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Artigos

0154/2024 - Rios de conhecimentos: demarcando a ciência com as vozes indígenas
Rivers of knowledge: demarcating science with indigenous voices

Autor:

• Diádiney Helena de Almeida - de Almeida, D. H. - <dyhelena@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7151-0564



Resumo:

Parte desse texto desaguou numa palestra apresentada na abertura da 20ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz em outubro de 2023. Trata-se da reflexão de uma historiadora indígena sobre sua trajetória profissional considerando o racismo vigente na comunidade científica assim como os caminhos que os rios de conhecimentos indígenas têm percorrido na busca pela demarcação da escrita enquanto um campo pela garantia dos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 constituindo um espaço de resistência pela continuidade das existências plurais dos povos indígenas do Brasil.

Palavras-chave:

Sau?de Indi?gena, Racismo na Cie?ncia, Conhecimentos indi?genas

Abstract:

Part of this text resulted in a lecture presented at the opening of the 20th National Science and Technology Week of the Oswaldo Cruz Foundation in October 2023. It is the reflection of an indigenous historian on her professional trajectory, considering the racism in force in the scientific community as well as the paths that the rivers of indigenous knowledge have traveled in the search for the demarcation of writing as a field for guaranteeing the rights guaranteed in the 1988 Federal Constitution, constituting a space of resistance for the continuity of the plural existences of the indigenous peoples of Brazil.

Keywords:

Indigenous Health, Racism in Science, Indigenous Knowledge

Conteúdo:

“Agonia dos Pataxós”

Às Vezes
Me olho no espelho
E me vejo tão distante
Tão fora de contexto!
Parece que não sou daqui
Parece que não sou desse tempo.
Eliane Potiguara (2019, p. 63)1
Parte desse texto desaguou numa palestra apresentada na abertura da 20ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz em outubro de 2023. Essa instituição, é preciso dizer, fez e continua fazendo parte da minha trajetória acadêmica. Aqui cheguei para fazer o mestrado na Casa de Oswaldo Cruz e, anos depois, retornei para um doutorado internacional em Direitos Humanos, Saúde Global e Políticas da Vida. É interessante esse lugar de ser a palestrante principal e poder falar na primeira pessoa no lugar onde iniciei minhas reflexões como historiadora ao mesmo tempo em que ia aprofundando estranhamentos já sentidos nos anos de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É também nesse espaço onde venho crescendo enquanto intelectual. Atualmente sou professora de História na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, e colaboro com a Escola Nacional de Saúde Pública lecionando, orientando em diversas especializações voltadas para os Direitos Humanos e a Saúde Indígena e vivendo a experiência de fazer parte do Coletivo Vozes Indígenas na Saúde Coletiva, um projeto orgânico de pesquisadores ligados à Saúde Indígena e comprometidos com o protagonismo indígena na produção e na divulgação de rios de conhecimentos. Trata-se da formação de uma rede de intelectuais indígenas de vários povos que foram reunidos nessa instituição, diferentes afluentes das mais distantes regiões desse país e que entendo como um lindo encontro de águas, um “feliz encontro”, como bem descrito pela Elisa Urbano Ramos, liderança Pankararu e antropóloga e eleita a cacica do grupo (Coletivo Vozes Indígenas, 2022, p. 479)2. Destaco que esses encontros têm sido movimentos contracoloniais (Santos et al., 2022)3 e revolucionários. Mas preciso destacar que esse não tem sido um caminho simples e fluido, pois os intelectuais indígenas encaram a permanência do etnocentrismo, a tutela nos espaços de produção de conhecimento e a ausência do diálogo com a diversidade de maneiras de enxergar o mundo que estruturam os modos de saberes indígenas (Coletivo Vozes Indígenas, 2022)2. Na luta pela garantia de direitos de todos os povos indígenas, a escrita vem emergindo com potencialidade para reafirmarmos existências plurais. Segundo Gersem Baniwa, a escrita é “ferramenta de inclusão e de igualdade com a diversidade e empoderamento político e intelectual” (Coletivo Vozes Indígenas, 2022, p. 12)2. E é nesse caminho de rio que defendemos nossos registros, nossas formas de comunicar, nossas formas de ensinar e de aprender que estão informados pelos modos tradicionais de cada povo se expressar. Do mesmo modo, Elisa Urbano Ramos afirma que “são escritas essas que traduzem a linguagem dos nossos ancestrais, a comunicação através das histórias” (Coletivo Vozes Indígenas, 2022, p. 479)2. Fica, portanto, evidente como a luta por direitos e democracia cognitiva está necessariamente atrelada a universos simbólicos da espiritualidade indígena.
Estive por muito tempo na Educação Básica como professora de História, e precisei encarar o desafio de transformar minha prática, minha voz, meu corpo nesse espaço tradicionalmente colonizador e reificador de estereótipos: a escola. Essa herança de violências reproduzida nos espaços escolares foi mobilizada por uma política de não existência que, historicamente, consideraram os povos indígenas incapazes e fadados ao desaparecimento, os submetendo a políticas integracionistas e de tutela por parte do Estado brasileiro. Resultado disso é que, mesmo após a conquista do Capítulo dos Índios na Constituição Federal de 1988, boa parte da sociedade brasileira ainda desconhece os povos indígenas, não reconhece seus nomes, estranha a sonoridade de suas línguas e músicas, e se fantasia com as suas tradições. Isso nos informa muito sobre o que as instituições científicas e de educação ensinaram ou não ensinaram sobre a realidade de parte significativa da população que se reconhece como pertencente a um povo originário.
Mas antes, preciso dizer que não venho falar sozinha. Carrego comigo muitas vozes ancestrais, cheiros de ervas e de chão de terra, som de folhas e de galhos estalando, e trago uma reflexão sobre conhecimentos que são constituídos de movimentos, de fluidez. “Sempre estivemos perto da água, mas parece que aprendemos muito pouco com a fala dos rios” (Krenak, 2022, p. 13)4.
Os versos de Eliane Potiguara que abrem esse texto podem ser compreendidos a partir de dois pontos. Primeiro, a insistente estratégia colonial de localizar, temporalmente, e fisicamente os povos indígenas num passado distante reforçando sua ausência na contemporaneidade. Esse apagamento cega a vista das pessoas que não conhecem os povos indígenas. Ao mesmo tempo, indica o quanto essa agonia assola os povos indígenas de todo o Nordeste que ainda hoje são invisibilizados tendo em vista a diversidade de seus traços fenotípicos distintos da estereotipia presente no imaginário dessa sociedade. A Bahia é o segundo estado com a maior população indígena do país, segundo o censo (IBGE, 2022)5. Seus povos indígenas ainda reivindicam não serem mais os “caboclos” e “misturados”, e resistem em defesa de suas identidades e territórios.
Lembro aqui as representações generalistas e exotizantes difundidas a partir do uso dos relatos, dos escritos e das pinturas de viajantes europeus e das teorias raciais do século XIX que, a partir da biologia, afirmaram a existência de diferenças insuperáveis entre as chamadas raças. Recordo também o mito da democracia racial, construído no século XX pela intelectualidade brasileira (Maio; Santos, 1996)6. Gostaria de pontuar o quanto essas ideias e teorias, que partiram do campo da ciência, endossaram o silenciamento de um universo plural de conhecimentos. Precisamos refletir e debater sobre as gerações de cientistas educados a partir da cegueira provocada pelas ideologias racistas.
Essas palavras podem trazer incômodos, mas também convidam aos estudantes e pesquisadores dessa importante instituição a navegar por esses rios, ouvi-los atentamente e a banhar em suas águas. É preciso colocar em prática uma ciência que possa conviver e dialogar efetivamente a partir da compreensão da multiplicidade de existências e experiências, com rostos e vozes que nunca foram pensados enquanto pesquisadores e cientistas. Quando falo desses rios de conhecimentos, denuncio o silêncio e constato as ausências nesse auditório.
O processo colonizador é permanente e eu pergunto: como a elite intelectual desse país tem se mobilizado para combater violências e silenciamentos que, historicamente, tem deixado crianças e jovens indígenas sem perspectivas perfazendo uma taxa de suicídio três vezes maior do que a média nacional? Vivemos uma realidade onde as culturas dos povos originários e toda essa confluência de diferentes línguas, costumes, tradições, festas, ritos, medicinas ainda mantém, enquanto rExistência, suas memórias ancestrais vivas. Mesmo consideradas como subhumanidades, concepção essa que perpassa pela relação do Estado, são essas culturas que, longe de estarem extintas, permanecem se curando da violência do racismo e se renovando a partir dos seus roçados, dos movimentos de saber-fazer presentes numa casa de farinha, no sagrado de um xarope de ervas, na confecção de um maracá, nos cantos, nos grafismos que pintam os corpos-territórios de norte a sul desse país. Amparados pela ancestralidade, tornam-se estudantes, lideranças políticas, intelectuais e, portanto, produtores de conhecimentos reivindicando a existência de seus povos, a dignidade enquanto cidadãos brasileiros e o pleno direito à diferença, recusando a tutela que marcou uma relação histórica colonial genocida.
Defender a Constituição é defender um marco que nos devolveu a capacidade de sermos considerados capazes de pensar, de falar e de tomar decisões. O grito que ecoa do movimento “nada sobre nós sem nós” reivindica uma reparação histórica do Estado e coloca todas as instituições voltadas para a produção de conhecimentos como espaços fundamentalmente estratégicos para o exercício da cidadania e da democracia cognitiva (Gersem Baniwa, 2019)7. Assim, os povos indígenas seguem mobilizando a mãe terra ao mesmo tempo em que lutam para que o direito constitucional à demarcação seja garantido.
Os pajés e majés indígenas seguem mobilizando os cuidados da saúde, os que curam, os que plantam semeando a cura, os que cantam evocando a cura, os que ensinam à sociedade ocidental que os mais velhos e as mais velhas são bibliotecas vivas que precisam ser cuidados, amados e preservados, pois são os mesmos que seguem ensinando os mais jovens a reverenciar as tradições, a guardar suas sementes, a aprender ouvindo as águas dos rios.
E quero chamar especial atenção às mulheres que partejam. Recentemente, estive em duas comunidades Ticunas nas calhas do Rio Solimões a convite da Fiocruz. Esse rio ainda me atravessa e me põe a relembrar e reverenciar sábias mulheres Ticuna, Kokama, Kambeba, Kanamari que partejam, que mobilizam seus sonhos e os conhecimentos de suas ancestrais, os elementos do seu território para continuar existindo. O trabalho desempenhado por essas mulheres se refere a um movimento de vida, de continuidade de um povo e, portanto, essas mulheres se dedicam, e mobilizam todo um repertório cosmológico, para tornar possível não apenas o nascimento de uma criança, mas a continuidade da existência dos seus povos. Essas mulheres, pertencente à Associação Algodão Roxo, mobilizam em suas mãos o mastruz, o algodão roxo, o dente de capivara, a banha de galinha além de muitos segredos. E mobilizam gestos, olhares, afeto, trabalho e tempo! E ao partejar se tornam as ‘cumaris’ para as famílias dos bebês que são pescados nas barriga-igarapé. Trata-se de um exercício de autogoverno onde todas as crianças daqueles povos que chegam ao mundo são recebidas pelas mãos de mulheres sábias, detentoras dos conhecimentos tradicionais de seus povos manejando com grande habilidade a sua própria língua, os elementos da natureza que ritualizam esse momento que é de celebração da vida e é de resistência.
Lembro de uma fala de Ailton Krenak, sobre o período da pandemia de covid-19, quando aponta para “novas maneiras de fazer política (...) emergindo de campos que são ainda considerados invisíveis” e como esse modo de governar envolve os afetos e a solidariedade (2021, p. 73)8.
Os rios de conhecimentos correm através dos rios ancestrais, das vozes das avós, das lideranças, de cada membro de uma comunidade indígena, dos territórios, demarcados ou não, aos centros urbanos. Há produção de conhecimentos, há reprodução da vida e há publicação de livros a partir da Aldeia Maracanã, aqui no Rio de Janeiro, assim como no Parque das Tribos, em Manaus, e, assim como em muitos outros organismos vivos mobilizados pela resistência indígena.
Penso que estou aqui especialmente para falar de uma urgência: é preciso pintar as paredes das escolas, das universidades, das instituições de pesquisas de jenipapo, urucum, argila, toá e de multiplicar conhecimentos onde caibam não apenas palavras, mas também ritos, gestos e encantamentos. Não mais uma ciência monocultural, mas uma ciência que dialogue com a diversidade, com os pluriversos indígenas existentes em favor da vida.
O movimento indígena grita a urgência em defender a mãe terra. O Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas demonstrou como a proteção das florestas contribuem para a agricultura e, portanto, para a segurança alimentar assim como evita eventos climáticos extremos (Vick, 2023)9. Contudo, o movimento indígena que decretou Emergência Climática no Acampamento Terra Livre, em 2023, demonstra como a vida dos povos indígenas está ameaçada assim como a relação com a natureza vem sendo alterada (APIB, 2023)10. São as culturas dos povos originários que ecoam secularmente uma outra compreensão dos rios, das montanhas e das florestas. Não as entendem como recursos, mas eu falo de grupos que conversam com o rio Watu, o Rio Doce considerado um avô para a cultura Krenak, conversam com a pedra sonora como os Puris na Serra da Mantiqueira, entendem que o sol pode namorar com a lua, como para o povo Sateré Mawé da região do médio Rio Amazonas, e as que contam histórias de tempos em que as serras ainda adormeciam debaixo da terra e que ao despertarem traziam os olhos das águas das profundezas, como para o povo Taurepang de Roraima e em partes da Venezuela e da Guiana (Negro, 201911; Krenak, 201912). Não posso deixar de citar a força das histórias de Makunaima para o povo Macuxi e Wapichana tão bem reivindicada pela arte de Jaider Esbell. Sobre Makunaima, boa parte dos brasileiros apenas conhecem a história contada por Mário de Andrade desconectada de qualquer contexto indígena. Jaider Esbell faz uma leitura dessa provocando a sociedade à descolonização, à transgressão e às dimensões que fazem sentido quando se pensa na força espiritual do avô Makunaima recolocando a fluidez do mito e falando num tempo em que tudo poderia ser tudo (Negro, 201911; Krenak, 2019, p. 4012).
A produção de conhecimento que tem como afluente um rio ancestral indígena está em plena ebulição: há diálogo com a produção ocidental, há também afirmação de epistemologias próprias, de novas metodologias e os saberes-fazeres que se inscrevem, e escrevem em português mas também se apresentam em outras línguas, e já compõe um campo de resistência que vai sendo constituído de intelectuais indígenas advindos das políticas afirmativas e que adentram os espaços de produção de conhecimentos para militar por suas escritas, para demarcar territórios de saberes, encarando de frente o desafio de superar uma sociedade racista e excludente. Segundo Gersem Baniwa, desde 1988, os povos indígenas “vêm insistentemente lutando por seus direitos de pensar, de falar e de serem ouvidos, de serem vistos e de decidir sobre seus destinos” (Coletivo Vozes Indígenas, 2022 p. 9)2.
Como está escrito na Carta da I Marcha das Mulheres Indígenas que ocorreu em Brasília em 2019: “Não basta reconhecer nossas narrativas, é preciso reconhecer nossas narradoras” (Carta da I Marcha das Mulheres Indígenas, 2019)13. É significativa a presença das mulheres que reafirmam sua força dentro do movimento indígena a partir do campo político e intelectual. A generosidade da escuta, o olhar atento, o “sentipensar”, para usar uma expressão de FalsBorda (2015)14, é urgente para deixar emergir as narrativas dos povos indígenas combatendo o silenciamento sobre as culturas de mais de 1 milhão e 700 mil brasileiros pertencentes a mais de 300 povos, cantantes e dançantes, mas que também lutam pelo reconhecimento de suas identidades e de seus protagonismos como sujeitos históricos. Reposicionar essas contribuições na cartografia acadêmica é combater o ideal de humanidade moderno que, ao longo da história, excluiu identidades não ocidentais e saberes não científicos além de promover a pluralidade no ambiente da educação e da pesquisa que agora é reivindicado enquanto territórios de exercício da democracia cognitiva.
André Fernando Baniwa defende que a interculturalidade como uma prática de vida, ou seja, pressupõe a possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e identidades (Baniwa, 2019)15. Então, lanço um desafio: Como criar condições favoráveis para compartilhar conhecimentos e boas relações entre a ciência e os povos indígenas? Como educar a sociedade para compreender que os povos indígenas são parte da história desse país? Como educar para a convivência e para a defesa da diversidade cultural ao treinar cientistas? Como promover intelectuais indígenas como autores, pesquisadores, professores, gestores e como intelectuais de referência? Promover cidadania e justiça cognitiva passa necessariamente por reconhecer as injustiças históricas cometidas contra os povos indígenas e superá-las com políticas públicas efetivas.
A ciência é uma ferramenta importante. A escola, a universidade, os institutos de pesquisas são espaços estratégicos. É preciso reconhecer como a raça tem sido operada na distinção dos conhecimentos que são socialmente valorizados nessa sociedade e fazer parte deste lugar exige a coragem de encarar que os sistemas de conhecimentos historicamente operaram para minar o bem viver indígena.
Retornando à visita ao Rio Solimões. Conversando com uma enfermeira indígena, ela contou que numa determinada situação envolvendo o nascimento de uma criança Ticuna, o médico reclamou da presença da parteira e afirmou que o trabalho dele seria atrapalhado pela presença da parteira. Relembro novamente as mulheres que partejam e celebro as parteiras indígenas de todos os povos indígenas desse país. Porque mesmo ocupando as margens, mesmo sendo recusadas, seguem firmes assegurando os principais elementos constituintes do bem viver de seus povos e, portanto, também asseguram o poder que possuem dentro dos seus contextos culturais. Com as histórias dessas mulheres tenho aprendido sobre coragem.
Reconheçam, fortaleçam os narradores e as narradoras oriundas dos povos originários. Sejam também atravessados pelos rios de conhecimentos. Sejam incomodados pelo formato monocultural e monolinguístico que apaga a multiplicidade das epistemologias indígenas, sejam afetados pela ausência de intelectuais indígenas nos espaços em que pesquisam.
Gostaria de relembrar a vocês aqui edição especial de uma prestigiada revista científica, a Nature, que em outubro de 2022 lançou uma edição especial que, pela primeira vez, contou com editores convidados, pesquisadores e pesquisadoras negras para tratar de um assunto incontornável: o racismo na ciência. A revista reconheceu sua contribuição para a segregação racial ao longo dos seus mais de 150 anos de existência. Seus editores declararam:
A ciência deve, ao mesmo tempo, se abrir para trazer novas vozes e novos pontos de vista, e para trabalhar genuinamente colaborativamente com cientistas de comunidades negras, indígenas e historicamente marginalizadas. Tem que haver espaço para mais de uma história, uma explicação, uma perspectiva. (Nobles, et al, p. 419-420, tradução nossa)16.

Fica evidente o que seus editores chamaram de “discriminação autoperpetuante” no processo de marginalização das pessoas negras, indígenas e de outros grupos minoritários a partir dos usos que cientistas e instituições fizeram das pesquisas. Perceber que uma revista deste porte reconhece que construiu um legado racista ao publicar os trabalhos de Francis Galton sobre eugenia e, ao longo de mais de um século, continuou publicando materiais que sempre desvalorizaram a vida, é um passo importante e um alerta para a comunidade de pesquisadores no Brasil. Os editores reivindicam que os espaços acadêmicos passem por um processo de descolonização admitindo um histórico excludente de produção científica.
Nessa edição, são apresentados os relatos de duas indígenas mulheres, pesquisadoras na área da saúde indígena, tratando de suas experiências e suas trajetórias profissionais atravessadas pelo racismo sistêmico. Essas experiências precisam ganhar os mares. Nadine Caron, a primeira cirurgiã indígena do Canadá, afirma ter que enfrentar o racismo ao lidar com gestores e colegas de trabalho que insistem em impor as prioridades para a assistência à saúde indígena quando ela propõe desenvolver pesquisas na área de genética. Por sua vez, Chelsea Watego vem protagonizando o campo de estudos da saúde indígena na Austrália. Essa pesquisadora enfatiza a perspectiva colonial que incide sobre os povos indígenas e, principalmente, sobre os intelectuais indígenas dentro dos espaços acadêmicos. Watego chama a atenção para o papel da raça como um projeto intelectual na produção das desigualdades na saúde e do quanto o campo da saúde precisa se comprometer com a sobrevivência das culturas indígenas, mas também se comprometer com a soberania intelectual indígena.
Nadine Caron e Chelsea Watego também me ensinam sobre coragem. Eu nunca tive um professor ou professora indígena na minha trajetória acadêmica. Talvez escapem às pessoas que fazem parte dos espaços acadêmicos o que significa para pessoa racializadas estarem em espaços onde as ausências sempre gritaram. Na cartografia dos conhecimentos acadêmicos de ponta, as memórias e histórias daqueles que reconhecem esse território como Pachamama nunca estiveram presentes. Hoje, reivindicamos a escrita enquanto movimento de resistência, de continuação da vida, mas que ainda precisa combater uma ciência muito cerceadora. Esse movimento pela soberania intelectual indígena vem crescendo no Brasil, são rios de conhecimentos que insistem em defender suas visões próprias de mundo. Conforme explicou Ailton Krenak, é preciso “evocar os mundos das cartografias afetivas” (2022, p. 42-43)4. Nós cientistas, indígenas e não indígenas, precisamos contracolonizar ao enunciar as cartografias dos pluriversos indígenas onde os rios de conhecimentos podem nos ensinar sobre a cura da própria ciência. É urgente escolher o caminho de uma ciência que dialoga com diferentes culturas e saberes, que reconhece epistemologias plurais. E que, ciente do racismo estrutural, combata a exclusão e promova encontros de águas. Pesquisadores já afirmam que o modo de fazer ciência para todas as pessoas só será possível se todas as pessoas estiverem na ciência. Esse é um caminho para construir uma ciência mais confiável publicamente e que informe as políticas públicas de forma justa, democrática, inclusiva e ética (Graves Jr, 2022) 17.
Daniel Munduruku (2009)18 conta, em um dos seus livros, que sua mãe repousava sua cabeça para catar piolhos e fazia isso de forma tão carinhosa enquanto contava histórias e falava da tradição de seu povo. E ele adormecia porque, segundo explica, as histórias precisam continuar nos sonhos. Eu espero ter contado aqui uma boa história. E desejo que ela continue no mundo dos sonhos para que se torne realidade em prol da soberania intelectual indígena.

Referências bibliográficas:

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3. Santos AB, Rodrigues MS, Rufino L, Mumbuca A. Quatro Cantos. São Paulo: N-1 edições; 2022.

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9. Vick M. Como a mudança do clima afeta os povos indígenas no Brasil. Ponto Futuro [Internet]. 26 abr 2023 [citado 29 mar 2024]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/04/26/como-a-mudanca-do-clima-afeta-os-povos-indigenas-no-brasil# .

10. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Povos indígenas decretam emergência climática no ATL 2023 em Brasília [Internet]. Brasília: ApibOficial; 2023 [citado 29 mar 2024]. Disponível em: https://apiboficial.org/2023/04/26/povos-indigenas-decretam-emergencia-climatica-no-atl-2023-em-brasilia/ .

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13. Marcha das Mulheres Indígenas. Documento Final da Marcha das Mulheres Indígenas (2019). Revista InSURgência [Internet]. 2021 [citado 12 mar 2024]; 7(2):339-45. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/39122.

14. Fals Borda O. Una Sociología sentipensante para la América Latina. México: Sigilo XXI Editores; Buenos Aires: CLACSO; 2015.

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18. Munduruku D. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira. São Paulo: Global; 2009.









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Citar

de Almeida, D. H.. Rios de conhecimentos: demarcando a ciência com as vozes indígenas. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Abr). [Citado em 06/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/rios-de-conhecimentos-demarcando-a-ciencia-com-as-vozes-indigenas/19202?id=19202&id=19202

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