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Artigos

0343/2024 - Diferenças regionais na reorganização da Atenção Primária à Saúde no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil.

Autor:

• Ana Paula de Vechi Corrêa - Corrêa, A.P.V. - <paulavechi@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9098-3594

Coautor(es):

• Gustavo Diego Magno - Magno, G.D - <gusmagno@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3656-9170

• Rafaela Carla Piotto Rodrigues - Rodrigues, R.C.P - <rafapiotto@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8587-3115

• Rodrigo das Neves Cano - Cano, R.N - <rodrigo.neves@unesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-5570-8279

• Isabel María López Medina - Medina, I.M.L - <imlopez@ujaen.es>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3437-9229

• Carmen Alvarez Nieto - Nieto, C.A - <calvarez@ujaen.es>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0913-7893

• Sílvia Carla da Silva André Uehara - Uehara, S.C.S.A - <silviacarla@ufscar.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0236-5025



Resumo:

Estudo transversal analítico, realizado com 1134 gestores da APS dos municípios brasileiros, que objetivou analisar e comparar a reorganização da assistência oferecida pela Atenção Primária à Saúde (APS) nas diferentes regiões brasileiras, durante a fase crítica da pandemia de Covid-19. Os dados foram coletados por questionário autorrespondido no Google Forms, entre setembro de 2021 e setembro de 2022. O modelo de regressão de Poisson com efeito aleatório foi utilizado para estimar as razões de prevalência e adotou-se nível de significância de 5%. A readequação de estrutura física para o atendimento de Covid-19 foi 15% (IC: 0,76; 0,96) menor no Sudeste e 19% (IC: 0,69; 0,94) menor no Nordeste do que no Sul. O teleatendimento foi 23% (IC: 0,62; 0,96) menor no Norte do que no Sudeste e 25% (0,6; 0,95) menor no Norte do que Sul. Na região Nordeste, o encaminhamento de usuários com risco de agravamento da Covid-19 apresentou-se 6% (IC: 1; 1,13 e 1,02; 1,09) maior que as regiões Norte e Sul. Evidenciou-se que todas as regiões adotaram medidas para reorganizar a APS frente a pandemia, entretanto, de maneiras distintas, apontando a necessidade de uma abordagem mais abrangente e equitativa na gestão da saúde, especialmente em emergências sanitárias.

Palavras-chave:

Atenção Primária à Saúde; Covid-19; Iniquidades em saúde; Gestão em Saúde; Tecnologias da Informação e Comunicação.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19 emergiu como um desafio global, impondo uma pressão significativa sobre os sistemas de saúde em todo o mundo 1. Diante dessa crise sanitária, a Atenção Primária à Saúde (APS) desempenhou um papel essencial na resposta e no enfrentamento da pandemia. Nesse contexto, vale ressaltar que a APS é considerada a porta de entrada na Rede de Atenção à Saúde (RAS) e o primeiro nível de contato entre indivíduos e o sistema de saúde, assumindo um papel central na prevenção, detecção precoce, tratamento e gestão de doenças 2?, e foi fundamental para o controle da pandemia de Covid-19 e na mitigação de seus impactos sobre a saúde da população 3.
No entanto, a adequação da APS para enfrentar os desafios impostos pela pandemia de Covid-19 não se deu de forma igual nos diferentes sistemas de saúde. Cada país adotou medidas protetivas e protocolos para o enfrentamento da emergência sanitária 4,5?. Todavia, a crescente pressão sobre os recursos financeiros, a escassez de materiais de saúde, o afastamento de trabalhadores de saúde e a falta de leitos em hospitais, sobretudo em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), desafiaram os sistemas de saúde em todo o mundo 6. Neste contexto, países com sistemas públicos de saúde com maior orientação à APS tiveram maior eficiência na resposta à pandemia 7.
No Brasil, foi possível observar que cada estado, até mesmo os municípios, responderam de forma diferente às mudanças abruptas nas demandas de saúde na busca por reorganizar rapidamente os serviços para evitar o colapso da saúde pública 8. O período de emergência sanitária desencadeado pela Covid-19 foi caracterizado por uma desarticulação a nível nacional. Diante de um sistema de saúde descentralizado e da ausência de uma coordenação nacional, a cooperação entre os diferentes níveis de gestão tornou-se um desafio significativo, o que trouxe a necessidade de a gestão estadual coordenar as respostas direcionadas à ação da gestão municipal para garantir a eficiência e eficácia das medidas adotadas. Essa colaboração tornou-se imperativa para assegurar o fornecimento adequado de materiais, suprimentos, equipamentos de proteção individual, pessoal, capacitação e, inclusive, vacinas contra a Covid-19 9–11.
A análise dos planos de contingência da Covid-19 dos estados brasileiros evidencia que a forma pela qual os serviços de APS se organizaram e se reestruturaram para atender às necessidades direcionadas à pandemia impactou diretamente na morbimortalidade da doença, especialmente durante o período de emergência sanitária. Ressalta-se que a adoção de ações de vigilância em saúde com base na ciência evitou o recrudescimento da doença, ou seja, novos picos, especialmente em estados nos quais foram implementadas estratégias para potencializar os serviços da APS, direcionando as ações para a identificação precoce dos casos, notificação imediata, vigilância constante dos casos positivos e registro do desfecho dos casos 12.
A telemedicina foi uma das estratégias adotadas pelos serviços da APS em todo o mundo após o início da Covid-19, com ações como a criação de aplicativos e chamadas por vídeos ou telefone, facilitando o processo de consulta à distância e, assim, mantendo as medidas de isolamento social. Prescrições eletrônicas também foram utilizadas em vários países, como Albânia, Áustria, República Checa, Macedônia e Lituânia 13. Na França, Itália e Bélgica, os médicos, além da modalidade de teleatendimento, também realizavam a prescrição médica de forma remota 13–15.
Na Austrália, além da telemedicina, foram aplicados treinamentos online direcionados aos profissionais de saúde, além de divulgar as medidas de proteção para as comunidades mais distantes 16. Os centros de saúde primária (CSP) na Grécia, Islândia e Espanha realizaram testes para triagem da Covid-19 em locais específicos, de forma a evitar que os casos suspeitos se encontrassem com os demais usuários dos serviços. Nos Países Baixos e na Islândia, os serviços da APS fizeram escala com horários diferenciados para atendimento de pacientes com sintomas de Covid-19 11.
Entende-se que os países adotaram estratégias e ações diferenciadas e ao mesmo tempo similares no âmbito da APS para enfrentar a Covid-19, especialmente na fase inicial da pandemia, como os atendimentos por telemedicina, onde o paciente tem o amparo necessário, sem o risco de contaminação, apoio psicológico também à distância para o enfrentamento do medo e luto.
No entanto, os estudos não abordaram a reorganização da APS em um país de dimensão continental, como o Brasil, durante a fase de emergência sanitária. Nesse contexto, este estudo visa minimizar essa lacuna do conhecimento, apresentando como os serviços da APS foram reorganizados nas diferentes regiões brasileiras na fase mais crítica da pandemia, fazendo uma comparação regional. Deste modo, este estudo teve como objetivo analisar e comparar a reorganização da assistência oferecida pela Atenção Primária à Saúde à população nas diferentes regiões brasileiras, durante a fase crítica da pandemia de Covid-19.

MÉTODO
Trata-se de um estudo de corte transversal analítico, que foi realizado na APS do Brasil. A população-alvo foi composta por gestores municipais de serviços da APS dos municípios brasileiros que tiveram confirmado pelo menos um caso de Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, considerados os anos críticos da pandemia. Foi realizado um cálculo amostral, considerando um gestor por município, sendo utilizado erro relativo de 5,82%, assumindo uma prevalência de 50% e um coeficiente de confiança de 95%, a amostra foi definida em 1134 participantes.
Para participar da pesquisa foram definidos os seguintes critérios de inclusão: participante autorrelatar como ter sido gestor da APS de um município brasileiro por pelo menos 3 meses durante a pandemia de Covid-19, e como critérios de exclusão: responsáveis que durante o período da pandemia estavam de licença e/ou férias.
Os dados foram coletados por meio de um questionário autorrespondido pelos gestores de serviços da APS no Google Forms, no período de setembro de 2021 a setembro de 2022. Para a coleta de dados foi construído um questionário com base no Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (Covid-19) na Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde17. O instrumento de pesquisa incluiu as seguintes variáveis: identificação de caso suspeito de Síndrome Gripal e de Covid-19; medidas para evitar contágio nas unidades de saúde; estratificação da gravidade da Síndrome Gripal; manejo terapêutico e isolamento domiciliar de casos leves; diagnóstico precoce e encaminhamento a serviços de urgência/emergência ou hospitalares de casos graves; notificação imediata; monitoramento clínico; medidas de prevenção comunitária e apoio à vigilância ativa.
Para alcançar o público-alvo, a pesquisa foi divulgada no Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), que ressaltaram a importância da participação dos municípios e encaminharam o instrumento para as secretarias municipais de saúde; os apoiadores do COSEMS também colaboraram na divulgação da pesquisa junto aos Departamentos Regionais de Saúde.
Inicialmente, os dados foram descritos por meio de frequências absolutas e percentuais (variáveis qualitativas) e por meio de medidas como média, desvio-padrão, mínimo, mediana e máximo (variáveis quantitativas).
Para estimar as razões de prevalência comparando as regiões foi utilizado o modelo de regressão de Poisson com efeito aleatório 18. Todas as análises foram realizadas por meio do software SAS 9.4. Para todas as análises adotou-se um nível de significância de 5%. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Carlos, CAAE 52527521.8.0000.5504.

RESULTADOS
Participaram do estudo 1134 gestores oriundos de municípios de todo o país, destacando-se que 40,4% (458) eram da região Sudeste, 27,9% (316) da região Nordeste, 18,6% (211) da região Sul, 8,5% (97) da região Norte e 4,6% (52) da região Centro Oeste.
Nas comparações entre as regiões, quando realizadas entre as regiões Centro-Oeste, Norte e Sul, destaca-se que todos os participantes responderam que em seus municípios os serviços da APS foram adaptados para o enfrentamento da Covid-19; as estruturas físicas foram readequadas; protocolos específicos para Covid-19 foram implantados; os profissionais foram capacitados para o atendimento e manejo de casos suspeitos/diagnóstico de Covid-19; profissionais do grupo de risco foram realocados para home office; os casos suspeitos de Covid-19 eram notificados em até 24 horas; usuários com risco de agravamentos foram encaminhados e implantação de teleatendimento, entretanto, nenhuma das comparações apresentou resultados estatisticamente significantes (Tabela 1).
Já o acompanhamento por telefone dos usuários considerados de risco a cada 24 horas apresentou-se 19% (IC: 1,02; 1,39) mais prevalente nos serviços de saúde da APS da região Centro-Oeste do que na região Norte. Fato semelhante foi encontrado no acompanhamento dos usuários com síndrome gripal via telefone a cada 48 horas, que foi 21% (IC: 1,02; 1,44) mais prevalente nos serviços da APS da região Centro-Oeste do que na região Norte (Tabela 1).
Na comparação entre as regiões Centro Oeste versus Sudeste quanto à adaptação dos serviços da APS para o enfrentamento da Covid-19; implantação de protocolos específicos para Covid-19; realização de capacitação dos profissionais para manejo dos casos; realocação para home-office dos profissionais considerados do grupo de risco; notificação dos casos suspeitos de Covid-19 em até 24 horas; uso de teleatendimento; acompanhamento por telefone dos usuários considerados de risco a cada 24 horas e com síndrome gripal a cada 48 horas não apresentaram diferença estatística; entretanto, todos os participantes afirmaram ter realizado tais readequações (Tabela 1).
Entre as regiões Sudeste e Sul foi evidenciado uma prevalência 15% (IC: 0,76; 0,96) menor nos serviços da APS da região Sudeste quanto as readequações na estrutura física das unidades de saúde para o atendimento a casos suspeitos e confirmados de Covid-19. Já o encaminhamento de usuários com risco de agravamento da Covid-19 foi 4% (IC: 1; 1,08) mais prevalente na região Sudeste do que na Sul (Tabela 1).

Tab.1

Nas comparações entre as regiões Nordeste, Norte, Sudeste e Sul a adequação da estrutura física dos serviços da APS para atendimento dos casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 foi 19% (IC: 0,69; 0,94) menos prevalente na região Nordeste quando comparada com a Sul. Já a realocação dos profissionais de saúde considerados de risco para o desenvolvimento da forma grave de Covid-19 para home office foi 8% (IC: 1,03; 1,14) mais prevalente nos serviços da APS da região Nordeste do que da região Sudeste e 7% (IC: 1; 1,14) mais prevalente na região Nordeste quando comparado com a região Sul (Tabela 2).
Na região Nordeste, o encaminhamento de usuários com risco de agravamento da Covid-19 para outros pontos da RAS apresentou-se mais prevalente em todas as comparações; sendo 6% (IC: 1; 1,13 e 1,02; 1,09) mais prevalente do que as regiões Norte e Sul e 2% (IC: 1; 1,03) mais prevalente do que no Sudeste (Tabela 2).
Entre os serviços da APS das regiões Norte, Sudeste e Sul não houve diferença estatística nas variáveis relacionadas à organização das unidades de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19, implantação de protocolos específicos; capacitação profissional; realocação de profissionais de risco para home office; notificação dos casos; encaminhamento de usuários com risco de agravamento da Covid-19 para outros pontos da RAS; acompanhamento por telefone dos usuários considerados de risco a cada 24 horas e com sídrome gripal a cada 48 horas, entretanto, todos os participantes responderam que adotaram tais medidas nos respectivos serviços de saúde (Tabela 2).
Para a utilização de tecnologias da informação para o teleatendimento em atendimentos pré-clínicos, diagnósticos, acompanhamento dos casos e consultas apresentou uma prevalência 23% (IC: 0,62; 0,96) menor nos serviços da APS da região Norte do que Sudeste e 25% (0,6; 0,95) menor no Norte do que Sul (Tabela 2).

Tab.2

DISCUSSÃO
A reorganização dos serviços da APS para o enfrentamento da emergência sanitária imposta pela Covid-19 foi realizada em todos os municípios brasileiros analisados neste estudo, entretanto, com direcionamentos e focos diferentes, a depender da disponibilidade dos equipamentos e serviços dispostos na RAS de cada localidade. Enquanto algumas regiões estão mais avançadas na utilização de tecnologias da informação e comunicação em saúde (TICS), outras estavam mais avançadas na readequação da estrutura física das unidades de saúde.
Durante a fase crítica da pandemia, a região Sul foi considerada a que mais realizou readequações nos serviços da APS. Isso pode refletir desafios logísticos e de gestão enfrentados por cada região na adaptação rápida e eficaz de suas instalações de saúde para lidar com a demanda gerada pela pandemia. Além disso, é necessário considerar que as readequações na região Sul podem ter sido pequenas diante de uma maior quantidade de Unidades Básicas de Saúde (UBS) que já possuíam infraestrutura regular.
Segundo estudo realizado com uma amostra de 5.543 municípios do Brasil pré-pandemia, as regiões Sul e Centro-Oeste apresentaram as melhores condições gerais de infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS), enquanto a região Norte apresentou piores condições 19. Também foi verificado que municípios de menor porte populacional têm maiores gastos per capita com recursos próprios na APS, no entanto, possuem menores gastos federais totais per capita. Portanto, regiões mais populosas e com maiores aglomerações urbanas dependem mais de repasses de recursos federais para adequações da APS, enquanto os municípios menos populosos dependem mais de recursos próprios para adequações às suas necessidades específicas, e que a região Sul apresentava previamente à pandemia melhores condições de infraestrutura em unidades da APS.
A constatação de que a adequação da estrutura física para o atendimento da Covid-19 é significativamente menor na região Nordeste em comparação com a Sul também pode estar relacionada às diferenças na adoção de políticas de saúde locais que impactam na priorização de investimentos na infraestrutura de saúde ou em ações de cuidado e prevenção. Em um estudo realizado no período pré-pandêmico, se constatou que as regiões Sul e Sudeste aplicaram mais verbas em saúde per capita que as demais, além de dispor de mais leitos hospitalares e de realizar mais internações hospitalares e atendimentos ambulatoriais per capita 20.
Também, foi verificado que as regiões com maior IDH disponibilizavam maiores recursos na saúde pública, no entanto, as regiões com menor IDH possuíam maior cobertura da ESF, com destaque para as regiões Norte e Nordeste 20. Assim, a região Nordeste, diante de recursos mais limitados em comparação à região Sul, pode ter priorizado investimentos na ESF para ações diretas de enfrentamento à Covid-19, como a busca ativa e o monitoramento de casos suspeitos e confirmados de infectados realizado por profissionais da APS, sobretudo os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) 21. Além disso, evidências associam a cobertura de ESF com menores coeficientes de mortalidade por Covid-19, pelas ações das equipes de ESF e pelas ações dos ACS no território com visitas domiciliares e busca ativa, sobretudo em territórios com grande vulnerabilidade socioeconômica 22.
A região Nordeste também apresentou uma maior prevalência de encaminhamento de usuários com risco de agravamento da Covid-19 para outros pontos da RAS. Esse achado pode ser explicado justamente pela maior cobertura de ESF nessa região, desta forma há mais equipes e profissionais de saúde realizando o acompanhamento dos usuários no território atendido pelas ESF. No caso específico da Covid-19, os profissionais das unidades de saúde deveriam realizar o monitoramento dos casos suspeitos e confirmados e realizar o encaminhamento para outro nível de assistência de pessoas com risco de agravamento da doença, considerando a disponibilidade de vagas na RAS 17. Entende-se que o monitoramento rigoroso e a capacitação da equipe foram elementos essenciais para garantir os encaminhamentos necessários e no momento adequado, uma vez que encaminhamentos desnecessários sobrecarregariam os outros níveis de assistência, tornando o sistema de saúde pouco resolutivo 23.
Constatou-se também disparidades significativas na resposta da APS à pandemia de Covid-19 em relação ao acompanhamento remoto por telefone de usuários de risco e com síndrome gripal, sendo maior o acompanhamento na região Centro-Oeste em comparação com a região Norte. Esses achados são corroborados por outro estudo realizado sobre o uso de TICS em unidades de saúde do Brasil durante a pandemia, em que se notou maior monitoramento remoto de pacientes por unidades com acesso à internet na região Centro-Oeste do que na Norte 24.
Também se observou uma menor prevalência de utilização de TICS para o teleatendimento na região Norte em comparação com a região Nordeste. Estudo supracitado mostrou que as regiões Nordeste e Centro-Oeste implementaram a teleconsulta em uma maior frequência do que a região Norte 24. Além disso, a região Nordeste teve maior realocação dos profissionais de saúde considerados de risco para home office, o que pode ser uma estratégia eficaz para proteger os trabalhadores e garantir a continuidade dos serviços de saúde durante a pandemia fazendo uso de TICS.
Apesar da região Norte utilizar com uma menor frequência as TICS em comparação com a região Nordeste, possui em suas unidades de saúde um maior acesso a computador, internet e uso de prontuário eletrônico do que a região Nordeste 24. Vale ressaltar, que no período pré-pandêmico, a região Sul era a que mais utilizava TICS, enquanto a região Norte a que menos fazia uso devido às questões relacionadas infraestrutura e conectividade. Portanto, estes estudos sinalizam para a necessidade de maior disponibilidade de recursos para a adequação da infraestrutura e acesso à internet, além dos equipamentos eletrônicos e softwares adequados, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste 25, com vistas a qualificar e otimizar a assistência nos serviços de saúde da APS.
O uso de TICS para o atendimento à distância propiciam uma abordagem preventiva, monitoramento, discussão de casos com profissionais em outras regiões e realização de intervenções necessárias mais precocemente, além de disponibilizar acesso mais rápido a diagnósticos e tratamentos 26. Salienta-se que o atendimento à distância no período crítico da pandemia contribuiu para evitar o deslocamento e o contato social desnecessário, possibilitando direcionar casos suspeitos e confirmados de Covid-19 para o atendimento por telemedicina 27, além de ofertar assistência médica a pacientes em locais distantes e de difícil acesso a serviços de saúde 28. Não obstante, se faz notória a tendência da aplicação de TICS seguir em uso na APS, de maneira complementar às outras ações e estratégias já consolidadas 29,30.
A partir dos achados deste estudo é possível apontar para a importância de investimentos em infraestrutura e implementação de TICS para fortalecer a capacidade de resposta da APS em regiões menos desenvolvidas do país, garantindo acesso equitativo aos serviços de saúde durante os serviços de rotina e de emergências sanitárias. Porém, também foi verificado neste estudo que regiões com menor acesso a computador e internet fizeram mais uso de acompanhamento remoto e teleconsulta que outras regiões com maior acesso a computador e internet. Portanto, infere-se que o não uso de TICS também está atrelado à tomada de decisão dos gestores locais, ressaltando-se, assim, a importância da capacitação dos gestores e profissionais de saúde.
Nesse contexto, se ressalta a importância da APS como a principal porta de entrada do usuário no sistema de saúde, dotada da capacidade de detectar e monitorar os casos de Covid-19. Para tanto, destaca-se a necessidade de uma articulação efetiva entre a vigilância epidemiológica e a APS dos municípios, visando identificar precocemente os casos e estabelecer medidas para conter a disseminação da doença 31. Além da necessidade de reorganização da APS para atender à elevada demanda imposta pela pandemia, é fundamental que esses serviços mantenham seus atendimentos de rotina sem interromper o cuidado preventivo e o acompanhamento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão arterial 32. Desta forma, muitas regiões adotaram atendimentos remotos por meio do uso de TICS, como o teleatendimento, além do uso dessas tecnologias para o compartilhamento de conhecimento, experiências e discussão de casos entre profissionais da saúde 33,34.
As disparidades regionais identificadas pelos resultados destacam a necessidade de uma abordagem mais abrangente e equitativa na gestão da saúde, especialmente em emergências sanitárias, com maior disposição de recursos estaduais e federais para as regiões com menor desenvolvimento, e a aplicação destes recursos observando as particularidades de cada região e implementando estratégias adaptadas às suas necessidades específicas.
Diante dos achados desta pesquisa, é evidente que a reorganização dos serviços da APS para enfrentar a emergência sanitária imposta pela Covid-19 foi realizada em todos os municípios brasileiros analisados, embora com direcionamentos e focos diferentes, de acordo com a disponibilidade dos equipamentos e recursos dispostos na RAS de cada localidade.
É interessante notar que as diferentes regiões apresentaram abordagens distintas em relação à reorganização dos serviços da APS. Enquanto algumas regiões, como a Sul, demonstraram uma maior prevalência na readequação da estrutura física das unidades de saúde, outras, como a Nordeste, destacaram-se no teleatendimento e a região Centro-Oeste se destacou com o acompanhamento remoto de usuários de risco e com síndrome gripal. Essas diferenças podem refletir desafios logísticos e de gestão específicos enfrentados por cada região, bem como diferentes prioridades e recursos disponíveis para lidar com a fase crítica da pandemia.
Este estudo apresenta limitações relacionadas à coleta de dados por meio de formulário autorrespondido, podendo introduzir viés de resposta devido a interpretação inadequada da pergunta e superestimação ou subestimação de dados relatados por parte dos participantes. Entretanto, as limitações não impactaram na qualidade dos resultados que evidenciaram a complexidade da resposta da APS à pandemia de Covid-19 no Brasil e a necessidade de abordagens adaptadas às realidades específicas de cada região. É essencial que os gestores de saúde considerem as iniquidades regionais na implementação de políticas e estratégias de saúde pública, garantindo acesso equitativo aos serviços de saúde e uma resposta eficaz frente uma emergência sanitária.
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Processo 402507/2020-7).

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Corrêa, A.P.V., Magno, G.D, Rodrigues, R.C.P, Cano, R.N, Medina, I.M.L, Nieto, C.A, Uehara, S.C.S.A. Diferenças regionais na reorganização da Atenção Primária à Saúde no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil.. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Out). [Citado em 11/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/diferencas-regionais-na-reorganizacao-da-atencao-primaria-a-saude-no-contexto-da-pandemia-de-covid19-no-brasil/19391?id=19391&id=19391

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