Suicídio de mulheres no Brasil: necessária discussão sob a perspectiva de gênero
O suicídio é considerado o ato humano de infligir a morte a si mesmo, de maneira deliberada e consciente do desfecho fatal1. Constitui-se em um dos mais antigos temas relacionados à forma como os indivíduos são afetados pelas sociedades e coletividades nas quais vivem, e a concepção deste tema muda de acordo com o tempo histórico. Na antiguidade, em determinadas civilizações como a Maia e Grega, era um ato permitido; na perspectiva religiosa era condenável, especialmente a partir do século XVIII nas religiões de origem judaico-cristãs. Com o advento da modernidade, no século XIX, este evento passou a ser visto como fenômeno social, a partir dos estudos de Émile Durkheim; na pós-modernidade, consolidou-se uma visão do suicídio como agravo à saúde, causado por múltiplos fatores, dentre eles, questões psicológicas, sociais, econômicas, biológicas, políticas, filosóficas, históricas e culturais2,3.
Na atualidade, o comportamento suicida é classificado em fatal (o suicídio consumado) e não fatal, que se manifesta sob a forma de ideação e tentativa suicida. Na ideação, há pensamentos de morte autoprovocada que podem se tornar mais graves quando acompanhados de um plano para fazê-lo. A tentativa de suicídio envolve atos intencionais que podem chegar ou não à morte autoinfligida, e constitui importante fator de risco para o suicídio consumado3.
Para a Organização Mundial da Saúde, o suicídio configura-se como importante e grave problema de saúde pública; estima-se que seja a causa de óbito de 703.000 pessoas anualmente no mundo4, representando taxa global média de nove óbitos por 100.000 habitantes. A maior carga desse agravo à saúde (77% de todos os óbitos) é observada em países de baixa e média renda, com maiores taxas de mortalidade entre os homens, com exceção de Sri Lanka, El Salvador, Cuba, Equador e China, que apresentam taxas mais altas entre mulheres ou equivalentes de suicídio entre homens e mulheres5.
No Brasil, os coeficientes de suicídios masculinos foram 3,8 vezes maiores do que os femininos (10,7 óbitos por 100 mil homens e 2,9 óbitos por 100 mil mulheres), no período de 2010 a 2019, resultados semelhantes aos observados na maioria dos países do mundo6. No entanto, é importante destacar que, no Brasil, a tendência temporal dos suicídios femininos apresentou-se ascendente em variadas faixas etárias estudadas (15 a ~60 anos), no período de 1997 a 20157. na maioria dos estados da região Nordeste, no recorte histórico de 1996 a 20188.
Além da tendência crescente de óbitos por suicídio em mulheres, é importante mencionar o “paradoxo do suicídio”, conceito utilizado para denominar o fato de que homens morrem mais por suicídio, enquanto as mulheres apresentam mais ideação e tentativas, e, portanto, são mais afetadas pelo comportamento suicida no geral9,10. Neste sentido, 68% das 338,569 notificações de tentativas de suicídios no Brasil, no período de 2010 a 2018, ocorreram em mulheres11.
A constância nos dados permite deduzir que estas diferenças na expressão do fenômeno do suicídio entre homens e mulheres não se deve ao acaso, tampouco parecem decorrentes apenas de particularidades biológicas. Ao contrário, as diferenças se relacionam com a construção social dos papéis de gênero na sociedade patriarcal, que promove assimetrias nas relações de poder e resulta na subordinação e opressão das mulheres pelos homens12,13. Nessa ótica, evidencia-se a necessidade de explorar esse fenômeno sob a égide do gênero, tendo em vista que diferenças e desigualdades determinam o modo de vida das pessoas e, também podem influenciar no surgimento do comportamento suicida.
A importância de discutir o suicídio sob essa perspectiva reside, sobretudo, na urgência de visibilizar temática historicamente estigmatizada. Esta discussão está pautada no entendimento de que gênero extrapola o conceito de sexo (masculino, feminino), adotado na epidemiologia. A noção de gênero em voga considera que as diferenças entre os sujeitos são produzidas pela cultura, configurando, assim, um conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em realizações da vida humana e assimetrias de poder entre homens e mulheres14.
Este texto, de cunho ensaístico, busca colaborar de maneira teórica e reflexiva sobre a temática do suicídio de mulheres, já que há escassez na literatura (inter)nacional de estudos que a abordem de maneira robusta9,15,16. Logo, objetiva-se discutir o suicídio de mulheres no Brasil sob a perspectiva de gênero.
Para isso, este texto está organizado da seguinte forma: (1) apresentação de modelos explicativos para o suicídio de mulheres; (2) discussão sobre as desigualdades de gênero que pautam o sofrimento psíquico e o comportamento suicida em mulheres; (3) considerações sobre o suicídio de mulheres e a interseccionalidade.
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