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0189/2025 - DETERMINANTES DA VIOLÊNCIA FÍSICA PRATICADA POR PARCEIRO ÍNTIMO CONTRA MULHERES INDÍGENAS: UMA ANÁLISE MULTINÍVEL
DETERMINANTS OF PHYSICAL VIOLENCE BY INTIMATE PARTNERS AGAINST INDIGENOUS WOMEN: A MULTI-LEVEL ANALYSIS

Autor:

• Glenio Alves de Freitas - Freitas, GA - <glenio.freitas@ufu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9818-6090

Coautor(es):

• Gláucia Elisete Barbosa Marcon - Marcon, GEB - <glaucia.marcon@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0276-4285

• James Robert Welch - Welch, JR - <jwelchmail@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9094-5491

• Cosme Marcelo Furtado Passos da Silva - Silva, CMFP - <cosme.passos@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7789-1671



Resumo:

Objetivo: avaliar a ocorrência da violência física por parceiro íntimo em mulheres indígenas da macrorregião de Dourados, Mato Grosso do Sul, e sua associação com os fatores individuais das mulheres e contextuais dos municípios em que ocorreram os atos violentos. Metodologia: realizou-se um estudo transversal com notificações registradas no SINAN de mulheres indígenas que sofreram violência física por parceiro íntimo na macrorregião de Dourados, entre os anos de 2009 a 2020. Foi realizada a estatística descritiva das variáveis e a regressão logística multinível com efeitos aleatórios dos municípios de ocorrência para determinar os fatores associados à violência física por parceiro íntimo. Resultados: estiveram associados positivamente à ocorrência de violência física por parceiro íntimo a idade (20 a 29 anos e 30 a 39 anos) e o uso de bebida alcoólica por parte do agressor. Estiveram associados negativamente a gestação e o Índice de Gini. Conclusão: Este estudo demonstrou que na macrorregião de Dourados, a violência física por parceiro íntimo em mulheres indígenas ocorre em diferentes níveis da sociedade região. Para a melhoria das relações sociais, são importantes ações que reafirmem a cultura tradicional e a regularização das terras.

Palavras-chave:

Violência contra as Mulheres Indígenas; Análise Multinível; Violência por Parceiro Íntimo; Desigualdade Social.

Abstract:

Objective: to evaluate the occurrence of physical violence by an intimate partner among indigenous women in the macro-region of Dourados, Mato Grosso do Sul, and its association with the individual factors of the women and the context of the municipalities in which the violent acts occurred. Methodology: a cross-sectional study was carried out with notifications registered in SINAN of indigenous women who suffered physical violence by an intimate partner in the Dourados macro-region, between the years 2009 to 2020. Descriptive statistics of the variables and multilevel logistic regression with random effects of the municipalities of occurrence were performed to determine the factors associated with physical violence by an intimate partner. Results: age (20 to 29 years and 30 to 39 years) and use of alcohol by the aggressor were positively associated with the occurrence of physical violence by an intimate partner. Pregnancy and Gini Index were negatively associated. Conclusion: this study demonstrated that in the Dourados macro-region, physical intimate partner violence against indigenous women occurs at different levels of society in the region. For the improvement of social relations, actions that reaffirm traditional culture and land regularization are important.

Keywords:

Violence Against Indigenous Women; Multilevel Analysis; Intimate Partner Violence; Social Inequality.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

A violência por parceiro íntimo (VPI) se refere a qualquer comportamento dentro de um relacionamento íntimo que cause danos físicos, psicológicos ou sexuais à pessoa agredida1. Entre a VPI sofrida pelas mulheres, no mundo, aproximadamente 30% das mulheres sofreram violência física e/ou sexual realizada por seus parceiros ao longo da vida2.
A ocorrência da VPI é um fenômeno complexo, e dentro de determinada localidade é preciso considerar o contexto e as normas sociais e culturais que permeiam o ato3. De acordo com vários pesquisadores da VPI, os fatores individuais relacionados ao ato violento (idade, escolaridade, dentre outros), explicam parcialmente o processo, sendo necessária analisar a interação da VPI com os fatores relacionados à família, sociedade, comunidade e à cultura em que os indivíduos estão inseridos, para se encontrar as condições relacionadas à ocorrência do ato violento4.
Dentre os povos indígenas, a violência é impactada pela dominação europeia durante o período colonial que influenciou nas práticas culturais dos diversos povos, reprimindo a língua e a religião, além da modificação da estrutura familiar tradicional. Esse histórico de violência tornou os povos indígenas vulneráveis em relação aos outros povos, ocasionando desigualdades socioeconômicas e de saúde que ultrapassam várias gerações5.
Os povos indígenas possuem maior propensão de sofrerem um ato de violência quando comparados com os não indígenas, principalmente as mulheres, que em alguns países como o Canadá, são vítimas da violência de maneira desproporcional, sendo a VPI uma das principais formas de violência vivenciada pelas mulheres indígenas canadenses, gerando impactos nas vítimas, nas famílias e nas comunidades6,7. Em um estudo realizado no Canadá, 6 em cada 10 mulheres indígenas já sofreram VPI ao longo da vida5.
O estado do Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena brasileira, com mais de 116 mil indígenas que em algumas regiões vivem em situações de extrema pobreza, e de violência tanto dentro como fora das comunidades8,9. Neste contexto, mulheres indígenas são afetadas por violências múltiplas, principalmente pela VPI10.
Existe atualmente uma carência de estudos para avaliar a ocorrência da VPI em mulheres indígenas e seus fatores associados. A abordagem dos fatores contextuais que permeiam as terras indígenas são de extrema importância, para a compreensão da influência da cultura não indígena na ocorrência da VPI que atinge mulheres nos territórios indígenas. Portanto este estudo tem como objetivo avaliar a ocorrência da violência física por parceiro íntimo em mulheres indígenas, notificadss pelo setor saúde, da macrorregião de Dourados, Mato Grosso do Sul, e sua associação com os fatores individuais das mulheres e contextuais dos municípios em que ocorreram os atos violentos.

METODOLOGIA


Trata-se de um estudo transversal que realizou a análise de dados secundários de mulheres indígenas com idade acima de 10 anos, residentes na macrorregião de Dourados, Mato Grosso do Sul, que sofreram violência por parceiro íntimo e foram notificadas no Sistema de Nacional de Agravos de Notificação (SINAN), entre os anos de 2009 a 2020. Os dados foram fornecidos pelo Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde (CIEVS), do estado do Mato Grosso do Sul. Foram analisadas 1.384 notificações de mulheres indígenas.
A macrorregião de Dourados localiza-se na região sul do estado do Mato Grosso do Sul, e é composta por uma população de quase 1 milhão de habitantes distribuídas entre 33 municípios11. Entre os povos indígenas, a região é habitada majoritariamente pelos indígenas das etnias Guarani e Kaiowá. Os indígenas Terenas, em menor número nesta região, concentram-se apenas no município de Dourados12.
As variáveis foram estruturadas hierarquicamente sendo o primeiro nível as características individuais, característica do agressor, características do ato violento e o segundo nível as características contextuais dos municípios em que ocorreram os atos de violência (socioeconômicas e nível de violência da sociedade).
A variável desfecho foi categorizada em violência física por parceiro íntimo (sim), podendo a violência física estar associada a outros tipos de violência. O grupo de comparação constitui-se de outras violências (psicológicas, sexual, outras) por parceiro íntimo (não), para as quais não havia registro de violência física, podendo haver uma resposta afirmativa para um ou mais tipos de violência. As variáveis explicativas do primeiro nível foram divididas em 3 grupos:
Características das mulheres: faixa etária (10-19, 20-29, 30-39, 40-49, >50); gestante (sim; não), situação conjugal (com parceiro; sem parceiro);
Características do agressor: ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (sim; não);
Características do ato violento: violência de repetição (sim; não); local de ocorrência (residência, outro local);
As variáveis contextuais Taxa de analfabetismo, Taxa de desemprego, Renda média per capita domiciliar e Proporção de pessoas com baixa renda foram extraídas do censo demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)8.
As variáveis Índice de Gini e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) referentes ao ano de 2010 foram coletadas do Atlas de Desenvolvimento Humano (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD)13.
Para determinar a violência de base comunitária foi utilizada a taxa de homicídios masculinos. Os dados foram coletados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS). Foram utilizados os códigos X85-Y09 do Capítulo XX- Causas externas de morbidade e mortalidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) -10ª Edição, para determinar os homicídios masculinos. A taxa de homicídios masculinos em cada município foi calculada da seguinte forma:

Taxa de homicídios masculinos: (Nº de homicídios masculinos)/(População masculina estimada)×100 mil

Para a análise estatística, primeiramente foi realizada a análise descritiva das variáveis, apresentando as frequências e as proporções das variáveis categóricas. O teste Qui-Quadrado foi utilizado para comparar as proporções conforme o tipo de violência (física e outras formas de violência). Os missings, valores não preenchidos, e os dados ignorados não foram avaliados. Como os valores obtidos apresentaram escalas diversas, as variáveis contínuas passaram por um processo de normalização, utilizando a seguinte metodologia:

X'i (Xi - Xmin)/(Xmáx-Xmin)
Onde: para cada i ? {1, · · · , n}. Aqui, Xmáx é a maior entrada do vetor X e Xmin a menor entrada.
Para a análise dos dados, foi utilizado o modelo de regressão logística multinível que foi expandido com a inserção de efeitos aleatórios (município de ocorrência). Esta modelagem visou estimar a chance da mulher indígena sofrer violência física por parceiro íntimo, considerando o efeito dos municípios.
Para a análise multinível, a construção do modelo foi realizada conforme os cinco passos descritos a seguir:
1º Passo: Construção do modelo sem qualquer variável explicativa, somente com o intercepto (modelo nulo). Este modelo indicou a probabilidade da mulher indígena sofrer violência física por parceiro íntimo quando comparada com as mulheres indígenas que sofreram outros tipos de violência por parceiro íntimo. Este modelo inicial foi tido como base para as análises dos modelos seguintes.
2º Passo: Construção modelo bivariado com as características individuais e contextuais.
As variáveis estatisticamente significantes foram inseridas no modelo múltiplo.
3º Passo: Foram introduzidas todas as variáveis explicativas do primeiro nível (individual). Este modelo assumiu que os coeficientes das variáveis explicativas são fixos para todos os municípios, ou seja, as características individuais das mulheres indígenas são as mesmas para todos os municípios.
4º Passo: Foram inseridas as variáveis explicativas do segundo nível (agregado). Este modelo visou quantificar a influência das características dos municípios na probabilidade da mulher indígena ser vítima de violência física praticada por parceiro íntimo.
5º Passo: Foram avaliados se todos os coeficientes das variáveis do primeiro nível possuíam componentes significativos de variância entre as unidades do segundo nível14.
Para avaliar o ajuste dos modelos, o Critério de Informação de Akaike (AIC) e Critério de Informação Bayesiano (BIC) foram empregados. Para estimar a variância da violência contra mulheres indígenas praticada por parceiro íntimo no nível comunitário, o coeficiente de correlação intraclasse (ICC) da regressão logística multinível foi calculado:

?=(?_00^2)/((?_00^2+?^2/3) )
Onde: ?_00^2 é a variância do erro residual no nível agregado (nível 2) e ?^2?(3=3,29) (? = 3,1415926) é a variância do nível individual no modelo logístico.
Os efeitos fixos com seus intervalos de confiança (IC95%) e os efeitos aleatórios foram calculados e apresentados. A significância da inclusão do efeito aleatório foi avaliada comparando os modelos com e sem a presença do efeito aleatório dos municípios por meio da análise de variância (Anova). O software R versão 4.1.2 foi utilizado para as análises estatísticas. As bibliotecas utilizadas do software R foram: lmer para a regressão logística multinível, e a lattice para gerar o gráfico dos efeitos aleatórios. Em todos os testes estatísticos foi adotado o nível de significância de 5%.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (CEP/ENSP-FIOCRUZ- parecer nº 5.274.177) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP-parecer nº 5.469.695). A Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Mato Grosso do Sul assinou a carta anuência para a realização pesquisa, e o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde - CIEVS estadual, forneceu os dados não identificados do SINAN.

RESULTADOS


Dos 33 municípios da macrorregião de Dourados, 22 municípios apresentaram registros no SINAN de violência contra mulheres indígenas (Figura 1).
A tabela 1 mostra que 68,2% das mulheres indígenas sofreram violência física por parceiro íntimo e destas 33,9% tinham entre 20 e 29 anos de idade, 14,1% eram gestantes e 86,3% tinham companheiro. Em relação ao agressor, 88,3% (p<0,001) estavam sob o efeito da ingestão de bebida alcoólica. Na análise do ato violento, a violência de repetição esteve presente em 63,4% das notificações de violência física. De acordo com o local de ocorrência, 90% dos casos ocorreram na residência. As diferenças nas proporções não foram significativas nas variáveis violência de repetição (p=0,262) e local de ocorrência (p=0,437) (Tabela 1).
A tabela 2 apresenta os resultados da análise de regressão logística multinível, demonstrando a medida de associação entre as variáveis individuais, do agressor, do ato violento e das características contextuais com a violência física praticada por parceiro íntimo, com a inserção do efeito aleatório do município de ocorrência. O coeficiente de correlação intraclasse (ICC) evidenciou que 10,9% da variação está relacionada com as cidades de ocorrência.
No modelo 1 foi realizada a análise bivariada das variáveis do primeiro nível e do segundo nível as variáveis idade, 20 a 29 anos (OR 2,03, IC95% 1,39; 2,97), 30 a 39 anos (OR 2,43, IC95% 1,61; 3,66), 40 a 49 anos (OR 2,85, IC95% 1,61; 4,80), gestante (OR 0,42, IC95% 0,29; 0,60), ingestão de bebida alcóolica (OR 2,75, IC95% 1,90; 3,97) e Índice de Gini (OR 0,72, IC95% 0,54; 0,96) estiveram estatisticamente associadas à violência física por parceiro íntimo e foram adicionadas na análise múltipla. (Tabela 2).
No modelo 2, múltiplo com as variáveis do nível 1, as variáveis idade, gestante e ingestão de bebida alcoólica se mantiveram estatisticamente significativas. Neste modelo, 10,9% dos atos violentos foram atribuídos aos municípios. No modelo 3, na análise do efeito aleatório dos municípios com a inclusão da variável Índice de Gini, 7,9% da violência foi atribuída aos municípios. No modelo 4 foi realizada a análise multivariada com as variáveis do nível 1 e o Índice de Gini do nível 2. Os resultados demonstram que a idade, com a faixa etária entre 20 a 29 anos (OR 1,59, IC95% 1,07; 2,37), 30 a 39 anos (OR 1,75, IC95% 1,13; 2,70) e entre 40 a 49 anos (OR 1,98, IC95% 1,15; 3,42), se mantiveram associadas à ocorrência de violência física por parceiro íntimo. Também demonstraram o efeito protetor da gestação, quando comparada com não gestantes (OR 0,56, IC95% 0,38; 0,83), o aumento da chance de sofrer chance da mulher sofrer violência quando o agressor fez uso de bebida alcoólica (OR 2,08, IC95% 1,40; 3,09) e o Índice de Gini (OR 0,69, IC95% 0,53; 0,92) representando a menor chance das mulheres que residem nos munícípios com maior desigualdade sofrerem violência. Neste modelo, 6,7% dos atos violentos foram atribuídos aos municípios. A inserção do efeito aleatório foi significativa em todos os modelos (Tabela 2).
Na Figura 2 foi observado que há 2 municípios (Dourados e Tacuru) com efeito aleatório negativo, diminuindo a chance da mulher indígena sofrer violência física por parceiro íntimo e 2 municípios com efeito aleatório positivo, aumentando assim a chance da mulher indígena sofrer violência física por parceiro íntimo (Caarapó e Antônio João).

DISCUSSÃO


O processo histórico de violações de direitos e violências com as quais os povos indígenas estão sendo submetidos ao longo dos anos possui influência do contato com a população não indígena, com a perda do território e com a exploração da mão de obra. Todo esse processo de modificação social, econômica e cultural, influenciou nas relações de gênero, tornando-as conflituosas e contribuindo para a violência de gênero dentro das comunidades15.
O percentual de violência física deste estudo corrobora com os resultados de outros estudos que analisaram as notificações de violência por parceiro íntimo do SINAN. Em um estudo que analisou as notificações de VPI entre os anos de 2011 a 2017 no Brasil, o percentual de violência física foi de 86,6%16.
No nível individual, mulheres indígenas com idade entre 20 a 29, 30 a 39 e 40 a 49 anos apresentaram maiores chances de sofrerem violência física por parceiros íntimos quando comparadas com mulheres com idade entre 10 a 19 anos. Em um estudo que analisou a tendência da violência física por parceiro íntimo no estado do Paraná, entre 2009 e 2012, o maior percentual de violência física foi nas mulheres com faixa etária entre 30 a 39 anos, e entre 2013 a 2016 foi entre 20 a 29 anos17.
Nas comunidades das etnias Guarani e Kaiowá, a modificação das relações sociais pode exercer influência na ocorrência da violência de gênero, dentre elas a VPI. Nessas etnias, as relações sociais são baseadas na unidade denominada “fogo doméstico”, controlado pelas mulheres, que possuem a importante função de manter a cultura tradicional. No entanto, houve uma realocação das atividades dos gêneros dentro dos fogos domésticos, que é observada quando as mulheres saem dos territórios para exercerem alguma atividade remunerada, ou quando consomem álcool de forma exagerada. Entre os homens esse processo de realocação é observado quando os mesmos também buscam o ambiente urbano para a realização de atividades remuneradas devido à dificuldade em realizar as atividades tradicionais de subsistência18. Essa modificação das relações sociais, que está sendo vivenciada pelas mulheres em idade fértil e economicamente ativa, pode contribuir para fragilizar as relações de gênero e aumentar a ocorrência de violência por parceiro íntimo, dentre elas a violência física.
Neste estudo, mulheres indígenas gestantes apresentaram menores chances de sofrerem violência física por parceiro íntimo quando comparadas com mulheres não gestantes. Durante o período gravídico, as mulheres aumentam a preocupação com o corpo e com a condução da gravidez, reduzindo a disponibilidade física e emocional, o que pode ocasionar o conflito de gênero19. Em uma coorte realizada com mulheres no período gravídico, na cidade de Recife em 2011, 40,7% das mulheres sofreram algum tipo de violência por parte de seus parceiros íntimos20. No estado do Maranhão, na cidade de São Luís, um estudo realizado com 971 gestantes demonstrou que 50,2% sofreram algum tipo de violência (física, sexual e/ou psicológica) perpetrada por seus parceiros íntimos, sendo a violência psicológica a mais prevalente, 49,2%21. Em um estudo realizado no Rio de Janeiro, com 526 puérperas, a violência física durante a gestação ocorreu principalmente em mulheres com menor escolaridade, que não trabalhavam fora do domicílio e com um menor número de consultas pré-natais22. Fatores que possivelmente podem contribuir para o fator protetor da gestação na violência física por parceiro íntimo são: maior sensibilidade da mulher no período gravídico, o risco de abortamento e a possibilidade de identificação da violência física pelo profissional de saúde durante a consulta de pré-natal.
O álcool é altamente consumido pelo público masculino, podendo ocasionar alterações no humor e potencialização da agressividade, gerando a violência de gênero e estando associado à ocorrência da VPI23. Um estudo realizado com 12.300 mulheres no Canadá evidenciou a associação entre o álcool e a VPI. Mulheres canadenses tinham a chance cinco vezes maior de sofrerem violência quando o parceiro consumia bebida alcoólica24. Em uma análise da violência entre parceiros íntimos e o consumo de álcool no Brasil, 44,6% dos homens consumiram bebida alcóolica durante o episódio de violência25.
Em se tratando de população indígena brasileira, o consumo de álcool nas terras indígenas é uma problemática e tem sua situação agravada devido à vulnerabilidade desses povos26. O consumo nos territórios e reservas indígenas, está associado à facilidade da entrada do álcool nas terras, tornando a bebida um bem de consumo acessível26. Em um estudo realizado com indígenas da etnia Karitiana, localizados no estado de Rondônia, indica que o contato com a população não indígena nessa etnia tem favorecido para o aumento do consumo de álcool na comunidade, principalmente durante as festividades27. O alcoolismo tem fragilizado a estrutura organizacional das comunidades indígenas, aumentando as prevalências de transtornos mentais, agressões físicas e a violência de gênero28.
No modelo multinível bivariado com as variáveis de características contextuais dos municípios, não houve associação com a ocorrência da violência física por parceiro íntimo, exceto a variável Índice de Gini. A violência possui relação com as características socioeconômicas dos municípios, pois o aumento da violência urbana está associado com a desigualdade social, desemprego, segregação urbana, cultura da masculinidade, tráfico de drogas, uso de álcool e outras drogas e a disponibilidade de armas de fogo29. A macrorregião de Dourados possui municípios na linha de fronteira com o Paraguai com altos índices de criminalidade e elevadas taxas de homicídios associados principalmente ao tráfico de drogas30. O resultado encontrado foi semelhante ao de um estudo realizado no município de São Paulo, em que através da análise multinível a VPI não esteve associada à taxa de homicídios masculinos da vizinhança em que a mulher está inserida31.
As desigualdades sociais são responsáveis pela retroalimentação da violência estrutural, pelo aumento do uso de álcool e drogas ilícitas e pelo aumento da violência contra mulheres32. O índice de Gini é um indicador que analisa a desigualdade e está associado à ocorrência da violência contra a mulher pois tendencialmente em sociedades mais desiguais, com maiores níveis de pobreza e fragilidade nas relações sociais, os índices de violência são maiores33. No presente estudo, mulheres que residem nos municípios com menores índices de desigualdades possuem maiores chances de sofrerem VPI, o que não corrobora com os achados de outros estudos. Em um estudo que analisou a tendência temporal de feminicídio por agressão entre os anos de 2002 a 2012 no Brasil, observou-se que nos estados com maior desigualdade a mortalidade por agressão foi maior34. A provável explicação para a associação do Índice de Gini com a ocorrência da violência física por parceiro íntimo encontrada neste estudo pode estar no contexto histórico da criação e localização das Reservas Indígenas da região sul do Mato Grosso do Sul. Mas outros estudos são necessários para investigar essa hipótese.
Na macrorregião de Dourados, a luta dos indígenas pelos territórios tradicionais tem gerado conflitos entre os fazendeiros, indígenas e forças policiais. Esses conflitos são mais intensos nos maiores municípios da região, com menores índices de desigualdade e que possuem as maiores populações indígenas confinadas em reservas35. A característica comum desses municípios é a criação de reservas para o confinamento dos indígenas36. É compreensível que os indígenas da região enfrentam um dilema organizacional, gerando um mal-estar social principalmente nas aldeias mais povoadas, apresentando altos índices de violência, delinquência e demais problemas sociais18. Portanto, esse cenário de conflito territorial, associado à alta densidade populacional e marginalização, principalmente nos maiores municípios da macrorregião de Dourados, contribui para a modificação das relações de gênero entre os indígenas e o aumento da violência física por parte dos parceiros íntimos.
Na análise do efeito aleatório dos municípios na ocorrência da violência física por parceiro íntimo, Dourados e Tacuru apresentaram um efeito aleatório negativo, tendo uma variação menor de violência física por parceiro íntimo, enquanto que Caarapó e Antônio João apresentaram um efeito aleatório positivo. Nesses municípios, a população indígena vive confinada em reservas, terras indígenas e áreas de retomada, essa última não reconhecida pelo estado. Mesmo com as iniquidades, devido aos determinantes sociais em que vivem os indígenas do município, o município de Dourados oferece um serviço de saúde especializado, que é referência para a macrorregião e uma rede de apoio em caso de violência. A Reserva Indígena de Dourados conta com dois Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), a Polícia Militar e a Polícia Civil, através da Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) realizam ações com as mulheres e lideranças com a finalidade de coibir a ocorrência de VPI na Reserva Indígena de Dourados, e o município disponibiliza cartilhas com a Lei Maria da Penha na língua materna indígena da região, com a finalidade de conscientizar a população sobre a violência contra mulheres37. Portanto, apesar da população indígena viver com uma alta densidade populacional e em condições de marginalização em alguns territórios, a presença do estado, realizando ações de acordo com as especificidades de cada território, é importante para prevenir e reduzir a ocorrência da violência contra a mulher indígena. Mas é preciso cautela nesta análise, pois a dificuldade em realizar a denúncia e a notificação de violência devido às questões de logística e interculturais, como a falta de tradutor nas unidades notificadoras, podem levar à subnotificação e à sensação de um baixo percentual de violência física em alguns municípios.
O presente estudo apresentou algumas limitações. Ao utilizar dados do SINAN, foram analisadas somente as mulheres que foram notificadas pelos serviços de saúde. Por se tratar de dados secundários, variáveis importantes para determinar a associação com a violência por VPI não foram analisadas devido à baixa completitude. Além disso, também não possível analisar as disparidades entre as etnias. A quantidade de notificações também foi um fator limitador. Devido à subnotificação e ao preenchimento incorreto da variável raça/cor, o número de casos pode ter sido maior, o que influência diretamente na análise multinível. Devido à diversidade étnica dos povos indígenas, os resultados deste estudo não poderão ser considerados para os povos de outras regiões.
Outra limitação do estudo foi o grupo de comparação utilizado, uma vez que mulheres vítimas de violência física foram comparadas com mulheres que sofreram outros tipos de violência. Essa comparação se deu, devido à utilização de um banco de dados secundários composto somente por casos de violência, e o grande percentual de violência física perpetrado pelos parceiros íntimos. No entanto, outros estudos que também utilizaram dados secundários, já realizaram a comparação entre dois grupos expostos a tipos e natureza de violência diferentes38.
. Este estudo possui relevância para a saúde público, pois identificou o perfil das mulheres vítimas de violência física por parceiro íntimo notificadas pelos serviços de saúde e a associação dessa violência com fatores contextuais. Além disso, o mesmo também servirá como base para a realização de estudos em outras populações.

CONCLUSÃO


A VPI na população indígena é um fenômeno complexo onde os aspectos históricos, culturais, sociais e econômicos precisam ser considerados. A modificação das relações tradicionais e o intenso contato com a população não indígena tem contribuído para a ocorrência de atos violentos dentro das terras e reservas indígenas. Este estudo demonstrou que na macrorregião de Dourados, a violência física por parceiro íntimo em mulheres indígenas ocorre em diferentes níveis da sociedade indígena da região.
Portanto é preciso realizar políticas públicas de conscientização e redução da VPI dentro e fora dos territórios indígenas, além de estabelecer uma rede de apoio para a vítima de violência, considerando as características culturais da população indígena. Também são necessárias ações que reafirmem a cultura tradicional e que regularizem as terras tradicionais, o que pode contribuir para a melhoria das relações sociais e redução da VPI nessa população.

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Freitas, GA, Marcon, GEB, Welch, JR, Silva, CMFP. DETERMINANTES DA VIOLÊNCIA FÍSICA PRATICADA POR PARCEIRO ÍNTIMO CONTRA MULHERES INDÍGENAS: UMA ANÁLISE MULTINÍVEL. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jun). [Citado em 22/06/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/determinantes-da-violencia-fisica-praticada-por-parceiro-intimo-contra-mulheres-indigenas-uma-analise-multinivel/19665

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