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0349/2023 - DETERMINAÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA SAÚDE EM TERRITÓRIOS PRODUTORES DE CANA-DE-AÇÚCAR EM PERNAMBUCO
SOCIAL AND ENVIRONMENTAL DETERMINATION OF HEALTH IN SUGARCANE PRODUCING TERRITORIES IN PERNAMBUCO

Autor:

• Renata Cordeiro Domingues - Domingues, R. C. - <renatacordeirodomingues@gmail.com, renatinhadomingues@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2025-1125

Coautor(es):

• Aline do Monte Gurgel - Gurgel, A. M. - <alinemgurgel@hotmail.com, aline.gurgel@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5981-3597

• Romário Correia dos Santos - Santos, R.C. - <romario.correia@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4973-123X

• Fernanda Lowenstein Monteiro de Araújo Lima - Lima, F. L. M. A. - <fernanda.lowenstein@gmail.com>

• Carla Caroline Silva dos Santos - Santos, C. C. S. - <carlaline@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1808-7760

• Mariana Olivia Santana dos Santos - Santos, M. O. S. - <mariana.santos@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2129-2335

• Idê Gurgel - Gurgel, I. - <ide.gomes@fiocruz.br, idegurgel44@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2958-683X



Resumo:

O estudo analisou a determinação socioambiental da saúde em cinco municípios produtores de cana-de-açúcar em Pernambuco. Trata-se de uma pesquisa participante com abordagem qualitativa, realizada no período de Janeiro a Agosto de 2022. Foram realizadas oficinas nas comunidades participantes para a construção do Diagnóstico Rural Participativo dos processos protetores e destrutivos de dimensão global, comunitária e individual da saúde socioambiental. As comunidades apontaram as iniquidades sociais, a desregulamentação produtiva, degradação ambiental, exploração pelo trabalho, violência e adoecimento como os principais processos que acometem os territórios. Apesar disso, os processos protetores foram relacionados à função social da terra e o direito à reforma agrária; à agricultura familiar; aos laços de solidariedade e organização comunitária, bem como às práticas de autocuidado individual e familiar. O diagnóstico aponta para a necessidade da construção de políticas públicas de equidade, proteção e reparação da saúde ecossocial dos territórios afetados pelo cultivo da cana-de-açúcar, onde há intenso uso de agrotóxicos, prática de queimadas e superexploração do trabalho, dentre outros problemas socioambientais.

Palavras-chave:

Determinação social da saúde; Trabalhadores Rurais; Agrotóxicos; Saúde da População Rural; Cana-de-açúcar

Abstract:

The study analyzed the socio-environmental determination of health in five sugarcane producing municipalities in Pernambuco. This is a participatory research with a qualitative approach, carried outJanuary to August 2022. Workshops were held in the participating communities to construct the Participatory Rural Diagnosis of protective and destructive processes of global, community and individual dimensions of socio-environmental health. The communities pointed to social inequities, productive deregulation, environmental degradation, labor exploitation, violence and illness as the main processes that affect the territories. Despite this, protective processes were related to the social function of land and the right to agrarian reform; to family farming; ties of solidarity and community organization, as well as individual and family self-care practices. The diagnosis points to the need to build public policies for equity, protection and repair of the eco-social health of territories affected by sugarcane cultivation, there is intense use of pesticides, burning and over-exploitation of work, among other problems. socio-environmental.

Keywords:

Social Determination of Health; Rural Workers; Pesticides; Rural Health; Sugar cane

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
No contexto do capitalismo global, na segunda metade do século XX, surge uma das maiores crises energéticas no sistema produtivo de combustíveis fósseis, particularmente na produção e exploração do petróleo. Isso impulsionou os governos nacionais a buscar alternativas atreladas à ideia de sustentabilidade e superação das fragilidades no abastecimento por essa matriz energética. Diante da conjuntura, os interesses do mercado internacional pelos agrocombustíveis promoveram, no Brasil, a retomada de um plano neodesenvolvimentista, com expansão das fronteiras agrícolas do setor sucroalcooleiro 1.
A estrangeirização das terras brasileiras ocorre, sobretudo, nas regiões consideradas 'vazios demográficos' pelo capital financeiro e que se configuram como 'zonas de sacrifício'2 em prol do desenvolvimentismo econômico, cujos territórios sofrem por desigualdade social, carência de políticas públicas de equidade, fragilidade das leis ambientais, trabalhistas e pela fiscalização ineficaz dos órgãos de Estado 3.
Apesar do avanço das fronteiras agrícolas em novos territórios, como o Cerrado brasileiro 4, a monocultura extensiva da cana-de-açúcar incide sobre os biomas nacionais há mais de cinco séculos, sobretudo na região Nordeste do país5. Mesmo com uma discreta redução de 0,5% na extensão da área brasileira destinada para este monocultivo, a produtividade estimada para a safra de 2022/2023 é 3,9% superior à da safra anterior6. Em 2020, o país foi considerado o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, sendo Pernambuco o terceiro estado do Brasil com ampliação da produção no setor e incremento de 22,9% na produção de etanol, quando comparado ao ano anterior7. A estimativa para a safra de 2022/2023 prevê a expansão da área plantada em Pernambuco, contrapondo a discreta redução na estimativa nacional para igual período, isto se deve à reativação de antigas usinas falidas, arrendamento e compra de terras antes destinadas às atividades de pastagens6.
Em Pernambuco, o monocultivo da cana-de-açúcar concentra-se na Zona da Mata, cuja colheita manual da cana-de-açúcar ainda prevalece em 96,5% das áreas de produção6, determinando um trabalho penoso e, não raro, em condições análogas ao escravo8. A produção no setor caracteriza-se pela superexploração dos trabalhadores e pela precarização do trabalho9. O processo produtivo na região conservou outras práticas agrícolas seculares e degradantes, como o plantation, desmatamento e a queima regular de biomassa da cana-de-açúcar. Por outro lado, incorporou as tecnologias modernizantes do agronegócio industrial exportador, como o uso intensivo de agrotóxicos que contaminam diversas matrizes ambientais de suporte a vida no bioma como o ar, o solo e as águas superficiais e subterrâneas, inclusive, levam à exposição e à ocorrência de danos à saúde humana, 1 10 11 .
Neste estudo, a relação saúde/ambiente/trabalho é compreendida a partir do construto histórico ecossocial. De acordo com Breilh12, os processos críticos projetados no tempo e no espaço adquirem facetas e formas protetoras e saudáveis quando constroem, mantêm e aperfeiçoam a equidade favorável à vida humana em sociedade. Igualmente, desenvolvem facetas e formas destrutivas quando atuam promovendo iniquidade, privação e deterioração da saúde individual e coletiva. Assim, os processos epidemiológicos ocorrem a partir de possibilidades reais inscritas nos modos de vida de uma formação social e são materializados nos estilos de vida que são singulares segundo as realidades vivenciadas, nesse caso de territórios do agronegócio canavieiro. Portanto, o objetivo deste estudo é analisar os processos críticos protetores e destrutivos da saúde socioambiental em territórios submetidos ao processo produtivo da cana-de-açúcar.

METODOLOGIA
O arcabouço teórico e metodológico deste estudo tem esteio na epidemiologia crítica latino americana da determinação social da saúde e na Matriz de Processos Críticos, proposta por Breilh12. Trata-se de um estudo transversal, realizado por meio de uma pesquisa participante13 com análise exploratória e abordagem qualitativa.
A área do estudo abrangeu os cinco municípios de Pernambuco com maior extensão em área plantada para o monocultivo da cana-de-açúcar e considerados prioritários na vigilância em saúde de populações expostas aos agrotóxicos no estado14: Água Preta e Sirinhaém na Zona da Mata Sul e Goiana, Aliança e Itambé na Zona da Mata Norte. As cinco comunidades que participaram desta investigação foram identificadas por meio do apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e das Secretarias municipais de saúde, considerando-se a proximidade geográfica dos canaviais e a intensidade da exposição aos processos produtivos associados a esse monocultivo. As comunidades participantes se vinculam aos territórios de ocupação ou assentamentos de reforma agrária que reivindicam ou já possuem a titularidade de posse da terra.
A coleta dos dados primários ocorreu no período de janeiro a agosto de 2022, mediante a construção do Diagnóstico Rural Participativo (DRP) que, imbuído em auxiliar a reflexão dialógica, crítica, individual e coletiva da realidade compartilhada nos territórios da pesquisa, ensejou o fortalecimento das próprias formas de organização comunitária empenhadas na resolução de problemas concretos da realidade15.
Foram realizadas reuniões de articulação, seguidas de dez oficinas comunitárias para a construção do DRP, sendo duas em cada município. Os participantes foram os agricultores familiares, moradores e trabalhadores rurais, submetidos e expostos cotidianamente aos múltiplos danos ecossistêmicos do processo produtivo canavieiro reproduzido em suas parcelas de terras e/ou áreas do entorno de suas moradias. Participaram das oficinas 34 mulheres e 30 homens, maiores de 18 anos, totalizando 64 pessoas. Todo o processo do DRP foi fotografado e gravado com consentimento dos participantes, sendo as oficinas ouvidas e transcritas posteriormente.
As oficinas foram operacionalizadas mediante ferramentas pedagógicas sugeridas por Verdejo16: a) matriz de organização comunitária para caracterização das fortalezas, fragilidades, oportunidades e ameaças compartilhadas entre os moradores das comunidades; b) fluxograma do trabalho para identificação das atividades desempenhadas em cada etapa do trabalho individual nas lavouras de cana-de-açúcar, bem como a percepção sobre os riscos e danos para a saúde humana e ambiental associados. Ambas as ferramentas foram adaptadas conforme o objetivo desta investigação e os problemas diagnosticados pelas comunidades foram organizados em matrizes e diagramas socioambientais provocadores do diálogo.

Figura 1

Na análise dos dados, em um primeiro momento, os discursos foram sistematizados por condensação de significados17, o que orientou a identificação dos temas centrais relacionados ao objetivo da pesquisa: a) Modelo produtivo do agronegócio sucroalcooleiro e suas tecnologias modernizantes; b)Desregulamentação socioambiental; c) Manutenção das iniquidades sociais; d) Relações ecológicas contaminantes do processo produtivo da cana-de-açúcar; e) Padrão de exploração pelo trabalho; f) Violência no campo; g) Intoxicações por agrotóxicos relacionadas às práticas insalubres do cotidiano; h) Agravos respiratórios relacionados às queimadas sazonais; i) Exaustão física e acidentes de trabalho; j) Função social da terra e reforma agrária popular; l) Políticas públicas de proteção da agricultura familiar e outros direitos essenciais para equidade em saúde; m) Laços de solidariedade, formas e recursos organizativos comunitários; n) Ecologização da agricultura familiar; o) Práticas individuais e familiares de autocuidado.
Posteriormente, os temas centrais foram organizados na matriz de processos críticos12 em dimensões hierárquicas na ordem do global, comunitário e individual, sendo classificados em processos protetores ou destrutivos da saúde ecossistêmica dos territórios canavieiros em questão. Toda análise foi orientada pelo “movimento dialético entre unidade e hierarquia que entrelaça as dimensões da determinação da saúde coletiva”12:42.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Por esta razão, Todos os sujeitos envolvidos nesta pesquisa assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a autorização de uso de som e imagem.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os temas centrais dos discursos analisados condensam os significados atribuídos aos processos críticos relacionados à determinação socioambiental da saúde nos territórios produtores de cana-de-açúcar, sendo descritos no quadro 1.

Quadro 1

Processos críticos globais da saúde
O monopólio econômico do setor sucroalcooleiro sobre os territórios deste estudo obedece aos interesses privados das grandes corporações do agronegócio internacional de commodities rurais18, que define o tipo de lavoura a ser plantada pelos trabalhadores locais e os métodos tecnológicos de trabalho a serem adotados por eles.
Essa terra aqui do rapaz, ela é boa de macaxeira, mas ele está plantando cana […] o banco botou o pé no bucho do assentado que estava aqui e disse “o projeto só sai se for para plantar cana”[...] Ainda por cima, se a gente não tiver a nota dos venenos, não sai a segunda parte do projeto [...] A gente depende do veneno. (Água Preta, PE).

O discurso acima elucida a tratativa dos bancos sobre as exigências que dão contornos às políticas públicas de ofertas de créditos para os trabalhadores rurais, intervindo direta e concretamente na saúde ecossistêmica e social. De acordo com Capellesso et al.19, os programas de crédito estão implicados em fomentar a modernização conservadora da agricultura brasileira, por meio do estímulo aos chamados ‘pacotes tecnológicos’, cujo caráter predatório engloba as consequências socioambientais da produção e consumo dos agrotóxicos e sementes transgênicas, desenvolvidas e patenteadas por grandes empresas transnacionais que dominam o mercado do cultivo de produtos exportáveis largamente comercializados. O posicionamento econômico neoliberal do Estado frente ao modus operandis do agronegócio é refletido nos territórios aqui estudados, onde, segundo os moradores:
Quem comanda são eles. Dizem que atingem as normas ambientais, mas toda vez que eles vêm, eles tiram uma tirinha. Eles vão degradando aos poucos [...] E a usina planta cana lá dentro do rio. Cadê o IBAMA? (Itambé, PE).

No meio da rua, qualquer cidade e qualquer menino buchudo vende [agrotóxico]. Né não pessoal? Se eu tiver dinheiro, eu vou lá e volto com uma carrada de veneno (Aliança, PE).

Chama atenção que os discursos convergem para as consequências diretas da desregulamentação produtiva, ambiental e sanitária, em especial durante o período de 2018 a 2022, que flexibilizou as legislações trabalhistas e ambientais, desmontando órgãos de fiscalização, controle social, e proporcionou a comercialização/consumo, sem precedentes, de agrotóxicos20.
Importa frisar a persistência da desigualdade social pelas questões fundiárias, raciais, de gênero, escolaridade, emprego, distribuição de renda e de acesso aos serviços básicos, bem como a invisibilização secular das necessidades gerais e específicas em torno da qualidade de vida e saúde das populações que residem em áreas rurais do território nacional 21 22. O DRP identificou fragilidades e ameaças equivalentes, relacionadas à precarização dos serviços públicos ofertados nestes municípios, como: saneamento básico, acesso e qualidade dos serviços de saúde, educação, transporte, segurança pública, bem como espaços de lazer e cultura e oportunidade de melhores empregos. Não obstante, as comunidades problematizaram o processo histórico de uso e ocupação do solo pelo setor sucroalcooleiro, sendo a concentração de terra, poder e renda as principais responsáveis pela manutenção das iniquidades sociais e das condições favoráveis à exploração socioambiental do território.
Apesar disso, a defesa da função social da terra e o direito à reforma agrária popular emergiram como temas centrais das unidades de análise:
Podemos viver de uma forma mais justa e mais digna? Podemos. De qual forma? A ocupação a gente sabe que é justa [...] Quando a gente chegou aqui, a terra estava sem as suas funções sociais. Ela não estava produzindo como era para produzir. Não pagava encargos sociais, como até hoje não paga (Itambé, PE).

O caráter excludente do modelo econômico e produtivo acomete de forma diferenciada as populações do campo brasileiro, sendo urgente a implementação da reforma agrária e intervenções fundiárias distributivas que visem assegurar a função social da terra. Tal condição é essencial, visto que os povos e comunidades do campo são aqueles cujos modos de vida, produção e reprodução social estão relacionados predominantemente com a terra23.
Observou-se neste estudo que a garantia do direito à reforma agrária transformou as condições de vida e trabalho das famílias agricultoras e atua de forma protetora na subsunção dos modos de vida comunitários e estilos de vida familiares:
A gente vivia no que é dos outros. Aí agora não. É bom porque cada um aqui tem seu pedacinho de terra para trabalhar e lutar para sobreviver (Água Preta, PE).

Tais achados dialogam com o disposto pelo Estatuto da Terra24 e parte do entendimento que o desempenho integral da função social da terra promove equidade, justiça social, bem-estar dos trabalhadores, preservação ambiental e produtividade econômica.
As políticas públicas de proteção da agricultura familiar e outros direitos essenciais para equidade em saúde também emergiram como tema central dos discursos e foram categorizadas como processo crítico protetor que favorece a saúde global. Para Carvalho e Marin25, a agricultura familiar é percebida como promotora da segurança alimentar e nutricional comunitária, uma vez que o avanço das fronteiras agrícolas e o incremento da área plantada com cana-de-açúcar substitui a diversidade das culturas alimentares.

Processos críticos da saúde comunitária
O derrame do caldo produzido pelas usinas no leito de rios, riachos e açudes26, bem como o uso de agrotóxicos, foram apontados como causas determinantes da contaminação das águas nos territórios estudados:
Este rio está contaminado. O pessoal joga agrotóxico por aí(Água Preta, PE).

Quando as nossas mães iam lavar roupa, a gente mesmo tomava água lá. Hoje em dia, mais não. Se tomar, é morte na certa. Nem para lavar roupa mais presta (Goiana, PE).

Guedes et al.10 investigou os mesmos municípios do presente estudo e revelaram contaminação hídrica tanto em águas superficiais como subterrâneas, onde todos os agrotóxicos identificados possuem uso autorizado nas lavouras de cana-de-açúcar. Outro estudo, identificou as matrizes hídricas como um destino corriqueiro dos agrotóxicos no setor agropecuário e explicou as diversas formas de transporte dessas substâncias contaminantes para as águas superficiais e subterrâneas, por meio de pulverização intencional, escoamento, volatilização/dispersão atmosférica e pela lixiviação do solo27. A pulverização aérea de agrotóxicos, realizada semestralmente pelas usinas e próximas ao tempo da colheita, foi citada nos cinco municípios como um pivô da contaminação ecossistêmica, onde esse tipo de aplicação aumenta drasticamente a deriva dos agrotóxicos no ambiente28.
Ele [o avião] só vai atingir 3% do alvo. O restante dos 97% vem para lascar a gente tudo aqui. [...] Ele faz a volta aqui em cima das casas. Ele tá soltando [o veneno]. Ele chega dava a rajada em cima das cabras. Outra coisa, os pés de árvore de quase todo mundo aqui, queimou tudo (Itambé, PE).

Além disso, a queima regular da biomassa de cana-de-açúcar foi descrita como a etapa do trabalho que antecede o corte manual realizado pelos trabalhadores em meio aos extensos canaviais. A conservação secular desta prática destrutiva ocorre em prol da produtividade em regiões de topografias acidentadas que dificultam a mecanização da colheita e dependem da força de trabalho humana29. Apesar do caráter destrutivo e insalubre das queimadas regulares, os trabalhadores rurais as julgam necessárias visto que a fibra da cana, quando ressecada pelo calor, exige menos golpes de facão para ser talhada e favorece o alcance da meta de produtividade imposta pelas usinas. Tal condição é um dos mecanismos de alienação e superexploração do trabalho, tendo em vista que a aceleração do ritmo de trabalho e a exposição à cana queimada aumenta o potencial dos riscos de adoecimento do trabalhador30.
O pior é a fumaça e o pó preto. Quando bota fogo, você não fica dentro de casa e nem tem nenhum lugar para sair. Sua casa no escuro e você sem respirar (Aliança, PE).

Sobre os padrões de exploração pelo trabalho, todas as comunidades descrevem a espoliação dos trabalhadores com imposição de metas abusivas, pagamentos injustos e por produção, jornadas e ritmos exaustivos, sob condições precárias de trabalho, além da exposição física, química, biológica, ergonômica e psicológica, diante das ameaças de demissão ou não contratação na safra seguinte, o que endossa estudos anteriores sobre o tema 9 31.

Muitos funcionários aqui que não querem trabalhar na Usina, é muito puxado o serviço lá [..] Se reclamar, não trabalha […] Esse aí não está dando produção. Aí esse aí não é mais chamado[...]Não são todos que têm capacidade de fazer 3 metas por dia (Sirinhaém, PE).

Quando eu metia a foice aqui, chega abria. A turma “ei, vem cá”, espremia cana e em 10 minutos eu tinha que terminar meu ritmo. Não podia parar não (Itambé, PE).

O perfil de trabalho escravo no período de 1995 a 2022, traçado pelo Ministério Público do Trabalho em parceria com a Organização Internacional do Trabalho32, identificou 57.772 trabalhadores vivendo em condições de escravidão contemporânea. A atividade agropecuária foi registrada como a ocupação mais frequente entre os casos e o setor sucroalcooleiro como o segundo maior responsável, com 14% dos casos. Em Pernambuco, estudos discutem a relevância do trabalho escravo nos canaviais do estado no século XXI e expõem a degradação humana a que estes trabalhadores são submetidos 8 33. Somado a isso, a violência no campo emergiu nos discursos acerca dos processos críticos destrutivos para os modos de vida comunitário. A histórica disputa territorial, uso e ocupação do solo nas áreas rurais do país é marcada por intensos conflitos, envolvendo a titularidade da terra, a exploração ambiental e a subalternação das comunidades locais34, como aponta o relato:

Aqui tinha uma pistolagem forte. O pessoal mandava matar, queimar e enterrar vivo[...] (Aliança, PE)

O contexto generalizado de violência nos territórios estudados pode ser explicado pela profunda desigualdade social. Segundo o Atlas da Violência no Campo no Brasil, o conjunto de municípios com maior violência rural possui também os piores indicadores socioeconômicos 35.
Em contrapartida, a tessitura das redes de convivência coletiva nos territórios estudados edifica sentidos de coesão e unidade comunitária que dão guarida para a coexistência de afetações reconfortantes, solidárias, de pertencimento e de cooperação entre as pessoas36. Logo, a vitalidade dos laços solidários, das formas e recursos organizativos comunitários foi tema central, revelado mediante as fortalezas territoriais que favorecem a produção de saúde nas localidades.

Há uma unidade coletiva […] Inclusive, quando é para resolver um problema. A lógica é o trabalho coletivo para que um possa ajudar o outro (Aliança, PE).

Inserida no espectro da dimensão comunitária dos processos críticos protetores da saúde, a diligência por uma agricultura de base agroecológica, reconhecida por Brandenburg37 como um processo de ecologização da agricultura familiar, foi outro tema central identificado. As perspectivas e práticas agroecológicas dão sustento político, ideológico e técnico-científico-ancestral para a construção de projetos de geração de renda local e autogestão comunitária38. Realce para aqueles cujo protagonismo é fortemente exercido pelas mulheres do campo:
A gente veio para aqui para plantar lavoura de subsistência e não para plantar cana[...] Era um grupo de mulheres que faziam uma horta coletiva. Elas plantavam milho, faziam doces, cocadas, pamonha e canjica. Escoavam para o PAA e levavam para os hospitais e para as escolas. Um trabalho tão bonito. Elas faziam tudo junto e o dinheiro era dividido entre elas (Água Preta, PE).

As articulações políticas e comunitárias, a partir das ações promovidas pelo MST e outros movimentos sociais do campo, bem como o envolvimento dos trabalhadores com os sindicatos de pequenos agricultores rurais, associações locais e grupos comunitários, foram elementos de destaque nas narrativas acerca das fortalezas comunitárias.
Destacam-se entre as resultantes territoriais desta conjunção de processos críticos protetores para a saúde: as trocas e comércio da produção familiar local, o resgate do saber ambiental ancestral, diálogo com o saber técnico científico, a preservação da natureza, a diversificação da produção isenta de agrotóxicos para o autoconsumo e a segurança alimentar e nutricional das comunidades:
O reflorestamento, as árvores que estão se recompondo, elas estão fazendo com que aquilo vire um bosque e vá revivendo onde estava morto […] Os bichos voltaram. Então é timbu, raposa, furão, guaxinim, cobra, lá embaixo brotou até água (Itambé, PE).

Quem está morando na comunidade, sabe muito mais o que é que ele necessita produzir. Sabe o tempo da sua produção e sabe a cultura que é mais viável, para amanhã você poder colher e plantar (Aliança, PE).

A preservação ambiental e o resgate das práticas agroecológicas, sobretudo na comunidade do município de Itambé, são consonantes à promoção da saúde ecossistêmica, sendo a regeneração ambiental e a transformação das paisagens as expressões mais concretas da autonomia relativa comunitária, diante das imposições socioambientais do setor sucroalcooleiro na região.

Processos críticos da saúde individual e familiar
Os participantes narraram suas ações cotidianas no espaço de vida e trabalho e, por meio da reflexão crítica coletiva, identificaram as ameaças para a saúde individual e familiar. A intoxicação por agrotóxicos se configura como um processo crítico destrutivo, cujo contexto de exposição dos moradores envolve o uso e o manejo dos venenos na rotina de trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, como também por meio da contaminação ambiental e de alimentos consumidos no cotidiano.
Os discursos condensam relatos de sinais e sintomas agudos como coceira, dores de cabeça, tontura, falta de ar, náusea, vômito, diarreias, dor no estômago, taquicardia, bradicardia, sudorese, desmaios e convulsões, corroborando com estudos anteriores39 40.

Se a pessoa transpirar ou só sentir o cheiro dele, dá uma sinusite aqui na pessoa[...] Só de destampar aquilo ali, dá uma dorzinha (Itambé, PE).

O veneno faz falta de ar, diarréia, dor no estômago [...] às vezes não ofende na hora, mas se ele morar no município, vai ofender. Por que vai acumulando, todos os anos (Goiana, PE).
Quanto à percepção sobre os danos crônicos à saúde associados ao uso de agrotóxicos, foram identificados problemas como: cânceres, malformação congênita, agravos perinatais, doenças metabólicas do fígado e do sangue, tal como também demonstram outros autores41 42. Entretanto, Murakami et al.42, em estudo sobre as intoxicações crônicas, alerta para importantes lacunas na produção de conhecimento acerca dos danos produzidos pela exposição combinada de diversos princípios ativos cumulativos.
Igualmente expressivas foram as narrativas cujo tema central enfatizou os processos críticos relacionados aos agravos respiratórios relacionados às queimadas sazonais na região.
Ela tem asma, já nasceu com esse problema, mas quando é nessa época piora. A queimada afeta todo mundo, até quem mora distante (Goiana, PE).

Houveram frequentes relatos sobre o aumento de sintomas respiratórios agudos ou crônicos agudizados, sobretudo em crianças e idosos, durante os períodos das queimadas. Em estudo recente do tipo ecológico Domingues et al.43 observaram diferença estatística significante entre as taxas de internações hospitalares por pneumonia, asma, bronquite e bronquiolite aguda em crianças e idosos, sendo maiores as taxas nos 5 municípios deste estudo, quando comparadas a um conjunto de outros 15 municípios não produtores de cana-de-açúcar em Pernambuco. Ramos et al.44 verificaram que a concentração de poluentes atmosféricos cresceu por causa da queima da cana-de-açúcar e constataram diferença significativa na taxa de internações hospitalares por agravos respiratórios, quando comparado ao período de não queima na entre safra.
O padrão degradante do trabalho imposto pelo modelo produtivo aos modos de vida comunitários subsume a saúde individual e familiar, sendo as expressões destrutivas corporificadas por meio da exaustão física dos trabalhadores e dos acidentes sofridos durante a labuta nas lavouras de cana-de-açúcar.
Teve um companheiro meu que foi cortar cana, deu uma câimbra tão grande nele que ele ficou todo atrofiado. Levaram para o hospital, porque tava dando cãimbra pela cabeça, pelo pescoço, pelo corpo todo. É um grande esgotamento físico (Itambé, PE).
Eu conheço um rapaz que foi cortar cana a noite e, quando ele bateu na cana, a cobra caiu e pegou no braço dele [...] Outra ameaça: o trator capotou com mais 30 pessoas dentro de uma carroça atrás. Morreram 5 pessoas (Sirinhaém, PE).
“Lambaeiros” são os que trabalham no campo durante a noite. Ele vem juntando as canas que a máquina não consegue pegar. Muitos morrem na palha. Muitos pegam no sono e a máquina passa por cima (Itambé, PE).

Em revisão sistemática sobre as repercussões das condições de trabalho na saúde dos agricultores da cana-de-açúcar, Silva et al.45 observaram: movimentos repetitivos, causadores de lesões ósteo músculo articulares em diferentes partes do corpo e convulsões; exposição solar, provocadora de sobrecarga térmica, irritabilidade, confusão mental, distúrbios hidroeletrolíticos, câimbras severas generalizadas; acidentes de trabalho, ocorridos durante o percurso, cortes, quedas, queimaduras e picadas de animais peçonhentos; e exposição aos agrotóxicos e materiais particulados, como já discutido neste artigo em parágrafos anteriores
Apesar disso, o desenvolvimento dos quintais produtivos foi uma prática de autocuidado familiar, protagonizado pelas mulheres do campo, observada nos territórios analisados que, por meio do cultivo de ervas medicinais e vegetais para o autoconsumo familiar46, contribuem para promoção da saúde e estilos de vida saudáveis.

Porque todo mundo planta aqui. Um tem um jerimum, batata, outro tem inhame, macaxeira, banana, tudo isso é alimento, uma verdadeira fortaleza para a gente [...] É porque a gente distribui aquilo que a gente planta. É como uma forma de gratidão [...] A gente não usa adubo químico e veneno. A gente faz natural (Itambé, PE).

É notória a relevância dos quintais produtivos na reprodução da vida familiar, visto que oportunizam um consumo, ainda que parcial, de alimentos sadios e a segurança alimentar e nutricional. Observou-se significados em torno da manutenção destes espaços com atividades promovendo bem-estar, lazer, autonomia do cuidado, partilha comunitária e preservação da natureza45.
Outras práticas de autocuidado foram destacadas pelas comunidades e segundo os depoimentos, as vestimentas de trabalho contaminadas são lavadas em separado das demais, devido à intenção de mitigar a exposição de outros entes familiares que convivem no mesmo domicílio. Todavia, o estudo de Pessoa et al.47 revelou que entre os aplicadores de venenos cadastrados em Pernambuco, 48% deles relataram não haver local exclusivo para a lavagem das roupas contaminadas, sendo a mesma realizada em locais com outras finalidades.
A reprodução dos processos críticos destrutivos estruturais limita a autonomia relativa da ação individual diante das ameaças territoriais, evidencia sua fragilidade e insuficiência para a garantia da proteção integral, expondo a necessária construção de políticas públicas centradas na promoção da saúde socioambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A coerência teórica e metodológica da epidemiologia crítica latino-americana fundamentou a análise da contradição básica dos processos críticos protetores da saúde em oposição dialética aos processos destrutivos, que se realizam na dimensão geral da reprodução societal, na dimensão particular dos grupos comunitários e na dimensão singular do cotidiano de vida individual e familiar.
O diagnóstico realizado evidenciou a ausência do Estado em todas as dimensões da matriz de processos críticos da determinação socioambiental da saúde, sobretudo nas hierarquias mais inferiores sobrecarregadas pelas subsunções destrutivas da ordem global , mas que, apesar disso, exercem autonomia relativa ao gerar processos protetores comunitários, familiares e individuais. Tais achados apontam para a necessidade de criação, expansão e direcionamento das políticas públicas de saúde e de proteção social para as populações do campo, bem como para o fortalecimento da vigilância, atenção, cuidado e promoção da saúde desse público.
A práxis da saúde demanda a ampliação e o fortalecimento dos processos protetores e o enfrentamento necessário para superação dos processos destrutivos em todas as dimensões da determinação socioambiental da saúde. É urgente a mobilização e o engajamento das populações vulnerabilizadas pelo setor sucroalcooleiro, em torno da construção de uma agenda socioambiental que exija uma conduta ética, equânime e protetora do Estado enquanto agente ativo em defesa dos direitos da natureza e da vida humana.

FINANCIAMENTO
Os recursos financeiros utilizados na pesquisa foram aportados por meio de chamadas públicas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital Universal 2018; da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE), por meio do Programa Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde (PPSUS)/Decit/SCTIE/MS; e de bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Repositório de dados Scielo Data: https://doi.org/10.48331/scielodata.NJ7OML

REFERÊNCIAS

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Domingues, R. C., Gurgel, A. M., Santos, R.C., Lima, F. L. M. A., Santos, C. C. S., Santos, M. O. S., Gurgel, I.. DETERMINAÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA SAÚDE EM TERRITÓRIOS PRODUTORES DE CANA-DE-AÇÚCAR EM PERNAMBUCO. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2023/nov). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/determinacao-socioambiental-da-saude-em-territorios-produtores-de-canadeacucar-em-pernambuco/18975?id=18975

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