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Artigos

0388/2024 - Desigualdades Raciais e Regionais nos Homicídios no Brasil: Uma Análise Geoestatística e de Escore de Propensão
Racial and Regional Inequalities in Homicides in Brazil: A Geostatistical and Propensity Score Analysis

Autor:

• Rildo Pinto da Silva - Silva, R.P - <rildo.silva@alumni.usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5718-2747

Coautor(es):

• Antonio Pazin-Filho - Pazin-Filho, A. - <apazin@fmrp.usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5242-329X



Resumo:

Estudos demonstram a seletividade racial dos homicídios no Brasil. Foram analisadas as diferenças regionais e raciais dos homicídios, com técnicas geoestatísticas e escores de propensão. Assim, foram identificados clusters de municípios com altas (hotSpot) e baixas (coldSpot) taxas de homicídios que, junto com variáveis demográficas, foram utilizadas no cálculo do escore de propensão. Observa-se que os negros tiveram chance 49% maior de morte por homicídio que os brancos, após o pareamento pelo escore de propensão. Os homicídios ocorrem predominantemente em homens jovens, solteiros, de baixa escolaridade. A visão geoestatística mostrou que os municípios do cluster hotSpot tiveram taxas de homicídio cinco vezes maiores que os do cluster coldSpot, sendo a região Nordeste a mais afetada. Concluiu-se que a cor da pele é um fator associado ao homicídio independente de outras variáveis inclusive espaciais evidenciando a seletividade racial nos homicídios. O mapeamento das taxas sugere regiões com subnotificação de homicídios. Esse estudo propõe uma abordagem integrada entre análise geoespacial e escore de propensão para avaliar as desigualdades sociais e espaciais dos homicídios no país permitindo melhor alocação de recursos das políticas públicas de redução dos homicídios.

Palavras-chave:

homicídio, desigualdade racial, escore de propensão, geociência, sub-registro.

Abstract:

Studies demonstrate the racial ivity in homicides in Brazil. Regional and racial differences in homicides using geostatistical techniques and propensity scores. Thus, clusters of municipalities with high (hotSpot) and low (coldSpot) homicide rates were identified and, together with demographic variables were used to calculate the propensity score. It is observed that black people had a 49% greater chance of death by homicide than White people, after matching by propensity score. Homicides occur predominantly among young, single men with low education. The geostatistical view showed that the municipalities in the hotSpot cluster had homicide rates five times higher than those in the coldSpot cluster, with the Northeast region being the most affected. It was concluded that skin color is a factor associated with homicide independent of other variables, including spatial ones, highlighting racial ivity in homicides. The mapping of rates suggests regions with underreporting of homicides. This study proposes an integrated approach between geospatial analysis and the propensity score to evaluate the social and spatial inequalities of homicides in the country, allowing for better allocation of public policy resources to reduce homicides.

Keywords:

homicide, racial inequality, propensity score, geoscience, underreporting

Conteúdo:

Introdução:
Há muito se estuda a morte violenta no Brasil. Em 1993, Yunes, usando dados de 1980 a 1986, comparou as taxas de mortes violentas com as taxas de mortes por doenças infecciosas em 28 países das Américas. O autor mostrou o aumento das taxas de mortes violentas, que passaram de 30 para 100,8 por 100.000 habitantes na faixa etária de 20 a 24 anos1. Ortiz et al., em 1984, demonstraram o aumento da morte masculina por homicídios no estado de São Paulo2. A violência policial já aparecia, em um estudo de 1991, como um fator responsável por mortes violentas de jovens do sexo masculino, assim como a violência contra a mulher3. Outros estudos relatavam que a desigualdade social contribuía para esse tipo de óbito4 e apontavam estratégias de prevenção5.
Estudos recentes indicam que a taxa de homicídios no Brasil foi de 21,3 por 100.000 habitantes em 2021. Essa taxa é a segunda maior na América do Sul, sendo menor apenas do que a da Colômbia. A taxa nas Américas é de 15,06. Os estudos atuais focam homicídios de mulheres7,8, desigualdades etárias, sociais, econômicas e raciais9–12. Carvalho et al. mostraram aumento da taxa de mortes violentas entre 1990 e 2019 nas mulheres. Nos adolescentes e adultos jovens, essa é a principal causa de morte13.
Embora seja um assunto amplamente estudado, técnicas geoestatísticas são pouco utilizadas. Um estudo em Chapecó/SC e no Mato Grosso utilizou a técnica de mapeamento temático – coroplético de suicídios14 e homicídios, respectivamente15. Nogueira et al. criaram um índice de segregação racial para avaliar os homicídios no estado de Minas Gerais utilizando a técnica de autocorrelação espacial e o coeficiente I de Moran12. A regressão geográfica ponderada (Geographically Weighted Regression) foi utilizada por Silva et al. para avaliar taxas de suicídios no Nordeste brasileiro16. Já Wanzinack et al. analisaram os efeitos da urbanização no risco de morte violenta utilizando um modelo espaço-temporal que usa a urbanização como um dos fatores17. Outro estudo utilizou dados de microrregiões – agregados municipais – do Brasil, empregando o índice I de Moran (global) para identificar os clusters de homicídios18. Um estudo de Ingram et al. evidenciou que as taxas de homicídios regionais influenciam as taxas locais de homicídios19.
Os estudos, de modo geral, analisaram o homicídio regionalmente20, e somente três utilizaram técnicas geoestatísticas – dois dos quais empregando o índice de Moran I. A geoestatística pode ajudar a aprimorar a aplicação de políticas públicas21, havendo oportunidade de seu uso em dados nacionais de homicídios.
O objetivo deste estudo foi analisar as diferenças regionais e raciais dos homicídios no Brasil, utilizando técnicas geoestatísticas e escores de propensão. O uso da geoestatística contribui para focalizar políticas públicas de redução de homicídios ao indicar regiões onde sua aplicação possa ser mais efetiva. O escore de propensão serve para equilibrar os grupos quanto a indicadores sociais e realizar uma análise comparativa da raça/cor dos indivíduos vítimas de homicídio no Brasil. Embora seja uma técnica comum, sua aplicação na análise de homicídios é rara22. Essa visão multidisciplinar, ao combinar as duas técnicas, contribui para aprimorar políticas de redução de homicídios no Brasil.
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Método
Fontes e tratamento dos dados
Trata-se de um estudo ecológico com uso de bases de dados secundárias. As características dos óbitos – data do óbito, sexo, idade, raça e cor, estado civil, escolaridade, tipo de óbito e local de ocorrência – foram obtidas no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), disponível no portal brasileiro de dados abertos. Os dados são referentes ao ano de 2022.
No sítio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – censo 2022), foram obtidos os dados populacionais e respectivas aberturas por sexo, idade, cor e municípios.
Foram considerados óbitos por homicídio (homicídios) aqueles classificados nos grupos X85-Y09 da 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), no campo causa básica (causabas).
Para o cruzamento das fontes de dados, foi utilizado o código do município.
Os valores faltantes de idade (n=560) e sexo (n=66) não foram utilizados na padronização por sexo e idade; contudo permaneceram na análise dos demais indicadores, conforme descrito adiante.
As variáveis analisadas foram as seguintes: a) taxa bruta de homicídios– calculada pela razão entre o total de homicídios e o número de habitantes multiplicada por 100.000; b) taxa padronizada de homicídios - calculada pelo método de ajuste direto por sexo, idade e município, considerando a população brasileira como padrão (dados do Censo Demográfico 2022). A taxa foi calculada pela razão entre o número de homicídios padronizados/esperados e a população padrão, multiplicada por 100.000; c) data do óbito – data em que ocorreu o óbito; d) sexo – masculino ou feminino; e) faixa etária – 0 a 19 anos, 20 a 59 anos e mais de 59 anos na data do óbito; f) raça e cor – branca, preta, amarela, parda, indígena; g) estado civil – solteiro, casado, viúvo, separado judicialmente/divorciado e união estável; h) escolaridade do falecido – nenhuma, de 1 a 3 anos, de 4 a 7 anos, de 8 a 11 anos e 12 anos e mais.
Desfecho
Foi considerado como desfecho a morte por homicídio em comparação a todos os outros óbitos.
Análise Estatística
No primeiro passo, as taxas de homicídios foram padronizadas para cada município, considerando o sexo e a idade.
Para identificar regiões homogêneas em que as taxas de homicídios são semelhantes, aplicou-se a técnica Optimized Hot Spot Analysis (OHSA). A ferramenta utiliza a estatística Getis-Ord Gi*, que mede o grau de associação de determinada característica entre uma área e seus vizinhos próximos. Os resultados são apresentados de forma padronizada em z-score, com três níveis de significância (99%, 95% e 90%)23. Graficamente, são apresentados como mapas de áreas quentes (hotSpot) em uma área que tenha o indicador com altas taxas, sendo que as áreas vizinhas também apresentam altas taxas. O inverso é chamado de área fria (coldSpot).
Assim, na segunda etapa, as taxas de homicídios padronizadas por sexo e idade em cada município foram a variável utilizada no método OHSA. O resultado foi um z-score para cada município e o respectivo mapa do Brasil dividido em regiões coldSpot e hotSpot.
Na terceira etapa, foi calculado o escore de propensão. Segundo Rosenbaum et al., o escore de propensão é a probabilidade condicional da alocação da observação dado um vetor de covariáveis observadas. É um método de balanceamento – balancing scores – que permite a comparação de dois grupos que tenham escores de propensão iguais24. Segundo os autores, sob determinadas condições, a aplicação do escore de propensão permite o uso de dados de estudos observacionais para comparação entre grupos de forma a mimetizar ensaios clínicos randomizados.
No cálculo do escore de propensão, considerou-se a cor/raça como variável dependente, sendo branca o grupo controle. O comparador foi a categoria negro, criada pela soma dos dados dos pretos e pardos. Os amarelos e indígenas foram excluídos porque o estudo foi desenhado para comparar desfecho entre brancos e negros e pela dificuldade de classificá-los em um dos dois grupos. Como variáveis independentes, foram utilizados sexo, faixa etária, estado civil, escolaridade e os z-scores obtidos no OHSA. Para manter a consistência do cálculo do escore de propensão no nível individual, os z-scores do OHSA foram alocados a cada observação, considerando o município de ocorrência do óbito.
Para a formação dos grupos, foi usado o pareamento pelo vizinho mais próximo (propensity score matching). Foram testados diferentes parâmetros de diferença dos escores com o objetivo de formar grupos maiores, mas buscando tamanho de efeito menor do que 0,20. Foram, então, escolhidas duas diferenças máximas (caliper) de 0,2 e 0,001 entre os escores de propensão.
Foi utilizado o método sem reposição. Para validar o balanceamento entre as covariáveis dos grupos branco e negro, foi calculada a diferença média padronizada, cujos resultados são apresentados no material suplementar.
Na quarta e última etapa, foi utilizado o modelo de regressão logística para estimar as razões de chance do desfecho homicídio, comparando os grupos controle (brancos) e exposição (negros).
Para as variáveis quantitativas, foram descritas frequências absolutas (n) e relativas (%) e aplicado o teste Qui-quadrado. Para avaliar o tamanho do efeito do relacionamento entre as variáveis, foi calculado o V de Cramér.
A data do óbito foi utilizada para indicar se os óbitos ocorreram em feriados e finais de semana ou nos demais dias. Foram considerados somente os feriados nacionais.
Este estudo utilizou dados de acesso público sem possibilidade de identificação individual, prescindindo, portanto, de aprovação de comissão de ética em pesquisa. Foram utilizados os softwares Oracle MySql versão 8.0 para tratamento das bases de dados, ArcGis Pro para OHSA e mapeamento das variáveis, e IBM SPSS versão 28.0.1 para análise estatística, cálculo do escore de propensão e seleção dos grupos. O fluxograma do método encontra-se no material suplementar.
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Resultados
Em 2022, ocorreram 1.542.158 óbitos no Brasil. Proporcionalmente, morreram mais homens (54,7%), pessoas maiores de 59 anos (71,3%), brancos (51,9%), casados (28,1%) e pessoas com até 3 anos de escolaridade (43,0%). A taxa de mortalidade geral foi de 759,4 por 100.000 habitantes (Tabela 1).
Desses óbitos, 42.441 (2,8%) foram por homicídios. A maioria ocorreu na faixa etária de 20 a 59 anos (83,3%), em pessoas de cor parda (69,6%), solteiros (79,4%), com quatro a sete anos de escolaridade (41,2%) e nos dias de semana (63,0%) (Tabela 1). A taxa bruta de homicídios foi 20,9 por 100.000, sendo de 3,5 por 100.000 nas mulheres e 39,3 por 100.000 nos homens. A taxa padronizada de homicídios por idade foi de 3,5 por 100.000 nas mulheres e 38,4 nos homens.
Os adolescentes morrem mais no hotSpot – 14,2% (8,1% no coldSpot), assim como os solteiros (85,6% no hotSpot versus 70,5% no coldSpot). Uma diferença marcante foi encontrada na variável raça/cor. Enquanto no grupo coldSpot, 51,9% dos homicídios ocorreram nas pessoas de cor branca, no grupo hotSpot, 82,9% ocorreram em pessoas de cor parda. No entanto, observa-se que a associação entre essas variáveis é fraca. (Tabela 1).
A Figura 1 mostra a divisão do Brasil em dois grupos segundo a taxa de homicídios. A região litorânea, parte do interior do Nordeste e algumas regiões da Amazônia têm altas taxas de homicídios – são consideradas áreas hotSpot. Já partes das regiões Sul e Sudeste apresentam baixas taxas – são áreas coldSpot. Há também uma região no estado do Piauí classificada como coldSpot. (Figura 1). Existem duas áreas sem classificação, circundadas por áreas hotSpot - uma no norte do estado da Bahia e outra entre estados da Paraíba e Rio Grande do Norte. Além disso, há uma área sem classificação nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, circundada por áreas coldSpot (Figura 1).
Considerando as categorias com 99,0% de significância, foram incluídos 1.542 municípios no cluster coldSpot, sendo que em 730 (47,3%), ocorreu pelo menos um homicídio. A taxa bruta de mortalidade nesses municípios foi de 9,0, e a padronizada foi de 8,8 por 100.000. Quanto ao sexo, as taxas padronizadas por idade foram de 2,2 e 15,9 por 100.000 para mulheres e homens, respectivamente (Tabela 2).
Já no cluster hotSpot, foram classificados 858 municípios, dos quais em 761 (88,7%) ocorreu pelo menos um homicídio – com taxa padronizada de homicídios de 43,2 por 100.000 (taxa bruta de 43,8). Quanto ao sexo, as mulheres tiveram uma taxa padronizada de homicídios de 5,7 e os homens, 82,9 por 100.000 (Tabela 2)
Comparando-se os dois clusters, observa-se que a taxa de homicídios foi cinco vezes maior no grupo hotSpot. Nesse grupo também morreram mais homens (cinco vezes mais) e mulheres (2,5 vezes mais), e a razão de homicídios entre os sexos foi de 14 vezes – o dobro daquela observada no grupo coldSpot (Tabela 2).
As Tabelas 1 e 2 do material suplementar mostram o diagnóstico do balanceamento dos grupos após a aplicação do escore de propensão. Para os dois parâmetros, a diferença média padronizada indicou que as prevalências das variáveis foram semelhantes entre os grupos de comparação. Contudo, ao utilizar o parâmetro 0,20, observa-se que a diferença média padronizada é alta no coldSpot, com 90% de confiança (0,15), e no hotSpot, com 99% de confiança (0,17). No parâmetro 0,001, a maior diferença média padronizada observada foi de 0,007 para a variável união estável. Essa diferença máxima entre os escores de propensão gerou uma amostra de 773.158 indivíduos, divididos igualmente entre os dois grupos.
Nesta amostra, os negros apresentaram uma chance 49,0% maior de morrer por homicídio (OR 1,49; IC95% [1,44-1,54]). Para a diferença máxima entre os escores de 0,20, essa chance foi duas vezes maior (OR 2,29; IC95% [2,23-2,36]), com uma amostra de 929.264 pessoas (Tabela 3).
A Figura 2 mostra com maior detalhe a região localizada entre os estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, não classificada em hotSpot ou coldSpot. São 122 municípios com 1.690.323 habitantes e taxa bruta de mortalidade de 24,1 por 100.000 habitantes. Em 77 deles (63,1%), ocorreu pelo menos um homicídio em 2022. Nos municípios onde não ocorrem homicídios, vivem 240.614 pessoas (14,2%).
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Discussão
Este estudo teve por objetivo analisar as diferenças regionais e raciais dos homicídios no Brasil, utilizando técnicas geoestatísticas e escores de propensão. A chance de homicídios entre negros foi até duas vezes maior do que a entre brancos na comparação entre grupos controlados por escore de propensão, considerando sexo, faixa etária, estado civil, escolaridade e local de ocorrência do óbito. Identificou-se uma divisão geográfica no Brasil: o Nordeste tem altas taxas de homicídios, enquanto o Sudeste tem baixas taxas. Foram identificadas áreas circundadas por grupos de municípios com altas taxas de homicídios, em que há a possibilidade de subnotificação.
A diferença de óbitos por homicídio segundo a raça é amplamente conhecida20, encontrada tanto em mulheres7,25 quanto em adolescentes e jovens10. Observa-se inclusive um aumento das taxas de homicídios em negros e uma redução em brancos26. Tradicionalmente, as taxas de homicídios são apresentadas nacionalmente, divididas por estado e por grupos (ex.: sexo e cor). O Atlas da Violência27 acrescenta outras informações, como a proporção de homicídios por raça/cor por estado.
Um diferencial deste estudo foi a criação de grupos de controle – brancos – e de exposição – negros – pela aplicação dos escores de propensão. Com esse arcabouço metodológico, encontrou-se uma chance de homicídio em negros pouco menor do que a observada por Truzzi et al.28. Os autores demonstraram uma chance 56% maior de homicídios entre negros e incluíram dados de intervenção legal. Para estimar a parte do diferencial de homicídios entre brancos e negros explicada por componentes discriminatórios, utilizaram um modelo de decomposição (Oaxaca-Blinder). Chegaram à conclusão de que, controlados outros fatores, a maior parte desse diferencial é explicada por componentes raciais. Para avaliar a mesma questão, o presente estudo emprega um método diferente: o escore de propensão com grupos formados diferenciando-se pela cor da pele.
Esses métodos reafirmam a “seletividade racial” da morte violenta, conforme descrito por Ortegal. O autor defende que esse e outros indicadores mais negativos para a população negra, como mortalidade materna, evasão escolar e encarceramento, estão ligados ao racismo brasileiro, e que a raça é um pilar importante para a compreensão da realidade brasileira29. Segundo ele, as distinções de raça passaram por um processo de mudança, levando a características peculiares do racismo no caso brasileiro: ser mais associado à cor da pele e não à origem racial, produzir diferenças sem ser explícito e ter a capacidade de gerar desigualdades baseadas em racismo sem explicitar o operador – o racismo sem racistas29.
Um aspecto relevante deste estudo é mostrar as diferenças regionais das taxas de homicídios. A separação dos grupos de municípios entre aqueles com altas taxas de homicídios (hotSpot) e aqueles com baixas taxas (coldSpot) mostrou que nove em cada dez homicídios ocorrem em negros nas áreas hotSpot, o que é maior do que indicadores semelhantes mostrados em outros estudos27. Soares Filho et al. observaram uma correlação espacial das taxas de homicídios com a cor da pele30. Além disso, observaram um aumento dessas taxas nos pequenos municípios e mapearam altas taxas de homicídios em negros no Nordeste e Norte, e baixas taxas no Sul e Sudeste.
Neste estudo, observou-se o mesmo padrão no Nordeste, de altas taxas de homicídios em negros, em contraste com o Sul e Sudeste. No modelo espacial empregado, municípios com indicadores piores podem ser alocados em grupos de municípios com indicadores melhores (coldSpot) e vice-versa, o que pode limitar o alcance do método. Contudo, o modelo Optimized Hot Spot Analysis cria grupos homogêneos estatisticamente significativos e permite a categorização de variáveis espaciais difíceis de serem representadas em modelos estatísticos tradicionais. O modelo é relevante porque possibilita a focalização de recursos escassos em locais específicos, através da análise geográfica aplicada na prática21. Estima-se que, para cada R$ 1,00 investido em políticas de redução de homicídios, haja um ganho de R$ 2,36 em bem-estar social31.
A interação racial é um fator que deve ser levado em consideração nas diferenças regionais. Nogueira et al. criaram um índice de interação racial representando a proporção de negros residindo próximo à população branca12 e demonstraram que municípios com maior interação racial apresentavam menor risco de homicídios – controlado por renda per capita – e que essa associação variava espacialmente no nível municipal.
A inclusão da análise geoespacial no fluxo de análise estatística tradicional pode expor regiões onde indicadores ruins são muito piores. Isso facilita a transição da análise acadêmica para a aplicação prática, dada a possibilidade de focalizar a aplicação de recursos. Nesse contexto, essa análise pode ser estendida para o nível de bairros ou até mesmo ruas dos municípios. Bando et al., ao analisarem suicídios na microrregião de Chapecó/SC, mostraram diferenças entre duas subáreas, uma com risco relativo de 1,57 vezes na região sudoeste e outra com menor risco na região sudeste (RR=0,68)14. Outra alternativa é a análise das taxas segundo regiões de saúde15. Comber et al. propõem um modelo no qual discutem a importância de uma avaliação estatística tradicional antes da análise espacial. Avançamos esse modelo e propomos uma integração32. Essa visão permite um arranjo abrangente e multidisciplinar.
Um aspecto secundário desta pesquisa – que não estava entre os objetivos principais – foi a identificação de vazios espaciais. Um exemplo é a região no interior dos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Essa área – sem significância estatística na construção dos grupos hotSpot ou coldSpot – é cercada por áreas de alta taxa de mortalidade. Há uma variação na taxa que impede o modelo de classificar esse grupo de municípios. Nessa região, quatro municípios têm mais de 10.000 habitantes e não apresentaram nenhum homicídio em 2022 – dois localizados na Paraíba e dois no Rio Grande do Norte.
A Paraíba possui, desde 2011, um programa – Paraíba Unida pela Paz – que apresentou redução de taxas de crimes violentos intencionais, de 44 por 100.000 em 2011 para 28,6 por 100.000 em 201933. Já o Rio Grande do Norte tem política para mitigação da morte violenta em crianças e apresenta uma taxa de homicídios de 33,1 por 100.000 pessoas27. Essa taxa é maior do que a média brasileira (22,4 por 100.000) e aproximadamente cinco vezes maior do que as observadas em São Paulo. Esse vazio pode corroborar a eficácia dos programas nos estados.
Contudo, outra hipótese deve ser levantada: a possível subnotificação de homicídios. O relatório Atlas da Violência trata essa questão sob a categoria “homicídios ocultos”. Basicamente, esses homicídios ocorrem por falta de identificação da intencionalidade da violência, ou seja, são classificados como mortes indeterminadas. Observa-se um aumento de mortes sob essa rubrica desde 2017. Estima-se que, em média, 4.492 homicídios deixaram de ser classificados no período de 2011 a 202127. O estudo indica que o Rio Grande do Norte é um dos estados com alta incidência de homicídios ocultos. Entre 2011 e 2021, foram registradas 126.382 mortes de causa violenta indeterminada, o que representa 10% do total de mortes violentas.
Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a incluir a análise geográfica a priori, incorporando-a no cálculo de escore de propensão. Também é o primeiro estudo a comparar grupos raciais utilizando escores de propensão e homicídios. Essa proposta multidisciplinar traz alguns desafios que se traduzem em limitações do estudo. Algumas dessas limitações estão relacionadas ao tratamento da informação, como, por exemplo, o elevado número de mortes não classificadas na categoria escolaridade, mas que foram tratadas no escore de propensão. O nível de agregação das taxas de homicídios nos municípios, considerando ano único, aumenta a variabilidade aleatória em pequenos municípios onde, naquele ano, não ocorreu homicídio. O método, ao tratar os municípios com base em características regionais, lida em parte com esse problema. A determinação da diferença máxima de escore de propensão é subjetiva, com impactos sobre o balanceamento dos grupos. No entanto, foram apresentados tanto resultados quanto dados de balanceamento que, em última instância, ainda revelam as diferenças raciais nos homicídios. Há risco de subnotificação nos dados utilizados; contudo, os dados do SIM são amplamente utilizados, e o método proposto pode ajudar a identificar áreas com maior chance de subnotificação.
Seria recomendável que a análise geoestatística fizesse parte, pelo menos, da análise descritiva dos dados de óbito, extrapolando a avaliação regional por estados. Há uma oportunidade de se estudar como o nível de granularidade regional guiado pela geoestatística afeta os resultados – por exemplo, mapeando-se inicialmente por setores censitários. Também seria interessante avaliar se os vazios espaciais das taxas de homicídios são se devem à subnotificação ou são resultado da aplicação de políticas públicas. Outra possibilidade de pesquisa seria avaliar os grupos amarelos e indígenas utilizando esse método.
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Conclusão
Este estudo é consistente com outros demonstrando, em dados recentes do Sistema de Informações sobre Mortalidade, homicídios seletivamente cometidos contra negros. Mesmo com pareamento por escore de propensão, considerando as variáveis sexo, faixa etária, escolaridade, estado civil e grupo de município de morte, o grupo composto por negros apresenta uma chance 2,3 vezes maior de morte por homicídio do que o composto por brancos. Trata-se de seletividade de homicídio por cor, pois resta pouco para explicar essas mortes. Além disso, observou-se uma distribuição desigual das taxas de homicídios no Brasil, com predominância no Nordeste e em locais com alta possibilidade de subnotificação de homicídios.
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Silva, R.P, Pazin-Filho, A.. Desigualdades Raciais e Regionais nos Homicídios no Brasil: Uma Análise Geoestatística e de Escore de Propensão. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/desigualdades-raciais-e-regionais-nos-homicidios-no-brasil-uma-analise-geoestatistica-e-de-escore-de-propensao/19436?id=19436

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