0074/2025 - Análise comparativa dos registros brasileiros em saúde e segurança pública sobre violência sexual contra meninos e homens
Comparative Analysis of Brazilian Health and Public Security Records on Sexual Violence Against Boys and Men
Autor:
• João Barbosa - Barbosa, J. - <manarellibarbosajv@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0009-0006-3420-6420
Coautor(es):
• Guilherme Nunes - Nunes, G. - <gpavini1@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1789-8286
• Lucas Mauro de Andrade Sucena - Sucena, L.M.A - <mauroaeronautica@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1702-6517
• Ana Thereza Cordeiro - Cordeiro, A.T - <anatherezaalbuquerque@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4281-5841
• Ana Carolina da Silva - Silva, A.C - <anamontanucci@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-2412-6263
• Denis G. Ferreira - Ferreira, D.G - <denisgferreira@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4659-4468
Resumo:
Entre as formas de violência, destaca-se a sexual. Historicamente, esse tipo de violência tem sido estudado entre crianças, adolescentes e mulheres. Poucos são os estudos que analisam a violência sexual contra homens. Este estudo teve como objetivo analisar os dados de notificação e denúncia de violência sexual e estupro contra meninos e homens brasileiros a partir de duas bases de dados, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram analisados os registros entre os anos de 2010 e 2022, a partir das características da vítima e da violência, estimando as taxas por 100 mil homens e calculando o coeficiente de regressão para analisar a tendência das notificações. Nossos resultados indicam que as taxas de estupro e estupro de vulnerável apresentaram uma queda em vários estados brasileiros, mas as taxas de notificações apresentaram aumento. Observou-se também que, durante a pandemia da Covid-19, houve uma queda importante nas notificações de violência sexual. Além disso, as notificações concentraram-se na Região Sudeste, entre meninos de 0 a 14 anos, brancos e pardos. A partir desses dados, consideramos que estratégias de prevenção sejam adotadas para todos os públicos, assim como sensibilização dos profissionais de saúde para acolher meninos e homens vítimas.Palavras-chave:
Pandemia; Homens; Notificação; Análise de Dados Secundários.Abstract:
Among the various forms of violence, sexual violence stands out. Historically, this type of violence has been studied primarily among children, adolescents, and women. Few studies have analyzed sexual violence against men. This study aimed to analyze notification and reporting data of sexual violence and rape against boys and men in Brazil using two databases: the Notification of Health Complications Information System (SINAN) and the Brazilian Forum on Public Security (FBSP). Records2010 to 2022 were analyzed based on the characteristics of the victims and the violence, estimating rates per 100,000 men and calculating the regression coefficient to analyze the trend of notifications. Our results indicate that the rates of rape and vulnerable rape have declined in several Brazilian states, while notification rates have increased. It was also observed that during the COVID-19 pandemic, there was a significant drop in sexual violence notifications. Furthermore, notifications were concentrated in the Southeast region, particularly among boys aged 0 to 14 years, predominantly white and brown. Based on these data, we recommend that prevention strategies be adopted for all populations, as well as training healthcare professionals to provide support for boys and men who are victims.Keywords:
Pandemic; Men; Notification; Secondary Data Analysis.Conteúdo:
A violência é um fenômeno histórico e social com interferências significativas na saúde dos indivíduos e comunidades1,2. Do ponto de vista histórico, é recente a sua inclusão como uma pauta importante para a área da saúde. Através do primeiro relatório mundial sobre violência e saúde, em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionou sobre o assunto, reconhecendo-o como um problema de grande magnitude, e recomendou ações locais, nacionais e globais para seu enfrentamento3. Entre as diversas formas, a violência sexual (VS) se destaca por sua associação com diversos desfechos, que incluem impactos significativos na saúde física, mental e sexual das vítimas4,5.
Sobre a VS, é possível afirmar que, quando ocorre contra homens, é um fenômeno muitas vezes invisibilizado e pouco explorado nas discussões sociais e acadêmicas6–8, mesmo diante de sua relevância e impacto significativo na vida das vítimas6,9. Embora a VS seja frequentemente associada a mulheres e crianças, os homens também são alvos dessa forma de agressão, enfrentando desafios particulares em relação à divulgação, denúncia e busca por apoio9.
Recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) divulgou um relatório que apresenta estimativas sobre a incidência de estupro entre os brasileiros. Para chegar a essas estimativas, o Ipea considerou diversos dados, incluindo as notificações do Ministério da Saúde, visto que, desde 2011, todos os casos de VS que chegam a uma unidade de saúde são compulsoriamente notificados, o que fornece uma base robusta para análises epidemiológicas. Além disso, o relatório utilizou informações da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, que incluiu pela primeira vez questões relacionadas à VS. Os pesquisadores do Ipea incluíram, também, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que abrangem denúncias registradas nas secretarias de segurança pública. Ao estratificar os dados por sexo, o relatório revela que os casos de estupro contra meninos e homens correspondem a aproximadamente 92 mil ocorrências por ano10.
Nesse contexto, evidencia-se um problema de grande magnitude. No entanto, há uma escassez de pesquisas de abrangência nacional abordando essa temática. Um dos poucos estudos com amostra representativa de brasileiros, que incluiu homens, foi a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015, que incorporou questionamentos relacionados à VS entre os estudantes, revelando uma prevalência de 3,7% entre os meninos11. Outro estudo baseado em uma amostra representativa da população brasileira, a PNS de 2019, constatou que aproximadamente 0,45% dos homens brasileiros com 18 anos ou mais já foram vítimas de VS 12 meses antes da data da pesquisa, excluindo crianças e adolescentes da amostra12. Por outro lado, uma revisão da literatura sobre VS contra brasileiros indica que a prevalência entre os homens pode variar de 1 a 35%8.
Nessa realidade, em que há uma discrepância robusta entre os dados de pesquisa com amostras representativas e os de outras pesquisas transversais com autorrelato de VS no Brasil, observa-se uma lacuna importante de informação. Adicionalmente, o Brasil é um país de proporções continentais, com índices de desigualdade profundamente acentuados, o que pode fazer com que as prevalências e incidências de VS sejam distintas em diferentes regiões e contextos. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é estimar as taxas de notificação de VS do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde e as denúncias de estupro e estupro de vulnerável divulgadas pelo FBSP ao longo dos anos, viabilizando, assim, uma análise temporal das tendências dos dados relacionados aos meninos e homens brasileiros a partir das unidades da Federação.
Método
Trata-se de um estudo ecológico descritivo de série temporal, com dados secundários, em que se analisou as notificações de VS contra meninos e homens brasileiros a partir dos dados do Sinan e das denúncias encaminhadas ao FBSP. Foram realizados três tipos de análise: uma de série temporal, para o período compreendido entre 2017 e 2022, comparando as tendências observadas para o Brasil e as unidades da Federação com os dados das duas fontes de informação, uma de notificações (Sinan), outra de boletins de ocorrência (FBSP); um comparativo das taxas de notificação de VS e o número de municípios notificantes com dados do Sinan; e uma análise das características das notificações segundo variáveis selecionadas para 2010 e 2022, também baseada em dados do Sinan.
O Sinan é uma plataforma mantida pelo Ministério da Saúde brasileiro e reúne dados sobre diversos tipos de doenças e agravos de saúde, incluindo casos de violência. Já o FBSP é uma organização que compila dados sobre segurança pública no Brasil, incluindo informações sobre crimes, violência e outras ocorrências. Os dados do FBSP são obtidos a partir dos boletins de ocorrência registrados nos municípios e posteriormente enviados às secretarias de segurança pública estaduais. A diferença entre essas duas bases de dados está nos contextos de seus registros, um na saúde e outro na segurança pública. Além disso, os dados diferem em características, pois na saúde são notificações compulsórias dos casos suspeitos e/ou confirmados de violência, enquanto na segurança pública são boletins de ocorrência para instauração de inquéritos policiais.
Sobre os dados do Sinan, as variáveis escolhidas para análise foram VS e sexo masculino. Além dessas, foram selecionadas as seguintes: região do país onde aconteceu a notificação, faixa etária, raça e grau de escolaridade da vítima. Foram coletadas, ainda, informações sobre as características da violência, como: agressor/a, local da ocorrência, se tratou-se de violência de repetição e, por fim, se houve uso de álcool durante a VS. Essas informações foram coletadas entre os anos de 2010 e 2022 (último ano com dados disponíveis). Do FBSP, as variáveis foram estrupo e estrupo de vulnerável, registrados entre 2017 e 2022, período para o qual os dados estavam estratificados por sexo.
Para a análise de série temporal entre 2017 e 2022, foram calculadas a taxa de notificações de VS por 100 mil homens e as taxas de estupro e estupro de vulnerável, com os dados obtidos respectivamente do Sinan e do FBSP, para o Brasil e para cada uma das unidades da Federação. Estimou-se o coeficiente de regressão Prais-Wisten para investigar a tendência temporal da taxa das notificações e denúncias de forma a compreender a evolução ao longo do tempo, tanto para o Brasil quanto para todos os estados. Os coeficientes positivos e com o valor de p?0,05 foram considerados aumento nas taxas e os coeficientes negativos com o valor de p?0,05 foram considerados diminuição. Todas as taxas por 100 mil homens foram estimadas a partir dos dados populacionais disponíveis no Sinan na Projeção da população das unidades da Federação por sexo, idade simples ou faixa-etária: 2010-2060 (edição 2018).
Para verificar se houve modificação nas características da notificação de VS contra meninos e homens entre o ano de 2010 e o ano de 2022, foram comparadas as distribuições percentuais, em cada ano, para as variáveis selecionadas. Foi realizado também o teste do qui-quadrado para comparar as distribuições. Além disso, o número de municípios notificantes de VS contra meninos e homens para cada ano do período 2010 a 2022 foi comparado com a taxa de notificação desses eventos por 100 mil homens para observar as duas tendências.
Por se tratar de uma investigação com dados secundários e públicos, sem identificação nominal e individualizada dos sujeitos, esta pesquisa não precisou de aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, segundo a Resolução n. 510/2016 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Resultados
A Tabela 1 apresenta os registros de boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável organizados pelo FBSP e as notificações de VS do Ministério da Saúde, juntamente com as taxas de notificação por 100 mil homens no Brasil e em cada estado, durante o período de 2017 a 2022. A análise dos dados apresentados indicou variações estatisticamente significativas nas taxas de denúncias de estupro e estupro de vulnerável e nas notificações de violência sexual contra homens brasileiros.
Para as denúncias de estupro e estupro de vulnerável, observou-se uma variação significativa nas taxas entre 2017 e 2022 em diversos estados. Na maioria deles, houve uma variação negativa, como no Amazonas, com -53,7% (p<0,05), Distrito Federal, com -50,2 (p<0,05), Minas Gerais, com -47,8 (p<0,05), e São Paulo, com -35,5% (p<0,05). A única variação estatisticamente positiva entre as denúncias foi observada no Rio Grande do Norte, com um aumento de 150,1% (p<0,05) (Tabela 1).
Em relação às notificações de violência sexual, os resultados mostraram também variações estatisticamente significativas, porém a maioria delas é uma variação positiva, diferente dos dados do FBSP. Os maiores aumentos nas taxas foram observados em Roraima, com um acréscimo de 289,9% (p<0,05), e em Alagoas, que apresentou um incremento de 287,3% (p<0,05). As demais variações positivas não foram tão expressivas quanto às dos estados de Roraima e Alagoas, mas são Mato Grosso (73,0%; p<0,05), Paraíba (26,3%; p<0,05), Rio de Janeiro (43,9%; p=0,05), Rondônia (28,4%; p=0,05), Santa Catarina (31,2%; p<0,05) e São Paulo (37,5%; p<0,05) (Tabela 1).
Os resultados acima correspondem ao período de 2017 a 2022. Porém, como tínhamos os dados do Sinan disponíveis desde 2010, estimamos o coeficiente de regressão Prais-Wisten para os dados do Brasil (2010-2022) e observamos um coeficiente positivo e estatisticamente significativo (p <0,001). Esse resultado sugere que, embora apenas 8 estados tenham apresentado um aumento estatisticamente significativo no número de notificações no período de 2017 a 2022, é possível que esse aumento não tenha sido notado nos resultados acima em decorrência da diminuição de notificações provocada pela pandemia da Covid-19.
[Inserir Tabela 1]
A Figura 1 apresenta que a taxa de notificações de VS contra meninos e homens por 100 mil homens nos serviços de saúde aumentou de forma consistente, chegando a 2022 com a maior taxa registrada na série histórica (6,0). Olhando com atenção, observamos que a taxa de notificações vinha aumentando desde 2010, mas teve uma queda importante em 2020. Em 2021 a taxa voltou a subir, chegando a um patamar pouco abaixo do ano de 2018, e em 2022 voltou a subir substancialmente. O número de municípios que notificaram apresentou a mesma variação observada acima, há uma trajetória ascendente. O aumento é interrompido também em 2020 e tem seu pico em 2022. É possível observar ainda que, entre 2013 e 2015, as taxas de notificação mantiveram-se iguais, porém há um aumento dos municípios notificantes em 2015, indicando que nesse ano houve maior cobertura nas regiões notificantes para aquele período. Por outro lado, entre os anos de 2015-2016 e 2020-2021, o número de municípios notificantes diminuiu, mas o número de notificações aumentou, sugerindo que os municípios que notificaram o fizeram mais ou que nesses anos pontuais tivemos um aumento de casos (Figura 1).
[Inserir Figura 1]
Em relação às características sociodemográficas das vítimas e da violência em si, os resultados destacam um aumento expressivo nas notificações entre 2010 e 2022, porém as proporções das notificações mantiveram-se semelhantes. Sobre as regiões do país, a Região Sul apresentou a maior variação percentual (534,8%) seguida pela Região Nordeste (534,4%). Em relação à faixa etária, houve um aumento de 595,8% entre adolescentes e jovens (15 a 19 anos), e 1386% em adultos de 20 a 60 anos ou mais. Quanto à raça, as maiores variações foram observadas entre os indivíduos pardos (651,8%) e indígenas (850%). No que diz respeito à escolaridade, destacou-se um aumento expressivo entre os que concluíram o ensino médio (6400%). Em relação ao agressor, as maiores variações foram observadas entre agressores familiares (617,0%) e agressores desconhecidos (575,7%). No local de ocorrência, destacamos os aumentos da residência (468,5%) e da habitação coletiva (546,7%) (Tabela 2).
Ainda sobre os resultados da Tabela 2, as proporções entre as categorias mantiveram-se semelhantes no início dos registros (2010) e no último ano com dados disponíveis (2022). Por exemplo, a variável que apresentou o dado se a violência se tratava de uma repetição representou 34,7% em 2010 e 34,8% em 2022. O local da ocorrência sendo a residência da vítima ou do agressor representou 57,3% em 2010 e 59,7% em 2022. O uso de álcool durante a situação da violência foi registrado em 13,1% em 2010 e na mesma porcentagem em 2022 (Tabela 2).
Analisando o resultado do teste de qui-quadrado, a maioria das variáveis apresentou uma associação estatisticamente significativa com o período analisado, sendo elas: a região do país, a faixa etária, a raça, a escolaridade e relação com o agressor (Tabela 2).
[Inserir Tabela 2]
Discussão
Este é o primeiro estudo brasileiro que analisou os dados de notificação de VS do Sinan e os registros de estupro e estupro de vulnerável do FBSP exclusivamente com meninos e homens. A partir dos nossos resultados, é possível observar que as taxas de notificações de VS estão aumentando e as taxas de estupro e estupro de vulnerável diminuindo, e mesmo diminuindo são maiores que as taxas de VS do Sinan. No estudo realizado pelo Ipea, com dados da PNS 2019 e do FBSP, constatou-se que os crimes registrados pela polícia representam 8,5% de todos os casos, enquanto no sistema de saúde são notificados apenas 4,2%10. Esses dados são consistentes com a natureza das situações de VS, pois nem todas as vítimas buscam atendimento médico imediato. Por exemplo, casos de VS podem incluir toques indesejados, beijos forçados, exposição a pornografia ou masturbação por cima da roupa, os quais nem sempre resultam em procura por cuidados médicos. No entanto, todas essas situações são configuradas como crimes e devem ser registradas em delegacias. Um estudo que analisou as barreiras para a procura médica em casos de violência identificou que as vítimas não percebem o cuidado médico como necessário, dificultando, assim, a procura por serviços e saúde13. Esse fator provavelmente contribui para a discrepância observada, com taxas de notificação mais altas em registros de segurança pública, em comparação com os dados do sistema de saúde.
Outro aspecto observado é que as taxas de notificação no Sinan aumentaram ao longo do tempo, mas elas são menores que as taxas observadas nos estudos com meninas e mulheres. Um estudo que também utilizou dados do Sinan, entre os anos de 2011 a 2019, sobre as notificações de violências contra crianças, identificou que as taxas de notificação por 100 mil crianças foram maiores com crianças do sexo feminino (76 em 2011 e 56 em 2019), em comparação às notificações dos meninos (22 em 2011 e 20 em 2019)14. Essas taxas são consideravalmente maiores do que a encontrada por nós. Todavia, nosso estudo incluiu pessoas de todas as faixas etárias, e o resultado do estudo citado incluiu apenas crianças e adolescentes, os principais afetados pela VS no Brasil. Destacamos ainda que, assim como as taxas estimadas são maiores entre as meninas mulheres, nos estudos de prevalência os resultados indicam também que as mulheres são as principais vítimas6.
Uma revisão de escopo sobre VS contra meninos e homens brasileitos notou que os estudos de prevalência concentram esforços para estimar as prevalências entre as meninas e mulheres, e há estudos que não discriminam o sexo das vítimas crianças porque imagina-se que todas são do sexo feminino6. O esforço dos pesquisadores em estudar a violência contra meninas e mulheres produz uma quantidade de dados maior em comparação aos dados sobre homens. De todo modo, o presente estudo apresenta taxas importantes de VS contra meninos e homens e indica também que essas taxas estão aumentando, talvez por uma maior conscientização dos trabalhadores que recebem as vítimas nos serviços de saúde, talvez porque os meninos e homens estejam mais seguros quanto a procurar assistência em saúde. Nesse cenário, é necessário que estejamos atentos e fortemente engajados na promoção da prevenção da VS para todos os públicos.
A comparação com dados da saúde e da segurança pública possibilitou observar as tendências nos dois setores. Na segurança pública, por alguma razão desconhecida, as taxas de denúncia tiveram uma queda no Brasil, em alguns estados. Em contrapartirda, os dados da saúde indicam um aumento em alguns estados e, no Brasil, o aumento só foi estatisticamente significativo quando analisado desde 2010. Os dados do Sinan de 2017 a 2022 indicam um aumento, mas sem significância estatística. Por outro lado, nos dados de 2010 a 2022, há um aumento estatisticamente significativo. Nossa hipótese para esse resultado é que a pandemia da Covid-19 comprometeu significativamente as notificações entre os anos de 2020 e 2021. Ao redor do mundo e no Brasil, as notificações de determinadas doenças e agravos à saúde também tiveram uma queda durante pandemia, ou seja, esses resultados dialogam com o que encontramos no nosso estudo15–17.
Nos casos específicos de VS, alguns estudos indicam que a maioria das agressões sexuais acontece na própria residência da vítima, cometidas por pessoas próximas, geralmente familiares18,19. Isso pode ter contribuído substancialmente para a subnotificação da VS no período da pandemia e influenciado as taxas estimadas neste estudo. No momento em que as medidas de isolamento social foram adotadas, as crianças e adolescentes passaram a maior parte do tempo, se não todo o tempo, com seus familiares em casa, ou seja, o local com maior risco para a violência. Nesse período, as pessoas só procuravam os serviços de saúde para situações emergenciais e as crianças e adolescentes não frequentavam a escola. Em um estudo que investigou o tempo de registro da violência e a gravidade dos casos em prontuários de um serviço especializado, identificou-se que os serviços de saúde e as escolas podem oferecer um efeito protetor ao denunciar abusos mais rapidamente do que a família ou amigos20, e no cenário da pandemia essa possibilidade estava inviabilizada.
Como observado, a pandemia da Covid-19 afetou a maneira como doenças e condições de saúde eram relatadas no setor da saúde, mas foi em 2019, um ano antes da pandemia, que a segurança pública registrou a maior diminuição nos seus registros. Na esfera da segurança pública, os delitos como estupro e estupro de vulnerável têm apresentado índices de notificação superiores aos da saúde ao longo de toda a série histórica. No entanto, por razões que ainda precisam ser investigadas, em 2019 observou-se uma redução, quase pela metade, nas taxas de denúncia desses crimes. É necessário realizar análises mais detalhadas dos dados do FBSP sobre estupro e estupro de vulnerável para entender melhor os motivos por trás das flutuações nos registros.
Em relação às regiões do país, observamos que o Norte concentrou as maiores taxas de estupro e estupro de vulnerável das informações analisadas. A Região Norte apresenta uma cobertura de serviços de saúde na atenção primária inferior ao que está preconizado21, além de concentrar indícies de pobreza mais proeminentes que outras regiões do país22. Essa conjuntura costuma estar associada ao incremento da violência23. É possível que nas regiões onde há pouca presença do Estado, por meio de políticas e serviços, haja uma maior sensação de impunidade, e pode ser por essa razão que as taxas do Norte sejam maiores, comparativamente com as outras regiões do país. Adicionalmente, na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015, um estudo de amostra representativa dos escolares brasileiros identificou que as maiores prevalências de VS foram estimadas na Região Norte do país24, resultado que vai na mesma direção das taxas estimadas neste estudo.
Sobre a proporção das notificações referentes às características das vítimas, observamos que elas são, na sua grande maioria, meninos de 0 a 14 anos, concentrados na Região Sudeste e pardos. Sobre as cactaterísticas da violência, é possível afirmar que os agressores são pessoas conhecidas da vítima (familiares e amigos), que a violência acontece sem a presença de álcool e tem um caráter de repetição importante. Em relação ao caráter de repetição, o estudo que analisou os dados de prontuários de um serviço especializado entre os anos de 2004 a 2013 identificou que os meninos sofrem abusos mais graves e duradouros. As autoras explicam que questões de gênero estão envolvidas nessa temática e que os meninos temem ser identificados como homossexuais25, portanto demoram para falar. Além disso, é comum que as vítimas estejam morando com os agressores, o que dificulta ainda mais a notificação e, por essa razão, os agressores podem cometer violências mais graves e duradouras, na certeza na impunidade.
Nosso estudo traz para a pauta da violência um assunto ainda pouco estudado, mas com crescente interesse de pesquisadores26, a VS contra meninos e homens. Os meninos têm sido contemplados em alguns estudos27,28, mas os homens são negligenciados. A revisão de escopo que analisou os trabalhos com esse recorte no Brasil identificou que homens, além dos meninos, também podem ser vítimas6. O estudo brasileiro com homens que fazem sexo com outros homens, que analisou as vitimizações na idade adulta, identificou que 4,3% dos participantes foram vítimas de VS na idade adulta29. No nosso estudo, a variação percentual mais acentuada em relação aos registros da faixa etária foi entre os adultos, indicando uma necessidade de atenção para a temática. O fato dos homens serem majoritariamente os maiores agressores sexuais faz com que se crie um imaginário de eles estão apenas no papel de agressores26. No entanto, as pesquisas estão indicando que homens adultos também podem ser vítimas e precisam de atenção de igual modo.
Este estudo tem uma série de potencialidades, reúne registros de diferentes bases de dados e pode ajudar na problematização da VS no Brasil, principalmente com meninos e homens. Porém, apresenta algumas limitações. Os dados do FBSP puderam ser comparados com os dados do Sinan apenas entre o período de 2017 a 2022, que, do ponto de vista de séries temporais, é um tempo curto de análise. Além disso, dados de notificação ou de registros de ocorrência não correspondem de modo real à magnitude do problema, não sendo possível estimar com precisão a prevalência e a incidência da VS contra meninos e homens brasileiros. De todo modo, o estudo traz pistas para novas pesquisas e indica que trabalhadores da saúde e da segurança pública precisam estar atentos às violências sexuais contra meninos e homens. Embora as taxas sejam menores do que contra as meninas e mulheres, trata-se de um problema grave, que deve ser enfrentado com boas políticas públicas de prevenção e acolhimento para as vítimas.
Adicionalmente, a análise das características das vítimas de VS apresenta informações importantes, mas há limitações que podem impactar a interpretação dos dados e a comparação entre diferentes períodos: a qualidade das informações coletadas e a falta de informações nos registros oficiais (Sinan e FBSP). Destaca-se, portanto, a urgência de implementar medidas que visem aprimorar a completude e a qualidade desses registros, a fim de garantir uma análise mais precisa e comparativa dos dados de VS contra homens. Nesse sentido, consideramos pertinente que outros pesquisadores expandam os esforços para incluir uma gama maior e mais diversificada de informações para capturar uma imagem mais abrangente da VS contra meninos e homens brasileitos, endossamos, ainda, que é necessário que o movimento social e os trabahadores da saúde e segurança pública se mobilizem em relação aos regristos dos sistemas de notificação, visto que esse problema não é novo30.
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