretudo, da urgência e emergência e da dificuldade de retirá-los do local de trabalho. Também é relatada a necessidade de capacitação de diferentes cargos profissionais, como assistentes sociais, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. A alta rotatividade de profissionais e a mudança de gestão reforçam a necessidade de constância da formação permanente nas cinco regiões e em especial nos serviços de atenção primária e hospitalar:
Um trabalho mesmo de atualização in loco - em urgência e emergência - é o que dá mais certo. Fazer seminário, capacitação, muitas vezes a gente não consegue tirar profissional do serviço para participar. Converso com a coordenação antes para tentar um horário que eu consiga um maior número de profissionais, geralmente um turno só não contempla, se possível até a noite. Sempre sinalizamos a importância de não só ter assistente social, mas ter enfermeiro, ter técnico de enfermagem, porque essa pessoa em situação de violência pode chegar para qualquer uma dessas categorias profissionais (Respondente da Atenção pré-hospitalar e hospitalar de Aracaju/SE).

Recomendações aos gestores
Dentre os pontos de anseio para a melhoria do monitoramento/notificação apontados por gestores entrevistados do país estão: (1) integração entre os sistemas de informações com a implementação da Rede Nacional de Dados em Saúde, cujo objetivo é acessar e integrar as informações a partir do usuário; (2) retroalimentação das informações na atenção e vigilância, o que produz um alerta diante de uma situação de violência; (3) aperfeiçoamento do campos da violência autoprovocada, possibilitando o registro da ideação suicida, para que o caso seja inserido na linha de cuidado local; e (4) ter prontuário eletrônico para a articulação na rede, com a comunicação entre os sistemas de morbidade e mortalidade e a integração entre os sistemas de informação da saúde e do trabalho. O preenchimento de diferentes fichas específicas gera repetição de informação e aumento de carga de trabalho para o profissional da saúde, o que perpetua a dificuldade de registro e qualidade da informação:
A gente vai fazendo adequações do ponto de vista da vigilância, por exemplo, “ideação suicida’, que não é evento elegível para entrar no banco do SINAN, mas é situação que demanda vigilância e encaminhamento, acompanhamento da rede e monitoramento pela atenção primária. A gente não vai esperar acontecer o evento para disparar a ação de vigilância e proteção. A gente orienta os profissionais para que não percam a oportunidade, já que eles estão ali com o paciente que relatou ideação suicida. Essa informação segue todo o trâmite da linha de cuidado, mas ela não entra no SINAN (Respondente de Campo Grande/MS).

Ademais, são muito valorizadas ações de monitoramento propostas, acompanhadas e avaliadas pela gestão federal, o que parece dar mais consistência ao processo. Foi bastante destacada no decorrer da pesquisa, a ausência do Ministério da Saúde no apoio, na proposição, na coordenação e na condução de ações previstas pela PNRMAV para 2019-2022. Muitos entrevistados mencionam o impacto da falta de uma atuação do nível central mais proativa e focada na continuidade da implementação da política.

DISCUSSÃO
Os achados mostram dados estratégicos sobre a vigilância das violências nos distintos níveis de atenção, que podem subsidiar ações de enfrentamento das expressões de violência, numa perspectiva intersetorial e com base no direito à saúde e à vida. De forma geral, o monitoramento das violências é diverso no país e dentre os principais resultados estão: (1) a presença marcante da notificação das violências no SINAN, sobretudo pelas unidades hospitalares, o que pode ser explicado por serem referências no tratamento do trauma cujas lesões, frequentemente disfarçam expressões de violência; (2) a subnotificação, em especial, na atenção primária, justificada pelas circunstâncias das vivências em território em que há domínio de facções e alta rotatividade dos profissionais. A rotatividade prejudica a continuidade da capacitação e da atualização da formação para o entendimento da violência; (3) até este momento, a vigilância sobre o impacto da violência sobre a saúde não está consolidada; ela ocorre mais por iniciativa de pessoas e menos por ações planejadas coletivamente; (4) os serviços de atenção primária se destacam pela pactuação de fluxos e divulgação de informações; e (5) são poucas e insuficientes as ações de formação permanente para o monitoramento dos casos de violência nos municípios, em todos os níveis dos serviços, na rede pública e privada. No entanto, observa-se uma melhoria na qualidade da informação sobre agravos e traumas violentos, o que evidencia que a atuação no aprimoramento da vigilância precisa continuar e se universalizar mais.
Em comparação com a análise diagnóstica dos primeiros anos de implantação da PNRMAV realizada por Minayo e Deslandes em 200521, muitos dos problemas sobre as ações de monitoramento e notificação permanecem, embora avanços tenham se dado, com momentos de pausas e retrocessos. De lá para cá houve um crescimento significativo na criação, no fortalecimento e na qualificação de sistemas de informação nacionais sobre violências, muito impulsionado por atividades desenvolvidas pelas Vigilâncias Epidemiológicas locais, por áreas técnicas de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e pelos Núcleos de Prevenção da Violência criados pelo Ministério da Saúde. Num período bastante longo de 2006 a 2017, a sensibilização e a capacitação das equipes voltadas à prevenção da violência impulsionadas pelo governo federal em todo o território nacional promoveu um movimento de conscientização não desprezível e convocou os serviços para a relevância de diagnosticar, monitorar e notificar os impactos da violência sobre a saúde.
Contudo, a falta de normas claras sobre procedimentos técnicos, as fragilidades na estrutura e na organização dos serviços, a falta de credibilidade da rede de proteção, o receio quanto aos procedimentos legais que poderiam redundar em culpabilização dos profissionais de saúde, o medo de represália por parte de grupos delinquentes, a ausência de mecanismos legais de proteção para os profissionais encarregados de notificar e o temor de serem acionados por quebra de sigilo profissional foram os pontos mais citados como empecilhos à notificação24-31.
Os indicadores epidemiológicos fornecidos pelas notificações não podem ser percebidos apenas como dados estatísticos e seu destino precisa estar visível. Cezar, Arpini e Goetz28 ressaltam a necessidade de problematização da informação por meio de discussões fundamentadas sobre o contexto social e as demais relações que permeiam as situações de violência32. As gestões em nível municipal, estadual e federal deveriam recorrer aos dados para planejar políticas públicas e intervenções de enfrentamento condizentes com as suas particularidades locais33. A baixa adesão à notificação ou a desarticulação dos dados ocasiona déficits na qualidade da informação e concorre para a invisibilidade do problema pelos gestores.
É preciso ressaltar que, por mais de duas décadas da PNRMAV, a condução de técnicos competentes e comprometidos do Ministério da Saúde tem se mostrado um fator crucial para o desenvolvimento contínuo da implementação da política nacionalmente. Assim, reitera-se o insistente desafio de manter todo o corpo de trabalhadores da saúde sensibilizado e capacitado para aprofundar o fenômeno da violência que faz mal à saúde, sobretudo, porque este é um tema que cruza questões sociais, históricas, políticas, econômicas e culturais e está no caminho que leva o país ao respeito dos direitos de todos os brasileiros. É preciso: (1) investir na formação dos profissionais de vigilância para que se adequem às especificidades de cada nível de atenção e à rotina de trabalho; (2) criar indicadores de acompanhamento, adequados a cada contexto; (3) dar atenção aos municípios de menor porte, considerando as singularidades locais e (4) integrar as informações já existentes, com foco nos usuários do SUS.
A maior limitação deste estudo é que ele não responde a uma realidade nacional. Atingir informações de todos os municípios foi o objetivo inicial, abatido pela emergência da COVID-19. Os autores trabalharam com as informações que conseguiram obter, dentro de um clima de medo, de tensão, de sobrecarga de trabalho de profissionais e gestores na pandemia. No entanto, os resultados essencialmente descritivos, conseguem mostrar um perfil ainda inédito das notificações de 379 serviços do SUS em relação à notificação do impacto da violência sobre a saúde dos brasileiros e todas as falhas e deficiências que ainda existem nessa construção. Há que continuar!

REFERÊNCIAS
1. World Health Organization (WHO). World Report on Violence and Health. Geneve: WHO; 2002.
2. World Health Organization (WHO). Preventing violence: a guide to implementing the recommendations of the World Report on Violence and Health. Geneve: WHO; 2004.
3. World Health Organization (WHO). Violence Prevention Alliance. Global Campaign for Violence Prevention: Plan of Action for 2012-2020. Geneva, Switzerland, Disponível em: http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/global_campaign/actionplan/en/ 9 WHO.
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Avanci, J.Q, Oliveira, Q.B.M.O, Assis, S.G. Ações de vigilância das violências em serviços da atenção primária, hospitalar e de reabilitação no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/nov). [Citado em 23/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/acoes-de-vigilancia-das-violencias-em-servicos-da-atencao-primaria-hospitalar-e-de-reabilitacao-no-brasil/19411?id=19411

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