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Artigos

0225/2024 - Alcoolismo em homens residentes em comunidades quilombolas do Norte de Minas Gerais, Brasil
Alcoholism in men living in quilombola communities in North of Minas Gerais, Brazil

Autor:

• Patrícia de Sousa Fernandes Queiroz - Queiroz, P.S.F. - <patriciasousandes@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4616-1593

Coautor(es):

• Leonardo de Paula Miranda - Miranda, L.P. - <email:leodpm@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9756-8393

• Pamela Scarlatt Durães Oliveira - Oliveira, P.S.D - <pamela-scarlatt@bol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6084-5011

• Maria Luiza Oliveira Silva - Silva, M.L.O - <mluizaosilvaa@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1705-5775.

• Ricardo Jardim Neiva - Neiva, R.J. - <ricardo.neiva@ifnmg.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0571-5972

• Marise Fagundes Silveira - Silveira, M. - <ciaestatistica@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8821-3160

• João Felício Rodrigues Neto - Rodrigues-Neto, J. F. - <joaofelicio@yahoo.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8189-6539



Resumo:

O objetivo deste artigo é estimar a prevalência e os fatores associados ao transtorno por uso de álcool em homens residentes em comunidades rurais quilombolas localizadas no norte de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de estudo transversal realizado em 2019 a partir de entrevistas estruturadas e aplicação do Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT). Foi conduzida regressão logística binária. Verificou-se que 21,3% dos respondentes apresentavam consumo de risco, uso nocivo e provável dependência do álcool. Houve maior chance de transtorno por uso de álcool entre homens quilombolas com idade entre 18 a 39 anos (OR= 3,98 – IC 95% 1,65;9,57) e 40 a 59 anos (OR= 3,62 – IC 95% 1,53-8,57), que sofreram discriminação em serviços de saúde (OR=3,38 – IC 95% 1,00-11,71) e com autorrelato de depressão (OR=2,79 – IC 95% 1,24-6,27). As vulnerabilidades sobrepostas revelam a importância de intervenções de saúde que atendam a essas demandas e que dialoguem com a cultura local. É preciso que os currículos formativos incorporem discussões sobre a saúde das comunidades tradicionais e que as políticas e programas de saúde adentrem os espaços rurais para que possam ser efetivadas com equidade.

Palavras-chave:

Saúde Mental; Alcoolismo; Quilombolas; Vulnerabilidade em Saúde

Abstract:

The objective of this article is to estimate the prevalence and factors associated with alcohol use disorder in men living in rural quilombola communities located in the north of Minas Gerais, Brazil. This is a cross-sectional study carried out in 2019 based on structured interviews and application of the Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT). Binary logistic regression was conducted. It was found that 21,3% of respondents had risky consumption, harmful use and probable alcohol dependence. There was a greater chance of alcohol use disorder among quilombola men aged between 18 and 39 years old (OR= 3,98 – 95%CI 1,65;9,57) and 40 to 59 years old (OR= 3,62 – 95%CI 1,53-8,57), who suffered discrimination in health services (OR=3,38 – 95%CI 1,00-11,71) and self-reported depression (OR=2,79 – 95%CI 1,24-6,27). The overlapping vulnerabilities reveal the importance of health interventions that meet these demands and that dialogue with the local culture. It is necessary that training curricula incorporate discussions about the health of traditional communities and that health policies and programs enter rural spaces so that they can be implemented with equity.

Keywords:

Mental Health; Alcoholism; Quilombola Communities; Health Vulnerability

Conteúdo:

Introdução

O álcool é a substância psicoativa mais consumida e acessível em todo o mundo, o seu uso é uma prática milenar que acompanha a humanidade desde seus tempos mais remotos (1,2). O consumo nocivo de álcool é um importante problema de saúde pública, uma vez que é considerado um fator de risco para inúmeros problemas de saúde, acidentes e violências, além de gerar impactos negativos nas dimensões social, laboral, familiar e econômica (2,3,4,5,6,7).
Além do seu valor histórico-cultural, o álcool é uma droga lícita de livre circulação e comercialização que leva a um aumento significativo do seu consumo (4). Em todo o mundo, o uso de drogas e outras substâncias é um problema crescente em ambientes rurais (8). No Brasil, nas últimas décadas, o acesso às tecnologias nas comunidades rurais ampliou de modo significativo o acesso aos bens de consumo, inclusive de bebidas alcóolicas (4).
Silva et al. (2017) alertam que o consumo elevado de álcool se concentra em algumas populações vulneráveis. Os ambientes rurais, por exemplo, são atingidos por disparidades socioeconômicas que contribuem notoriamente para o uso de substâncias; dentre essas disparidades, destacam-se a baixa renda, desemprego, baixo nível de escolaridade, oportunidades limitadas de progresso, dificuldade de acesso aos serviços de saúde, baixo apoio social, envolvimento comunitário reduzido, condições precárias de moradia, mudanças climáticas, degradação ambiental e leis e normas permissivas em relação ao uso de substâncias (8).
Mundialmente, o uso nocivo de álcool resulta em 3 milhões de mortes por ano, representando 5,3% de todas as mortes (6). A prevalência do consumo de bebida alcóolica em população rural no mundo apresenta grandes variações (9). Em assentamentos rurais localizados na região central do Brasil, o uso nocivo de álcool foi 20,14% (10); em uma população rural de um município do Sul do Brasil, a prevalência de transtorno por uso de álcool foi de 8,4% (11). Em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, o consumo de bebida alcoólica foi declarado por 41,5% dos participantes; no que se refere ao perfil de consumo, 30,8% relataram ter consumo moderado e 10,7% consumo excessivo (12). Na zona rural do oeste do Quênia, o consumo de risco de álcool foi de 28,7% (3).
Dentre os grupos sociais mencionados, a população quilombola se diferencia dos demais pela identidade étnico-racial relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida no seio da sociedade (13). A caracterização dessa população deve seguir critérios de autoatribuição, em conformidade com sua trajetória histórica, e ser atestada pela Fundação Cultural Palmares (7,13). A maioria das comunidades quilombolas estão situadas em áreas rurais e ocupam territórios vivos, onde compartilham características sociais e culturais que contribuem para a preservação de sua identidade e das tradições africanas (7).
Na população negra brasileira como um todo, identifica-se que o grupo das comunidades quilombolas é ainda mais negligenciado; convivem cotidianamente com a violência, com a violação de direitos e precisam superar uma série de obstáculos para fortalecer os processos de proteção e promoção de direitos humanos (14,15). Para Dantas et al. (2020), o isolamento, a violação dos direitos civis, culturais, políticos e sociais, bem como a exposição cotidiana à violência e abusos, podem causar sintomas psicossomáticos, uso abusivo de álcool e substâncias psicoativas, além de trazer implicações particulares para as populações rurais que sofrem historicamente com a pobreza e precariedade das condições de vida.
Embora se observe o aumento da preocupação atinente aos padrões de uso problemático de álcool em grupos vulneráveis, há uma carência de investigações voltadas especificamente para populações rurais (2,4,10,17). No que concerne às populações quilombolas, há uma lacuna ainda maior de estudos e são raros aqueles que abordam a temática do alcoolismo e as suas reverberações. Diante do exposto, o objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência e os fatores associados ao transtorno por uso de álcool em homens residentes em comunidades rurais quilombolas localizadas no norte de Minas Gerais, Brasil.

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal de base populacional, conduzido em 2019 com comunidades quilombolas localizadas na macrorregião de saúde norte do estado de Minas Gerais, Brasil. Nesse ano, a referida macrorregião de saúde estava constituída por 86 municípios, reunidos em nove microrregiões de saúde que compuseram os conglomerados da pesquisa.
Para a identificação das comunidades quilombolas foram feitas consultas aos dados disponíveis nas Secretarias Municipais de Saúde e Desenvolvimento Social, no Centro de Agricultura Alternativa e nos sítios eletrônicos do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva e da Fundação Cultural Palmares. Verificou-se a existência de 79 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares na macrorregião de saúde norte do estado de Minas Gerais e aproximadamente 19 mil habitantes quilombolas nesse espaço geográfico delimitado pelo estudo.
O presente artigo integra-se a um projeto maior cujo o objetivo primário foi realizar um mapeamento sobre a situação de saúde e trabalho de comunidades quilombolas rurais. Para atender a todas as demandas pretendidas por esse projeto foi feito um cálculo amostral em que se adotou a prevalência de 50% devido a heterogeneidade dos eventos que foram mensurados, precisão de 5 pontos percentuais, intervalo de 95% de confiança, efeito de desenho igual a 2,0, e estimativa de 20% de perdas, totalizando 905 indivíduos, entre homens e mulheres quilombolas. Ressalta-se que apenas os indivíduos do sexo masculino responderam ao questionário Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT) no momento da coleta de dados, totalizando 447 homens quilombolas.
Para este estudo, de modo específico, foram incluídos na análise dos dados somente os indivíduos do sexo masculino que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ter a idade mínima de 18 anos, se autodeclarar como quilombola e residir em uma comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares. Foram excluídos os homens que possuíam algum tipo de comprometimento mental e cognitivo, segundo avaliação da família e/ou da equipe de saúde, que impossibilitasse a compreensão e resposta dos questionários. Em idosos, foi feito o rastreio de déficit cognitivo por meio da utilização da versão em português do Mini-Exame do Estado Mental. Foram considerados portadores de déficit cognitivo e excluídos do estudo, os homens idosos analfabetos que obtiveram um escore ?19 e os alfabetizados com escore ?25 19.
Para definição das comunidades quilombolas que integrariam o estudo, realizou-se a amostragem por conglomerado com probabilidade proporcional ao tamanho (PPT), selecionando-se 30 comunidades. Assim, a probabilidade de seleção de cada comunidade durante o processo de sorteio foi diretamente proporcional ao seu número de habitantes. Devido a distribuição geográfica espaçada entre as residências, a seleção dos domicílios em cada comunidade iniciou-se a partir do ponto central, com subsequente deslocamento dos pesquisadores em sentido espiral. Os entrevista¬dores percorreram os domicílios e prosseguiram com as visitas até se atingir o tamanho amostral proposto previamente para cada comunidade.
Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário semiestruturado, baseado na Pesquisa Nacional de Saúde realizada em 2013 20. Os dados foram coletados entre os meses de janeiro e agosto de 2019 por entrevistadores treinados. Realizou-se um estudo pré-teste com 5% da amostra prevista para o estudo principal em uma comunidade quilombola não selecionada. Após o pré-teste, foram feitos ajustes textuais e alterações no ordenamento das questões. Os participantes do pré-teste não compuseram a amostra final do estudo.
O transtorno do uso do álcool foi identificado por meio do questionário desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), denominado AUDIT 21. O questionário avalia o período dos últimos 12 meses, é composto por dez questões, cujas respostas são graduadas de 0 a 4, possibilitando um espectro de pontuação de 0 a 40 pontos. A pontuação alcançada pelo sujeito permite a classificação do uso do álcool da seguinte maneira: 0 a 7 pontos – baixo risco; 8 a 15 pontos – uso de risco; 16 a 19 pontos – uso nocivo; 20 a 40 pontos – provável dependência. A amostra foi dividida entre dois grupos: (1) abstêmios/baixo risco (pontuação < 8 pontos) e (2) portadores de algum transtorno por uso de álcool (pontuação ? 8 pontos).
As variáveis independentes incluídas no estudo foram categorizadas da seguinte forma:
Variáveis sociodemográficas: faixa etária (18-39 anos, 40-59 anos, 60 anos ou mais); estado conjugal (com companheira e sem companheira); escolaridade (analfabeto, 1 a 8 anos de estudo e mais de 8 anos de estudo); atividade trabalhista (trabalho remunerado, não trabalha/desempregado e aposentado); renda familiar (em salários mínimos, ao valor de R$ 998: ?0,5, >0,5 a ?1,0, >1,0 a ?1,5 e >1,5).
Comportamentos relacionados à saúde: qualquer tipo de exercício físico nos últimos 3 meses (sim e não); tabagismo (fumante, ex-fumante e nunca fumou); discriminação em serviços de saúde (sim e não).
Estado de saúde e morbidades: autorrelato de diagnóstico médico de depressão (sim e não), hipertensão arterial (sim e não), diabetes mellitus (sim e não), doença cardíaca (sim e não) e doença pulmonar (sim e não). A autopercepção de saúde foi avaliada em muito boa, boa, regular e ruim; posteriormente essa variável foi recategorizada em autopercepção de saúde positiva (quando o participante avalia a sua saúde como muito boa ou boa) e negativa (quando o participante considera a sua saúde como regular ou ruim)22.
Os dados foram analisados por meio do módulo de Amostras Complexas do software SPSS versão 23.0. Para descrição da amostra segundo o padrão de uso de álcool e as variáveis independentes do estudo, utilizou-se a distribuição de frequência (absoluta e relativa), com correção pelo efeito do desenho. Para verificar a associação entre a variável desfecho e variáveis independentes, utilizou-se o teste Qui-quadrado. As variáveis que apresentaram nível descritivo (valor-p) até 0,20 foram selecionadas para a análise múltipla.
Na análise múltipla, aplicou-se o Modelo de Regressão Logística Binária, com correção pelo efeito de desenho. O ajuste do modelo múltiplo se deu pelo método backward. Foram estimadas as razões de chances (Odds Ratio - OR) brutas e ajustadas, com intervalos de 95% de confiança para as variáveis que permaneceram no modelo múltiplo. No modelo final foi considerada significância estatística p < 0,05. Para análise da qualidade de ajuste do modelo ajustado foi adotado o teste Hosmer e Lemeshow, ao nível de 0,05, e o Pseudo-R2 de Nagelkerke.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros que o aprovou por meio do parecer consubstanciado n° 2.821.454. Antes das entrevistas e logo após os pesquisadores esclarecerem sobre os objetivos, métodos, benefícios e potenciais riscos da pesquisa, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Participaram da pesquisa 447 homens quilombolas; não houve recusas. Conforme a tabela 1, 40,3% dos participantes tinham a idade compreendida entre 40 e 59 anos, 38,6% não tinham companheira, 52,4% tinham de 1 a 8 anos de estudo. Sessenta e cinco por cento dos homens quilombolas exerciam alguma atividade remunerada e 46,2% informaram renda familiar de 0,5 a 1 salário mínimo.
No que se refere ao comportamento relacionado a saúde, 63,6% eram sedentários, 51,9% faziam uso de bebidas alcoólicas e 40,9% eram tabagistas. As morbidades mais prevalentes entre os homens quilombolas foram hipertensão arterial (27,8%), diabetes mellitus (8,7%) e depressão (6,1%). Quarenta e seis por cento declararam uma autopercepção de saúde negativa e 6,1% sofreram algum tipo de discriminação em serviços de saúde. As demais características da amostra estão descritas na Tabela 1.

Tab.1

Na tabela 2 são descritos todos os itens do perfil de consumo de bebidas alcoólicas do AUDIT. No item frequência de consumo, observa-se que 9,4% referiram consumir bebida alcoólica 4 ou mais vezes por semana e 17,4%, em um dia típico, consomem 5 ou mais doses. A respeito de amnésia em virtude do consumo de álcool, 4,9% relataram a ocorrência pelo menos uma vez por mês e 6,9% sentem-se culpados após ter bebido.
Quando questionados sobre já terem causado algum prejuízo a si mesmo ou a outras pessoas após ter bebido, 6,9% das pessoas admitiram que sim; 21,1% relataram que parentes, amigos ou profissional de saúde já lhe sugeriram interromper o consumo de bebidas. Na variável desfecho, verificou-se que 21,3% dos respondentes ficaram acima do ponto de corte estabelecido (? 8 pontos), revelando a presença de casos com consumo de risco, uso nocivo e provável dependência do álcool nos homens quilombolas.

Tab.2

Na análise bivariada, as variáveis faixa etária, atividade trabalhista, discriminação em serviços de saúde, depressão, hipertensão arterial e autopercepção de saúde apresentaram associação com o desfecho ao nível de 20% de significância e foram selecionadas para a análise múltipla (Tabela 3).

Tab.3

Após ajustes para potenciais fatores de confusão na análise múltipla, observou-se associação estatisticamente significante entre homens quilombolas portadores de algum transtorno por uso de álcool e idade entre 18 a 39 anos (OR= 3,98 – IC 95% 1,65-9,57) e 40 a 59 anos (OR= 3,62 – IC 95% 1,53-8,57), discriminação em serviços de saúde (OR=3,38 – IC 95% 1,00-11,71) e autorrelato de depressão (OR=2,79 – IC 95% 1,24-6,27) (Tabela 4). O Teste de Hosmer e Lemeshow obtido no modelo final mostrou-se não significativo (p valor = 0,917) e o pseudo R2 foi de 11,2%.

Tab.4

Discussão

Os dados do estudo evidenciaram que 21,3% dos homens residentes em comunidades quilombolas rurais do norte de Minas Gerais são portadores de algum transtorno do uso de álcool. O consumo de bebidas alcoólicas é um hábito considerado comum entre povos isolados (23). Internacionalmente, a maioria dos estudos concluiu que as áreas rurais, em comparação à urbana, possuem uma maior probabilidade de consumo perigoso de álcool (24).
Os transtornos decorrentes do uso de substâncias aumentam o risco de um ciclo autoperpetuador de pobreza, criminalidade, baixa produtividade e problemas de saúde; ao mesmo tempo, o estigma social intensifica a marginalização dos usuários rurais e cria barreiras adicionais para a sua recuperação (8). Desse modo, é urgente e necessária a elaboração de melhores estratégias de saúde pública voltadas para a redução do fardo do consumo de álcool nas áreas rurais, em conformidade com as necessidades específicas de cada região (24).
A chance de casos de consumo de risco, uso nocivo e dependência de álcool em homens quilombolas com idade entre 18 e 39 anos foi 3,98 (IC 95% 1,65-9,57) aquela observada entre os participantes com 60 anos ou mais; já entre os homens quilombolas com idade entre 40 a 59 anos a chance de transtorno por uso de álcool foi 3,62 (IC 95% 1,53-8,57) aquela observada entre os participantes com 60 anos ou mais. Esse dado é corroborado por revisão sistemática que envolveu comunidades rurais e remotas de 49 países que indicou que os adultos jovens, em relação aos adultos mais velhos ou aos adolescentes mais jovens, tinham uma maior probabilidade de envolver-se no uso perigoso de álcool ou sofrer danos relacionados ao álcool (24).
O uso do álcool faz parte da coletividade das comunidades quilombolas e as primeiras experiências de consumo ocorrem, geralmente, na companhia de parentes mais velhos. Esses espaços são extraordinariamente estimuladores e permissivos, seja pelo consumo habitual generalizado, seja pela facilidade de acesso às bebidas alcoólicas. Nota-se, portanto, que a cultura ocupa um lugar central na determinação do uso do álcool, promovendo uma perpetuação de hábitos das gerações anteriores (4,5,25). Entretanto, Silva e Menezes (2016) asseveram que ainda que tenha um bojo cultural, o uso/abuso do álcool em comunidades quilombolas não deve ser banalizado, uma vez que a falta de ações voltadas para o consumo consciente pode colocar a vida dos indivíduos em risco.
Estudo conduzido com jovens quilombolas em Pernambuco observou que muitas circunstâncias podem motivar indivíduos mais jovens a fazerem uso de álcool, como uso relacionado à obtenção de alegria e coragem, refúgio dos problemas e como uma forma de lidar com sentimentos desagradáveis (25). Outro fator importante é a dificuldade de acesso aos centros urbanos para que possam encontrar outras formas de lazer e divertimento, uma vez que há uma grande restrição de oportunidades de entretenimento nessas comunidades, o que assevera a precariedade e a invisibilização social desses espaços (5,25).
A experiência de discriminação em serviços de saúde aumentou significativamente a chance do consumo de risco, uso nocivo e provável dependência de álcool nos homens quilombolas (OR: 3,38; IC95% 1,00-11,71). No Brasil, a construção social do negro como uma ameaça a sociedade está diretamente relacionada com o racismo que essas pessoas são submetidas nos serviços de saúde (26). Sobre isso, Anunciação et al. (2022) consideram que, historicamente, o racismo institucional impera nos serviços de saúde brasileiros e compromete o princípio da equidade em saúde e, por conseguinte, subjuga, domina e exclui os negros do adequado acesso aos serviços e instituições de saúde.
Outro aspecto que merece relevo é a dificuldade de acesso da população rural a serviços específicos, como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS – AD), que centram suas ações nas áreas urbanas (2). Assim, as demandas de álcool e drogas nas áreas rurais são assumidas pelas equipes de Atenção Primária de forma pontual e isolada (2). Nos serviços de saúde, a compreensão dos profissionais acerca do uso de substâncias não difere da concepção hegemônica da sociedade e, por isso, os usuários são percebidos como cidadãos desprovidos de direitos, inclusive do direito à saúde (2). Isso é particularmente grave para a população negra que já acumula uma série de prejuízos sociais e econômicos.
Nota-se, portanto, com base nos dados obtidos pelo estudo, que os serviços de saúde que deveriam ser espaços de acolhimento, apoio e referência para um atendimento especializado e individualizado, pode tornar-se um fator que favorece e/ou potencializa o alcoolismo nos homens quilombolas. Para Dimenstein e colaboradores (2019) dentre as grandes questões para pensar a problemática do uso abusivo de álcool está o reconhecimento do racismo institucional e das desigualdades étnico-raciais como determinantes sociais das condições de saúde.
É importante destacar que estudos realizados com homens e mulheres nas mesmas comunidades rurais quilombolas verificou que a discriminação em serviços de saúde mais que dobrou a chance de transtornos mentais comuns (OR: 2,44; IC95% 1,44-4,13) (29) e apresentou associação significativa com o aumento de doenças crônicas não transmissíveis (RP: 1,17; IC95% 1,04-1,31) (30). Esses dados atestam o impacto da discriminação nas condições de vida e saúde da população quilombola e a necessidade de discutir a (in)efetividade da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra31 que traz em seu bojo a priorização da redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Refletir sobre o racismo institucional é importante para mitigar as desigualdades e as suas consequências sociais e psicológicas. Possivelmente, uma estratégia fecunda para isso está relacionada com os processos pedagógicos que permeiam a formação dos profissionais e gestores de saúde, a fim de que a competência técnica esteja alicerçada com a valorização das subjetividades e com as dimensões racial, de classe e gênero que atravessam o processo saúde-doença.
O autorrelato de depressão foi prevalente em 6,1% dos participantes do estudo e, após a análise múltipla, essa variável praticamente triplicou a chance de uso nocivo de álcool (OR: 2,79; IC95% 1,24-6,27). Em 2017, o United Nations Office on Drugs and Crime evidenciou que 20% da população em geral com um transtorno por uso de substâncias tinham pelo menos um transtorno de humor independente atual (8). O uso regular ou excessivo de substância pode exacerbar problemas de saúde mental concomitantes e favorecer o desenvolvimento de problemas psicológicos e psiquiátricos (8). Estudos realizados na Finlândia e Cingapura demonstraram associação positiva entre o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e transtornos de humor (32,33,34), o que denota que essa relação independe do nível de desenvolvimento do país em que o indivíduo acometido reside e também evidencia a fragilidade global das intervenções sociais e terapêuticas sobre os problemas relacionados ao alcoolismo.
Em uma perspectiva multidimensional, o território e os contextos de vida podem funcionar como amortecedores de vulnerabilidades ou disparadores de sofrimento psíquico (16). De fato, as barreiras geográficas, a falta de infraestrutura básica e os problemas típicos da falta de desenvolvimento social tornam as populações do campo menos visíveis e mais difíceis de serem alcançadas pelas políticas públicas (23), aumentando sobremaneira a vulnerabilidade desse grupo ao sofrimento psíquico e ao transtorno por uso de álcool (5,23). Salienta-se que indivíduos com transtornos concomitantes tendem a estar em situação pior do que aqueles com uso de substâncias ou transtornos mentais e são mais propensos a sofrer de problemas de saúde, alto desemprego, moradia instável e um histórico de tentativas de suicídio (8).
Entre as limitações deste estudo, destacam-se a pouca interlocução dos resultados obtidos com outros trabalhos envolvendo populações quilombolas em virtude do número escasso de pesquisas, prejudicando o aprofundamento crítico da realidade; o autorrelato de doenças crônicas e comportamentos relacionados a saúde, passível, portanto, de viés de memória e de atenção; as diferentes metodologias utilizadas pelos estudos para definição do transtorno por uso de álcool que, por sua vez, podem comprometer a comparação fidedigna dos dados.
Nascimento e colaboradores (2020) consideram que vulnerabilidades sobrepostas, como foram verificadas neste estudo, afetam a saúde e qualidade de vida e requerem intervenções individuais, sociais e políticas. Nesse sentido, destaca-se a importância dos serviços de saúde que atuam em áreas territoriais, uma vez que essas equipes devem ter competência para identificar os principais problemas que afetam a comunidade a fim de elaborar estratégias de intervenção que atendam às demandas e que respeitem e dialoguem com a cultura local (23,35).
Para isso, é fundamental que os gestores e profissionais de saúde assumam esse desafio como uma responsabilidade ética e profissional. É preciso que os currículos formativos incorporem, de modo transversal, discussões acerca da saúde de comunidades tradicionais e vulneráveis a fim de despertar a importância de uma práxis transformadora e alicerçada nas circunstâncias individuais e locais. Também é fulcral que as políticas e programas voltadas para atenção à saúde adentrem os espaços rurais e abarquem as suas particularidades em seu escopo e que também estimulem uma reflexão acerca das desigualdades étnico-raciais para que possam ser efetivadas com equidade.
Sugere-se a elaboração de novos estudos que incluam homens e mulheres, uma vez que o alcoolismo também tem sido crescente no sexo feminino nos espaços rurais. Estudos quantitativos, mas, sobretudo, qualitativos que revelem as reverberações do alcoolismo nos diferentes contextos de vida dos quilombolas são importantes para sensibilizar e instrumentalizar gestores e profissionais de saúde sobre ações efetivas e concatenadas com a realidade prática dessas comunidades.

Referência


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Queiroz, P.S.F., Miranda, L.P., Oliveira, P.S.D, Silva, M.L.O, Neiva, R.J., Silveira, M., Rodrigues-Neto, J. F.. Alcoolismo em homens residentes em comunidades quilombolas do Norte de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/mai). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/alcoolismo-em-homens-residentes-em-comunidades-quilombolas-do-norte-de-minas-gerais-brasil/19273?id=19273

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