As abordagens qualitativas na Revista Ciência & Saúde Coletiva (1996-2020)
As abordagens qualitativas na Revista Ciência & Saúde Coletiva (1996-2020)
Romeu Gomes1 2
http://orcid.org/0000-0003-3100-8091
Suely Ferreira Deslandes1
http://orcid.org/0000-0002-7062-3604
Martha Cristina Nunes Moreira1
http://orcid.org/0000-0002-7199-3797
1 Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fiocruz. Av. Rui Barbosa 716, Flamengo. 22250-020 Rio de Janeiro RJ Brasil. romeugo@gmail.com
2Hospital Sírio-Libanês. São Paulo SP Brasil.
Objetiva-se analisar os artigos qualitativos, publicados no período de existência da revista “Ciência & Saúde Coletiva” (1996 até março de 2020), levando em conta temas, ancoragens teórico-conceituais, métodos e técnicas. Trata-se de um estudo bibliográfico, baseado nos princípios da análise categorial, dialogando com aspectos das Ciências Sociais. Como resultados, destaca-se que: o acervo abrange uma variedade de temas, sendo as violências a mais recorrente e, enquanto que, entretanto, temas como raça/etnia estão ausentes do acervo; 53% das publicações utilizaram referências das Ciências Sociais, sendo Bourdieu o autor mais citado; a maioria dos artigos (77%) apresenta informações metodológicas, predominando a perspectiva de Bardin. O acervo com abordagens qualitativas é modesto, com menos de 10% das publicações. Conclui-se, todavia, que o acervo traz significativa contribuição para a Saúde Coletiva porque: (a) estabelece conexões com diferentes áreas da clínica; (b) reconhece a voz dos atores, transformando-os em protagonistas; (c) colabora com a dimensão epidemiológica para compreender contextos de saúde; (d) subsidia a tomada de decisão nos âmbitos das políticas, do planejamento e da gestão da saúde; e (e) desvenda as dimensões simbólicas dos processos de saúde-doença-cuidado.
Palavras-chave: Artigo qualitativo; Periódico; Ciência & Saúde Coletiva
This study aims to analyze the qualitative papers published in the 25-year existence of the Journal Ciência & Saúde Coletiva (from 1996 to March 2020), taking into account themes, theoretical-conceptual anchors, methods, and techniques. This is a bibliographic study based on the principles of categorical analysis, dialoguing with the aspects of Social Sciences. We highlight the following outcomes. The collection spans over a variety of themes, and violence is the most recurrent topic. However, themes such as race/ethnicity are absent from the collection; 53% of the publications used Social Sciences references, and Bourdieu was the most cited author. Most papers (77%) show methodological information, under a predominantly Bardin’s perspective. The collection with qualitative approaches is modest, with less than 10% of publications. We conclude, however, that the collection makes a significant contribution to Public Health because: (a) it establishes connections with different clinical areas; (b) it recognizes the voice of the actors, turning them into leading figures; (c) it collaborates with the epidemiological dimension to understand health contexts; (d) it subsidizes decision-making in health policies, planning and management; and (e) it unveils the symbolic dimensions of health-disease-care processes.
Key words: Qualitative paper; Journal; Ciência & Saúde Coletiva
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Para Denzin e Lincoln1, as décadas de 1920 e 1930 são marcos históricos da pesquisa qualitativa, representados pelos trabalhos da sociologia da “escola de Chicago” e estudos antropológicos, dentre eles os de Franz Boas, Margareth Mead, Evans-Pritchard e Bronislaw Malinowski. Dentre as conclusões dos autores acerca do breve histórico por eles esboçado, uma delas se destaca: “A classe, a raça, o gênero e a etnicidade influenciam o processo de investigação, fazendo da pesquisa um processo multicultural”1, indicando a inserção do pesquisador em marcos sociais que definem posicionamentos no processo analítico da pesquisa.
Apesar de as denominadas abordagens qualitativas de pesquisa terem suas origens nas disciplinas das ciências sociais, hoje estão presentes em vários campos, com leque variado de referências teórico-metodológicas com conflitos e tensões internas. O que dá um certo sentido de identidade às abordagens qualitativas é o reconhecimento que se constituem enquanto um conjunto de práticas materiais e interpretativas que exploram em profundidade os significados das ações sociais1. Assim, o elo histórico de alinhamento comum é o paradigma compreensivista em sua premissa básica de que a análise se dá pela interpretação da ação social a partir dos significados atribuídos pelos seus agentes (instituições, grupos, indivíduos, movimentos sociais) inseridos numa rede de significados culturais num dado contexto histórico1,2.
No entanto, como Strauss e Corbin3 observam a expressão “pesquisa qualitativa” foi adquirindo diferentes apropriações e significados para pesquisadores. Segundo eles, para alguns, os dados oriundos de entrevistas e observações podem ser reunidos e codificados de forma a serem estatisticamente analisados, configurando-se em dados qualitativos quantificados - o que nos leva ao questionamento da redução do estatuto epistêmico do “qualitativo” em questão. Os autores entendem que a análise qualitativa possui uma natureza epistêmica própria, ancorada no “processo não matemático de interpretação, feito com o objetivo de descobrir conceitos e relações nos dados brutos e de organizar esses conceitos e relações em um esquema exploratório teórico”3.
Há décadas que a pesquisa qualitativa vem sendo utilizada na área da saúde. Uma das implicações de suas contribuições para essa área é muito bem apresentada por Minayo:
Apesar dos inegáveis avanços, às vezes revolucionários, o campo da medicina e da saúde não se constitui apenas como um conjunto de tecnologias para prever, prevenir e curar enfermidades. Ele é também constituído como uma prática social fundada na cultura. É nela que esse setor, que impulsiona a ciência e move a economia, estabelece suas bases para dar esperanças às pessoas na recuperação de sua saúde e no melhoramento e no aperfeiçoamento do seu corpo e de sua mente4.
No sentido de situar o escopo do presente trabalho, nos remetemos às três dimensões da pesquisa qualitativa apresentados por Strauss e Corbin3: (1) dados oriundos de várias fontes; (2) procedimentos utilizados para a organização e a interpretação dos dados e (3) relatórios escritos e verbais, podendo ser apresentados por meio de artigos, livros e palestras. É numa das dimensões desse terceiro componente que se situa o nosso trabalho. Em outras palavras, é na textualização das pesquisas qualitativas apresentadas na revista Ciência & Saúde Coletiva (C&SC) que incide o nosso objeto de discussão. Consideramos que esse acervo publicado é significativo para a área da saúde em geral, seja em termos de disseminação e impacto. Chegando aos seus 25 anos, C&SC está indexada em 22 bases de dados nacionais e internacionais de acesso aberto, e disponível na sua web (www.cienciaesaudecoletiva.com.br), bem como nas redes sociais (Facebook, Twitter e Instagram). Em 2019, manteve sua posição de liderança no Google Scholar como o periódico brasileiro mais citado de todas as áreas do conhecimento do país e, pela primeira vez, seu fator de impacto na Web of Science atingiu mais de um ponto, chegando a 1.008! Ainda em 2019, recebeu o prêmio internacional “Research Excellence Awards Brazil”, concedido pelo Web of Science Group, pertencente à Editora Clarivate Analytics e foi contemplada na categoria “Prêmio SciELO Citation Index”5.
A partir dessas considerações iniciais, objetivamos analisar os artigos qualitativos, publicados no período de existência da revista C&SC, (1996 até março de 2020), levando em conta temas, ancoragens teórico-conceituais, métodos e técnicas. Acreditamos que analisar esse acervo nos permite construir uma caracterização, ainda que parcial, da produção nacional das pesquisas qualitativas no campo da Saúde Coletiva, bem como analisar o papel que essa vertente ocupou no escopo da produção da Revista Ciência & Saúde Coletiva ao longo de sua existência.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo bibliográfico acerca do acervo de publicações da revista C&SC sobre o objeto deste trabalho.
Para triagem dos artigos qualitativos na C&SC, pesquisou-se no site do periódico todo o conteúdo publicado entre 1996 e março de 2020. A seleção incluiu artigos-debate, artigo de temas livre, opiniões e revisão da literatura. Foram excluídos editoriais, comentários (relativos aos artigos de debate), cartas ao editor e resenhas.
Foram lidos todos os resumos dos trabalhos que se enquadravam nos tipos de publicações adotadas para este estudo. Para a seleção do acervo a ser analisado, foram levados em conta os trabalhos que tivessem - no título, no resumo ou nas palavras-chave - as seguintes expressões “artigo qualitativo”, “pesquisa qualitativa”, “metodologia qualitativa”, “abordagem qualitativa”, “análise qualitativa”, “estudo qualitativo” e “desenho qualitativo”. Os artigos que eram apresentados em seu resumo como “quali-quantitativo” não foram selecionados. Ao definir tais chaves de busca, acabamos por não capturar os artigos que não usaram tais termos e que optaram por descrever diretamente seu método específico, como nas etnografias, análises narrativas, análises de discurso etc.
O tratamento dado aos artigos selecionados, num primeiro momento, ancorou-se no princípio geral da análise categorial, que “funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos”6. Em seguida, ampliou-se a discussão, tendo como base conceitos da pesquisa qualitativa e o diálogo com alguns teóricos das Ciências Sociais.
Caracterização geral do acervo consultado
A partir da leitura dos resumos dos 5.033 trabalhos, publicados na Revista no período de 1996 a março de 2020, foram identificados 555 artigos, com base nos critérios de inclusão utilizados. Após a leitura desses textos na integra, foram retirados seis, uma vez que eram trabalhos quanti-qualitativos. Assim, 429 artigos constituem o acervo do presente estudo, representando apenas 8,5% de todas as publicações da Revista no mencionado período. Não se pode afirmar que os textos exclusivamente qualitativos se resumem a essa quantidade. Possivelmente, muitos artigos não foram incluídos neste estudo porque, em seus resumos, não constavam as expressões utilizadas na busca.
A curva dos percentuais dos artigos qualitativos identificados em relação ao conjunto das publicações por cada ano é irregular (Gráfico 1). A primeira constatação é que os artigos selecionados só surgem no sexto ano da C&SC. O período de 2008 a 2013 evidencia a maior participação dos artigos de filiação qualitativa no conjunto de publicações da revista e a partir de 2017 um franco declínio. A diminuição desse percentual pode-se se dar pelo aumento de rigor de análise editorial, levando ao aumento das taxas de recusa, ou mesmo por artigos terem migrado de uma definição geral do desenho de pesquisa como de “pesquisa qualitativa” para métodos particulares das Ciências Sociais.
Gráfico 1 Distribuição percentual de artigos qualitativos por ano.
Temas
Os artigos abrangem uma variedade de temas (Tabela 1). Aqui, destacamos os que ocupam as dez primeiras posições.
Tabela 1 Distribuição absoluta dos temas pelos artigos, 1996-2020.
Temas | N | Posição |
---|---|---|
Violências contra crianças, adolescentes, mulheres, idosos e autoinfligidas Atenção primária/Atenção básica de saúde Trabalho e Saúde Representações e práticas sobre o processo saúde e doença Alimentação/Nutrição Saúde bucal Saúde mental Deficiências Modelos de cuidados de crianças, adolescentes e adulto Saúde, gênero e sexualidade Pesquisa qualitativa - reflexões teórico-metodológicas Gravidez-aborto-planejamento familiar HIV e Aids Drogas Envelhecimento/Saúde do idosos |
33 32 29 26 26 24 21 21 20 19 19 19 15 14 14 |
1 2 3 4 4 5 6 6 7 8 8 8 9 10 10 |
Entre os dez temas mais citados no acervo analisado, as violências foram as que mais se destacaram no conjunto das produções, correspondendo a 77,3% da totalidade dos artigos. Nesse grupo, as violências contra as mulheres tiveram presença mais destacada e as autoinflingidas foram as que apresentaram o menor número de artigos, sendo principalmente com foco nos suicídios e tentativas cometidas por idosos. Tal predominância parece indicar a fundamental importância das metodologias qualitativas que possibilitam a escuta e o reconhecimento das experiências para esse conjunto de fenômenos que constitui um dos principais problemas de saúde pública do país.
O segundo grupo abarca as designações originais de atenção primária e básica. São textos que refletem especialmente a organização das equipes, a ação matricial, a ação intersetorial e a atuação dos agentes comunitários.
As relações entre trabalho e saúde constituem um tema clássico na Saúde Coletiva. Aqui incluiu desde trabalhos sobre as condições de trabalho e suas repercussões para a saúde física e mental dos trabalhadores de diferentes setores produtivos, as representações sobre trabalho, concepções de risco laboral, trabalho em equipe, saúde mental de trabalhadores até as identidades profissionais.
O conjunto de textos que abordam a ampla temática das representações e práticas em torno do processo saúde-doença é variado em seus objetos, abarcando as experiências de dor, do adoecimento crônico, os saberes e as terapias populares, as vivências de luto, as representações sobre morte, sobre cuidados paliativos. Na realidade, o acervo abarca mais as experiências da doença e dos cuidados do que da saúde, bem-viver, ou equivalentes.
A temática da alimentação/nutrição sob visada qualitativa aparece mais recentemente no conjunto de publicações da revista (a partir de 2010). Sua participação foi também marcante no acervo, tratando os sentidos e as práticas da alimentação escolar, do cuidado nutricional das grávidas, dos pacientes hospitalizados, das crianças e das lactentes, assim como as intervenções nutricionais. Poucos textos analisam sob a visada qualitativa a publicidade de alimentos e a questão da obesidade.
O tema da Saúde bucal congrega artigos que versaram sobre cárie, perda dentária, percepção da saúde oral entre pessoas de diversas faixas etárias, concepções e expectativas dos pacientes sobre a atenção odontológica, entre outros.
A saúde mental é outro tema histórico na produção em Saúde Coletiva, sendo recorrente o emprego de metodologias qualitativas nesse campo. Os cuidados profissionais a pessoas com transtornos, debates sobre a reforma psiquiátrica, construção de redes de apoio, linhas terapêuticas e a experiência da atenção à saúde mental nas redes de atenção primária foram destaque.
As deficiências também emergem como um tema de atenção das abordagens qualitativas na revista desde 2006, versando sobre a qualidade de vida das pessoas com deficiências, os cuidados parentais e as implicações para estresse familiar, redes de proteção, itinerários terapêuticos, bem como inclui artigos sobre doenças genéticas raras.
A temática dos modelos e cuidados é outro tema que faz parte dos temas históricos, caro às abordagens das ciências sociais e humanidades. Nesse grupo estão os artigos que tratam da hospitalização infantil, da relação médico-paciente, da gestão da clínica e da atenção à população de rua.
O tema saúde, gênero e sexualidade teve a perspectiva predominante da abordagem sobre as masculinidades. Os artigos publicados trataram questões como a dominação masculina, iniciação e saúde sexual de homens, uso de serviços de saúde por homens, saúde masculina, sentidos atribuídos à Política Nacional de Assistência Integral à Saúde do Homem. Tratou também da contracepção juvenil, da busca e atendimento por serviços de saúde a travestis e pessoas trans, abordou temas sobre identidade sexual e sadomasoquismo.
As reflexões sobre as abordagens qualitativas, suas questões epistemológicas e éticas, o seu emprego em diversos campos disciplinares e o ensino desses métodos foram temas de destaque nas publicações do acervo.
O atendimento à gravidez, a experiência da gravidez após ter vivido mortes perinatais, do aborto, as concepções sobre o atendimento à saúde das mulheres, sobre planejamento familiar, o atendimento à gestante adolescente, gestantes com morbidades, foram os aspectos mais retratados.
A temática de viver com HIV-Aids também marca um lugar importante do acervo analisado. Aspectos da sexualidade de pessoas vivendo com HIV, experiências no uso dos antirretrovirais, o cuidado de crianças soropositivas, itinerários terapêuticos e atuação das ONGs.
A temática das drogas foi tratada abordando as perspectivas de consumo, prevenção ao uso, modelos de atendimento e representações sociais sobre o uso e os usuários.
O tema do envelhecimento e da saúde dos idosos abordou as questões da convivência com a dor e da perda das funcionalidades, o cuidado familiar e institucional, as dinâmicas geracionais, o papel da religiosidade face às perdas de capacidades funcionais e a rede de apoio.
Por fim, cabe exercitar a análise dos temas que ganharam pouco ou nenhum espaço nessa produção. Nos chama atenção, por exemplo, nesse acervo, a quase completa ausência do tema cor/raça/etnia nas relações com a saúde. Esse crucial marcador estrutural das relações sociais e das desigualdades no país pode até ter comparecido de forma transversal aos estudos, mas não constituiu um tema central. Apenas oito trabalhos abordaram questões relativas aos povos indígenas e nenhum artigo trouxe as questões de saúde-doença da população negra ao foco do debate. Da mesma forma não percebemos nenhum investimento no tema do ambiente, em suas múltiplas relações com os povos, governos e sociedades (somente um trabalho explorou a contaminação ambiental). A reflexão de uma “sociologia das ausências”, como nos ensina Boaventura de Sousa Santos7 nos faz pensar nos aprendizados provenientes das diversas vivências sociais que não foram contempladas, apontando um enorme desperdício da experiência. Seria a ausência dos temas um reflexo também da ausência, por exemplo, de pesquisadores e pesquisadoras negros e negras das cenas públicas de pesquisa? Talvez ainda invisibilizados e precarizados, submetidos ao universo das iniquidades que eles próprios discutem nas relações sociais? Como bem nos lembra Boaventura no texto acima, ao operar como uma razão metonímica, onde o todo engole as partes, a ciência moderna ilumina o homem (adulto, branco, educado, heterossexual etc.) e apaga, torna ausentes aqueles que denunciam essa ordem hegemônica. Também nos provoca a pensar como a conformação de um temário é construído num campo científico, como determinados objetos e temas passam a traduzir os interesses dos agentes institucionais que vão aos poucos desenhando uma concepção da realidade e do que realmente “interessa” de ser estudado8.
Teorias
As referências teóricas das Ciências Sociais (CS) só estiveram presentes em 53% dos artigos analisados. Nos outros 47% não havia referências das CS e os autores e trabalhos foram empregados apenas para situar o tema tratado ou para definir um “estado da arte” do problema, sua magnitude e relevância.
Vale discutir essa proporção, onde em quase 50% dos artigos se encontram ausentes as referências teóricas de CS, à luz da análise de Bosi9. A autora identifica como um diagnóstico para essa ausência, o fato de haver um “emprego intercambiável entre método, técnica e análise”9, quase como sinônimos o que reforça a falta de clareza nas referências que sustentam teoricamente as produções. Nesse sentido, a centralidade se dá na técnica empregada, sem o necessário fundamento epistemológico. Deslandes e Iriart10 vão ao encontro desse diagnóstico quando, ao recuperarem as produções de três revistas da área de saúde coletiva, identificam que um total de 124 artigos (46,6%) definem claramente sua filiação a um referencial teórico-metodológico. Os autores destacam que reside uma grande variedade de perspectivas teórico-metodológicas acionadas por diferentes disciplinas no campo das Ciências Sociais e Humanas. E a outra proporção de artigos, convoca teorias de médio alcance relacionadas a objetos específicos, estando ausentes as entradas analíticas nos universos simbólicos que se propõem analisar as teorias de suporte.
Daqueles trabalhos que apresentaram uma ancoragem teórica no campo da CS, os autores “clássicos” são pouco mencionados. Karl Marx constituiu a base teórica de apenas seis artigos, assim como Emile Durkheim (especialmente citado por sua categorização das representações socais e de sua obra “O Suicídio”). Max Weber compôs o marco teórico de apenas um artigo.
Dos autores contemporâneos, Pierre Bourdieu foi o mais citado (17 citações). O sociólogo francês foi invocado, especialmente pelas categorias de “dominação masculina” e “poder simbólico” e pelo conceito de “habitus”.
Michel Foucault foi o segundo autor mais citado como base teórica dos artigos qualitativos estudados. Genealogia e biopoder foram as referências teóricas acionadas pelos autores. A obra História da sexualidade foi citada especialmente entre os estudos de gênero.
Os autores da Antropologia que trabalharam os modelos terapêuticos a partir de uma visada transcultural, tais como Arthur Kleinnman, Cecil Helman, Luc Boltanski, Byron Good também foram constantes. Dentre os autores clássicos, apenas Marcel Mauss constituiu a base teórica de seis artigos.
Cabe ressaltar que essa interface entre Antropologia e Saúde é um dos destaques da análise de Knauth e Leal11. As autoras ao analisarem a expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva apontam que predomina um ponto de vista temático e não teórico-metodológico na área de Antropologia da Saúde, onde podemos localizar Arthur Kleinnman, Cecil Helman, Byron Good. Ou seja, o centro é o objeto saúde, e adicionaríamos o polo contrastivo doença/enfermidade. A necessidade de desconstruir um olhar eminentemente epidemiológico ou biomédico sobre saúde e doença faz com que os pesquisadores acionem redes de parcerias e diálogos com perspectivas que possibilitam iluminar esse objeto e “desmedicalizá-lo”. Mas, diferentemente de Luc Boltansky, que é um sociólogo, e Byron Good, que é um antropólogo, Arthur Kleinnman e Cecil Helman são médicos que vão à antropologia para enfrentar os problemas surgidos na prática clínica e na formação de alunos de medicina.
Ainda acionando Knauth e Leal11 destacamos:
A Sociologia e, particularmente, a Antropologia da Saúde, sempre tiveram um status um tanto marginal dentro das Ciências Sociais por lidarem com temas tidos como menos sociológicos e, talvez, mais “naturais” (como o corpo e a doença), mas, sobretudo, por estabelecerem um diálogo mais próximo com outras disciplinas (Medicina, Enfermagem, Epidemiologia, Educação Física), e, ainda, por terem uma maior preocupação com a aplicação do conhecimento acadêmico (o que, muitas vezes, é visto como uma forma de corrupção do conhecimento sociológico, contrariando o modelo clássico das Ciências Sociais, basicamente teórico e pouco aplicado).
O interacionismo simbólico, representado por Erving Goffman através de sua categoria de estigma também pode ser elencado como referência significativa. Nunes12 destaca a importância de Goffman para a área de Sociologia da Saúde, estabelecendo o diálogo entre saúde, doença e medicina, ainda que o autor não se tenha nomeado sociólogo da saúde. A retomada de Goffman no Brasil demonstra uma tendência de valorizar as microanálises, especialmente a partir do final da década de 1960 na aproximação entre antropólogos e a área psi, valorizando o cotidiano, as relações interpessoais, no foco socioantropológico, com preocupação interdisciplinar.
Os autores que constituem as referências das Teorias das representações sociais (Serge Moscovici, Denise Jodelet e Claudine Herzlich) constituem outro bloco das referências mais constantes. Com relação a esse aspecto, Deslandes e Iriart10 referem a imprecisão que o uso dessa categoria “representações sociais” acaba por refletir, um emprego diversificado das definições e perspectivas epistemológicas e metodológicas distintas. Pode-se refletir como essa imprecisão anuncia um paradoxo: recorrer as mesmas como uma moeda simbólica, um fator para atribuir reconhecimento aos artigos, mas sem aprofundamento, e com imprecisões, frente à tradição das CS. Esse paradoxo pode revelar a busca de atribuição de valor aos artigos no campo qualitativo, como um “selo” na interlocução com as ciências sociais na saúde coletiva. Knauth e Leal11 reafirmam residir na utilização de categorias das ciências sociais, especialmente a de representações sociais, bem como de gênero, uma estratégia de fortalecimento do diálogo com a Sociologia e a Antropologia, ainda que superficialmente elaborada no acervo que analisam.
Métodos e técnicas dos textos
A grande maioria dos 429 artigos analisados aporta informações sobre referências metodológicos, perfazendo um conjunto de 331 (77%) textos. Com base em Boudieu et al.13, pode-se considerar positivo que percentual tão alto apresente seus princípios metodológicos - conseguindo ir além da visualização de uma soma de técnicas ou de conceitos deslocados de sua utilização na produção de seus achados. Além disso, ainda baseando-se nos mencionados autores, a exposição de método pode indicar ao leitor quais foram os princípios de vigilância epistemológica seguidos para a produção do conhecimento.
Os aspectos metodológicos dos artigos foram considerados não só a partir dos princípios ou caminhos adotados nas pesquisas que originaram os textos, mas também nas bases teórico-metodológicos empregadas para o tratamento analítico das informações. A partir desse olhar, observa-se um amplo espectro metodológico, que não se limita aos métodos consagrados da pesquisa qualitativa, tais como: estudo de caso, etnografia e pesquisa-ação (Tabela 2), que representam 6,6%, 2,4% e 0,6% do acervo, respectivamente.
Tabela 2 Distribuição absoluta e percentual dos métodos por publicações.
Métodos | N | % |
---|---|---|
Análise de Conteúdo | 148 | 44,7 |
Análise Hermenêutica/Hermenêutica-Dialética/Interpretação de Sentidos | 33 | 9,9 |
Análise de Discurso | 28 | 8,4 |
Estudo de Caso | 22 | 6,6 |
Teoria Fundamentada em Dados | 20 | 6 |
Estudo Bibliográfico/Revisão da Literatura | 19 | 5,7 |
Discurso do Sujeito Coletivo | 16 | 5 |
Etnografia | 8 | 2,4 |
Pesquisa Avaliativa | 7 | 2,1 |
Estudo de Narrativa | 6 | 2 |
História de Vida/História Oral | 5 | 1,5 |
Metodologia de Signos, Significados e Ação (Bibeau) | 3 | 0,9 |
Ensaio | 3 | 0,9 |
Pesquisa-Ação | 2 | 0,6 |
Análise de Redes Sociais | 1 | 0,3 |
Análise Institucional | 1 | 0,3 |
Autópsia Psicológica | 1 | 0,3 |
Cartografia (Deleuze e Guatarri) | 1 | 0,3 |
Círculo Cultural (Paulo Freire) | 1 | 0,3 |
Mapas Afetivos | 1 | 0,3 |
Mapa de Risco | 1 | 0,3 |
Netnografia | 1 | 0,3 |
Pesquisa de Intervenção | 1 | 0,3 |
Teoria do Núcleo Central (Abric) | 1 | 0,3 |
Triangulação | 1 | 0,3 |
Total | 331 | 100 |
No conjunto das opções metodológicas, duas delas se destacam. A primeira, de longe, é a Análise de Conteúdo, representando 44,7% desse conjunto. Alguns dos trabalhos qualificam-na com a expressão “temática”, enquanto outros não a adjetivam, esquecendo que essa estratégia analítica é entendida como um conjunto de técnicas, como observa Bardin6, autora-referência para este assunto em questão. Em outras palavras, há várias modalidades de análise de conteúdo que não são utilizadas. Apenas um artigo menciona que utilizou a análise de conteúdo de enunciação. A mencionada autora é citada nos trabalhos, mas em geral esse procedimento aparece, tendo como referências manuais de pesquisa, principalmente o de Minayo14. Ainda sobre essa estratégia analítica, interessante observar que a sua origem, na segunda década do século passado, inicialmente, teve a influência do Behaviorismo, para dar um tratamento quantitativo para notícias da imprensa norte-americana. Com o passar dos anos, foi tendo outras influências teórico-metodológicas e utilizada ou adaptada independentemente do objeto de pesquisa e da ancoragem teórica adotada, tornando-se um “instrumento polimorfo e polifuncional”6. Por isso, consegue se manter por quase um século - principalmente em sua modalidade temática - como uma estratégia de análise de dados, no âmbito das pesquisas qualitativas em vários campos disciplinares. Essa sobrevida é vista nos trabalhos da C&SC há mais de duas décadas.
Dialogando com Deslandes e Iriart10 cabe destacar na análise dos autores que os artigos ao referirem nos “procedimentos de análise” predominantemente assentados na análise de conteúdo, de vertente temática, os mesmos não informam como foi conduzida a interpretação dos dados. Segundo os autores, um uso instrumental das técnicas de produção dos dados pode ser reconhecido como “um empirismo ateórico”. No acervo analisado pelos autores predomina a análise de conteúdo temática, entretanto, sem o esclarecimento e a mobilização das categorias utilizadas na abordagem do universo simbólico. Os autores identificam análises onde as falas dos sujeitos entrevistados não são discutidas, problematizadas à luz das práticas e dos contextos socioculturais de onde falam. Nessa análise acionam a crítica bourdieusiana de um conhecimento que se produz a partir de uma “ilusão de transparência”.
A segunda estratégia metodológica mais frequente, representando 9,9% do acervo analisado, é composta por um conjunto de abordagens que se ancora na concepção hermenêutica (principalmente a de Ricoeur), na dialética (com destaque para Habermas) e no debate estabelecido entre Gadamer (hermenêutico) e Habermas (em suas ideias dialéticas), apresentada na obra de Habermas, sob a denominação “Dialética e Hermenêutica”15. Inspirada nessa obra, Minayo14,16 traduziu metodologicamente a junção dessas duas perspectivas, sob a denominação de “hermenêutica-dialética”. O Método de Interpretação de Sentidos17,18, além de se basear nos princípios metodológicos hermenêutico-dialéticos de Minayo, busca outras vertentes da hermenêutica e da dialética, bem como utiliza o marco teórico-conceitual da interpretação baseado na antropologia. A face operacional desse método inspira-se na análise de conteúdo temática proposta por Bardin, autora já mencionada. Cabe ainda uma observação acerca dessa categoria ampla de análise que a hermenêutica de Ricoeur também está presente - como um dos marcos teóricos - em alguns artigos que utilizaram o Estudo das Narrativas.
Além dessas duas opções metodológicas mais frequentes no acervo estudado, há algumas observações importantes: (a) a participação significativa de vertentes teóricas da sociologia e da antropologia no embasamento de vários métodos; (b) a presença da psicologia em geral como base para a análise de pesquisas; e (c) o surgimento de postagens e material virtuais em geral como fontes de métodos de análise nos últimos números da C&SC.
Dos 429 artigos, 98 (23%) não apresentam o método utilizado. Faz-se necessário observar que expressões que adjetivaram a pesquisa qualitativa como “descritiva”, “analítica” e “transversal” não foram consideradas como método. Isso ocorreu, principalmente, porque não havia uma exposição de princípios, diretrizes e trajetórias percorridas que qualificassem tais expressões. Uma das possíveis explicações para a ausência de exposição de método para esses casos se deve ao fato de tais expressões serem clássicas nos desenhos do método epidemiológico ou nos manuais de metodologia científica, como se fossem um conhecimento já dado no âmbito dos profissionais de saúde.
Entre os 98 artigos já mencionados, há 13 (13%) que não se esperava que neles fossem apresentado método, uma vez que eram artigos-opinião, artigos-debate ou discussões teórica-metodológicas.
Em relação à não explicitação de método, cabem - pelo menos - duas possíveis interpretações. A primeira se refere à ideia de entender a abordagem qualitativa como um modelo padronizado de pesquisa. Rebatendo essa concepção, observa-se que tal abordagem não possui teoria ou paradigma, método ou prática e técnicas que possam ser reivindicados como exclusivos para si1.
Outra explicação se refere ao fato da possível redução do método a técnicas. Nesse sentido, é comum - na seção de metodologia - após anunciar que se trata de uma pesquisa qualitativa, anunciar com destaque as técnicas utilizadas no estudo. Com essa redução pode-se ter uma exposição metodológica incompleta. Uma metodologia - que apresenta método e técnicas - consegue não só expor o processo investigativo percorrido, como também explicitar a lógica utilizada para se chegar à produção dos resultados. Nesse sentido, as técnicas - ainda que se conectem a métodos, como estes se conectam a teorias - afiguram-se apenas na instância dos procedimentos para coletar as informações e transformá-las em dados relacionados à problemática da pesquisa19.
Entretanto, essa redução de método a técnicas não predomina no conjunto do acervo, como vimos, 77% dos artigos apresentam uma exposição de método. Além disso, se considerarmos os últimos anos das publicações da C&SC, tal redução é exceção. Isso se sustenta, uma vez que dos 139 trabalhos publicados, no período de janeiro de 2015 a março de 2020, 91% apresentam seus métodos, sem reduzi-los a técnicas.
Dos 429 artigos revisados, retirando-se 54 (13%) discussões/opiniões, 375 (87%) artigos apresentam uma ampla variedade de técnicas de pesquisas nas seções de metodologia (Tabela 3). A entrevista, principalmente a do tipo semiestruturada, é a grande protagonista no conjunto das técnicas. Se forem somadas as várias modalidades dessa técnica, ela está presente em mais da metade dos artigos consultados, representando 57% desse conjunto. Há artigos (5%) que não especificam a modalidade dessa técnica. Além disso, ela aparece como coadjuvante junto com outras técnicas em 22,8% dos artigos. Considerando o seu protagonismo e o seu papel coadjuvante, observa-se que 79,8% dos 412 artigos analisados utilizaram a entrevista como técnica de coleta de dados.
Tabela 3 Distribuição absoluta e proporcional de técnicas por publicações.
Técnica | N | % |
---|---|---|
Entrevista semiestruturada | 138 | 34 |
Entrevistas e Observações | 46 | 11 |
Grupo Focal/Discussões em Grupo | 36 | 9 |
Entrevistas aberta/em profundidade/narrativa/história oral | 32 | 8 |
Entrevista | 21 | 5 |
Entrevistas e Discussão de Grupo/Grupo Focal | 14 | 3 |
Entrevistas e Compilação de documentos | 13 | 3 |
Observação/Observação de Campo/Observação Participante | 12 | 3 |
Entrevistas, Observações e Compilação de documentos | 11 | 3 |
Questionário/Questionário semiestruturado | 9 | 2 |
Entrevista, Observação e Grupo Focal | 4 | 1 |
Entrevista e Questionário | 3 | 0,7 |
Compilação em postagens na internet | 3 | 0,7 |
Círculo hermenêutico-dialético | 2 | 0,5 |
Compilação de vídeos | 2 | 0,5 |
Entrevista, Gravação de vídeo e Compilação de documentos | 2 | 0,5 |
Entrevista, Observação, Compilação de documentos e Grupo Focal | 2 | 0,5 |
Entrevista e Escala | 2 | 0,5 |
Relato de experiência | 2 | 0,5 |
Experiência de ambientação e aculturação | 1 | 0,2 |
Observação e Círculo de Cultura | 1 | 0,2 |
Observação e Filmagem | 1 | 0,2 |
Grupo Focal e Compilação de documentos | 1 | 0,2 |
Grupo Focal, Observação e Compilação de documentos | 1 | 0,2 |
Grupo Focal e Escala | 1 | 0,2 |
Círculo hermenêutico e Observação | 1 | 0,2 |
Compilação de documentos e Diário Cartográfico | 1 | 0,2 |
Compilação a imagens | 1 | 0,2 |
Oficina | 1 | 0,2 |
Entrevista e avaliação psicológica | 1 | 0,2 |
Entrevista e redações |
Fonte: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232020001204703&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt