0388/2023 - Espiritualidade como dimensão indutora de saúde e bem-estar
Spirituality as an inductive dimension of health and well-being
Autor:
• Dirce Stein Backes - Backes,D.S - <backesdirce@ufn.edu.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9447-1126
Coautor(es):
• Bruno Cassol Camera - Camera, B. C. - <brunocamera@ufn.edu.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5204-8722
• Andressa Caetano da Veiga - Veiga, A. C. - <andressacveiga@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6769-4671
• Irani Rupolo - Rupolo, I. - <irani@ufn.edu.br>
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3319-4596
• Marcio Paulo Cenci - Cenci, M. P - <mpcenci@ufn.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3438-0545
• Andreas Büscher - Büscher, A. - <A.Buescher@hs-osnabrueck.de>
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6909-7379
• Léris Salete Bonfanti Haeffner - Haeffner, L.S.B - <lerishaeffner@ufn.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8798-4345
Resumo:
Objetivo: Analisar intervenções relacionadas à espiritualidade como contributo à saúde e bem-estar de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis. Método: Pesquisa-ação, apoiada na análise fenomenológica, cuja intervenção foi realizada a partir de oficinas de espiritualidade em uma Associação de Materiais Recicláveis do sul do Brasil, entre julho/2022 e junho/2023, com a participação de mulheres trabalhadoras desta Associação. Resultados: Da técnica de análise do tipo Reflexive, que possibilitou o registro de sentidos, insights e a significação das intervenções, resultaram três categorias temáticas, quais sejam: Reconhecendo-se em outra dimensão; Conectando-se consigo mesma e com os outros; e Sentindo-se fortalecida e comprometida. Conclusão: A análise das intervenções relacionadas à espiritualidade como contributo à saúde e o bem-estar de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis demonstrou a necessidade de diversificar as abordagens teórico-práticas e investigativas na saúde, de modo a ampliar a percepções e compreender o ser humano em sua dimensão singular e multidimensional.Palavras-chave:
Promoção da saúde; Espiritualidade; Desenvolvimento Sustentável; Recuperação de Resíduos Sólidos; Pesquisa Qualitativa.Abstract:
Objective: To analyze interventions related to spirituality as a contribution to the health and well-being of womena Recyclable Materials Association. Method: Action-research, complemented by phenomenological analysis, whose intervention was carried out through spirituality workshops in a Recyclable Materials Association in southern Brazil, between July/2022 and June/2023, with the participation of working womenthis context. Results: Three thematic categories resultedthe Reflexive type analysis technique, which enabled the recording of senses, insights and the signification of the interventions: The data organized and analyzed resulted in three thematic categories, namely: Recognizing oneself in another dimension; Connecting with oneself and with others; and Feeling strengthened and renewed. Conclusion: The analysis of interventions related to spirituality as a contribution to the health and well-being of womenan Association of Recyclable Materials demonstrated the need to diversify theoretical-practical and investigative approaches, in order to broaden the perception of health and understand the human being in its singular and multidimensional dimension.Keywords:
Health Promotion; Spirituality; Sustainable Development; Solid Waste Use; Qualitative Research.Conteúdo:
As crescentes tensões e iniquidades sociais, a degradação ambiental e outros agravos colocaram os países, em geral, em estado de alerta e, por intermédio das Nações Unidas, firmaram o acordo político global que deu origem aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ou denominadas Metas Globais para 2030. Esses Objetivos representam um plano de ação global para assegurar os direitos humanos básicos, acabar com a pobreza, oferecer educação de qualidade ao longo da vida para todos, promover o empoderamento de mulheres, proteger o planeta e promover sociedades inclusivas e pacíficas, dentre outras proposições1-3.
Seguir fazendo mais do mesmo, contudo, não possibilitará avanços e nem mesmo repercutirá em melhores práticas de desenvolvimento sustentável. Sob esse enfoque, os autores deste estudo se interrogaram: qual é o meu/nosso papel profissional e social face às metas globais para 2030? O que faço/fazemos de diferente, em âmbito da academia, em resposta aos desafios atuais, sobretudo, os relacionados à saúde e bem-estar de pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade social?
As metas globais poderão ser alcançadas mediante investimentos teórico-práticos que contemplam o ser humano como unidade complexa, isto é, em sua dimensão bio-psico-sócio-espiritual4-5. Nesse percurso, as dimensões bio-psico-sociais são facilmente reconhecidas e incorporadas na saúde, processo de trabalho e dinâmica social. A dimensão espiritual é, todavia, abordada com menos frequência e de forma superficial no diferentes contextos sociais. A espiritualidade associa-se à gênese do ser humano enquanto ser ontológico que inclui corpo, mente, emoções e espírito. A prática da espiritualidade é, assim, caracterizada como autorreflexiva, transcendental, orientada ao sagrado e, portanto, alinhada à justiça social, à sustentabilidade ambiental, à equidade econômica, a saúde e o bem-estar humano6-8.
Mesmo que não se tenha uma definição universalmente aceita de espiritualidade, a maioria das definições encontradas relacionam-se à busca por uma vida de significado nas relações sociais e de trabalho, orientada por princípios inclusivos e promotores de saúde e bem-estar9-10. Nessa direção, a espiritualidade tem potenciais benefícios na dinâmica relacional, especialmente de mulheres que trabalham com materiais recicláveis. O gênero é um fator contextual que influencia na esfera de valores e ações, bem como na percepção dos atores sobre os seus interesses e escolhas. Para trabalhadores, especialmente mulheres em situações periféricas, o trabalho se constrói no coletivo, nas interações entre os seus membros e no interior de instituições que lhes asseguram o reconhecimento profissional11-12.
Tem-se, com base no exposto, como questão investigativa fundante para este estudo: Por que a dimensão da espiritualidade se faz tão importante em intervenções com mulheres/trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis? Assim, no intuito de contribuir afirmativamente para o alcance dos ODS, este estudo tem por objetivo analisar intervenções relacionadas à espiritualidade como contributo à saúde e bem-estar de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis.
Metodologia
O presente estudo integra um projeto ampliado de pesquisa-ação13, que tem por finalidade intervir no cenário e, também, investigar e gerar novos saberes sobre a ação, a partir das evidências, a saber, tal como os fenômenos se apresentam como narrativas. Optou-se, sob esse impulso, por uma análise do tipo fenomenológica, complementada pela análise Reflexive. A análise fenomenológica passa pela compreensão das intencionalidades expressas nas narrativas e na forma como as coisas, no sentido mais amplo da palavra, aparecem e descrevem fenômenos da condição humana14. Considerou-se, no processo de construção do estudo, os critérios do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)15.
O processo de intervenção foi realizado em uma Associação de Materiais Recicláveis do sul do Brasil, contexto em que o projeto ampliado de pesquisa-ação vem sendo realizado desde o ano de 2010. Essa Associação existe desde o ano de 2009 e oportuniza trabalho e renda para 33 famílias que dependem unicamente desta fonte de renda. A média de filhos por família varia entre quatro e oito. A rotina de trabalho, de oito horas diárias, é realizada soberanamente por mulheres e a receita, por integrante, varia entre 400 e 600 reais mensais.
Participaram do processo de intervenção, mais especificamente das oficinas de espiritualidade, todos os integrantes da Associação de Materiais Recicláveis, isto é, as 30 mulheres e os três (3) homens responsáveis pelo transporte do material reciclagem. Essa participação deu-se, a partir de um convite nominal, entregue individualmente para cada participante. E, do processo de significação e análise das intervenções, com base em critérios de inclusão previamente estabelecidos, participaram 26 mulheres. Excluiu-se do processo de investigação os três (3) homens e as quatro (4) mulheres que, por algum motivo justificado, não participaram da totalidade das oficinas de espiritualidade.
Estabelece-se, anualmente, um cronograma de intervenções, em comum acordo entre os pesquisadores e os integrantes da Associação de Materiais Reciclável. Nesse último cronograma, no período de julho/2022 a junho/2023, a espiritualidade figurou como uma das principais prioridades demandadas. Prospectou-se, com base nessa constatação, uma série de oficinas de espiritualidade, a partir de intervenções sistemáticas em dias e horários previamente acordados com os participantes.
As oficinas de espiritualidade, num total de 11 e pelo tempo de 60 minutos, foram mediadas por pesquisadores com ampla expertise na área e que tiveram experiência prévia, na condução de oficinas de espiritualidade em outros contextos. Neste estudo, as oficinas foram sistematizadas em cinco etapas, conforme demonstrado no quadro 1 e ocorreram no cenário laboral da Associação, mais especificamente em um espaço de convivência dos trabalhadores. Considerou-se, no processo de dinamização das oficinas de espiritualidade,
Quadro 1. Sistematização das oficinas de espiritualidade
As oficinas de espiritualidade foram realizadas de modo a contribuir com a saúde e o bem-estar dos participantes, bem como gerar novos saberes para o avanço da ciência de enfermagem/saúde. Analisou-se e discutiu-se, paralelamente ao processo de intervenção, os significados e as percepções atribuídas pelos participantes sobre as oficinas de espiritualidade, sendo este o principal objeto de descrição neste estudo.
O processo de coleta e descrição das intervenções relacionadas às oficinas de espiritualidade se deu a partir do diário de campo, última etapa da sistematização das oficinas de espiritualidade. Esse percurso foi conduzido, de forma coletiva, com base nos seguintes questionamentos: como foi para você ter participado deste momento? Como sente-se agora, depois desta oficina? O que você entende por espiritualidade? Qual a sua sugestão para o próximo encontro?
Optou-se, nesse estudo, pela Análise Temática do tipo Reflexive16. Adotou-se essa técnica pelo fato desta possibilitar o registro sistemático de ideias e insights, além de facultar uma codificação fluída, flexível e reflexiva dos significados atribuídos pelos participantes sobre as oficinas de espiritualidade. Esse percurso de análise dos dados foi conduzido com base em seis fases, quais sejam: Familiarização com os dados a partir de leitura repetida dos dados contidos no diário de campo; Geração manual de códigos iniciais, com base na sistematização de extratos relevantes; Delimitação de temas a partir da classificação dos diferentes códigos; Refinamento dos temas com base na validação das temáticas iniciais; Nomeação dos temas a partir da essência extraída do conjunto de códigos; e a produção do relatório que ofereceu uma descrição reflexiva e prospectiva do vivido em todo o percurso da pesquisa-ação. Conduziu-se, paralelamente, uma análise fenomenológico das categorias temáticas enquanto expressão da experiência vivida. As narrativas expressam de forma intencional como as participantes compreendem sua relação com o sagrado e expressam de forma existencial, ou seja, como se sentem nessa relação.
Observou-se, em todo o percurso da pesquisa-ação, as recomendações da Resolução n°. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde17. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética sob o parecer: 4.253.910. Após esclarecidos os objetivos e mediante aceite, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter o anonimato, as falas das participantes foram identificadas, ao longo do texto, com a letra “M” de Mulher, seguida de um algarismo numérico, correspondente à ordem das falas: M1, M2... M26.
Resultados
Os dados organizados e analisados resultaram em três categorias temáticas, quais sejam: Reconhecendo-se em outra dimensão; Conectando-se consigo mesma e com os outros; e Sentindo-se fortalecida e comprometida. Demonstra-se, no quadro 2, o refinamento das categorias temáticas, as quais foram geradas a partir dos códigos iniciais.
Quadro 2. Categorias temáticas geradas a partir dos códigos iniciais
Percebendo-se em outra dimensão
As participantes, em geral, embora não soubessem significar teoricamente a espiritualidade, essa foi sentida e traduzida como paz e forte luz interior, leveza, libertação, boas energias, reflexão, transcendência, dentre outras expressões verbais ou não verbais, conforme expresso em depoimentos:
Essa paz interior que a gente sente quando está nesse momento. É você receber uma energia boa nesse momento. Você abrir-se para coisas diferentes e maiores. Espiritualidade é isso. (M3)
Momento de refletir. A gente se sente melhor. Depois que faz essa prática, o dia fica muito melhor, fica mais leve, mais leve. (M5)
Conseguir parar, refletir, pensar. A gente vai de uma coisa para outra e acaba não conseguindo dar atenção pra gente mesmo. (M17)
Pra mim é um momento maravilhoso, eu desligo de tudo, de tudo! E fico aqui bem tranquila e serena. Sei que hoje vou passar um dia bem mais tranquilo e harmonioso, que é o que eu preciso. (M23)
As oficinas de espiritualidade demonstraram potencial de conduzir os participantes para uma outra dimensão, um esvaziamento de tensões e conflitos interpessoais, conforme expresso, mais especificamente, por uma das participantes:
A gente já trabalha em um material que chamam de lixo e não é lixo. Já tem um nome (...), aí você precisa fazer um esforço diário para estar bem. Temos muita discussão. É muita coisa que vai machucando as pessoas e chega uma hora que explode. Então esse momento nos esvazia destas coisas (M8)
As oficinas de espiritualidade associadas à dimensão de infinito, com o maior, com Deus, também foram evidenciadas em diversas falas:
Aqui a gente desce do muro. Tem gente que tem vários pensamentos, então aqui foca naquilo que é maior. O que nos protege é um só, é aquele maior. Esse momento tem que servir pra isso, pra que consiga interiorizar e buscar, lá dentro, um meio termo pra tu não descarregar os problemas nos teus colegas. (M2)
As oficinas de espiritualidade serviram, também, para desabafos de tensões e preocupações presentes nas relações de trabalho do dia a dia e, por vezes, decorrentes de problemas familiares:
Deixa-a desabafar, se não ela vai passar o dia inteiro remoendo aquilo. Esse é o momento para isto. Temos que aproveitar esse momento aqui para desabafar, para que reine a paz em nosso trabalho. (M7)
Esse momento de espiritualidade serve pra isso, pra tu refletir como é que você trata o teu colega, como é que tu tá cuidando das tuas dificuldades, tu tá com problema, pede pra alguém auxiliar. (M8)
Denotou-se, na maioria dos depoimentos, que as oficinas de espiritualidade possibilitaram transcender a rotina de trabalho diária e alcançaram um novo sentido de vida e de trabalho.
Conectando-se consigo mesma e com os outros
As oficinas de espiritualidade favoreceram conexões interpessoais e, igualmente, um sentimento de unidade, de cooperação entre colegas de trabalho, conforme expresso:
Esses momentos facilitam até para a gente lembrar a colega quando ela está falando coisas que não são agradáveis aos ouvidos de Deus. Gostar de Deus é gostar de estar nesse momento, só que eu tenho que levar isso para o meu dia a dia. (M1)
Essa conexão expressa, pelas participantes, não se reduz ou limita ao momento das oficinas de espiritualidade, mas se amplia nas relações diárias de trabalho e nos diferentes movimentos que a vida oferece:
Às vezes o pessoal está fazendo uma coisa que eu não gosto, aí eu passo para este momento aqui e consigo me controlar e não explodir ou dizer coisas que depois eu vou me arrepender. Palavra, depois que ela sai no vento, ela não volta. Depois que você escuta não apaga. (M4)
Eu tento não dizer coisas para os outros que eu não gostaria de ouvir. Porque eu sei que, se me ferir vou ferir o outro também. Eu sempre lembro desse momento aqui. Daí quando a gente está aqui, todo mundo junto, todo mundo é igual. (M18)
Denotou-se, que com o trabalho exaustivo do dia a dia, as participantes se fragilizam e assumem as dores umas das outras, tornando-as, assim, ainda mais vulneráveis e expostas a insônia e outros agravos. Por outro lado, existe um envolvimento e compartilhamento de sentimentos e emoções entre todas as participantes.
A gente acaba se envolvendo na vida particular um do outro. Te envolve porque você está ali no dia a dia. Você está vendo o que o outro está passando e aí você vai se envolver e pega essa mesma energia e sofre junto. A nossa vida é muito corrida e as vezes o pessoal acha que não dá para parar cinco, dez minutos. (M19)
Você traz as coisas de casa e pega todas as coisas aqui, depois de noite tu chega, tem noite que não consegue dormir, não consegue descansar e relaxar. (M24)
Diversas participantes fizeram referência à necessidade de cultivar energias boas, a fim de transmiti-las para as pessoas próximas, tanto no local de trabalho, quando na família.
Eu xingo e digo para ela, para com isso! Tu tens que mandar energia boa para o teu filho. Pensamento bom pro teu filho. Só manda coisa boa, porque a mãe, a mãe é o ser mais puro que tem pra desejar coisa pra um filho. Se uma mãe desejar só coisa boa pro filho o filho vai ter só coisa boa. Agora, se a própria mãe que gerou, que criou, que carregou por nove meses, ela mesmo desejava mal pro filho. Isso vai em dobro, vai e não tem defesa daí pra não pode fazer isso. (M13)
Ninguém vai lá perguntar que que ela está chateada e quieta no canto. Porque eu estou desde o dia da quinta-feira antes do dia das mães agoniada por que eu estou aqui e a minha mãe tá desde quinta-feira antes do dia das mães no hospital, na CTI. Mas nenhum momento aqui eu peguei e bati em alguém, xinguei alguém, eu desaforei alguém, em nenhum momento. porque isso é uma coisa minha. Eu não vou pegar minha carga e jogar em cima dos outros. Quanta energia boa, pensamento bom. Se eu fico aqui desesperada chorando e meu Deus eu só vou mandar coisa ruim pra ela. E assim não ó. Eu sei que ela está bem. (M21)
Denotou-se em uma fala, mais especificamente, um forte sentimento de gratidão por ter sido escolhida e poder integrar as oficinas de espiritualidade. Por outro lado, essa percepção traduz um percurso de invisibilidade e desvalorização social, ou seja, por que não havia sido lembrada antes?
Que bom que a gente foi escolhida. Poderia ter feito isso em outro lugar, não poderia? Então, eu acho que pra nós é muito gratificante fazer parte disse momento. Eu sempre pedi isso (momentos de espiritualidade), por que eu entendo que todas precisamos destes momentos. A gente precisa se desligar de tudo e cuidar da gente mesmo. (M18)
As oficinas de espiritualidade possibilitaram, na fala das participantes, conexões pessoais e coletivas, maior consciência e responsabilidade, além de reconhecimento, valorização e visibilidade social.
Sentindo-se fortalecida e comprometida
Diversas participantes evidenciaram que, para trabalhar bem e tomar as decisões corretas, é preciso estar em paz consigo mesma e sentir-se fortalecida em suas convicções e propósitos para poder trabalhar melhor e de forma mais comprometida, conforme expresso:
Se eu não tiver paz de espirito, nem eu consigo pensar, decidir e trabalhar direito. Isso me prejudica muito, tanto na minha saúde quando na minha vida profissional, porque eu acabo tendo que representar todos vocês. Então imagina como que fica minha cabeça. (M6)
Na fala de outras participantes, a espiritualidade foi expressa como sendo uma força interior que impulsiona e possibilita superar desafios inimagináveis ou transcender algo para a qual não estava preparada:
Coisas em que você se julgava incapaz de fazer e vai ali e faz, entendeu? Tem uma força maior em você e que te impulsiona. Coisas que você achava que não seria capaz, mas consegue, me dei conta disto agora. (M9)
As participantes demonstraram, em geral, que as oficinas de espiritualidade as fortaleceram e motivaram com novas energias. Reconhecem que só conseguem trabalhar em paz, se estiveram em paz consigo mesmas.
Parece que entra uma luz assim, sai pelas minhas mãos, pelos meus pés e me deixa cheia de energia, quando nós estamos sentadas aqui. Porque eu acredito nisso. Se eu quero paz, eu vou ter que ser a paz. Se eu quero o bem eu tenho que ser o bem. Como é que eu quero uma coisa se eu não tenho para dar? (M8)
Eu preciso estar bem para não pode contaminar os outros. Temos que tentar viver em harmonia, se não a gente nunca vai conseguir ter paz. Esses momentos renovam a gente. Eu preciso de paz de espirito, para trabalhar bem e levar boas energias para casa. (M15)
Algumas participantes fizeram referência à qualificação das relações de trabalho, por intermédio das oficinas, ao mencionarem que colegas que costumavam conflituar na equipe conseguiram se harmonizar e renovar com as oficinas de espiritualidade. Mencionou, ainda, que é impossível separar a vida familiar do trabalho e que isto, por vezes, influencia no trabalho.
Até ele (nome) deixou de ser brigão. Às vezes eu chego pesada lá da minha casa. A gente não consegue separar a vida particular do trabalho. (M4)
Esse momento é para nós uma benção, uma luz. A gente está muito focada em coisas pesadas e aqui você desliga de tudo, se renova. A gente consegue sintonizar e tirar um pouco da negatividade. (M6)
Denotou-se, ainda, que as oficinas de espiritualidade contribuíram para qualificar as relações e o ambiente familiar, como extensão do próprio trabalho. Sob esse enfoque, as participantes se percebem na integralidade e complementaridade do ser e agir profissional.
O que você recebe de bom, aqui, você leva para casa. Não vamos levar pra casa as críticas, mas queremos levar coisas boas. Não levo as discussões, por que se não temos que procurar psicólogo. (M16)
Esse momento ajuda muito para o pessoal botar tudo para fora, externar aquilo que tá lá incomodando. Não adianta, você vai acumulando, acumulando e aí cria conflitos no trabalho e que muitos levam para casa. Precisamos levar pra casa só coisas boas (M20)
Denotou-se ao longo do percurso, portanto, que as oficinas de espiritualidade não se limitaram aos momentos propostos no cronograma. As mesmas geraram reflexões no trabalho e na família, possibilitaram minimizar dores, angustias e tensões e transcenderam o pensar e agir meramente profissional do dia a dia.
Discussão
Os resultados desta pesquisa-ação demonstraram que a espiritualidade se constitui em importante contributo à saúde e bem-estar das pessoas, sobretudo, em contextos ambíguos e de maior vulnerabilidade social. Conceber que o ser humano, nesse caso a mulher que trabalha com materiais recicláveis, é um ser espiritual em busca de sentido de vida e transcendência, não significa arquitetar uma sensação de bem-estar sem a ausência de sofrimento, mas sim em acreditar em novas possibilidades e dar sentido à própria existência. Assim, encontrar sentido em uma situação ambígua não indica necessariamente uma mudança de situação, mas em uma alteração de ânimo, atitude e estado de vida individual e coletivo18-19.
A forma consciente que os seres humanos adotam para suprimir a distância entre o que sentem e o ideal almejado está relacionado ao trabalho emocional e à busca do transcendente. No trabalho emocional, principalmente o relacionado à divisão de gênero, a pessoa atua sobre si mesma para se adequar ao sentimento que julga importante sentir e não só mostrar aos outros. Sob esse pensar, os sentimentos não estão guardados na interioridade da pessoa, como na abordagem organicista, mas relacionam-se à capacidade de lidar com as emoções adversas de modo a contribuir para o bem-estar pessoal e coletivo20.
Em diversos países, o trabalho de reciclagem é exercido quase que exclusivamente por mulheres. A estigmatização e a exploração da atividade ocupacional da mulher recicladora é agravado, como também evidenciado pelas participantes deste estudo, pela sua reprodução social e cultural associada à impureza e a contaminação do trabalho denominado “lixo” ou “trabalho sujo”. Sob esse enfoque, as mulheres recicladoras necessitam resistir não apenas às diferentes formas de exclusão social, mas também às condições de subalternidade, invisibilidade e desagregação social21-22.
Ao evidenciarem a necessidade de parar, desabafar, encontrar-se consigo mesmas, repensar a forma de trabalhar e a sentir-se pessoa humana e em conexão com tudo e com todos, as participantes deste estudo denotaram o esforço que realizam para lidar com os seus sentimentos e emoções cotidianas. Nessa direção, as oficinas de espiritualidade se constituíram em espaço e tempo para o cuidado de si tanto nos aspectos físico, emocional e social, quanto no aspecto espiritual. Por meio das oficinas, as mulheres conseguiram transcender o seu estado emocional, geralmente, reduzido a dores, tensões e conflitos (inter)pessoais e, consequentemente, atingir feições de leveza, harmonia e encontro consigo mesmas. Denotou-se, portanto, um movimento de abertura ao transcendente, mas também de retorno ao cotidiano, na forma de alívio, tranquilidade, paz e motivação, a partir de um sentido renovado de pertença e de conexão com algo maior.
A espiritualidade vem conquistando espaço e adesão nas diferentes áreas do conhecimento, embora aspectos teóricos e de consenso sobre a sua operacionalização dificultem os seus avanços. A espiritualidade tem a capacidade de fomentar conexões, fortalecer a interioridade, ampliar perspectivas e o sentido de corresponsabilidade. Embora a relevância de tais conexões seja reconhecida como direito humano essencial em diversos grupos populacionais, poucos estudos investigaram os seus impactos na saúde e no bem-estar de mulheres que trabalham em associações ou espaços de reciclagem de materiais sólidos23-24.
As pessoas que trabalham com materiais recicláveis, não raramente, vivem e trabalham em condições insalubres e na invisibilidade social. Essa é uma constatação que a atividade laboral das mulheres dedicadas a materiais recicláveis requer atenção, pois estão constantemente expostas a situações que podem depreciar a condição de vida, saúde e reconhecimento social25. Diversos depoimentos de participantes deste estudo demonstraram a dureza e o empenho diário, de cada trabalhadora/mulher, para manter-se bem e em condições, minimamente, desejáveis para superar a exaustiva rotina de trabalho em cooperação com as demais colegas. Nota-se, contudo, a disposição das mulheres em encontrar soluções às situação de exaustão, tal como se nota pela ampla e ativa participação nas oficinas. Assim, iniciativas que contemplem a espiritualidade são necessárias para oferecer melhorias efetivas nas condições de vida e na indução de bem-estar integral.
Nessa direção, a análise fenomenológica remete a análise do humano sem estar mediada por categorias científicas, como a das mulheres que compartilharam as suas experiências de vida. A condição do humano em sua condição cotidiana, isto é, sem a mediação de teorias, encontra sentido no ato de viver a vida da forma como ela se apresenta. Logo, não há situação na vida que não tenha sentido, pois mesmo nas piores e mais adversas condições, o ser humano é capaz de encontrar significado para o seu existir26.
Prospectar o desenvolvimento sustentável implica em considerar as diferentes dimensões que abarcam a vida em comunidade. As necessidades espirituais representam, nessa busca, a conexão com os outros e com o nosso mundo vivo. Os valores sociais, tais como a solidariedade, a justiça, a cooperação, a preservação e outros, representam uma construção pessoal e coletiva ao longo da vida, a partir da integração de fenômenos aparentemente aleatórios e antagônicos, tais como a natureza, o divino e o espiritual, que representam a conectividade com o mundo vivo. O desenvolvimento sustentável implica em conservar a integridade ecológica, mas também em promover a justiça social e econômica, a não-violência, a democracia, a paz. Sob esse enfoque, a sustentabilidade associa-se a uma visão de mundo ecologicamente espiritual, ou seja, a um nível mais amplo e integrador de consciência espiritual27.
A correlação entre a saúde e a espiritualidade é valorizada desde os primórdios da humanidade, mesmo que tenham sido separadas na prática médica moderna. Observa-se, nas últimas décadas, um incremento de estudos investigativos que endossam a necessidade de se reconsiderar essa abordagem integrativa, com evidente desdobramento na atenção à saúde e bem-estar. Estudo evidencia que, pelo seu valor diagnóstico, a espiritualidade deve ser considerada fator importante no atendimento clínico e na promoção da saúde e, nessa direção, deve ser incorporada em âmbito de ensino, pesquisa e assistência à saúde28.
Outros estudos denotaram, todavia, que o bem-estar espiritual está associado tanto a aspectos positivos (felicidade, esperança, gentileza, compaixão, propósito na vida, otimismo, autoestima e gratidão) quanto negativos (depressão, suicídio, ansiedade, psicose, abuso de substâncias, tabagismo, comportamentos sexuais extraconjugais, delinquência/crime e instabilidade conjugal)39-30. Um estudo, em especial, demonstra forte correlação entre bem-estar e felicidade em estudantes da saúde, ao utilizar a escala de bem-estar espiritual31.
Os resultados deste estudo evidenciam a necessária articulação entre espiritualidade, saúde, bem-estar e as questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável. Construir uma noção de integralidade da vida requer o desenvolvimento da dimensão da espiritualidade. A atividade laboral em conjunto com outros campos da existência, como constitutivos da condição humana, possibilitam a superação de pensamentos fragmentados e desumanizadores. Uma sociedade de excessos que promove o desempenho inócuo e conduz as pessoas ao cansaço vazio necessita reaprender o significado do trabalho, que se dinamiza no descanso, na convivência, na integralidade da vida32.
Conclusão
A análise das intervenções relacionadas à espiritualidade como contributo à saúde e o bem-estar de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis demonstrou a necessidade de diversificar as abordagens teórico-práticas e investigativas na saúde, de modo a ampliar a percepções e compreender o ser humano em sua dimensão singular e multidimensional.
O presente estudo admite a relevância da pesquisa-ação como percurso indutor de novos saberes e práticas profissionais e recomenda novos estudos sobre a dimensão espiritual no cuidado em saúde. Reconhece-se, que investigações e análises qualitativas possibilitam, sobretudo, em contextos de vulnerabilidade social, compreensões e significações singulares da vida real, as quais dificilmente serão alcançadas e previstas com dados quantitativos.
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