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0081/2024 - DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS NASCIDAS DURANTE A EPIDEMIA DO VÍRUS ZIKA NO BRASIL : UMA GERAÇÃO EM RISCO?
DEVELOPMENT OF CHILDREN BORN DURING THE ZIKA VIRUS EPIDEMIC IN BRAZIL: A GENERATION AT RISK?

Autor:

• José Augusto Alves de Britto - Britto, J. A. A. - <de.britto@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7073-9220

Coautor(es):

• Maria da Conceição Borges Lopes - Lopes, M. C. B. - <conceicao.lopes@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7073-9220

• Leticia Cunha Guida - Guida, L. C. - <leticia.guida@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3543-1532

• Marcello Raimundo Barbosa de Freitas - Freitas, M. R. B - <marcello.freitas@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-6839

• Letícia Baptista de Paula Barros - Barros, L. B. P - <let.paulabarros@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6610-9357

• Saint Clair Gomes Junior - Gomes Junior, S. C. - <scgomes@iff.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1554-943X

• Maria Elisabeth Lopes Moreira - Moreira, M. E. L - <bebethiff@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2034-0294



Resumo:

No Brasil, durante a epidemia do vírus Zika, estudos se concentraram no desenvolvimento de crianças com exposição intrauterina ao vírus, apesar da recomendação de monitorar o desenvolvimento de crianças nascidas à época. Sabe-se que crianças, mesmo sem exposição intrauterina, podem ser afetadas no desenvolvimento por estresse ambiental, social e individual, e da saúde mental materna, durante epidemias de doenças emergentes. O objetivo foi avaliar a prevalência de atrasos no desenvolvimento cognitivo-linguagem-motor, identificar os fatores associados às variações nos escores de desenvolvimento e discutir os possíveis impactos dessa epidemia. Estudo transversal com 78 crianças sem exposição ao vírus, de 11 e 39 meses, avaliadas pela Bayley-III. 27% das crianças apresentaram atraso em pelo menos um domínio. A linguagem foi a mais afetada (24,4%). Não houve relação entre atrasos e fatores sociodemográficos. Dada a alta prevalência de atrasos no desenvolvimento e falta de estudos sobre o impacto da epidemia no desenvolvimento das crianças nascidas sem exposição intrauterina nesse período, questiona-se se essa geração teria riscos de desenvolvimento a longo prazo e recomenda-se o monitoramento do desenvolvimento até a idade escolar.

Palavras-chave:

Zika; Desenvolvimento infantil; Epidemia; Atraso.

Abstract:

In Brazil, during the Zika virus epidemic, studies primarily focused on children with intrauterine virus exposure, while neglecting to monitor those born during that time. Children without intrauterine exposure can also experience developmental challenges due to environmental, social, and individual, and maternal mental health stress during epidemics. The objective of this study was to assess the prevalence of delays in cognitive-language-motor development, identify factors linked to scores, and discuss the impacts of the epidemic on children\'s development. A cross-sectional study with 78 children without exposure, aged 11-39 months, was conducted using the Bayley-III assessment. It revealed that 27% of the children had delays in at least one domain, with language (24,4%) being the most affected. No link between delays and sociodemographic factors was found. Given the high prevalence and the limited number of studies on the epidemic\'s impact on the development of children without intrauterine exposure, concerns arise about long-term risks. Therefore, monitoring until school age is recommended.

Keywords:

Zika; Child development; Epidemic; Delay.

Conteúdo:

Introdução
Durante os anos de 2015-2016, o Brasil vivenciou a grande epidemia causada pelo vírus Zika (ZIKV). Inicialmente considerada uma doença exantemática benigna, não despertou grande atenção por parte do setor de saúde. Entretanto, à medida que a epidemia se expandia, tornou-se evidente um neurotropismo agressivo desse vírus, algo incomum quando comparado a outros flavivírus endêmicos no Brasil, como o vírus da dengue e o chikungunya1.
O ZIKV surpreendeu a todos quando se confirmou sua associação ao aumento de casos de microcefalia no país, assim como a ocorrência de alterações graves no desenvolvimento infantil cuja máxima expressão foi a Síndrome de Infecção Congênita pelo ZIKV (SCZ)2.
O período de epidemia do ZIKV foi marcado por desafios e revelações alarmantes, que transformaram a compreensão da comunidade médica e científica sobre os impactos desse vírus emergente no país . A correlação entre o ZIKV e os desfechos adversos no desenvolvimento infantil trouxe à tona a importância de uma abordagem holística para lidar com epidemias de doenças emergentes, considerando não apenas os aspectos biológicos e epidemiológicos.
Em 2016 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o estado de Emergência Sanitária Internacional3 em resposta à epidemia de ZIKV. Essa declaração não apenas enfatizava os perigos imediatos, mas também reconhecia as incertezas que poderiam impactar oportunidades futuras, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento das crianças nascidas durante a epidemia4.
No início da epidemia, o foco das pesquisas estava voltado para gestantes sintomáticas cujos filhos nasceram com microcefalia e, neste contexto, era imperativo descrever a história natural dessa nova a doença e propor ações para enfrentá-la, incluindo a saúde reprodutiva da mulher e o acompanhamento das crianças, desde a gestação até primeira infância5. Entretanto, até o ponto em que conduzimos nossa revisão, não encontramos pesquisas que abordassem o impacto dessa epidemia na relação mãe-filho e desenvolvimento infantil, particularmente para mulheres grávidas que não foram testadas para o ZIKV por não apresentarem sinais clínicos da infecção, apesar de se saber que até 80% das pessoas podem ter a forma assintomática da doença6 . E, no entanto, essas mulheres manifestavam a preocupação com seus filhos pelo risco da microcefalia e com o desenvolvimento daqueles que nasciam aparentemente normais.
É importante reconhecer que nas grandes epidemias de doenças emergentes, como foi a do ZIKV, e mais recentemente o COVID-19, podem surgir condições adicionais de estresse ambiental, social e individual que têm o potencial de afetar o desenvolvimento infantil7 que, por isso, precisa ser acompanhado e estudado.
Durante a epidemia, a mídia divulgava o risco de se engravidar, enfatizando a preocupação com a microcefalia, o impacto no desenvolvimento das crianças, a falta de uma vacina eficaz e segura a curto prazo e, a fragilidade dos sistemas de saúde para lidar com o aumento de casos. Isso levou a situações de estresse social que, entre outros efeitos, influenciaram na decisão das mulheres engravidarem ,resultando em uma redução na taxa de natalidade no país em 2016, quando comparada a 20158.
Com relação às crianças, a Rede Zika Ciências Sociais - Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, recomendava que fosse realizado um acompanhamento cuidadoso do desenvolvimento de toda a geração de crianças nascidas durante essa epidemia, mesmo que não houvesse histórico de infecção materna, visto que essas crianças poderiam potencialmente enfrentar riscos no desenvolvimento9. Essas recomendações destacavam a importância de uma abordagem abrangente que considerasse não apenas os aspectos clínicos, mas também os impactos psicossociais, culturais e políticos que influenciam conjuntamente a saúde materna, o desenvolvimento infantil.
Em relação ao desenvolvimento das crianças, o protocolo da Caderneta de Saúde da Criança10, recomenda uma triagem rotineira do desenvolvimento nos três primeiros anos de vida e aquelas que apresentem sinais de risco devem fazer a avaliação completa de seu desenvolvimento. No entanto, ao longo do tempo, esse documento não tem sido devidamente utilizado. Os profissionais de saúde frequentemente realizam avaliações clínicas informais, que conseguem identificar menos de 30% de atraso nas crianças11 e não há evidências que tenha havido mudanças de comportamento no período da epidemia.
Nesse contexto, o objetivo do estudo foi avaliar a prevalência de atrasos nos principais domínios do desenvolvimento infantil , cognitivo, de linguagem e motor em crianças nascidas sem exposição intrauterina ao ZIKV durante a epidemia. Além disso, identificar fatores associados às variações nos escores de desenvolvimento e discutir os possíveis impactos da epidemia no desenvolvimento infantil.
Método
Estudo transversal conduzido em um instituto público no Rio de Janeiro, especializado no atendimento a gestações de risco fetal. A escolha desse instituto para o acompanhamento das crianças amplia a abrangência do estudo, pois fornece dados de um dos estados brasileiros mais impactados pela epidemia do ZIKV.
A pesquisa envolveu crianças nascidas entre 2015 e 2017 sem exposição intrauterina ao ZIKV, compreendendo assim um grupo-controle dentro de uma coorte de crianças nascidas com exposição ao vírus. Para o estudo, foram selecionadas 187 crianças com idades entre 11 e 39 meses.
Os critérios de inclusão foram: idade gestacional mínima de 37 semanas, escore de Apgar ao quinto minuto maior ou igual a 7, peso mínimo ao nascimento de 2500g e escore Z do perímetro cefálico entre -1,9 e +2. Todas as mães e crianças eram testadas para infecção pelo ZIKV usando ensaios anti-ZIKV ELISA IgM e IgG ( Euroimmun, Lübeck, Alemanha), especificamente visando o antígeno NS1 do ZIKV e incluídas as que apresentavam, resultado negativo. Esses critérios laboratoriais foram estabelecidos para garantir uma amostra de crianças sem exposição intrauterina ao ZIKV.
Os critérios de exclusão foram: crianças que apresentavam microcefalia, história gestacional de doenças do grupo TORCH, malformações congênitas, síndromes genéticas, intercorrências infecciosas ou respiratórias perinatais e qualquer comorbidades pós-natal que pudesse influenciar negativamente no seu desenvolvimento, e as que não conseguiram concluir o teste de avaliação do desenvolvimento.
Todas as crianças foram avaliadas entre março de 2018 e março de 2020, utilizando a Escala do Desenvolvimento de Lactentes e Pré-escolares, terceira versão (Bayley-III)12. Essa escala foi escolhida por ser considerada padrão ouro entre os instrumentos de avaliação infantil e por estar validada no Brasil13. As avaliações foram realizadas nos três principais domínios do desenvolvimento: cognitivo, de linguagem e motor. Foram conduzidas por uma psicóloga certificada para a aplicação do teste e tinha duração média de 40 minutos.
Em relação aos domínios avaliados, foram adotados os valores do Escore Composto (EC) com desvio padrão (DP) que variam de 40 a 160 pontos, com a média de 100 e Desvio Padrão (DP) ± 15 pontos. EC entre 85 e 160 ( -1 a >2 DP), no domínio avaliado, classifica o desenvolvimento como adequado para a idade. De 84 a 70 (-1 a -2 DP) está abaixo da média e é o ponto de corte para atraso leve a moderado e , menor que 70 (< -2 DP), muito abaixo da média, indicando atraso grave no desenvolvimento.
Para a avaliação do desenvolvimento as crianças foram segregadas em dois grupos: de 11 a 24 meses e maiores de 24 meses.
A avaliação antropométrica das crianças foi realizada usando-se 4 indicadores de desenvolvimento: peso para idade, altura para idade, peso para altura e perímetro cefálico para idade. Foram calculados os Escores-Z usando-se como referência os valores do Intergrowth 2114 e WHO15.
As variáveis sociodemográficas consideradas relevantes para avaliar os desfechos relacionados ao desenvolvimento das crianças incluíram: idade materna, escolaridade, renda familiar em salários-mínimos por mês, sexo da criança e idade na avaliação. Durante o processo de coleta de dados, as informações sobre essas variáveis foram obtidas a partir das consultas realizadas ou por meio de pesquisa nos prontuários médicos.
Para garantir a ética da pesquisa, as mães ou responsáveis pelas crianças participantes foram solicitadas a assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual explicava os objetivos da pesquisa, os procedimentos envolvidos e os direitos das participantes. Além disso, ao final do teste, elas recebiam os resultados da avaliação com orientações e encaminhamentos para avaliações complementares quando necessário.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição com registro CAAE 5267566116000005269.
Análise estatística
Os dados foram armazenados no programa Excel e posteriormente realizadas as análises com o software SPSS, versão 3.6.1 para o tratamento estatístico. Usou-se frequência e porcentagens para caracterizar os dados categóricos enquanto os dados numéricos foram descritos como média e desvio-padrão ou mediana e Intervalo interquartil (IIQ). Para verificar a associação entre a presença de alterações no desenvolvimento e características sociodemográficas empregou-se o teste qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fischer (nos casos em que se observou pelo menos uma frequência esperada inferior a cinco) para variáveis categóricas ou o teste de Mann-Whitney para variáveis numéricas. Na comparação do Escore Composto (EC) da Bayley III e as características supracitadas foram utilizados os testes de Mann-Whitney, Kruskal-Wallis e o teste de Dunnet para comparações múltiplas entre os grupos. O nível de significância adotado nas análises estatísticas foi de 5%.
Resultados
De um total de 187 crianças selecionadas, 78 foram incluídas no estudo. Das 109 excluídas 10 tinham uma idade gestacional inferior a 37 semanas, duas tinham um peso inferior a 2500g, seis apresentavam comorbidades pós-natal, 11 não concluíram a avaliação do teste, 3 tinham dados incompletos e 77 mães e/ou crianças testaram positivo para ZIKV (Figura 1).
Os dados sociodemográficos das 78 mães e seus filhos estão detalhados na Tabela 1 e indicam que a maioria das mães era jovem ( mediana 29 anos, IIQ: [25-36 anos]) e tinha entre 10 e 12 anos de estudo (69,2%). Em relação à renda familiar baseada em salário-mínimo/ mês a distribuição foi equilibrada, com 48,7% recebendo menos de 2 salários-mínimos/mês. A distribuição das crianças pelo sexo também foi equilibrada, sendo 48,7% do sexo feminino . A maioria das crianças (87,2%), tinha entre 11 e 24 meses de idade.
Nenhuma criança apresentava atraso no crescimento, baixo peso, alteração da relação comprimento para idade, não tinham baixo peso para o comprimento e o Escore-Z do perímetro cefálico foi normal em todas as crianças.
Na Tabela 2 os resultados do desenvolvimento das crianças mostram que 57 (73%) apresentaram um desenvolvimento adequado para a sua idade. Por outro lado, 21 crianças (27%) apresentaram atraso na avaliação da Bayley-III, com escores entre -1 DP e menos de -2 DP em pelo menos um dos três domínios funcionais avaliados. O desenvolvimento da linguagem foi o mais afetado, com 24,4% das crianças obtendo resultados da Bayley-III abaixo de -1 DP nesse domínio. Em seguida, temos o domínio motor, afetando 10,3% das crianças, e o domínio cognitivo em 6,4%.
Na distribuição dos escores no domínio da linguagem observamos uma assimetria negativa, com uma curva estendendo-se mais à esquerda. Isso sugere a presença de pontuações mais baixas neste domínio, como mostrado na Figura 2.
A pontuação média do Escore Composto no domínio da linguagem foi de 87,9 pontos (mediana 89), no domínio cognitivo 97,3 pontos, (mediana 97,5) e no domínio motor a pontuação média foi de 93,7 pontos, (mediana 94).
Quanto à análise das variáveis sociodemográficas como preditores de atrasos no desenvolvimento, não foi encontrada nenhuma relação significativa entre essas variáveis e os atrasos no desenvolvimento, o que pode ser devido em parte ao tamanho da população, porém observamos uma frequência maior de atraso na linguagem entre os meninos (Tabela 3).

Discussão
Na epidemia do ZIKV no Brasil, ante o fato de ser uma doença nunca descrita, os pesquisadores concentraram seus estudos na comprovação da causalidade entre o vírus e a microcefalia bem como no comprometimento do desenvolvimento das crianças nascidas com essas condições e daquelas que sofreram a exposição intrauterina durante a gravidez, mas que nasceram aparentemente normais.
Durante uma epidemia, a atenção da mídia e dos órgãos de saúde pública tendem a se concentrar principalmente nas questões biológicas e epidemiológicas frequentemente deixando de lado as questões que envolvem a relação de saúde mental das mães e desenvolvimento das crianças afetada por doenças infecciosas emergentes, como no caso da epidemia do ZIKV no Brasil.
A dificuldade enfrentada pelas autoridades de saúde pública para controlar efetivamente o mosquito Aedes aegypti, vetor do ZIKV, bem como a tendência de culpabilizar a população pelo descontrole desse mosquito, gerou um ambiente de estresse ambiental e social. Essa situação contribuiu para o aumento das tensões psicossociais na comunidade, já preocupada com a propagação da doença.
Além disso, o medo de engravidar durante a epidemia devido ao risco potencial das crianças nascerem com microcefalia e à incerteza sobre a presença de infecção assintomática pelo ZIKV, associado a falta de acesso à testagem pré-natal que pudesse esclarecer esses riscos, pode ter resultado em condições significativas de estresse para a saúde mental das mães. Embora esses fatores não tenham sido estudados durante a epidemia do ZIKV, sabe-se que podem prejudicar o equilíbrio emocional necessário para que as mães desempenhem um papel saudável no desenvolvimento de seus filhos.
A compreensão dessas questões é crucial para uma resposta abrangente e eficaz às epidemias de doenças emergentes. A consideração não apenas dos aspectos biológicos, mas também das dimensões psicossociais, é essencial para fornecer um suporte holístico às famílias afetadas, minimizando o impacto negativo nas mães e crianças durante e após a epidemia.
Em relação a avaliação do desenvolvimento infantil de crianças brasileiras, os estudos costumam adotar uma abordagem transversal, sendo conduzidos em vários ambientes que incluem escolas, creches, instituições de saúde e ambulatórios de Atenção Primária à Saúde. O resultado desses estudos mostram uma notável variabilidade, com uma amplitude significativa de valores que pode variar de 9% a 53% de atraso global16,17,18. Em contrapartida, países da América do Norte, Europa e Ásia que fizeram estudos populacionais descreveram prevalências consideravelmente mais baixas, variando de 5% a 15%19,.20,21.
É reconhecido que a prevalência do atraso mais comum entre crianças hígidas está no domínio da linguagem e tende a ser mais acentuado em países com condições socioeconômicas menos favoráveis. A literatura mostra que são poucos os estudos que avaliam a linguagem em lactentes e pré-escolares nos primeiros mil dias de vida. E sabe-se que esse é um período de grande neuroplasticidade cerebral onde intervenções precoces sobre o desenvolvimento pode ter impacto sobre o desenvolvimento que se refletirá para toda sua na vida futura. Isso fortalece nosso estudo, que abrangeu essa população. No Brasil, do mesmo modo que no atraso global de desenvolvimento, observa-se uma notável variação na prevalência de atrasos na linguagem em lactentes e pré-escolares. Estudos têm documentado resultados que variam entre 2,3% e 77 % 22,23.
Em nosso estudo, a prevalência foi registrada em 24,4%, valor consideravelmente elevado e bastante distinto dos estudos conduzidos por pesquisadores asiáticos que, por meio de estudos longitudinais com a aplicação da escala Bayley III, relataram uma prevalência de atraso na linguagem entre 9% e 17% em crianças asiáticas hígidas, com cerca de dois anos de idade, faixa etária similar à de nossas crianças24.
Estudos brasileiros que aplicaram a Escala Bayley III em lactentes e pré-escolares, incluindo grupos-controle para comparação de crianças com e sem exposição intrauterina ao ZIKV, encontraram uma prevalência significativa de atrasos de linguagem nas crianças hígidas dos grupos-controle, variando de 12,8% a 25%25,26. Essa taxa é semelhante àquela observada nas crianças de nosso estudo que não tiveram exposição ao ZIKV durante a gravidez. Isso sugere que a presença de atrasos na linguagem poderia ocorrer em todas as crianças hígidas nascidas durante a epidemia, independentemente da exposição intrauterina ao vírus.
Em nosso estudo não confirmamos uma relação estatisticamente significativa entre atrasos na linguagem e as variáveis demográficas e biológicas que com frequência são consideradas em pesquisas de avaliação do desenvolvimento infantil. Porém, observamos um número maior de meninos com atraso de linguagem , o mesmo que foi encontrado entre meninos que tiveram exposição intrauterina ao ZIKV, mas nascerem assintomáticos27.
Uma das limitações de nosso estudo é o fato de ser um estudo transversal, que avalia a criança em um ponto específico e não pode capturar as variações no desenvolvimento infantil ao longo do tempo, uma vez que o desenvolvimento é um processo dinâmico e individual, sujeito a mudanças e progressões específicas para cada criança.
Uma outra restrição observada foi a impossibilidade de avaliar a saúde mental materna neste contexto dramático e agudo, resultando em uma lacuna na compreensão do impacto da saúde mental das mães no relacionamento mãe-filho, e suas implicações para o desenvolvimento infantil.
A ausência de um diagnóstico laboratorial diferencial entre Zika e dengue foi um fator limitante, resultando na exclusão de 41% das crianças devido à detecção de sorologia IgG positiva para o ZIKV. É conhecido que ocorre reação cruzada entre esses dois vírus28. Além disso, naquela época, o país enfrentava uma tríplice epidemia de Zika, dengue e chikungunya29.
Em nossa revisão bibliográfica não encontramos artigos que estudassem o desenvolvimento infantil de crianças hígidas na epidemia. Como no Brasil não existem estudos populacionais atualizados sobre a prevalência de atraso na linguagem, nosso resultado não permite comparação com o período pré-epidemia, porém sinaliza uma frequência muito alta desse atraso entre as crianças nascidas durante a epidemia. Tampouco encontramos estudos abordando o papel dos estressores ambientais, sociais e individuais, que poderiam fornecer um contexto valioso para a interpretação dos nossos resultados e permitir uma compreensão mais completa dos fatores que modelam o desenvolvimento infantil em cenários de epidemias.
Em nosso estudo, as crianças foram consideradas hígidas na avaliação, uma vez que o risco biológico pré, peri e pós-natal foi controlado. No entanto, o estudo incluiu filhos de gestantes adolescentes, de idade avançada e com gemelaridade, condições que podem indicar gestações de risco. É sabido que condições de risco materno podem impactar o desenvolvimento pós-natal a longo prazo30,31. Esses fatores devem ser levados em consideração na interpretação dos resultados.
A ausência de triagem sistemática para o ZIKV no período pré-natal durante a epidemia, até hoje é uma preocupação importante. Muitas mulheres podem ter desenvolvido a forma assintomática da doença e exposto seu feto ao virus sem que houvesse suspeita ou reconhecimento da infecção. Como resultado direto dessa falta de detecção, esses casos não receberam o acompanhamento diferenciado que teria sido recomendado em caso de infecção confirmada e podem compor um universo de crianças com alterações no desenvolvimento em que a exposição intrauterina ao ZIKV não é incluída na hipótese diagnóstica.
É fundamental que as crianças que possam ter nascido e criadas durante a epidemia recebam apoio específico em caso de atrasos no desenvolvimento. Isso envolve uma abordagem multidisciplinar que pode incluir intervenções terapêuticas, programas de reabilitação, acompanhamento médico especializado e apoio psicossocial para as famílias. Assim destaca-se a importância do acompanhamento do desenvolvimento, conforme recomendado durante a epidemia9 e até a idade escolar, como vem sendo orientado por pesquisas que acompanham o desenvolvimento infantil das crianças com exposição ao ZIKV.
A detecção precoce e a intervenção são críticas quando se trata de atrasos no desenvolvimento infantil. Quanto mais precoces esses atrasos forem identificados e tratados, maiores são as chances de que a criança possa superar desafios e alcançar um desenvolvimento saudável. Portanto, é essencial que haja sistemas eficazes de triagem e avaliação do desenvolvimento infantil em áreas afetadas por epidemias.
Além disso seria importante que os profissionais de saúde estivessem bem informados sobre os possíveis impactos do ZIKV e outras condições relacionadas à saúde materno-infantil. Isso permitiria uma abordagem proativa na identificação e no apoio às crianças que pudessem estar em risco. O investimento em serviços de saúde pública e na capacitação de profissionais de saúde desempenha um grande papel na garantia de que as crianças afetadas recebam o apoio que precisam para alcançar seu potencial máximo de desenvolvimento.
Conclusão
Em nosso estudo com crianças nascidas durante a epidemia, sem exposição intrauterina ao ZIKV, encontramos um percentual elevado de atrasos da linguagem. Isso gera preocupação do impacto desse vírus sobre o desenvolvimento infantil e perpetua incertezas em relação ao seu efeito no desenvolvimento dessa geração.
Pesquisas futuras devem adotar uma abordagem abrangente, considerando fatores epidemiológicos, biológicos, ambientais, sociais e psicológicos. A revisão das estratégias de triagem e diagnóstico durante a gestação é essencial para entender completamente os impactos do ZIKV no desenvolvimento infantil no caso de novas epidemias.

Entender e estudar a influência das condições da saúde do período intrauterino e as condições ambientais como programadores de risco, em especial nos primeiros três anos de vida, em períodos de epidemia, é fundamental para o acompanhamento do desenvolvimento infantil.
Considerando que, durante a epidemia de Zika no Brasil, não foi dedicada atenção específica ao desenvolvimento infantil, é plausível que essas crianças constituam uma população com risco de atrasos. Isso levanta a questão de se não estaríamos diante de uma geração em situação de ameaça, merecendo, assim, um resgate no acompanhamento de seu desenvolvimento.

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Britto, J. A. A., Lopes, M. C. B., Guida, L. C., Freitas, M. R. B, Barros, L. B. P, Gomes Junior, S. C., Moreira, M. E. L. DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS NASCIDAS DURANTE A EPIDEMIA DO VÍRUS ZIKA NO BRASIL : UMA GERAÇÃO EM RISCO?. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/mar). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/desenvolvimento-de-criancas-nascidas-durante-a-epidemia-do-virus-zika-no-brasil-uma-geracao-em-risco/19129?id=19129

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