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Artigos

0221/2024 - A Política de Controle do Tabaco no Brasil de 2016 a 2022: continuidades, retrocessos e desafios
Tobacco Control Policy in Brazil2016 to 2022: continuities, setbacks and challenges

Autor:

• Leonardo Henriques Portes - Portes, L. H. - <leonardo.portes@ppc.uerj.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2421-8891

Coautor(es):

• Mariana Coutinho Marques de Pinho - Pinho, M. C. M. - <mariana.pinho@actbr.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8372-9272

• Cristiani Vieira Machado - Machado, C. V. - <cristiani.machado@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9577-0301

• Vera Luiza da Costa e Silva - Silva, V. L. C. - <vera.silva@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5608-7497

• Silvana Rubano Barretto Turci - Turci, S. R. B. - <srubano@ensp.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0811-9252

• Cristiane Almeida Pires Tourinho - Tourinho, C. A. P. - <cristiane.tourinho@ppc.uerj.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2757-1690



Resumo:

O tabagismo persiste como um importante problema de saúde pública. O Brasil é considerado uma referência internacional, com ações de controle do tabaco implementadas há quatro décadas. Este estudo busca realizar um balanço da Política Nacional de Controle do Tabaco de 2016 a 2022 por meio de natureza predominantemente qualitativa com contribuições da economia política e análise de políticas públicas. No período, o Brasil manteve as bases da Política e o seu reconhecimento internacional. Porém, observou-se a fragilização da sua coordenação governamental a partir de um contexto político desfavorável marcadamente neoliberal. Para o enfrentamento das adversidades, ressalte-se a institucionalidade da Política e a resistência de atores governamentais e não governamentais comprometidos com o controle do tabaco no país. O fortalecimento das políticas de controle do tabaco é fundamental para proteger a saúde da população e promover um estilo de vida mais saudável.

Palavras-chave:

Programa Nacional de Controle do Tabagismo; Tabaco; Políticas públicas de saúde.

Abstract:

Smoking persists as an important public health problem. Brazil is considered an international reference, with tobacco control actions implemented four decades ago. This study seeks to carry out an assessment of the National Tobacco Control Policy from 2016 to 2022 through a predominantly qualitative nature with contributions from political economy and public policy analysis. During this period, Brazil maintained the bases of the Policy and its international recognition. However, the weakening of its governmental coordination was observed due to an unfavorable political context that was markedly neoliberal. To face adversities, the institutionality of the Policy and the resistance of governmental and non-governmental actors committed to tobacco control in the country should be highlighted. Strengthening tobacco control policies is essential to protect the population's health and promote a healthier lifestyle.

Keywords:

National Tobacco Control Program; Tobacco; Public health policy

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
O tabagismo persiste como um importante problema de saúde pública. No mundo existem mais de 1,3 bilhão de fumantes e estima-se que o tabagismo esteja relacionado a 8 milhões de mortes por ano, configurando-se como a principal causa de mortalidade prematura globalmente1.
São preocupantes também o elevado custo econômico anual do tabagismo, correspondente a 1,8% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial2, e os danos ambientais relacionados ao tabaco, envolvendo a contaminação do solo, incêndios e o desmatamento3. Dados do Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária (IECS) de 2020 mostram que no Brasil o tabagismo custou cerca de R$ 125 bilhões/ano, o que corresponde a 23% do que foi gasto com a pandemia da Covid-19 neste mesmo ano (R$ 524 bilhões)4. O valor que o governo arrecada por meio de impostos relacionados a produtos do tabaco cobriria apenas 10% dos custos totais causados pelo tabagismo ao sistema de saúde5.
O poder das evidências científicas, o protagonismo de diversas lideranças e a imposição de limites à indústria do tabaco (IT) têm sido fundamentais para a redução do tabagismo globalmente6. A partir dos anos 2000, constata-se a expansão de políticas públicas que buscam reduzir o impacto negativo do tabagismo em vários países7.
A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco – CQCT8,tratado em vigor desde 2005, representa a negociação de uma legislação internacional de caráter vinculante baseada nas prerrogativas constitucionais da Organização Mundial da Saúde - OMS9. O seu sucesso depende da capacidade dos países em garantir a implementação de políticas eficazes de redução de oferta e de demanda do tabaco, incluindo mecanismos de coordenação da política10.
O Brasil é considerado uma referência internacional, com ações de controle do tabaco implementadas há quatro décadas. A partir da implementação das primeiras medidas regulatórias, como as advertências sanitárias nos maços dos cigarros, até a adoção de políticas mais abrangentes, como a proibição de fumar em locais públicos fechados e a implementação de uma política tributária progressiva, o Brasil tem mostrado comprometimento em reduzir a prevalência do tabagismo. A conscientização sobre os danos à saúde associados ao tabaco tem sido impulsionada por campanhas educacionais que contribuíram para uma mudança cultural em relação ao consumo de produtos derivados do tabaco11.
O país foi uma das lideranças nas negociações da CQCT e apresenta um modelo de gestão interministerial responsável pela articulação da Política Nacional de Controle do Tabaco - PNCT. A comissão criada em 1999 para subsidiar as negociações do tratado12 tornou-se, em 2003, a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco - Conicq. Além de coordenar o cumprimento das obrigações previstas na CQCT pelo país, a Conicq é responsável por assessorar o governo brasileiro nos espaços promovidos pela Convenção, como as sessões da Conferência das Partes (COP)13. Juntamente com outros atores, como pesquisadores, decisores políticos e sociedade civil, a Conicq tem sido fundamental para o avanço do controle do tabaco no país14 e considerada internacionalmente como uma experiência bem-sucedida de governança do controle do tabaco15.
Adicionalmente, a participação da sociedade civil é essencial para a configuração das políticas de controle do tabaco no Brasil e o alcance dos objetivos da Convenção. Destaque-se a relevância da Associação para o Controle do Tabagismo, Promoção da Saúde e dos Direitos Humanos - ACT Promoção da Saúde, que foi criada em 2006 com foco no controle do tabagismo e, a partir de 2013, passou a incorporar a defesa de políticas públicas voltadas à alimentação saudável, à prática da atividade física e ao controle do álcool16. Desde 2016, representantes de organizações governamentais, não governamentais, acadêmicos, ativistas e defensores da causa se reúnem periodicamente para planejar e articular ações por meio do grupo Parceiros do Controle do Tabaco, coordenados pela ACT Promoção da Saúde.
O Brasil apresentou avanços importantes no controle do tabagismo, favorecidos pelas políticas nacionais e pelo modelo de governança intersetorial e participativo adotado, bem como pela mobilização de numerosos atores sociais, mesmo em face das dificuldades e interesses de mercado contrários à regulação dos produtos de tabaco11,14.
A partir de 2013 houve mudanças importantes na conjuntura do país, com um movimento de forte desorganização da economia e do Estado e a ruptura entre eleições, representação e política pública17. Observou-se sinais do encerramento do ciclo político de conciliação de classes no Brasil, marcados pela desintegração da base governista no Congresso Nacional e a adoção de um ajuste fiscal18. Ressalte-se o impedimento da presidenta Dilma Rousseff e a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/2016 (EC 95) em 201619, que previu o congelamento por duas décadas dos recursos públicos destinados para despesas primárias, incluindo a saúde. Em 2018, após a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república, observa-se a radicalização do projeto neoliberal implantado pelo presidente Michel Temer, com repercussões para a saúde. No âmbito da Atenção Primária à Saúde, por exemplo, retiraram-se os incentivos para custeio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e flexibilizou-se a composição de equipes de saúde, suprimindo a obrigatoriedade de presença dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Por fim, a pandemia da Covid-19 agravou as crises econômica, social e política no Brasil. Também ocorreram restrições à participação social e retrocessos em várias áreas da política setorial20.
Nesse sentido, cabe analisar se e como as mudanças na conjuntura nacional repercutiram na PNCT, que até então vinha apresentando uma trajetória de avanços positivos. Este estudo busca realizar um balanço da PNCT de 2016 a 2022, com destaque para a governança da política e as ações desenvolvidas no período.
MÉTODOS
O estudo baseou-se em contribuições dos referenciais da economia política21 e da análise de políticas públicas22 com destaque para o institucionalismo histórico23,24e apresentou natureza predominantemente qualitativa.
Foram definidos dois eixos de análise: o primeiro, de governança e atores políticos, consistiu na descrição da formação, composição e estrutura da Conicq e na análise da participação, posições e relações dos membros da Comissão com atores internos e externos. Também foi analisado o conteúdo dos debates e a habilidade desta Comissão em implementar suas proposições.
No segundo eixo, de medidas políticas, buscou-se analisar as principais ações da PNCT no período do estudo, destacando os avanços e retrocessos observados, tendo como base estudo anterior de balanço de 30 anos da Política14.
Realizou-se uma revisão bibliográfica narrativa de artigos com consulta nas bases de dados Pubmed e Scielo (Brasil e Saúde Pública), a partir da combinação entre descritores referentes ao tabaco (“tobacco”, “smoking” e “nicotine”) e às políticas de saúde (“policy”, “health policy”, “public health policy”, “smoke-free policy”). Também se realizou uma análise documental de leis, normas e publicações disponibilizadas pela mídia.
Apesar do estudo apresentar como foco o período de 2016 a 2022, foram consultadas as listas de presença e atas das reuniões da Conicq no período entre a sua criação e última reunião realizada (2003 a 2021), já que não foram realizadas reuniões da Conicq em 2022. Para essa análise adotou-se o recorte temporal com períodos de duração semelhantes, envolvendo o período inicial da Conicq (2003-2009), um período de desenvolvimento (2010 -2015) e um período mais recente (2016-2021). A análise da frequência dos atores e temas seguiu o modelo de um trabalho prévio com a mesma temática25. Ressalta-se que os temas abordados nas reuniões guardam relação com as discussões e encaminhamentos observados nas reuniões. A análise das atas por outros critérios mais específicos, como os encaminhamentos explícitos das reuniões, não foi viabilizada devido à heterogeneidade da apresentação e estrutura das atas ao longo do período de estudo.

RESULTADOS e DISCUSSÃO
Governança e atores políticos
Desde sua criação em 2003, a Conicq incorporou órgãos federais adicionalmente em 2010 e 2012, alcançando 18 membros governamentais, com estabilidade de composição nos anos seguintes. A comissão apresenta o Ministro da Saúde como presidente, o Diretor-Geral do Instituto Nacional de Câncer (INCA) como vice-presidente e o INCA como responsável pela Secretaria Executiva (SE-Conicq). A partir de 2016, com o início do Governo Temer, notam-se mudanças na estrutura governamental que afetam a composição da Conicq, embora sem emissão de nova norma específica sobre a Comissão (Figura 1).
No início de 2019, o presidente Bolsonaro extinguiu por decreto colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional26, suscitando polêmicas sobre a extinção da Conicq. No entanto, em 2021 a Advocacia-Geral da União legitimou a continuidade da Comissão, com base em decisão prévia do Supremo Tribunal Federal que reconheceu os colegiados criados por lei. Tal decisão considerou que os tratados e convenções internacionais, como a CQCT, apresentam status de lei ordinária e estão sujeitos ao contrato de constitucionalidade27. Mesmo com o respaldo jurídico, observou-se a fragilização da Conicq. Como exemplo, em 2021 houve a exclusão de representantes da Secretaria-Executiva da Conicq da delegação oficial do Brasil para a nona Conferência das Partes (COP9) e a segunda Reunião das Partes do Protocolo de Eliminação do Comércio Ilícito de Produtos do Tabaco (MOP2), o que gerou a mobilização da sociedade civil28. Além disso, a nomeação para a Secretária Executiva da Conicq ficou indefinida a partir da aposentadoria da ocupante do cargo em fevereiro de 2022, quando também ocorreu mudança estrutural do INCA. A Conicq, que antes assessorava diretamente o Diretor Geral do Instituto, foi realocada na Divisão de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco (Ditab)29,30.
A participação dos membros da Conicq nas reuniões ordinárias é importante para efetivar o potencial intersetorial da comissão. A análise das 55 listas de presença das reuniões ordinárias da Conicq de 2003 a outubro de 2021 (última reunião realizada considerando o recorte temporal) revela a variação da participação proporcional dos membros nas reuniões.
Nos períodos de 2003 a 2009 e de 2010 a 2015, a média de participação proporcional dos membros foi de 63% e 60%, respectivamente. No entanto, entre 2016 e 2021 a média caiu para 34% (Figura 2).
Entre 2003 e 2015, a média de participação proporcional dos membros foi de 62%. No entanto, entre 2016 e 2021 a média caiu para 34% (Figura 2). A redução da assiduidade dos membros da Comissão nas reuniões a partir de 2016 sugere que políticas governamentais deste período fragilizaram a estruturação intersetorial da Conicq.
A partir de 2016, houve destaque nas reuniões da Conicq para as discussões internacionais envolvendo os grupos de trabalho internacionais, as Conferências das Partes (COPs), as Reuniões das Partes do Protocolo de Eliminação do Comércio Ilícito de Produtos do Tabaco (MOPs) e as suas reuniões preparatórias [COP7-2016, COP8- 2018 e COP9- 2021 (virtual); MOP1- 2018 e MOP2-2021 (virtual)]. Ressalte-se que em 2020 não houve reuniões da Conicq, provavelmente devido ao início da pandemia de COVID-19 e em 2021 as reuniões foram retomadas de forma remota, com foco na preparação dos compromissos internacionais. Em 2022 não ocorreram reuniões da Conicq, sugerindo dificuldades e desmobilização da comissão para cumprir seu mandato interno e externo.
Com exceção da pasta da economia, todos os demais órgãos governamentais apresentaram redução na participação nas reuniões realizadas entre 2016 e 2021 em relação aos períodos anteriores (2003-2009 e 2010-2015). A partir de 2016, nota-se a maior assiduidade do Ministério da Saúde, da pasta da área econômica (Ministério da Economia desde 2016), da AGU, do MRE, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Casa Civil. No entanto, ressalta-se a ausência do Ministro da Saúde e do Diretor- Geral do INCA e a menor presença de órgãos governamentais que apresentavam grande participação até 2015, como a pasta de desenvolvimento agrário, MAPA, MCT e MEC (Figura 3). Além dos participantes analisados, importante mencionar a presença da SE-Conicq em todas as reuniões desde a criação da Comissão, cumprindo o papel de órgão articulador e organizador das reuniões.
Quanto aos temas enfocados pela Conicq, nos períodos 2003-2009 e 2010- 2015 foram debatidos em mais da metade das reuniões analisadas: a produção do fumo e a diversificação de renda e cultivo de plantações, ações de combate ao comércio ilícito e a conscientização do público sobre os malefícios do tabagismo e a regulação de produtos. No entanto, as reuniões da Conicq entre 2016 e 2021 abordaram, de forma geral, menor variedade de temas. Nesse período, questões relacionadas ao tratamento e ambientes livres do fumo não constaram como pontos de pauta nas atas analisadas (Figura 4).
Importante destacar que os períodos (2003-2009) e (2010 -2015) apresentaram dados semelhantes em relação à frequência dos membros da Conicq nas reuniões e dos temas abordados, o que pode sugerir que a continuidade do modelo de gestão do executivo federal e a maior estabilidade na conjuntura política, econômica e sanitária nesses períodos conferiram institucionalidade de forma sólida à Política Nacional de Controle do Tabaco.
Apesar das fragilidades identificadas, o período entre 2016 e 2021 foi marcado por intervenções estratégicas da SE-Conicq para subsidiar o governo federal e as unidades da federação a avançarem, ou pelo menos não retrocederem, nas políticas de controle do tabaco no país. Entre elas, destaca-se a intervenção apoiada por outros setores do Ministério da Saúde, para reverter as recomendações do grupo de trabalho do Ministério da Justiça criado em 2016 com o objetivo de avaliar a redução de tributação de cigarros fabricados no Brasil31,32. A Conicq também continuou a promover a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico-Tabaco (CIDE-Tabaco) como fonte de arrecadação para o SUS e para as medidas de controle do tabagismo, entre elas o apoio a diversificação em áreas cultivadas com tabaco33. Além disso, a Conicq publicou informes sobre tabagismo e Covid-19, bem como notas técnicas sobre aspectos econômicos do tabagismo34 e propôs o Plano de Fortalecimento da Política Nacional de Controle do Tabaco 2021-2030, incluindo sugestões de organizações da sociedade civil35.
Medidas políticas
O Brasil continuou a ter seu trabalho reconhecido internacionalmente. Em 2019, o país alcançou o mais alto grau de cumprimento das medidas contidas no pacote MPOWER, que é um conjunto mínimo de medidas estabelecidas pela OMS para o controle do tabaco que consiste em Monitoramento da epidemia do tabagismo (M), Proteção das pessoas dos prejuízos do tabagismo (P), Oferta de tratamento para cessação (O), Advertência quantos aos prejuízos do tabagismo por meio de campanhas e advertências sanitárias (W), Fortalecimen-to das medidas restritivas de proibição de propaganda, promoção e patrocínio (E) e Aumento de preços e impostos de produtos de tabaco (R)36,37.
Importante destacar as iniciativas visando o compromisso de proteger as políticas nacionais de controle do tabaco da interferência da indústria fumageira, que foram mantidas mesmo em um contexto adverso. Destaque-se o papel do Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco no Cetab/Fiocruz como um exemplo do suporte de uma instituição científica estatal à política. Na sociedade civil, os boletins publicados pela ACT Promoção da Saúde foram importantes para o monitoramento e exposição das táticas das empresas de tabaco. Desde 2018, o Cetab/Fiocruz e a ACT vinham contribuindo para a elaboração do Índice da Interferência da Indústria do Tabaco, cujo aumento foi verificado entre 2019 e 202138. A melhora na capacidade de monitoramento no Brasil contribuiu, em parte, para a identificação das ações empreendidas pelas empresas de tabaco.
Adicionalmente à exigência da declaração da existência de conflito de interesse pelos membros da Conicq39,40, a SE-Conicq propôs em 2020 à Direção Geral do INCA a inclusão no seu programa de integridade pública de mecanismos que não permitam a interferência da IT por meio de parcerias e financiamento. A proposta ainda tramita internamente, mas é uma sinalização dos esforços de órgãos governamentais de aprofundar a proteção das políticas públicas da interferência das empresas de tabaco41.
Naquilo que se refere à política de preços e impostos, a discussão sobre a Política de Preço Mínimo de cigarros parece não ter sido pautada pela Receita Federal e o ano de 2015 foi o último onde havia previsão legal para aumentos progressivos anuais de R$0,50 ao ano no preço mínimo dos maços de cigarros. A partir de 2019, intensificou-se a discussão pelo Congresso Nacional sobre a Reforma Tributária e impostos seletivos com destinação de re-cursos para políticas de prevenção e promoção da saúde42.
Na política de exposição à fumaça ambiental do tabaco, após o decreto de 2014, houve queda na exposição passiva em casa e em ambientes de trabalho43. Dados do Vigitel sinalizam um aumento no percentual de pessoas expostas à fumaça do tabaco em ambiente fechado de trabalho entre 2018 e 2019 (4,7% para 5,5%) e alertam para um possível aumen-to da aceitação social relacionada ao tabagismo44. Parece ainda haver incertezas no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária de como fiscalizar e orientar estabelecimentos comerciais acerca do consumo de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF). Para dirimir tal situação, a Anvisa publicou uma nota técnica afirmando que o consumo de vaporizadores e produtos de tabaco aquecido deve estar de acordo com a legislação que proíbe o fumo em ambientes co-letivos fechados45.
No que se refere à regulação dos constituintes dos produtos de tabaco, neste perío-do foram registrados importantes marcos que afetam a PNCT. Apesar do Supremo Tribunal Federal ter mantido incialmente a constitucionalidade da norma da Anvisa em favor da proi-bição dos aditivos de aromas e sabores em cigarros46, há previsão para a retomada da discus-são dessa pauta47. Pressionada a revisar a norma que proíbe a comercialização, propaganda e importação dos DEF, a Anvisa desde 2019 tem discutido com a sociedade brasileira esse tema diante de uma série de ações promocionais destes dispositivos48,49. Em 2022, a Anvisa emitiu relatório de análise de impacto regulatório recomendando o aprimoramento do ins-trumento normativo e a ampliação de medidas de comunicação e fiscalização50.
O laboratório da Anvisa para análises de produtos de tabaco teve suas atividades muito restritas neste período, apesar da parceria estabelecida com o Instituto Nacional de Tecnologia. O orçamento para ampliar as análises teria sido pautado nas reuniões da Direto-ria Colegiada da Agência, mas não houve uma decisão tomada ainda a este respeito. Os valo-res depositados em juízo em decorrência das taxas de registros questionadas pelas empresas de tabaco continuam inacessíveis e estima-se que somam R$ 170 milhões de reais51.
Considerando o tratamento do tabagismo no SUS, o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Tabagismo foi atualizado em 2020 por meio de adequações metodológicas orientadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Em 2022, foram publicadas diretrizes para a organização dos serviços e do cuidado à pessoa tabagista no SUS52. Manteve-se a abordagem cognitivo-comportamental aliada à terapia medicamentosa por meio de reposição de nicotina (adesivo e pastilhas) e bupropiona. Estados e municípios têm manifestado déficit de medicamentos distribuídos pelo governo federal, que têm enfrentado dificuldades com licitações vazias, enquanto farmácias vendem os produtos normalmente. Na pandemia, houve esforços para apoiar a cessação de fumantes por meio de atendimento remoto e campanhas em redes sociais.
O Brasil ratificou o Protocolo para Eliminação do Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco em 2018. Em 2021, a piora no cenário macroeconômico durante a pandemia elevou o preço do cigarro ilegal. A discussão de contrabando também tem envolvido os DEF, já que esses produtos tendem a ser comercializados depois de entrar ilegalmente no país.
O Brasil é um grande produtor de folhas de tabaco –atrás apenas da China e Índia – e o maior exportador mundial. Desde a ratificação ao tratado, cerca de 60 mil famílias dei-xaram o cultivo, provavelmente por não renovação de contratos e concentração da produção em propriedades maiores e mais produtivas53. No entanto, 86,5% das famílias produtoras de tabaco são minufundiários, das quais 22,6% não possuem terras para o trabalho 54. Ressalta-se a manutenção de reuniões regulares da Câmara Setorial do Tabaco no MAPA, colegiado composto por trabalhadores, empresas e representantes do governo ligados à cadeia produti-va do fumo55.
O Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco precisa ser resgatado como estratégia para salvaguardar agricultores bem como para o enfrentamento à insegurança alimentar no Brasil, tendo em vista o retorno do país para o mapa da forme. Importante mencionar os esforços do Cetab/Fiocruz atuando como um Centro de Conheci-mento do Secretariado da CQCT para os artigos 17&18, que se articula com países produto-res por meio de cooperação técnica, elaboração de estudos e produção de conteúdo sobre o tema46.
A figura 5 apresenta uma síntese sobre os avanços, limitações e desafios de acordo com as diversas medidas da PNCT entre 2016 e 2022.
Considerações finais
Em que pese o contexto nacional adverso entre 2016 e 2022, em linhas gerais o Brasil manteve no período as bases da Política Nacional de Controle do Tabaco e o seu reconhecimento internacional, ao conseguir dar continuidade às principais medidas de controle do tabaco referendadas pela OMS56.
A criação da Conicq foi de suma importância para a manutenção de posições firmes que foram determinantes para a sólida política brasileira de controle do tabaco. Entre 2016 e 2021, a menor participação regular de seus membros e a menor diversificação de temas abordados nas reuniões ordinárias podem sugerir uma fragilização da Comissão. Porém, é importante considerar as limitações impostas pela pandemia, a partir de 2020, e a possibilidade de que algumas pautas possam ter sido abordadas em outros espaços de decisão, como a Divisão de Controle do Tabagismo (Ditab) do INCA e a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES) do MS.
Importante destacar que não houve reuniões da Conicq em 2022 e que novos encontros foram retomados somente em 2023, com a nomeação de uma nova Secretária Executiva da Comissão. É grave a descontinuidade das reuniões regulares da Conicq ao longo de 2022, mesmo que de forma remota, justamente em um período de retomada gradual das ações nos diversos setores da sociedade que foram muito prejudicadas pelas restrições de mobilidade impostas pela pandemia de COVID-19. O enfraquecimento da Comissão pode se relacionar ao contexto do governo federal de pouca valorização da gestão colegiada, formalmente marcado pelo Decreto Presidencial de 2019, que indicou a extinção de uma série de comissões, suscitando incertezas quanto à continuidade da Conicq.
As intervenções estratégicas da SE-Conicq juntos aos demais atores e o protagonismo da Conicq no âmbito da gestão da PNCT sugerem a manutenção desta instância mesmo em um período com mudanças na gestão do executivo federal e com a conjuntura política, econômica e sanitária com elementos adversos. A conjuntura nacional adversa para o empreendimento de políticas públicas, por meio do fortalecimento de grupos neoliberais nos espaços de decisão do governo federal a partir de 2016, afetou negativamente a capacidade de atuação e estruturação da Conicq em comparação ao período anterior. Ressalta-se a interferência da Indústria do Tabaco na atuação da Comissão de forma mais estruturada no Ministério da Agricultura, por meio da Câmara Setorial do Tabaco57.
No entanto, o destaque do controle do tabaco no cenário internacional, com a projeção da CQCT em eventos e ações regulares em nível regional e mundial, favoreceram a persistência da Conicq. Para o enfrentamento das adversidades do contexto entre 2016 e 2022, ressalte-se a importância da institucionalidade da política brasileira de controle do tabaco aliada à resistência de atores governamentais e não governamentais comprometidos com a causa desde os anos 1980.
Apesar dos avanços na PNCT, apresentam-se importantes desafios, com destaque para:
- Concretização de uma reforma tributária que estabeleça a seletividade para produtos de tabaco e a vinculação dos recursos ao SUS;
- Alinhamento do controle do tabagismo com as demais políticas do SUS, sobretudo no que concerne ao controle de outros fatores de risco para as DCNT e à atenção à saúde em diferentes níveis;
- Contenção da comercialização ilegal dos DEF, sobretudo envolvendo os jovens como público-alvo;
- Retomada do Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco;
- Plena implementação do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco;
- Proteção das políticas públicas da interferência da IT.
- Reafirmação regular da Conicq como instância de gestão intersetorial das políticas de controle do tabaco pelo Governo Federal.
Nesse sentido, é determinante a publicação e implementação do Plano de Fortalecimento da Política Nacional de Controle do Tabaco 2021-2030. Este documento será relevante para nortear estratégias, confirmando o compromisso de Estado brasileiro com a promoção da saúde, sua contribuição para a Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e com o Plano Nacional de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis 2021-2030, cuja meta é reduzir a prevalência do tabagismo em 40%.
A reafirmação da Conicq por decreto presidencial58 e a nomeação de uma nova Secretária Executiva da Comissão59 ocorridas em 2023 contribuem para um cenário favorável para a retomada da PNCT institucionalmente forte e com marcante componente intersetorial. Destaque também para a aprovação em 2023 do Programa Nacional de Controle do Tabagismo no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que trará mais agilidade ao sistema60.
O fortalecimento das políticas de controle do tabaco é fundamental para proteger a saúde da população e promover um estilo de vida mais saudável. A partir de uma abordagem abrangente, o Brasil pavimentará o caminho para um futuro com menos tabaco, contribuindo para a redução de agravos e mortes relacionadas ao fumo, bem como para melhoria da qualidade de vida das pessoas.


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Portes, L. H., Pinho, M. C. M., Machado, C. V., Silva, V. L. C., Turci, S. R. B., Tourinho, C. A. P.. A Política de Controle do Tabaco no Brasil de 2016 a 2022: continuidades, retrocessos e desafios. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/mai). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-politica-de-controle-do-tabaco-no-brasil-de-2016-a-2022-continuidades-retrocessos-e-desafios/19269?id=19269

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