EN PT

Artigos

0004/2025 - AUSTERIDADE FISCAL, COVID-19 E AS METRÓPOLES: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A RESILIÊNCIA DO FINANCIAMENTO DAS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL
AUSTERIDADE FISCAL, COVID-19 E AS METRÓPOLES: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A RESILIÊNCIA DO FINANCIAMENTO DAS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

Autor:

• Nilson do Rosário Costa - Costa, N.do R. - <nilsondorosario@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8360-4832

Coautor(es):

• Raphael Costa Pinto - Pinto, R.C - <raphael.fiocruz.liaps@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-0488-9786

• Alessandro Jatobá - Jatobá, A. - <alessandro.jatoba@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7059-6546



Resumo:

O artigo descreve o padrão de resiliência dos governos municipais no financiamento das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) nas décadas de 2000 e 2020, em contexto de difusão da agenda da austeridade fiscal e da emergência sanitária no Brasil. A mensuração da resiliência do financiamento permite identificar os mecanismos de mobilização de recursos para sustentação da capacidade institucional dos sistemas de saúde O artigo analisa, com dados de painel do SIOPS, a destinação de recursos próprios municipais para as ASPS de 17 metrópoles (cidades com mais de 900 mil habitantes) de 2002 a 2021. Com base nos valores observados na vinculação orçamentária das receitas próprias, o artigo calcula o Índice de Resiliência Orçamentária Municipal (IROM). O artigo demonstra a sustentação das despesas municipais com ASPS durante os dois ciclos da pandemia da Covid-19 (2020-2021). O pacto da vinculação orçamentária foi crucial para a sustentação do financiamento na maioria das Metrópoles, possibilitando a resposta resiliente em anos críticos para o SUS.

Palavras-chave:

Financiamento do SUS. Federalismo. Austeridade Fiscal. Vinculação Orçamentária. Sistema de Saúde Resiliente.

Abstract:

The article describes the pattern of resilience of municipal governments in financing public health actions and services (PHAS) in the 2000s and 2020s, in a context of dissemination of the fiscal austerity and health emergency agenda in Brazil. The financing resilience identifies the mechanisms for mobilizing resources to support the institutional capacity of health systems. The article analyzes the allocation of municipal own resources to the PHAS of 17 metropolises (cities with more than 900 thousand inhabitants)2002 to 2021. Based on the values observed in the budget allocation of own revenues, the article calculates the Municipal Budget Resilience Index (IROM). The article demonstrates the support of municipal expenditure on PHAS during the two cycles of the Covid-19 pandemic (2020-2021). The budgetary linkage pact was crucial for sustaining financing in most Metropolises, enabling a resilient response in critical years for the SUS.

Keywords:

SUS Financing. Federalism. Fiscal Austerity. Budget Biding. Resilient Healthcare System

Conteúdo:

Introdução
O artigo tem como objetivo descrever o padrão de resiliência dos governos municipais no financiamento das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) nas décadas de 2000 e 2020, em contexto de difusão da agenda da austeridade fiscal e da emergência sanitária provocada pelo novo coronavírus no Brasil.
Na literatura dedicada à resiliência prevalece o uso do conceito para situações em que um indivíduo responde de maneira positiva aos eventos de risco significativo. Além disto, ressalta-se que a resiliência não implica na eliminação ou anulação da situação de risco, mas sim na capacidade do indivíduo de enfrentar, com êxito ou não, os desafios que surgem após o confronto com essas situações1,2. No campo da política pública, a utilização do conceito de resiliência está associada à análise da capacidade de adaptação política governamental a eventos críticos, mantendo a funcionalidade institucional3,4.
A análise do padrão de resiliência amplifica a agenda de pesquisa campo da saúde ao reconhecer as ameaças sociais e econômicas que condicionam o curso das políticas públicas setoriais5,6,7,8. Um bom desafio para essa agenda de pesquisa sobre resiliência sistêmica é o estudo da dinâmica da alocação de recursos financeiros para o setor público de saúde face à mudança conjuntural na agenda macroeconômica ou diante de uma emergência sanitária5,6. A dimensão da resiliência do financiamento pode ajudar especificamente na identificação de mecanismos de mobilização de recursos para sustentação da capacidade institucional dos sistemas de saúde9. Este é um capítulo de crucial relevância para a compreensão das condições que o SUS tem garantido o fornecimento de serviços essenciais em meio a choques e ameaças. Cabe lembrar que o arranjo do SUS foi submetido a dois monumentais constrangimentos entre 2017 e 2022: (1) a agenda fiscalista e (2) a pandemia da Covid-19.
Em relação ao primeiro constrangimento, cabe apontar que desde fins da década de 2010 a proposta da austeridade fiscal tem impulsionado a redução das despesas do governo central, impondo a limitação do acesso a bens públicos e aos serviços sociais individuais. O Novo Regime Fiscal (NRF) instituído pela Emenda Constitucional (EC) nº95 de 2016 estabeleceu que as despesas públicas seriam limitadas por até duas décadas no país, impossibilitando o governo central de cumprir as obrigações pactuadas na Constituição Federal de 198810. Se exitosa em toda sua abrangência, a política da austeridade afetaria de modo catastrófico a sustentabilidade do pacto federativo do Sistema Único de Saúde (SUS)6.
Cabe destacar, nesse cenário, que a defesa do financiamento expandido do SUS tem sido sustentada pelo pacto federativo, especialmente pela advocacia da provisão da atenção primária (APS). A estratégia de descentralização na saúde tem sido diretamente impulsionada por incentivos e acordos aceitos pelas três instâncias federativas brasileiras11,12.
A autonomia federativa pactuada na Constituição Federal de 1988 (CF-1988) fez com que principalmente os governos municipais assumissem a obrigação de expansão das ASPS com recursos próprios. Pode-se atribuir ao processo da descentralização a construção de um arranjo institucional exitoso, que incentiva a cooperação dos governos subnacionais no financiamento e na provisão de serviços de saúde. Em resumo, a descentralização na saúde produziu o alinhamento dos interesses dos governos federal e subnacionais, a observância do financiamento compartilhado das suas funções e o privilegiamento das prioridades locais13,
Como prova da convergência na pauta política, a literatura destaca o papel normativo da EC-29/2000 na construção do arranjo para o financiamento setorial por meio da vinculação orçamentária. A EC-29/2000 pode ser considerada como um evento crítico na trajetória da descentralização do setor público de saúde brasileiro. A sua aprovação solucionou os dilemas da cooperação federativa no financiamento das ASPS ao instituir a participação de Estados e Municípios no gasto público com saúde por norma constitucional5.
A EC-29/2000 modificou o art. 167, inciso IV, e o art. 198 da CF-1988 e vinculou percentuais mínimos das receitas tributárias de competência dos Estados e Municípios às ASPS – respectivamente, 12% e 15% das receitas líquidas, a partir de 2004 –, além de propor a correção, a partir de 2001, dos valores empregados pela União, pela variação do Produto Interno Bruto (PIB). Entretanto, a regulamentação da EC-29/2000 só foi concluída após longa negociação de 12 anos no Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar (LC) nº 141, de 201214.
É importante lembrar que a LC-141/2012 não incorporou a proposta de aumento da participação federal no financiamento do SUS. Esperava-se que a participação da União tomasse por base o equivalente a 10% da receita corrente bruta. O veto à vinculação das receitas do governo central consolidou o viés de queda na participação relativa do gasto federal no financiamento ao SUS15.
Em resumo, a participação do financiamento municipal na saúde respondeu as limitações geradas pela queda na destinação de recursos do governo central para o setor, que enfraqueceu os incentivos aos programas de sustentação municipal, como por exemplo, a Estratégia de Saúde da Família16.
Em relação ao segundo constrangimento, é importante lembrar que as primeiras ondas da pandemia da Covid-19 desafiaram o modelo clássico de enfrentamento das doenças transmissíveis pela ausência das ações estritamente farmacológicas no portfólio da saúde pública: as vacinas e antivirais não estavam disponíveis para controlar a incidência e reduzir a letalidade causada pelo Sars-CoV-2. Naquele momento, restou ao campo da saúde pública a proposição de medidas de distanciamento social de diferentes gradações que paralisaram a atividade econômica e afetaram especialmente as populações vulneráveis, os pobres, as mulheres e os trabalhadores de modo geral. A pandemia aprofundou as desigualdades sociais vividas no Brasil e no mundo. A ausência de políticas públicas para prevenção da Covid-19 e o desmonte das legislações, bem como das redes de proteção sociais impactaram significativamente a saúde dos trabalhadores em diversas categorias17.
A implantação de medidas massivas de distanciamento social, entre os quais a quarentena, expôs a argumentarção científica e transformou a política governamental para a pandemia em uma arena disputada por lideranças políticas negacionistas, como o presidente Bolsonaro, formadores messiânicos de opinião nas novas mídias sociais e, paradoxalmente, setores da profissão médica. A falta transitória de respostas tecnológicas para solucionar a pandemia ampliou o negacionismo ativo em relação à eficácia da biomedicina, fato também observado, em escala inquietante, na campanha de difamação das vacinas contra o novo coronavírus17.
As decisões negacionistas do presidente brasileiro para o controle e a mitigação da pandemia da Covid-19 submeteram o arranjo federativo cooperativo nacional à monumental estresse. Ele tornou-se reconhecido internacionalmente como exemplo de dirigente que respondeu de modo caótico, irresponsável e inepto à ameaça da pandemia, vetando o lockdown, promovendo medicamentos ineficazes e disseminando a hesitação vacinal17.

Metodologia
Um dos desafios metodológicos na análise da resiliência financeira, enfrentado por este artigo, foi a identificação de informações válidas e confiáveis que permitissem demonstrar o padrão de resiliência das despesas com saúde dos municípios. Felizmente, o arranjo federativo brasileiro oferece informações robustas sobre as finanças governamentais no Sistema de Informação sobre Orçamento Público de Saúde (SIOPS)5.
Com base na fonte SIOPS, o artigo analisou, com dados de painel, a destinação de recursos próprios municipais para as ASPS de dezessete (17) metrópoles (cidades com mais de 900 mil habitantes) de 2002 a 2021 para a caracterização da resiliência em termos específicos, como demandado pela literatura7. Os recursos próprios municipais compreendem as receitas originárias de royalties, imposto sobre serviços de qualquer natureza, imposto predial e territorial urbano, e imposto sobre transmissão de bens imóveis, além dos recursos advindos do Fundo de Participação dos Municípios e as transferências para as ASPS.
A importância das Metrópoles para o funcionamento do SUS reside na concentração populacional, na diversidade de serviços e na complexidade de demandas de saúde que respondem. A elevada densidade populacional das Metrópoles sobrecarrega os serviços públicos de saúde e desafia a capacidade e a efetividade do SUS18.
Os dados de painel das metrópoles permitem que a destinação de recursos possa ser comparada em dois pontos de tempo (WOOLDRIDGE, 2016)19. Portanto, o desenho de pesquisa com os dados de painel possibilita a análise da resiliência das 17 cidades em dois momentos críticos para o financiamento do SUS considerados pelo artigo: os anos anteriores à pandemia (2002-2109) e o biênio 2020-2021. Vale relembrar que em 2020 os governos das cidades lidavam com a emergência sanitária ainda sem a disponibilidade da opção farmacológica da vacinação e com enorme resistência do governo federal para reconhecer a gravidade da situação pandêmica16.
Com base em Costa5, este artigo descreve a Variação da Vinculação Orçamentária (VVO) com base na equação VVO = Vot1 – Vot2, onde Vot1 representa o valor médio observado do percentual de recursos próprios municipais dispendidos no período 2002-2019 e Vot2 representa o valor médio observado do percentual de recursos próprios municipais dispendidos no biênio 2020-2021.
Como exemplo, de acordo com a Tabela 1, os valores observados do Vot1 e do Vot2 para os respectivos períodos na cidade do Rio de Janeiro foram 19% e 17,3%. O VVO apresentou uma queda entre os dois períodos de 1,7%.
Com base também nos valores observados na vinculação orçamentária das receitas próprias, é calculado o Índice de Resiliência Orçamentária Municipal (IROM) derivado da equação IROM = (Vot – Vmin) /(Vmax –Vmin) para o biênio específico da pandemia de Covid-19 (2020-2021). Na equação, Vot representa o valor médio observado do percentual de recursos próprios dispendidos por uma metrópole em ASPS em 2020-2021, conforme definido na EC 29; Vmax representa o valor máximo do percentual de recursos próprios dispendidos em ASPS observado na amostra das 17 Metrópoles em 2020-2021 e Vmin é valor do piso mínimo do percentual de recursos próprios aplicados ASPS conforme a LC-142/2014 (15%). Na amostra estudada de 17 cidades, o maior valor do Vmax observado entre as Metrópoles foi 27,2% da cidade de Fortaleza
O IROM tem a amplitude de 0 a 1 e informa que o financiamento com recursos próprios da ASPS foi prioritário na agenda do governo municipal quando próximo do valor máximo 1. A modelagem do VVO e do IROM tem como referência as ideias inovadoras e singulares desenvolvidas por Pereira e colaboradores20. A retomada dessa notável abordagem metodológica, abandonada pela produção intelectual da saúde coletiva, pode contribuir para a compreensão, com evidências robustas, dos riscos ao financiamento do setor saúde da recorrente demanda por austeridade fiscal das elites brasileiras.
Nesse contexto, é correta a conclusão de Massuda e colaboradores de que as crises de governabilidade pela imposição de políticas de austeridade são os maiores riscos para os ganhos institucionais da saúde no Brasil por afetar de forma especialmente severa os mais pobres e vulneráveis21. Esta possibilidade demanda o desenvolvimento de argumentos em defesa da resiliência do sistema de saúde para não apenas responder às ameaças conjunturais, mas para manter o funcionamento os seus atributos essenciais22. 23.


Resultados
O gráfico I mostra os efeitos do cenário de incerteza sobre a participação do governo central no financiamento e alocação de recursos dos entes federados para as ASPS entre 2003 e 2020. Observa-se, por um lado, o crescimento da participação orçamentária de Estados e, sobretudo, de Municípios. Por outro, o governo central reduz a destinação de recursos próprios de modo contínuo. Apenas em 2020, devido aos recursos adicionais destinados ao combate à pandemia, a participação proporcional da União subiu para 45,4%. Chama a atenção no Gráfico I que a partir de 2014 os recursos destinados por Estados e Municípios para as ASPS foram estabilizados em termos proporcionais, voltando as despesas estaduais igualmente a crescer em 2020 (primeiro ano da pandemia da Covid-19).

Gráfico 1

O Gráfico II mostra o impacto negativo da redução da destinação do governo central sobre o comportamento das transferências para o SUS municipal entre 2002 e 2021. Essas transferências declinam de modo contínuo desde 2014. Mesmo no contexto da emergência sanitária decretada em 2020, elas não retornam ao patamar da década de 2000. Como observado adiante, a expansão das transferências para os Municípios foi sustentada pela expansão das despesas dos Estados.

Gráfico 2

A Tabela 1 traz a descrição dos descritores relacionados ao financiamento da saúde pelas 17 Metrópoles nos períodos analisados pela pesquisa (2002-2019 e 2020-2021). Cabe destacar: (i) a redução de 1,2% na participação dos impostos na receita própria das Metrópoles durante a pandemia, demonstrando o impacto da desaceleração econômica por ela provocada; (iii) o aumento de 1,1% na participação das transferências do SUS nas transferências totais recebidas pelas Metrópoles, refletindo esforço especialmente dos Estados durante a crise sanitária; (iii) a queda das transferências do governo central para o SUS de 5,6% e (iv) O aumento da participação da receita própria na despesa com saúde aumentou de 1,8%, dentro dos parâmetros estabelecidos pela LC-141/2014.

Tab.1
Com base na Tabela 2, pode-se comparar a participação da receita própria na despesa com saúde, nas várias Metrópoles brasileiras, nos períodos 2002-2019 e 2020-2021. A maioria das Metrópoles listadas registrou aumento na participação da receita própria, na despesa com saúde durante a pandemia (2020-2021) apesar da queda na atividade econômica por força do isolamento social. Algumas Metrópoles mostraram incrementos significativos nas despesas, evidenciando a discrepância da resiliência financeira dos Municípios durante a pandemia.
Em linhas gerais, a pandemia da Covid-19 impôs o aumento das despesas com saúde na maioria das Metrópoles, com poucas exceções. Na Tabela 3 são destacáveis os esforços de ampliação das despesas próprias com saúde das cidades de Recife, Belém e Salvador. A variação negativa mais expressiva é a cidade de São Gonçalo (-5,8%).

Tab.2

A Tabela 3 descreve o padrão de resiliência das Metrópoles brasileiras em relação às despesas próprias com saúde por meio do IROM. O município de Fortaleza (CE) apresentou maior resposta resiliente durante a crise pandêmica entre as 17 Metrópoles. O IROM de Fortaleza comprova a notável decisão de destinar recursos próprios para a saúde no contexto de alta incerteza. Os Municípios de Belém (PA) e Campinas (SP) também se destacaram, com índices de resiliência elevados. Chama a atenção que a metrópole de São Paulo (SP), apesar da alta capacidade econômica, apresentou um padrão de resiliência mediano. Já os Municípios do Rio de Janeiro (RJ) e São Gonçalo (RJ), este último como esperado, apresentaram os menores índices de resiliência.

Tab.3
Considerações Finais

A concepção federativa do SUS promove a responsabilidade da gestão local e regional e sustenta na agenda governamental a preocupação com a expansão do acesso aos serviços de saúde 12.. É incontestável que, nesse arranjo, as transferências federais desempenham um papel estratégico no financiamento compartilhado da oferta serviços de saúde, especialmente da atenção primária5. As duas últimas décadas assistiram, entretanto, a notável fluidez na participação do governo central no financiamento setorial, afetando a resiliência da provisão públicas de serviços de saúde.
Nesse sentido, o IROM oferece um retrato conjuntural da capacidade e o comprometimento da metrópole em manter ou aumentar o financiamento da saúde com recursos próprios em tempos de crise e de mudança abrupta na agenda macroeconômica no governo federal brasileiro. Os Municípios com o índice alto do IROM mostraram notável resiliência na sustentação do financiamento setorial em um cenário de enorme incerteza econômica, política e epidemiológica.
O artigo demonstra que, no cluster de municípios estudados, a estabilização das despesas federais foi compensada pelo crescimento da vinculação do orçamento municipal com as ASPS. Do mesmo modo, durante os dois ciclos da pandemia da Covid-19 (2020-2021), a vinculação orçamentária foi crucial para a sustentação do financiamento na maioria dos Municípios da amostra, possibilitando a resposta resiliência de todas as Metrópoles quando considerado o piso mínimo de 15% das despesas próprias com ASPS pactuado na Tripartite.
Ainda assim, a pandemia da Covid-19 afetou de modo desigual as cidades, como comprova o cálculo do IROM para o biênio de 2020-2021. Algumas Metrópoles experimentaram redução da alocação de significativa durante a pandemia. Nesse sentido, a resposta dessa cidade ao longo da pandemia não foram minimamente resilientes diante dos desafios da pandemia.
Cabe destacar também que mediante análise do cálculo do IROM por regiões geográficas, percebe-se que a Região Norte, com as cidades de Manaus (AM) e Belém (PA), registrou o aumento na participação do financiamento, mostrando o elevado esforço para enfrentar os desafios da pandemia em contextos com infraestrutura de saúde desafiadora (ABRASCO, 2023)16.
No Nordeste, com São Luís (MA), Fortaleza (CE), Recife (PE), Maceió (AL) e Salvador (BA), a Região como um todo apresentou aumento na participação, com destaque para Fortaleza (CE) e Recife (PE), apontando para uma resposta proativa à crise sanitária.
No Sudeste, Rio de Janeiro (RJ) e São Gonçalo (RJ) mostraram uma redução significativa, enquanto São Paulo (SP) e Campinas (SP) evidenciaram um aumento, refletindo as disparidades na agenda da saúde na Região mais populosa e rica do país.
No Sul, Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS) foram discrepantes, com a primeira registrando um ligeiro aumento e a última, uma pequena redução na destinação de recursos próprios para a saúde.
Na Região Centro-Oeste, com Campo Grande (MS) e Goiânia (GO), ambas as Metrópoles apresentaram aumento na participação, sinalizando um fortalecimento das despesas com o setor saúde.
Especificamente o caso do município do Rio de Janeiro (RJ), o menor valor do IROM observado na amostra estudada, demonstra que a pandemia encontrou a cidade sofrendo os efeitos regressivos da retirada do ASPS da agenda de prioridade de governo durante a gestão do Prefeito Crivella (2017-2020)24.
Costa e colaboradoras demonstram pelo estudo de caso da cidade do Rio de Janeiro que a experiências bem-sucedidas de expansão da APS, com elevado comprometimento fiscal da cidade, podem sofrer severo retrocesso em razão de veto de uma nova coalizão política fiscalista à frente da gestão da cidade 24.
Mediante uma reflexão mais ampla sobre a resiliência do financiamento da saúde, a crise desencadeada pela pandemia da Covid-19 desmistificou algumas ideias econômicas, notadamente a noção de que o Estado brasileiro tem limites intransponíveis para as despesas primárias. O Brasil demonstrou a capacidade de resposta resiliente no financiamento das despesas primárias para lidar com a crise sanitária, mesmo expandindo seus déficits e endividamento. Vale lembrar que, um pouco antes da emergência sanitária, a Emenda Constitucional EC-95/2016 com a proposta do Teto dos Gastos, uma das primeiras medidas aprovadas no governo de Michel Temer, tentou limitar os gastos públicos até 2036.
De qualquer modo, é importante destacar que a decisão de redução das despesas primárias pelo Teto dos Gastos representaria a ruptura particularmente severa no pacto federativo para o financiamento público das ASPS. A partir de 2023 a agenda da austeridade foi formalmente descontinuada com a proposta do Novo Regime Fiscal (NRF) do Governo Lula III. Ainda assim, novas pesquisas são necessárias para avaliar os efeitos da dinâmica do financiamento federal as ASPS sobre o padrão de resiliência das Metrópoles a partir de 2023 para além das respostas à crise.
Ainda assim, como assinalam Jatobá e Carvalho, enfrentamento desastroso da pandemia da covid-19 mostrou que o SUS precisa aprimorar sua resiliência para lidar com o rápido alastramento de enfermidades transmissíveis sem deixar de garantir o cuidado necessário a uma população envelhecida, com comorbidades e em situação vulnerável25.
Nesse sentido, o presente artigo demonstra a utilidade e a consistência dos dados do SIOPS para o diagnóstico situacional das despesas dos entes da federação com saúde, no Brasil. Como reivindicam Teixeira & Teixeira26, a implantação de sistemas semelhantes ao SIOPS constitui um passo obrigatório para a avaliação das demais políticas sociais brasileiras. O artigo reafirma que o SIOPS é uma ferramenta crucial para o acompanhamento e avaliação da resiliência do pacto federativo do SUS.

Referências
1 - HOLLNAGEL E. The four cornerstones of resilience engineering. Resilience Engineering Perspectives.2016, vol. 2, n. 1, pp. 139–56
2 - BARASA E, MBAU, R, GILSON L. What Is Resilience and How Can It Be Nurtured? A Systematic Review of Empirical Literature on Organizational Resilience. International Journal Health Policy Management. 2018; vol. 7, n.1, pp. 491–503.
3- JATOBÁ, A.; CARVALHO, PVR. Resiliência em saúde pública: preceitos, conceitos, desafios e perspectivas. Saúde em Debate. 2022. vol. 46, n. spe8, pp. 130–139.
4 - MASSUDA, A. et al. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Global Health.2018, vol. 3, n. 4, pp. e000829.
5 - COSTA, NR. A resiliência das grandes cidades brasileiras e a pandemia da Covid-19. Saúde em Debate. 2021, vol, 45, n.spe2, pp. 10–20.
6 - SANTOS, IS.; VIEIRA, FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Ciência&SaúdeColetiva. 2018, vol. 23, n. 7, pp. 2303–2314.
7 - BIDDLE, L.; WAHEDI, K.; BOZORGMEHR, K. Health system resilience: a literature review of empirical research. Health Policy and Planning.2020vol.35 , n. 8, pp. 1084-1109.
8 - HANEFELD J, MAYHEW S, LEGIDO-QUIGLEY H, MARTINEAU F, KARANIKOLOS M, BLANCHET K, ET AL. Towards an understanding of resilience: responding to health systems shocks. Health PolicyandPlanning. 2018, vol.33, n.3 , pp.355-367.
9 - MENEZES, APR.; MORETTI, B.; REIS, AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública – austeridade versus universalidade. Saúdeem Debate. 2019. vol. 43, n. spe5, pp. 58–70.
10 –WORLD HEALTH ORGANIZATION. Operational framework for buildingclimateresilienthealth systems. Genebra: World Health Organization, 2015.
11 - COLLINS, C.; ARAUJO, J.; BARBOSA, J. Decentralising the health sector: issues in Brazil. Health Policy. 2000, vol. 52, n. 2, pp. 113–127.
12 – ABRUCIO, FL, GRIN, E, IANNI, CI. “Brazilian Federalism in the Pandemic” In: American Federal Systems and Covid-19. Responses to a ComplexIntergovernmentalProblem (B. Guy Peters, Eduardo Grin, Fernando Luiz Abrucio, editores). United Kingdom: Emerald Publishing Limited, 202, pp.63-88.
13 - ARRETCHE M, FONSECA EM. Brazil: local government role in health care. In: MARCHILDON PG, BOSSERT T, EDITORES. Federalism and decentralization in health care: a decision space approach. Toronto: University of Toronto Press, 2018. pp. 40-50.
14 - BARROS, MED, PIOLA, SF. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2016.
15 – INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS) E O UMANE. Gestão e Financiamento do Sistema de Saúde Brasileiro. São Paulo: IEPS/UMANE, 2022.
16 – ABRASCO. Dossiê ABRASCO Pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2022.
17 – COSTA, N. DO R., CARDOSO, G. C. P., CASTRO, H. A. DE ., ARAÚJO, M. G., & MOREIRA, M. DE F. Saúde pública, ciência e sociedade: desafios e perspectivas. Saúde Em Debate. 2021, vo45, n. (spe2), pp. 4–9.
18 - PERES, JLP. et al. O Estatuto da Metrópole e as regiões metropolitanas: uma análise teórico--conceitual à luz do conceito miltoniano de “território usado”. Cadernos Metrópole. 2018, vol. 20, n. 41, pp. 267–288.
19 - WOOLDRIDGE, JM. Introdução à Econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Thomson, 2016.
20 - PEREIRA, ATS. et al. A sustentabilidade econômico-financeira no PROESF em Municípios do Amapá, Maranhão, Pará e Tocantins.Ciênc. Saúde Coletiva. 2006, vol.11 n.3 pp. 607–620, 2006.
21 - MASSUDA A, HONE T, LELES FAG, et al. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Glob Health.2018,3:e000829.
22 – THOMAS, S et al. Strengthening health systems resilience. Key concepts and strategies. Copenhagen: European Observatory of Health Systems and Policies, 2020.
23 – PASCHOALOTTO, MAC. et al. Health systems resilience: is it time to revisit resilience after COVID-19? Social Science & Medicine. 2023, vol 320, pp. 1-9.
24 – COSTA, NR et al. A implantação em larga escala da Estratégia de Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro, Brasil: evidências e desafios. Ciência & Saúde Coletiva. 2021, vol. 26, n. 6, pp. 2075-2082.
25 - JATOBÁ A, DE CARVALHO, PVR. The resilience of the Brazilian Unified Health System is not (only) in responding to disasters. Rev Saúde Pública. 2024, vol 58, n.22, pp. 1-19.
26 - TEIXEIRA, HV; TEIXEIRA, MG. (2003). Financiamento da saúde pública no Brasil: a experiência do SIOPS. Ciência & Saúde Coletiva. 2003, vol.8, n.2, pp.379–391.










Outros idiomas:







Como

Citar

Costa, N.do R., Pinto, R.C, Jatobá, A.. AUSTERIDADE FISCAL, COVID-19 E AS METRÓPOLES: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A RESILIÊNCIA DO FINANCIAMENTO DAS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jan). [Citado em 05/01/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/austeridade-fiscal-covid19-e-as-metropoles-um-estudo-de-caso-sobre-a-resiliencia-do-financiamento-das-acoes-e-servicos-publicos-de-saude-no-brasil/19480?id=19480

Últimos

Artigos



Realização



Patrocínio