Pioneirismo do SUS com a participação de Paulo Freire
Pioneirismo do SUS com a participação de Paulo Freire
Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Este texto traz ao leitor duas contribuições fundamentais: um momento precursor do SUS com sua riqueza de experiências e reflexões e a presença de Paulo Freire num setor em que, mais que nunca, intersecciona condições de vida, trabalho com saúde, mostrando que, grande parte dos adoecimentos se deve mais a fatores sociais do que biológicos ou a ambos entrelaçados (Campos, 2018).
Em comemoração ao centenário de nascimento de Paulo Freire, a Faculdade de Educação e a Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (Unicamp) mobilizaram professores, estudantes e pesquisadores para lembrar a passagem do educador pela instituição. Um dos eventos mais importantes dessa celebração foi a mesa redonda intitulada Paulo Freire e a saúde coletiva: o caso de Paulínia (SP), ocorrida remotamente em 26/11/2021, que tratou da intervenção desse educador num serviço de saúde. Por sua importância, ela é relatada na edição temática 29.6.2024 da Ciência & Saúde Coletiva no artigo Uma experiência precursora do SUS com a participação de Paulo Freire (Mazza et al., 2024).
A consciência sobre liberdades democráticas e direitos humanos cerceada nos anos 1970, pavimentaram iniciativas históricas como foram as redes municipais de Unidades Básicas e os Centros de Saúde-Escola (CSEP). Aqui se fala de um caso do CSEP de Paulínia. Paulínia é um município do estado de São Paulo, com cerca de 107 mil habitantes, faz parte da região metropolitana de Campinas e é conhecida por seu elevado grau de desenvolvimento industrial.
Nas palavras de Nelson Rodrigues dos Santos “trabalhávamos no CSEP de Paulínia, uma das sementes do que hoje está constitucionalmente disposto na construção de atenção universal, integral e equitativa à saúde, simultaneamente prevenindo e curando”. A ditadura fechou o CSEP em 1975, como se colocasse uma pata de animal sobre ele. Mas ele foi reaberto em 1980 e a partir daí contou com a presença de Paulo Freire até 1991, na orientação educativa dos comportamentos e das ações.
No tempo tenebroso da ditadura, Paulo Freire teve que se exilar. Só que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Vivendo na Europa, tornou-se universalmente reconhecido e viajou o mundo, espalhando a semente da “pedagogia do oprimido” e da “educação para a liberdade” (Freire, 1996; Pino, 2021). De volta ao país, depois da chamada “abertura política”, o reitor da Unicamp, reconhecendo sua contribuição nacional e internacional, o convidou para assessorar o setor de extensão universitária, acompanhando vários programas, com foco no desenvolvimento das pessoas e das comunidades. Foram muito beneficiados os estudantes de Medicina e Enfermagem que passaram a estagiar no CSEP de Paulínia, que retomou suas atividades em 1980.
A retomada do CSEP foi liderada pelo Prof. Nelson, já citado, que fala com entusiasmo de seu trabalho:
As salas de espera do ambulatório ficaram pequenas para tantos pacientes. (…). Essa demanda excessiva no CSEP nos fez perguntar se reproduziríamos os ambulatórios mais tradicionais que tinham excesso de pacientes e dificuldades para promover diagnósticos precoces que pudessem evitar sofrimento e custo. Começamos a fazer diferente: a visitar as empresas locais. Havia duas fazendas enormes onde habitava e trabalhava grande parte da população. Além disso, Paulínia é polo petrolífero, com dezenas de indústrias químicas em torno da refinaria e indústrias satélites, e milhares de empregados que moravam ali ou em cidades vizinhas. Nós nos perguntávamos sobre as causas das doenças que a população apresentava e se elas tinham a ver com a insalubridade do trabalho. Por exemplo: havia uma grande empresa que era também terminal de uma estrada de ferro e de caminhões que transportavam cereais com toneladas de grãos de milho, soja, feijão que chegavam diariamente para serem guardados e redistribuídos. Aí estavam trabalhadores braçais. Começamos com alguns residentes e um docente fazendo visitas a esses locais. Montamos um pequeno ambulatório em cada uma das empresas, para atendimento semanal. Por exemplo, numa fazenda constatamos que o maior problema de saúde era o alcoolismo. E nos perguntávamos: que respostas há para trabalhadores rurais alcoólatras que vêm ao consultório com vários sintomas em órgãos do corpo afetados pelo alcoolismo? Houve o caso de um trabalhador jovem de uma pedreira, trazido com urgência do trabalho para o CSEP com sintomas de crise hipertensiva. Visitamos a pedreira. Não era possível comprovar as causas daquela hipertensão, mas levantamos a hipótese de uma forte tensão psíquica ocasionada pelos explosivos utilizados para transformar a pedra em blocos de granito. Havia 18 trabalhadores lá. Tomamos a pressão arterial de todos, apenas um apresentava pressão normal. Descobrimos um passado de acidentes traumáticos e um óbito como resultado das explosões, e quase todos os trabalhadores não tinham carteira de trabalho assinada. Montamos um pequeno consultório local para visitas semanais e controle de pressão e incentivo à empresa para que adotasse medidas preventivas em suas operações.
São muitos os exemplos de articulação das condições de vida, de trabalho e impactos na saúde descobertos pelo grupo do CSEP de Campinas citados no artigo. Dois conceitos foram desenvolvidos no aprendizado da experiência: o de “diagnóstico precoce” e o de “ambulatório circulante”. Sobre eles, vale o leitor ouvir o médico coordenador e narrador das atividades, corroborado por um médico residente da época que enaltece o enriquecimento da experiência.
Tais iniciativas eram objeto de conversas com Paulo Freire no CSEP. Ele se impressionava com os relatos e com a forma como os trabalhadores conversavam e assumiam consciência sobre o adoecimento, enquanto contavam sua história e de sua família. Paulo Freire fazia questão de conversar com funcionários e usuários e delicadamente colaborava com todos. “Uma educação progressista, dizia ele, coloca mais ênfase na potencialidade humana de interagir e constituir coletivamente o seu entorno. Portanto, a superação insiste na abertura para a interação coletiva”.