EN PT

Artigos

0187/2025 - A PrEP, os exames e as reconfigurações da sexualidade e da prevenção do HIV entre jovens homens que fazem sexo com homens da Região Metropolitana do Recife
The PrEP, the exams and the reconfigurations of sexuality and HIV prevention among young men who have sex with men in the Metropolitan Region of Recife

Autor:

• Luís Felipe Rios - Rios, LF - <souza.dias@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0767-7845

Coautor(es):

• Karla Galvão Adrião - Adrião, KG - <karla.galvao@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7411-425X

• Thamires Dayane de Sá Pereira - Pereira, TDS - <thamires.sapereira@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8060-2236

• Larissa Vitoria Silva Soares - Soares, LVS - <larissa.vsoares@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-1312-9274

• João Pedro Souza Dias - Dias, JPS - <souza.dias@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-9616-5523

• Júlio Henrique Magalhães Luckwu - Luckwu, JHM - <julio.luckwu@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-2631-0224

• Rayssa Karollyne da Silva - Silva, RK - <rayssa.karollyne@ufpe.br>

• Jéssica Mayra Uellendahl Ramos - Ramos, JMU - <jessica.uellendahl@ufpe.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0005-6379-1940



Resumo:

O texto discute a actância da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) na rede sociotécnica da prevenção do HIV e nas experiências sexuais de homens que fazem sexo com homens (HSHs) residentes na Região Metropolitana do Recife. É embasado em pesquisa etnográfica e analisa 41 entrevistas com HSHs jovens. A PrEP está presente na sociabilidade e nos corpos de parceiros sexuais de boa parte dos entrevistados, sejam ou não usuários dela. Alguns elementos concorreram para a decisão pelo uso: prazer no sexo anal sem preservativo (SASP); recorrente falha no seu uso; circulação das informações sobre PrEP; práticas sexuais anteriores com alguém dela usuário. Entre os não usuários, o SASP é usualmente mediado por soroescolha, presumida pela aparência saudável e pelo 'conhecimento' do parceiro sexual. O ‘conhecimento’ também está presente no SASP entre os 'em PrEP', como alternativa para prevenção de outras ISTs. Quando a gestão de risco se faz considerando parceiros também 'em PrEP', justificada pelos exames periódicos, potencializa a saúde sexual. Os ‘em PrEP' são estigmatizados por descumprirem a norma anterior: 'sexo seguro é com preservativo'. Não obstante, a biopolítica opera e o exame como tecnologia subjetivante parece começar a produzir uma nova moralidade sexual, em que os ‘em PrEP’ podem se tornar uma nova classe de gays saudáveis, superiores aos não usuários nas hierarquias da sexualidade.

Palavras-chave:

PrEP, HSH, Prevenção, HIV/Aids, Biopolítica

Abstract:

This article discusses the actance of Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP) in the socio-technical network of HIV prevention and in the sexual experiences of men who have sex with men (MSM) living in the Metropolitan Region of Recife. It is based on ethnographic research and analyzes 41 interviews with young MSM. PrEP is present in the sociability and bodies of sexual partners of many of the interviewees, whether they use it or not. Some elements contributed to the decision to use it: pleasure in anal sex without a condom (ASWC); recurrent failure to use it; circulation of information about PrEP; previous sexual practices with someone who used it. Among non-users, ASWC is usually mediated by serosorting, presumed by healthy appearance and 'knowledge' of the sexual partner. Knowledge' is also present in ASWC among those 'on PrEP', as an alternative for preventing other STIs. When risk management takes into account partners who are also 'on PrEP', justified by periodic exams, it enhances sexual health. Those 'on PrEP' are stigmatized for not complying with the previous norm: 'safe sex is with a condom'. Nevertheless, biopolitics operates and the test as a subjectivizing technology seems to start producing a new sexual morality, in which those 'on PrEP' can become a new class of healthy gay men, superior to non-users in the hierarchies of sexuality.

Keywords:

PrEP, MSM, Prevention, HIV/Aids, Biopolitics.

Conteúdo:

Introdução
Por quatro décadas, a epidemia do HIV é uma questão significativa de Saúde Pública. Apesar dos esforços de órgãos governamentais (OGs) e não governamentais (ONGs) brasileiros e organismos internacionais (OIs) para combatê-la, a Aids continua afetando com mais força grupos estigmatizados, como gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSHs), do que a população em geral.1,2
Para compreender a circulação e prevenção do HIV tornou-se importante investigar como os HSHs experienciam as práticas de gestão de risco (PGRs), compreendidas como técnicas recomendadas ou não pelas políticas de saúde pública (PSPs), com maior ou menor eficácia.3,4 Atualmente, ao lado dos usos dos preservativos interno e externo e da testagem anti-HIV para mediar acordos sexuais entre os parceiros (‘segurança negociada’), figuram as profilaxias pós e pré-exposição (PEP e PrEP), de base medicamentosa.1,2,5 Na vida prática, ocorrem outras práticas alternativas às recomendadas, denominadas de soroadaptativas, como o coito interrompido (ejacular fora do ânus), o soro-posicionamento (uso do preservativo quando se é passivo/receptivo no sexo anal) e a soroescolha (sexo anal desprotegido com pessoas de mesma sorologia).3,4
No Brasil, e seguindo as orientações da Unaids, o aumento das possibilidades preventivas é apreendido na PSP como 'prevenção combinada', que envolve o estímulo à utilização simultânea ou sequencial de múltiplas estratégias biomédicas, comportamentais e estruturais. Cabe aos profissionais de saúde informarem sobre diversas modalidades disponíveis e estimular a escolha das mais adequadas para as necessidades pessoais e contextuais das pessoas.1,2,5
Na atualidade, o uso cotidiano ou por demanda (uma dose de dois comprimidos, seguidos por duas doses de um comprimido, a cada 24 horas) da PrEP (combinação de dois antirretrovirais, tenofovir e entricitabina), antecedendo práticas sexuais, se oferece como importante estratégia de controle da epidemia,1,2,5 ao passo que contribui para a reconfiguração das práticas sexuais entre HSHs, uma vez que possibilita o sexo anal sem preservativos (SASP).8,9 Por isso, ela tem gerado muitas discussões entre profissionais de saúde, comunidade gay, ativistas e pesquisadories, não apenas porque não protege de outras ISTs, mas também pelos aspectos biopolíticos a ela relacionados.11,12
No Brasil, a PrEP se torna uma estratégia da 'prevenção combinada' apenas em finais de 2017,5 mas entre 2018 e 2021 foi pouco divulgada.1,9 A partir de 2022, começa uma difusão mais ampla, mencionada nas mídias tradicionais e redes sociais de internet, como nas últimas campanhas do dia mundial de combate à Aids e de carnaval. Também é a partir de 2022 que os HSHs entre 15 e 17 anos são incluídos na PSP, recebendo-a gratuitamente do SUS, sem necessidade de consentimento dos pais.5
Nossas pesquisas ao longo dos últimos 10 anos mostram o uso inconsistente do preservativo externo entre HSHs da Região Metropolitana do Recife (RMR),4,5,18 o que também se revela na alta prevalência do HIV entre HSHs do Recife (21,5%).19 Há o recorrente uso da soroescolha, na qual a soronegatividade para o HIV é presumida pela vinculação com os parceiros e as estilizações corporais.6,7,12
Este texto aborda a entrada da PrEP no mencionado cenário, a partir de narrativas de jovens HSHs. Guiados pela teoria da roteirização sexual14,15, que usa da metáfora do teatro para explorar narrativas16 e dramas sociais17, abordamos as múltiplas dimensões contextuais de vulnerabilidade19,20 ao HIV dos nossos interlocutores. Sublinhamos os processos que concorreram para a incorporação da nova tecnologia, com relevo para os recursos (experiências e conhecimentos) utilizados naquilo que John Gagnon14 denominou de "ensaio interno”, concebidos como processos imaginativos18 que antecedem cenas sexuais e PGRs.
No plano das hierarquias e da biopolítica das sexualidades, 11,20 abordamos as mudanças que a introdução da PrEP, enquanto importante actante na rede sociotécnica20 da prevenção do HIV contemporânea, trouxe para o enredo que se desenvolve na RMR, e a relação com os usos de outras tecnologias da ‘prevenção combinada’ e com as PGRs alternativas. Rede sociotécnica formada pelo HIV e outras ISTs; por usuários, seus parceiros sexuais, profissionais de saúde, familiares e amigos; medicamentos e outros insumos; saberes científicos, do senso comum e protocolos de gestão de risco; farmacêuticas e outras indústrias capitalistas; OGs, ONGs, OIs; e qualquer humano ou não humano que participe de ações de prevenção ao vírus.
Após apresentar a metodologia empregada, abordamos a entrada da PrEP no contexto preventivo da RMR, e como esta passa a figurar em práticas e interações de pessoas que não fazem dela uso, em cenas sexuais ou de sociabilidade nas quais está presente nos corpos e nos discursos de outros participantes. Em seguida, explora as narrativas de cinco homens 'em PrEP', sobre o modo como chegaram ao uso e os sentidos (sensações, significados, sentimentos, direcionamentos)7 que o seu uso produz. Na discussão, sublinha as mudanças que ela trouxe para a prevenção na comunidade gay do Recife, considerando a dimensão biopolítica de sua utilização.
Método
Os resultados advêm de estudo sobre PGRs às epidemias do HIV e do SarsCov-2 realizadas com jovens HSHs, residentes na RMR. Ele faz parte de uma pesquisa etnográfica sobre práticas soroadaptativas ao HIV, iniciada em 2013, que possui muitas ondas de coleta de dados, como mostra o quadro 1. Foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco. Para garantir o anonimato, utilizamos nomes fictícios para caracterizar os interlocutores.
A atual etapa, iniciada em 2022, envolve observações participantes nos espaços de homossociabilidade da RMR, 41 entrevistas com foco biográfico com jovens HSHs (18-29 anos) e 25 entrevistas temáticas com profissionais e integrantes dos referidos espaços. Neste texto, discutimos a análise dos dados das entrevistas com os jovens. Elas abordaram o contexto familiar; experiências sexuais e de sociabilidade no curso de vida; a lógica da prevenção utilizada nas três últimas interações sexuais com e sem camisinha; os conhecimentos sobre técnicas preventivas ao HIV.
A amostra foi de conveniência, construída a partir das redes de relação des entrevistadories, oito graduandies em Psicologia, de diferentes posições de gênero, orientações sexuais, classe e raça. Isso permitiu diversificar as marcações sociais dos interlocutores, como mostra o perfil dos participantes: 24 homens com idades variando de 18 a 24 anos, e 17 com idade variando entre 25 e 29 anos; 27 eram homens negros, 13 brancos e 1 indígena; 2 tinham o ensino médio incompleto (EMI), 5 tinham ensino médio completo (EMC), 24 ensino superior incompleto (ESI) e 10 ensino superior completo (ESC).
O uso das teorias sobre narrativa16 e drama17 foi importante para produzir os instrumentos de coleta e refletir sobre as possibilidades e limites analíticos dos dados. Ao invés de perguntar diretamente sobre saberes e opiniões, as questões das entrevistas interpelavam os interlocutores sobre a ocorrência dos fenômenos nas suas histórias de vida, levando-os a assumirem uma perspectiva narrativa. Assim, ao acionar eventos “não canônicos” ao relatar as cenas e enredos, os interlocutores faziam aparecer as regras, os desvios e as tentativas de reparação. A solicitação por descrições pormenorizadas dos cenários, atores e cenas sexuaispermitiu roteirizar os contextos sexuais, os vínculos e as emoções, com relevo para as relacionadas às práticas preventivas.14,15
As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas a uma análise temática de conteúdo.22 Neste texto a análise não foca nos processos narrativos, mas enfatiza a incorporação da PrEP e os seus aspectos biopolíticos. Para a análise, a equipe se reuniu e, a partir de leitura flutuante sobre a ocorrência da PrEP nas narrativas, definiu algumas categorias de análise que foram colocadas na Tabela 1, preenchida pelies entrevistadories. A tabela permitiu dimensionar as ocorrências sobre conhecimento e utilização da profilaxia.
Também foram criadas categorias sobre “estar em PrEP” (como ficou sabendo, como foi o processo até usar, como é o uso na atualidade) e “utilização da PrEP pelo parceiro sexual” (foi consentido, não foi consentido, perspectiva de utilização futura), que foram colocadas em uma tabela e alimentada com fragmentos das entrevistas. Foi da interpretação dos fragmentos, na interface com os aportes teóricos sobre vulnerabilidade19,20, processos imaginativos14,18 e biopolítica11 que buscamos compreender a rede sociotécnica21 em questão, chegando aos temas apresentados a seguir.
Cenas de PrEP na RMR
Embora a PrEP já figurasse como recurso na política da 'prevenção combinada' desde o final de 2017, nas entrevistas com 38 HSHs realizadas entre 2019 e 2021, nenhum dos interlocutores afirmou fazer dela uso. Ainda assim, 28 deles já haviam ouvido falar da tecnologia e 25 demonstraram saber como funcionava. Na coleta, cujos resultados estamos a apresentar, 5 pessoas nunca ouviram falar de PrEP, e 1 confundiu PrEP com PEP, 35 sabem como funciona. Dessas, 5 fazem uso de PrEP e 7 querem usar.
Coadjuvantes — não usuários de PrEP
Nas entrevistas realizadas entre 2019 e 2021, algumas vezes a PrEP foi mencionada como em uso por conhecidos. Entretanto, um dos entrevistados mencionou a utilização por parceiros sexuais em uma cena grupal de SASP.12 A partir de 2022, as cenas em que os interlocutores transaram com alguém ‘em PrEP’ se multiplicaram.
Norberto (23 anos, preto, ESI) relata ter encontrado um "cara bonito" na rua e decidiram transar: "foi uma relação desprotegida. Só que ele (…) conversou antes, né? Teve esse diálogo sobre, tipo, ser um pouco mais prazeroso (SASP), e usar PrEP. Ele usava PrEP. (…) Para uma questão de desencargo de consciência, não teve tipo, ejaculação dentro.". Além disso, para o convencimento, o parceiro mostrou os exames recentes.
João (23 anos, branco, ESI) narra duas das cenas de SASP com uso da PrEP com rapazes com quem teve "relações exclusivas": "A diferença é que agora eu sou ativo e ele é passivo. Exclusivamente passivo. E nossa relação é sem camisinha. (…) Tanto o caso anterior, do ano passado, quanto este, (eles) fazem uso de PrEP. Eu não utilizo PrEP.". Sublinha que, além desses, o último parceiro com quem transou, que conheceu no Grindr/aplicativo de ‘pegação’/paquera, "mesmo sob uso de PrEP, ele faz questão de transar com camisinha." .
A questão da posição sexual, mencionada acima, não é apenas ligada ao prazer. "Talvez porque eu tenho na cabeça que é mais fácil você pegar uma IST sendo passivo do que ativo.”. No caso do HIV, há diferenças no risco relativo de infecção relacionadas à posição, com efeitos na prevenção.33 Também tem relação com o controle do uso da camisinha na posição passivo, como relata Petrônio (23 anos, branco, ESI): "Que eu tava no Grindr e conheci ele. Bem bonito, aí tal. Eu chamei ele lá pra casa. (…) Na hora da penetração, eu pedi pra ele botar camisinha. Só que ele fingiu que colocou. (…) Foi sem o meu consentimento.”.
Petrônio ficou atônito com o ocorrido. O rapaz mencionou estar 'em PrEP’ e falou dos exames periódicos que fazia. "Eu disse a ele que (…) queria os exames e a caixa da PrEP. (…) O último exame que ele tinha feito tinha sido uma semana antes da gente ter ficado. E mostrou a caixa da PrEP dele também. Não me deu confiança (…). Poderia ser alguma coisa aleatória, que ele poderia ter como desculpa. Não sei. Só sei que ajudou em um pouquinho (a diminuir a ansiedade) até eu fazer o meu exame.".
Para muitos interlocutores, como Norberto, a beleza parece ter sido um importante elemento para o relaxamento das medidas de proteção, para Pedro (26 anos, preto, EMC) a PGR envolveu o preconceito sobre a origem étnica do parceiro: "eu achei que uma pessoa indígena ia se cuidar muito mais. Eu desumanizei. Aí, nesse processo de desumanização, a gente acabou transando sem camisinha, eu super confiando nele.". O rapaz entrou em contato para informar que uma pessoa com quem havia tido SASP, antes de transarem, foi diagnosticada com uma IST: “vamos nos testar porque a gente transou sem camisinha, ejaculou dentro.”. A conversa se deu na sexta-feira à tarde e o posto de saúde, onde faria os exames, já estava fechado: "Eu passei a sexta à tarde, o sábado e o domingo fazendo tudo que era terapia holística e macumba. Eu acendi o caldeirão com alecrim, eu bati tambor, eu apliquei reiki todos os dias, três vezes ao dia.".
O relato de Pedro atualiza no termo “desumanizei” a estigmatização. Além disso, apresenta de forma humorada o drama do SASP,6 também expresso nas preocupações de Petrônio, quando descobriu que o parceiro não respeitou sua solicitação de uso do preservativo.
Na cena relatada por Pedro, nem o parceiro nem ele usavam PrEP, mas a tecnologia já estava presente na imaginação e chegou até ele por meio de sua rede de amigos: "Dois amigos mais próximos, que usam PrEP, eles ficam falando sobre o processo. Aí, um indicou outro. Se mostrando bem “entendida” na PrEP, ele diz que vai começar a usá-la em breve: “Ele vai me indicar, eu vou muito linda. Descubro onde é o hospital, que eu ainda não sei se tem aqui, na minha cidade. Ou se é só lá, no Recife, e vou fazer o babado lá.”.
Protagonistas — ‘em PrEP’
Gustavo (29 anos, branco, ESC) iniciou a PrEP três meses antes da entrevista (abril/2023). Fazia uso irregular do preservativo e recorreu à nova tecnologia após dois episódios em que utilizou a PEP: "porque era um parceiro que eu não conhecia, que era de aplicativo (…). Quando eu conheci o rapaz, ele tinha dito que tomava PrEP. Ele tinha dito que fazia exames com frequência, que tinha feito recentemente e não tinha ISTs. Aí, como eu não conhecia ele, eu prefiro entender que não conheço e vou lá e tomei.". Logo após o tratamento, tem outro episódio arriscado "com outro cara de aplicativo. E aí foi aquela brincadeira de roça roça, início, e ele acabou gozando (dentro). (…) vi que era um segundo episódio de risco em dois meses. Aí eu decidi que era melhor tomar a PrEP do que ficar nessa de ter episódio de risco”.
Transar com camisinha não é tão fácil como propala a PSP. Gustavo disse que "à medida que você vai transar sem e você experimenta aquilo, você gosta. Pelo menos eu gostei e desde então [referindo-se a transar com um ex-namorado, antes de iniciar a PrEP], mesmo você colocando a camisinha, você prefere sem.”. Para a decisão por iniciar a PrEP não bastaram as experiências de risco de exposição ao HIV. Por conta do prazer que sente no SASP, refere ter refletido bastante sobre uma possível leniência com o não uso da camisinha e a exposição a outras ISTs. "Eu tinha aquela apreensão de que se eu tomar eu vou ser mais compreensivo comigo de transar sem camisinha. E como só combate o HIV, não as outras ISTs, aí eu fiquei com receio e segurei até onde eu conseguia.".
Comentando sobre as três últimas cenas de SASP já 'em PrEP', diz: "Eu ainda tentei usar camisinha nessa transa, mas à medida que eu venho transando sem camisinha, quando eu tô na posição de ativo eu coloco a camisinha, eu sinto que (a ereção) não funciona direito. É como se eu perdesse a sensibilidade e o tesão.". Perguntado sobre uso do preservativo, explicita os critérios para a decisão: "eu levo em consideração é a posição que eu sou naquele ato sexual. Se eu sou ativo eu prefiro sem camisinha, se eu sou passiva eu prefiro com camisinha. (…) Se for um parceiro que eu conheço, que eu já fiquei outras vezes, aí é mais tranquilo fazer sem.".
Leandro (27 anos, branco, ESC) iniciou a PrEP três meses antes da entrevista (março/2024). Como outros interlocutores, até então tinha a camisinha como forma de prevenção, que nem sempre esteve presente nas transas. Relata já ter tido sífilis e gonorreia, mas nunca fez PrEP por desconhecimento. Ele se testava esporadicamente quando ouvia algum comentário sobre o assunto e lembrava de ter tido práticas de risco.
Ouviu falar de PrEP pelos comentários de algumas pessoas e conhecia usuários da tecnologia. Sua decisão pelo início do 'tratamento' vem de conversas com o “ficante fixo”. Ambos têm relações sexuais com outras pessoas: "geralmente a gente sempre tenta manter esses externos, mas com segurança e com preservativo. Aí, agora, do final do ano pra cá, a gente também tomou a decisão de começar a fazer uso da PrEP." .
Conversando com o "ficante", compreendeu sobre a quem a profilaxia se destinava (achava que era para profissionais do sexo), seu funcionamento e modo de usar. "E ele me ajuda muito (…) a realmente entender a questão da PrEP, o uso da PrEP, qual o benefício; mas também qual o malefício que ele pode causar (...), que ele pode afetar o rim.”. Aproveitando uma iniciativa da prefeitura da cidade onde moram, iniciaram o tratamento: ”Tava tendo umas ações da prefeitura já pra prevenção, visando pra questão de carnaval. Então a gente (…) começou a fazer o período experimental. E a gente realmente conseguiu seguir.”.
Lauro (21 anos, branco, EMC), como Leandro, iniciou a PrEP por meio da campanha da prefeitura para o carnaval de 2024. Antes de iniciar o tratamento, por mais de uma vez passou por situação semelhante à descrita por Petrônio: "o cara não parou e ainda ejaculou em mim, tirou a camisinha sem eu ver”. Seu primeiro contato com a PrEP foi no Grindr: "lá tem uma aba que você coloca com camisinha e coloca também seu estado, se é soropositivo ou não, tem lá a opção: positivo ou negativo e tem usando PrEP e quando eu vi eu fiquei: ‘PrEP, o que é isso?’. Aí, eu fui dar uma pesquisada.". Como Leandro, sublinha que estar ‘em PrEP` implica na realização periódica de exames para ISTs e para o acompanhamento da resposta do corpo à medicação.
Perguntado sobre o que ocorreu quando passou a colocar que estava ‘em PrEP` no aplicativo, responde: "a diferença é que todo mundo quer transar 'no pelo’ (sem camisinha), essa é a verdade. A PrEP, pra todo mundo, só porque a pessoa usa PrEP, pode transar sem camisinha. Já comigo não rola assim.”. Como outros entrevistados, ele exalta o prazer do SASP e, na sequência, expõe situações e critérios em que, ‘em PrEP', este pode ocorrer: "Possa ser que role de eu transar sem camisinha, eu não vou mentir porque é muito bom (…). Mas, só com alguém que eu confie mesmo, tipo um parceiro fixo, que a gente só transe um com o outro. (…) Eu estar bêbado, que já rolou de eu estar bêbado, e uma pessoa que eu fique muitas vezes, que ela seja parte da minha vida.".
Philipe (26 anos, pardo, ESC) começou a usar PrEP sete meses antes da entrevista (abril/2023). Como Pedro e Leandro, ele já conhecia a PrEP de ouvir falar, e, como nas narrativas de João, Norberto, Petrônio e Gustavo, ela foi a medida de prevenção utilizada por outros parceiros nas transas. Descreve uma cena de sexo em grupo em que dois dos parceiros usavam PrEP e ele e outros dois não usaram quaisquer medidas preventivas.
Como Gustavo, o uso da PrEP por Philipe só viria tempos depois, após a busca da PEP no serviço de saúde. Ele explica: "O médico (…) me falou: 'Você está tendo uma vida sexual mais ativa?' Aí, eu disse: 'Tô, tô começando a ter mais parceiros e tal'. Aí, ele: 'Por que você não usa a PrEP?’”. Philipe diz que, após a vacinação para Covid-19, a sua vida sexual aumentou ainda mais, o que o fez considerar ter sido importante iniciar a PrEP. Soma-se a isso a sua impressão de que: "se parar para analisar, acho que aumentou as pessoas querendo transar sem camisinha, a verdade é essa!”.
Ele diz ficar mais à vontade de ter SASP com quem também faz uso da profilaxia: "gera um pouco mais de confiança, (…) tem que estar em dia com os seus exames, não só o de HIV, mas os exames gerais, simples, e outros, hepatite e tal”. Philipe relata continuar fazendo uso do preservativo, porque muitas pessoas continuam solicitando: “a pessoa queria utilizar a camisinha e eu sou muito tranquilo. Até quando eu converso com as pessoas eu pergunto — no aplicativo tem como você mostrar lá se você usa PrEP ou não, e aí é opção né — e aí eu pergunto: 'Você gosta de utilizar ou não camisinha?'” .
Patrício (23 anos, pardo, ESC) foi entrevistado em 2023, faz o acompanhamento da PrEP pelo convênio particular de saúde e a dispensa da medicação no SUS. Ele ficou interessado na PrEP quando foi fazer a vacinação para Covid-19 e entrou em contato com um cartaz, afixado no posto de saúde: "Eu já tinha ouvido falar PrEP, (…) e PEP, (…) eu tinha ouvido os termos, mas eu não fazia ideia do que fosse. Aí, quando eu vi no posto, aí eu olhei e foi quando eu comecei a ler, comecei a pesquisar saber o que era.”.
Como outros entrevistados, além da busca por mais informações, uma experiência anterior com pessoas em PrEP, de quem se tornaria namorado, foi importante para a decisão. Patrício conheceu o parceiro sexual em um bar e justifica a cena de SASP por estarem bêbados. "Eu não lembro como eu fui parar na casa dele, quando me dou conta eu já estou na cama com ele, e aí, rolou. (…) No meio da transa eu, quando a consciência bateu, segurei assim a cintura dele. Eu: 'A gente tá sem camisinha!’ Ele: 'Não, eu faço uso de PrEP.’ Foi a primeira vez que eu ouvi falar de PrEP.".
Patrício também menciona o prazer do SASP como algo que motivou o uso: "quando eu tive a primeira relação sem camisinha, eu gostei muito. Assim, dizer que é ruim, não é. (…) Quando eu comecei o uso da PrEP foi um modo de me prevenir, e foi um modo de, se caso eu quisesse, ou caso acontecesse de eu transar sem camisinha, mesmo sabendo que o outro não tem nada, tá tudo ok. Era um modo de eu me sentir mais seguro”.
O fato dele estar usando PrEP não significou o abandono completo da camisinha. Do mesmo modo que nos relatos de Philipe e Gustavo, critérios utilizados nas práticas soroadaptativas mediam a decisão pela camisinha junto à PrEP na manutenção da saúde sexual. Ele comenta que uma das últimas transas sem camisinha ”foi com um conhecido meu, muito antigo, muito antigo, a gente. (…) [E por que vocês não usaram a camisinha no momento?] Porque tanto eu como ele, a gente já sabia que um e outro usava PrEP, então, tipo, a gente já tava mais tranquilo em relação a isso.".
Ele também menciona que é necessário se proteger das outras ISTs e, por isso, na decisão pelo SASP considera alguns critérios: "geralmente, se eu transo sem camisinha, ou é porque eu já conheço bem a pessoa ou eu sei que ela faz tratamento com PrEP, porque pra você fazer o tratamento com PrEP, você tem que testar com as (outras) ISTs, pra ver se tá tudo ok.”. Ele também sublinha o preconceito das pessoas: "o problema do pessoal é achar que, 'ah eu tomo PrEP, então eu vou transar sem camisinha com qualquer um que aparecer'." .
A incorporação da PrEP na rede sociotécnica da prevenção do HIV e implicações biopolíticas
Gestão de risco
O uso inconsistente da camisinha foi recorrente nas várias ondas de coleta de dados de nossa pesquisa, desde 20136,7,12 e em outras investigações3,4,13,23,24. Os estudos sobre PGR e SASP mostram que é mais recorrente a utilização do preservativo com desconhecidos do que nas parcerias fixas. Ao longo das muitas ondas de coleta de dados, a principal PGR alternativa vem sendo a soroescolha, presumida pela ‘aparência saudável' (expressa na ‘beleza' mencionada por alguns interlocutores) e ‘conhecimento’/'confiança'. 6,7,12
Em um contexto histórico no qual a PrEP ainda não existia, o conhecimento da pessoa com a qual se ia transar produzia 'confiança' que aumentava as chances de SASP. 6,7 Vale destacar que a categoria 'conhecido' tem mais a ver com a frequência de encontros, capaz de produzir ‘confiança', do que com um vínculo maior de proximidade afetiva.12 Em alguns casos, outros dispositivos eram utilizados para constituir a 'confiança', como pertencer a determinadas categorias ou coletivos sociais (profissionais de saúde, integrantes do exército ou estudantes universitários), ou ‘bolhas’/redes de conhecidos,6,7,12 ou ainda, como na narrativa de Pedro, ser integrante dos povos originários.
A PrEP parece ter posto luz sobre PGRs alternativas que não foram tão mencionadas nas entrevistas de outros momentos da pesquisa, ainda que aparecessem no inquérito comportamental.7 Na última onda, houve mais relatos de coito interrompido e de soro-posicionamento. A posição no sexo é importante nas taxas de risco23, com alguma eficácia na prevenção do HIV no SASP não mediado pela PrEP. Muitos HSHs fazem uso do conhecimento sobre isso para suas decisões sobre posição no sexo,24 como parece ser o caso de João e Gustavo. Mas a posição passiva também é condicionante do controle do uso do preservativo, expresso nas cenas vividas por Petrônio e Lauro.
Como vimos nas narrativas dos protagonistas, outras estratégias, classificadas como soroadaptativas, também fazem parte do cardápio da prevenção no contexto da PrEP. Chama atenção que as categorias 'conhecimento' e 'confiança' continuem a mediar a decisão pelo não uso da camisinha. No caso de Gustavo, curiosamente surge, além do 'conhecimento da pessoa’, o soro-posicionamento. As práticas soroadaptativas mencionadas por ele sugerem um certo receio de que a PrEP não funcione tão bem, e/ou a persistência de um esquema anterior de lidar com a prevenção. Em ambos os casos, ainda que não tenham uma eficácia concreta, também não despotencializam a medida eficaz de prevenção ao HIV, como ocorre quando se utiliza do vínculo ou da aparência para realizar a decisão pelo SASP sem a profilaxia.
No caso de Philipe e Patrício, a 'confiança' deixa de ser produzida apenas pelo ‘conhecimento' e estilização saudável relacionadas aos parceiros, e passa a ser também produzida pelo ‘conhecimento' de que o parceiro faz uso de PrEP e das práticas de monitoramento de saúde a esta relacionadas. Assim, a estratégia potencializa a saúde sexual para além do HIV.
Imaginar-se 'em PrEP'
Os relatos dos interlocutores 'em PrEP' trazem à discussão os desafios, possibilidades e prazeres do uso da tecnologia, enquanto estratégia da 'prevenção combinada', que exige, para o recebimento gratuito pelo SUS, o sistemático acompanhamento médico e a periódica testagem para ISTs. Contribuíram para a decisão dos entrevistados a consciência sobre a circulação do HIV e o medo da Aids; as recorrentes falhas no uso do preservativo; a dificuldade de controle nos usos da camisinha pelo parceiro, quando se ‘faz (a posição sexual) passivo’, e o desprazer em usá-lo quando se ‘faz ativo’; também a embriaguez, que despotencializa a disposição para o uso do preservativo.
Nesse cenário, notícias sobre a PrEP circularam cada vez mais. Paulatinamente os aplicativos de 'pegação' e as conversas com pessoas próximas vão contribuindo para tornar o termo conhecido. Apesar de Patrício se referir a entrar em contato com ela a partir de um cartaz em posto de saúde e Philipe com o médico no momento da PEP, conhecer e/ou transar com alguém 'em PrEP' fez parte das experiências de boa parte dos nossos entrevistados, e contribuiu na mobilização de três dos que dela fazem uso para aprofundar a busca por conhecimento e tomar a decisão de iniciar o 'tratamento'.
Usar a PrEP implica em entrar em contato com novos conhecimentos (funcionamento dos medicamentos, efeitos colaterais etc.) e novos roteiros de interação (consultas médicas, exames, dispensa de medicamentos, tomar pílulas etc.), municiando os ensaios internos14 necessários para uma possível mudança nos esquemas cognitivos, de modo a incorporar a tecnologia nos roteiros sexuais. Aqueles conteúdos vão alimentar os processos imaginativos necessários para a expansão das experiências18, permitindo uma avaliação da tecnologia em função do contexto de vida.
Enquanto usuários de camisinha de modo inconsistente, se deparar com a PrEP e decidir utilizá-la obriga os homens gays a imaginar14,16 o drama do sexo inseguro6: "Enquanto o uso do preservativo acontece no calor do momento — um homem deve ficar excitado quando usa proteção ou decide não (usar) — tomar Truvada acontece em um estado de não excitação; é preciso admitir antecipadamente que seu compromisso com a prevenção de riscos pode ser, na melhor das hipóteses, ambíguo.” (p. 614)11.
Uma decisão que passa pela reflexão sobre as hierarquias da sexualidade, profundamente moralistas e estigmatizadoras, mesmo dentro da própria comunidade gay. "Indagar sobre Truvada para obter a PrEP pode ser sentido como um sinal de fracasso ou uma confissão de que se deseja se comportar de uma maneira que a comunidade gay convencional codificou como imoral (p. 614)".11 A antecipação da cena sexual desprotegida conflita com a construção moral do 'sexo mais seguro' (ou seja, com uso de preservativo), como vivida há quatro décadas. O preservativo é, paradoxalmente, desprezado nas cenas sexuais, mas profundamente valorizado como diacrítico de respeitabilidade na comunidade gay.
A expressão "apreensão de que se eu tomar eu vou ser mais compreensivo comigo de transar sem camisinha” do comentário de Gustavo sobre a demora em optar pela PrEP, pode se relacionar a este complexo de ideias morais relacionado ao uso do preservativo. Patrício é mais explícito sobre a moralização do sexo como fator de estigmatização, encontrada em outros estudos.8-11
Biopolítica
Há indícios de que uma outra moralidade está em construção, apoiada no poder subjetivante do exame,6,25 atualizado na biotecnologia da PrEP. Nas primeira e segunda ondas de entrevistas, a testagem surgia como capaz de resolver o drama do sexo inseguro, após SASP, definindo o status sorológico.6,7 No inquérito e na terceira onda de entrevistas, o uso da testagem prévia ao SASP foi mais recorrente, remetendo àquilo que a literatura nomeia como 'segurança negociada', usualmente utilizada nas parcerias fixas7
Na quarta onda de entrevistas, em análise neste texto, a testagem também surge propiciando o início da PrEP, por garantir o status negativo para HIV. Mais enfaticamente, o fato da pessoa realizar testagem periódica para outras ISTs emerge como um importante critério para SASP, seja nas cenas narradas pelos protagonistas, seja nas cenas narradas pelos coadjuvantes. No último caso, os exames foram muitas vezes recursos para o convencimento para o SASP ou a justificativa para a despreocupação pós-transa, ou mesmo para burla da vontade do outro, como na narrativa de Petrônio.
O exame, como tecnologia disciplinar e subjetivante, diz a verdade do sujeito quando desvela a condição sorológica, não apenas para o HIV,6,25 mas, no contexto da PrEP, para a saúde sexual mais geral, reinscrevendo a tecnologia biomédica no plano da produção da moralidade sexual.
A disposição para o uso do preservativo localiza a pessoa no rol dos 'seguros', moralmente positivados.11 No uso do preservativo, o controle da PSP sobre a pessoa é relativamente menor, se comparado ao uso da PrEP. As OGs utilizam os dados de vigilância sanitária para inculcar (por meio de campanhas e aconselhamentos) nas pessoas os cálculos de risco, de modo que, no privado das mentes, façam, em acordo com as prerrogativas governamentais, suas escolhas 'seguras'. Com a PrEP, quando dispensada gratuitamente pelo SUS, a vigilância é explícita e invade periodicamente os corpos, na medida em que a pessoa necessita da chancela do exame para continuar o 'tratamento'.
Assim, a PrEP aprofunda práticas de normalização dos corpos e dos prazeres. É possível, inclusive, que a nova moralidade em curso transforme os HSHs 'em PrEP', hoje ainda estigmatizados na comunidade homossexual, em nova casta superior de gays saudáveis, nas hierarquias da sexualidade.10,11
Em que pese os aspectos positivos que a PrEP traz para a vida dos HSHs, lembremos que ela é uma tecnologia biomédica, carreada por grandes indústrias capitalistas farmacêuticas. Vários autores já chamaram atenção sobre como os avanços de prevenção medicamentosa têm justificado o direcionamento de recursos financeiros para as indústrias, antes destinados para intervenções comportamentais. Isso tem contribuído para uma des-erotização e um esvaziamento político das estratégias de prevenção, engrossado pelo caldo do conservadorismo sexual e de gênero, reforçando estratégias preventivas calcadas apenas nas substâncias que remediam o agravo, deixando de olhar para a estrutura sociocultural, que o distribui desigualmente no tecido social.7,26,27
Considerações finais
Nos últimos dois anos, as notícias sobre PrEP chegaram a um número maior de pessoas por meio de aplicativos de 'pegação', campanhas de saúde, conversas com amigos e SASP com alguém que é dela usuário. No entanto, entre ouvir falar e fazer uso, há uma grande distância. Para a mudança de conduta, torna-se necessário um conjunto de recursos (conhecimentos e experiências) que permitam que a imaginação viaje no tempo, retomando antigas experiências do drama do sexo inseguro, e crie, antecipadamente, outras cenas sexuais e preventivas possíveis.
As narrativas apontam roteiros sexuais marcados por uso inconsistente da camisinha, em que as PGRs e as decisões para SASP se fazem quase sempre utilizando da soroescolha presumida. Assim, para além da PrEP, há a necessidade de ações que melhor qualifiquem as pessoas para outras técnicas disponíveis. Nem todos querem ou podem utilizar PrEP e há muitas alternativas a serem exploradas pelas pessoas.
A gestão de risco é mais que inculcar os cálculos de risco produzidos pela PSP e esperar a incorporação das técnicas biomédicas de segurança. Para usar a PrEP as pessoas precisam construir novos contextos de experiência sexual, em que o não uso da camisinha não signifique falha moral; precisam incluir no cotidiano novas práticas (não tão) sexuais, como o uso de pílulas, e uma permanente presença de exames para a vigilância sobre as ISTs e sobre o efeito das substâncias sobre o corpo; precisam estar prontas para enfrentar outras ISTs, caso a combinação com camisinha não ocorra, e a exposição resulte em infecção.
A gestão de risco para o HIV e outras ISTs não é simples, especialmente com a introdução da PrEP. A conversa entre Leandro e seu "ficante" é inspiradora e mostra como o diálogo face-a-face ainda é um potente modo de imaginar coletivamente, explorar medos e dúvidas e ter mais recursos para escolhas. Aprendendo com cenas como a dele, a resposta brasileira à Aids dos anos de 1990 e 2000 produziu uma variedade de tecnologias desenvolvidas por ONGs, OGs e instituições de pesquisa, que podem ser adaptadas para o atual contexto.26,27
Um modo de fazer com que as informações e os insumos não apenas cheguem às pessoas mais vulneráveis ao HIV, mas que, no conjunto das estratégias de conscientização e respostas estruturais, tenham real efetividade na criação da disposição para escolhas pessoais e coletivas acertadas, considerando as condições pessoais e os contextos sociais em que vivem e o rol das tecnologias disponíveis na ‘prevenção combinada’, dentre elas a PrEP.
Contribuição des autories
Rios LF produziu o desenho teórico-metodológico da pesquisa, e, juntamente com Adrião KL, conduziu a análise e escrita do texto. Pereira T, Soares L, Dias J, Luckwu J, Silva R e Ramos J realizaram a coleta de dados. Todos es autories contribuíram para a análise e interpretação dos resultados, revisaram e aprovaram a versão final do manuscrito.
Agradecimentos
Ao CNPq (processos 409990/2022-1 e 309265/2021-5) e programas de bolsas de iniciação científica da Facepe e UFPE/CNPq.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Zucchi EM et al. Da evidência à ação: desafios do Sistema Único de Saúde para ofertar a profilaxia pré-exposição sexual (PrEP) ao HIV às pessoas em maior vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública. 2018; 34 (7): e00206617.
2. Dourado I et al. Prevenção combinada do HIV para homens adolescentes que fazem sexo com homens e mulheres adolescentes transexuais no Brasil: vulnerabilidades, acesso à saúde e expansão da PrEP. Cad. Saúde Pública. 2023; 39 (Suppl 1): e00228122.
3. Grace D et al. HIV-negative gay men’s accounts of using context-dependent sero-adaptive strategies. Culture, Health & Sexuality; 2014, 16(3): 316-330.
4. Eaton L et al. 2009. A strategy for selecting sexual partners believed to pose little/no risks for HIV: Serosorting and its implications for HIV transmission. AIDS Care. 2009; 21(10):1279-1288.
5. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes para a organização dos serviços de saúde que ofertam a profilaxia pré-exposição sexual ao HIV (PrEP) no Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2022.
6. Rios L. et al. O drama do sexo desprotegido: estilizações corporais e emoções na gestão de risco para HIV entre homens que fazem sexo com homens. Sex, Salud Soc. 2019 May;(32):65–89. Available from: https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.32.05.a
7. Rios L. et al. ‘Couro no couro’: homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife. Saúde debate. 2022;46(spe7):85–102.
8. Bezerra VP Práticas e sentidos da sexualidade de alguns usuários da profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV. CSonline. 2017; 23: 140-160.
9. Santos LA, Grangeiro A, Couto MT. A Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) entre homens que fazem sexo com homens: comunicação, engajamento e redes sociais de pares. Ciência & Saúde Coletiva. 2022; 27: 3923-3937, 2022.
10. Barp LFG, Mitjavila MR. O reaparecimento da homossexualidade masculina nas estratégias de prevenção da infecção por HIV: reflexões sobre a implementação da PrEP no Brasil. Physis. 2020; 30 (03): e300319.
11. Dean T. Intimidades mediadas: sexo no pelo, truvada e a biopolítica de quimioprofilaxia. REBEH. 2023; 06(21): 604-638.
12. Rios L, Dias J. Parceria fixa ou parceria ocasional? Produção de confiança e despreocupação com o sexo mais seguro para o HIV entre homens que fazem sexo com homens. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, 2024, 35, e1184.
13. Kerr LC et al. HIV Prevalence among Men Who Have Sex with Men in Brazil: Results of the 2nd National Survey Using Respondent-driven Sampling. Medicine. 2018; 97(1S): S9-S15.
14. Gagnon J. A interpretação do desejo Rio de Janeiro: Garamond; 2006.
15. Paiva V. Cenas sexuais, roteiros de gênero e sujeito sexual. In RM Barbosa, R Parker (Orgs), Sexualidades pelo avesso: Direitos, identidades e poder (pp. 249-269). Rio de Janeiro: IMS/UERJ: Ed. 34 (1999).
16. Bruner J. Actos de Significado. Lisboa: Edições 70; 1990.
17. Turner V. Do ritual ao teatro: a seriedade humana no brincar. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; 2015.
18. Zittoun T, Cerchia F. Imagination as expansion of experience. Integrative Psychological Behavioral Science. 2013; 47: 305-324.
19. Ayres JR et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In Czeresnia D, Freitas C. (Org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 117-139, 2003.
20. Parker R. Na contramão da AIDS: sexualidade, intervenção, política. Rio de Janeiro, Editora 34/ABIA, 2000.
21. Latour B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP; 2000
22. Rios L, Adrião K. On descriptions, rectifications, and scientific objectivity: methodological reflections from a research on sexual behavior and HIV/AIDS among men who have sex with men. Saude soc. 2022;31(1):e210427.
23. Meng X, et al. Relative Risk for HIV Infection Among Men Who Have Sex with Men Engaging in Different Roles in Anal Sex: A Systematic Review and Meta-analysis on Global Data. Aids Behav. 2015; 19( 5): 882-889.
24. De Luiz G. The use of scientific argumentation in choosing risky lifestyles within the scenario of aids. Interface. 2013; 17(47): 789-802.
25. Valle C. Corpo, doença e biomedicina: uma análise antropológica de práticas corporais e de tratamento entre pessoas com HIV/AIDS. Vivência 2010; 35: 33-51.
26. Parker R. O fim da Aids? Rio de Janeiro: ABIA; 2015.
27. Paiva V et al . Youth and the COVID-19 crisis: Lessons learned from a human rights-based prevention programme for youths in São Paulo, Brazil. Global Public Health. 2021; 16(8–9): 1454–1467.


Outros idiomas:







Como

Citar

Rios, LF, Adrião, KG, Pereira, TDS, Soares, LVS, Dias, JPS, Luckwu, JHM, Silva, RK, Ramos, JMU. A PrEP, os exames e as reconfigurações da sexualidade e da prevenção do HIV entre jovens homens que fazem sexo com homens da Região Metropolitana do Recife. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jun). [Citado em 13/08/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-prep-os-exames-e-as-reconfiguracoes-da-sexualidade-e-da-prevencao-do-hiv-entre-jovens-homens-que-fazem-sexo-com-homens-da-regiao-metropolitana-do-recife/19663?id=19663

Últimos

Artigos



Realização



Patrocínio