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Artigos

0093/2025 - EXCESSO DE ÓBITOS MATERNOS ENTRE IMIGRANTES, DURANTE A PANDEMIA, NO BRASIL
EXCESS OF MATERNAL DEATHS AMONG IMMIGRANTS, DURING THE PANDEMIC, IN BRAZIL

Autor:

• Zilda Pereira da Silva - SILVA, ZP - <zildapereira@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4648-113X

Coautor(es):

• Rubens Carvalho Silveira - Silveira, RC - <rubenscsilveira@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1862-1772

• Gizelton Pereira Alencar - Alencar, GP - <gizelton@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2354-9050

• Márcia Furquim de Almeida - Almeida, MF - <marfural@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0052-1888



Resumo:

Objetivou-se analisar o efeito da pandemia de covid-19 na mortalidade materna entre imigrantes, no Brasil. Estudo descritivo com óbitos maternos, ocorridos entre 2014 e 2021. Foram analisadas a frequência de óbitos e as causas básicas de morte. Foi calculada a razão entre o número médio de óbitos nos períodos anterior e durante a pandemia e IC95%. Dos 14.205 óbitos, 136 eram de imigrantes e 14.069 de brasileiras. O excesso de óbitos foi maior para imigrantes (2,10; 1,40-3,04) que para brasileiras (1,53; 1,40-1,59) com aumento expressivo para venezuelanas (7,46; 2,40-17,42) e para haitianas (3,67; 2,11-5,91). Antes da pandemia, predominavam as causas obstétricas diretas, com mais de 60% dos óbitos. Durante a pandemia, ganharam importância as causas obstétricas indiretas, sendo que a principal foi “outras doenças virais complicando a gravidez, o parto e o puerpério (CID-10 O98.5)”, com 33,93% de óbitos para as imigrantes e 39,44% para as nativas. Nesse agrupamento de causas, destacam-se os códigos relacionados à infecção por covid-19 para imigrantes (94,7%) e brasileiras (97,8%). Evidenciou-se excesso de óbitos maternos durante a pandemia, com maior intensidade para venezuelanas e haitianas, quando comparado com brasileiras, sugerindo maior dificuldade de acesso oportuno aos serviços de saúde para as imigrantes.

Palavras-chave:

mortalidade materna, migrantes, covid-19

Abstract:

The aim of this study was to analyze the effect of the COVID-19 pandemic on maternal mortality among immigrants in Brazil. This was a descriptive study of maternal deaths that occurred between 2014 and 2021. The frequency of deaths and underlying causes of death were analyzed. The ratio between the average number of deaths before and during the pandemic were calculated. Of the 14,205 deaths, 136 were immigrants and 14,069 were Brazilian. The excess mortality was higher for immigrants (2.10; 1.40-3.04) than for Brazilian women (1.53; 1.40-1.59), with a significant increase for Venezuelans (7.46; 2.40-17.42) and Haitians (3.67; 2.11-5.91). Before the pandemic, direct obstetric causes predominated, accounting for more than 60% of deaths. During the pandemic, indirect obstetric causes gained importance, with the main one being “other viral diseases complicating pregnancy, childbirth and the puerperium (ICD-10 O98.5)”, with 33.93% of deaths for immigrants and 39.44% for natives. In this group of causes, the codes related to COVID-19 infection for immigrants (94.7%) and Brazilians (97.8%) stand out. There was an excess of maternal deaths during the pandemic, with greater intensity for Venezuelans and Haitians, when compared to Brazilian women, suggesting greater difficulty in timely access to health services for immigrants.

Keywords:

maternal mortality, migrants, covid-19

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Crises econômicas, guerras, perseguições religiosas, catástrofes naturais e o aumento das desigualdades entre países vem gerando ondas migratórias, que tem se intensificado nos últimos anos. A migração internacional é uma realidade global, segundo as Nações Unidas, em 2019, os migrantes internacionais totalizaram cerca de 272 milhões, indicando um aumento de 51 milhões desde 2010¹ .
Esses movimentos envolvem grandes proporções de jovens adultos, em particular mulheres, que representavam cerca de 48% dos migrantes internacionais no mundo¹. As mulheres e as crianças estão mais sujeitas a situações de vulnerabilidade quando migram sem a proteção da família e/ou de redes sociais de apoio². No Brasil, o processo de feminização das migrações teve início nos últimos sete anos, e o aumento no número de mulheres ocorreu devido ao incremento das migrações dos países do Sul-Global³.
A mobilidade entre diferentes países apresenta um grande desafio para as políticas públicas, incluindo as de saúde reprodutiva. Estudo em países da União Europeia mostrou que as migrantes não tinham garantido o direito ao acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva, incluindo serviços de planejamento familiar4. No Brasil, pesquisa com migrantes venezuelanas identificou necessidades não atendidas de planejamento familiar e cuidados de saúde durante a gravidez e após o parto5.
Esse cenário tornou-se mais desafiador com o surgimento da pandemia de covid-19, que causou impactos significativos na garantia dos direitos reprodutivos dos grupos em situação de maior vulnerabilidade social, como as imigrantes e as refugiadas. Entre os indicadores de saúde reprodutiva, a mortalidade materna é um dos mais sensíveis em relação à qualidade dos cuidados à saúde. Óbitos maternos são precoces e altamente evitáveis e estão amplamente relacionados às desigualdades sociais em interação com falhas na assistência à saúde em todo o ciclo gravídico-puerperal6.
Antes da pandemia, já haviam estudos em países de alta renda que indicavam diferenças significativas na mortalidade materna de acordo com a nacionalidade da mulher7,8. Mais recentemente, foi descrito o impacto que a pandemia teve no aumento da mortalidade materna9 , inclusive com avanço das disparidades étnico-raciais, como nos Estados Unidos10 e Colômbia11. No Brasil, pesquisas também mostraram o incremento da mortalidade materna12-14, porém nenhuma delas incorporou a análise da condição de imigrante. Assim, esse estudo teve por objetivo analisar o impacto da pandemia na mortalidade materna entre imigrantes, no Brasil.

MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo de base populacional sobre a mortalidade materna de imigrantes residentes no Brasil. A Organização Mundial da Saúde define mortalidade materna como uma morte durante a gravidez ou dentro de 42 dias após o final da gravidez por qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou seu manejo, mas não por causas acidentais ou incidentais15. As mortes maternas se dividem em causas obstétricas diretas, que referem-se a complicações obstétricas e a intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos que conduz ao óbito, e causas indiretas, que são as associadas a doenças pré-existentes ou desenvolvidas durante a gestação, que não foram derivadas de causas obstétricas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gestação15.
Foram utilizados os microdados de óbitos maternos no Brasil, ocorridos entre 01/01/2014 a 31/12/2021, provenientes do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e obtidos no site do DataSUS, que disponibiliza informações de domínio público. A partir da variável naturalidade na Declaração de Óbito (DO), foram identificados os óbitos de naturais e imigrantes. Os óbitos sem o preenchimento da nacionalidade foram excluídos.
Foram analisadas a frequência de óbitos, as características, a variação no período e as causas básicas de morte. Foram descritas as características de brasileiras e imigrantes em relação à idade (<20, 20 a 34, 35 anos e mais), raça/cor (branca, parda, amarela, preta, indígena, ignorada), escolaridade em anos de estudo (nenhum, 1 a 3, 4 a 7, 8 a 11, 12 anos e mais, ignorada), presença de companheiro (sem: solteira, viúva e separada judicialmente/divorciada; com: casada e união estável; ignorado), local de ocorrência do óbito (hospital e outros estabelecimentos de saúde, domicílio, via pública/outro, ignorado) e situação de investigação do óbito (sim, não, ignorado).
Para verificar se houve aumento na mortalidade, foi calculado o número médio de óbitos nos períodos: pré-pandemia (2014-2019) e durante a pandemia (2020-2021). Em seguida, foi calculada a razão de óbitos entre essas médias (2020-21 / 2014-19) e os respectivos intervalos de confiança 95% (IC 95%), para cada nacionalidade. O número médio de óbitos nos seis anos anteriores serve como parâmetro do número de óbitos que seriam esperados nos anos seguintes, caso a mortalidade se mantivesse no mesmo patamar.
Para análise das causas básicas de óbito, as nacionalidades foram agrupadas em dois conjuntos, brasileiras e imigrantes, visando evitar eventuais distorções devido ao baixo volume de óbitos em algumas nacionalidades. Foram utilizados os grupos de causas de acordo com a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10. A mortalidade proporcional foi descrita segundo agrupamento de causas em obstétricas diretas, obstétricas indiretas e causas obstétricas inespecíficas16, detalhando-se alguns subgrupos. Foi calculada a razão de óbitos entre as médias de óbitos nos períodos (2020-21 / 2014-19) e os respectivos intervalos de confiança (IC 95%).
Os dados foram processados nos softwares Microsoft Office Excel 2016 e R versão 3.4.4. Como esse estudo utilizou dados de domínio público, não foi necessário submetê-lo à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS
No período, foram observados 15.094 óbitos maternos, sendo que em 889 (5,89%) não foi possível identificar a nacionalidade e estes foram excluídos, totalizando 14.205 óbitos, sendo 136 de mulheres imigrantes e 14.069 de brasileiras.
Em relação às características maternas, em torno de ? dos óbitos ocorreu na faixa etária de 20 a 34 anos, para os dois grupos, porém as imigrantes registraram menor frequência de mães adolescentes e maior de mães com 35 anos e mais (33,09%), quando comparadas com as brasileiras (27,96%). Entre as imigrantes, predominaram as mulheres de raça/cor preta (48,53%), e as pardas (52,70%) entre as brasileiras. A variável escolaridade apresentou elevada incompletude (20,59%) para as mulheres imigrantes, dificultando a comparação com as brasileiras. A proporção de mães sem companheiro foi ligeiramente maior entre as imigrantes (53,68%) do que as brasileiras (49,26%). Não houve diferença em relação ao local do óbito, com mais de 94% ocorrendo em hospitais/outros estabelecimentos de saúde, para os dois grupos. A proporção de óbitos investigados foi um pouco mais elevada para as imigrantes (79,41%) em relação às brasileiras (72,85%), porém a incompletude dessa variável foi de 12,67% para este último grupo (Tabela 1).
Observou-se flutuação no total de óbitos maternos de 2014 a 2017, seguido de queda até 2019. Porém, há um aumento em 2020 e 2021, que são os anos da pandemia. Os óbitos de imigrantes mais frequentes ocorreram nas nacionalidades: haitiana (60), boliviana (28), venezuelana (14) e paraguaia (8). As haitianas apresentaram o maior volume em todos os anos, com exceção de 2016 e 2018, e durante a pandemia apresentaram a maior média de óbitos (16,5) (Tabela 2).
Comparando-se os períodos anterior e durante a pandemia, foi observado excesso de mortalidade indicado por razões de óbitos maiores que 1 para o grupo de imigrantes com razão de óbitos de 2,10 (IC95% 1,40-3,04). O maior excesso ocorreu para população venezuelana e haitiana que apresentaram, respectivamente, razão de óbitos de 7,46 (IC95% 2,40-17,42) e 3,67 (IC95% 2,11-5,91) vezes maior que a média pré-pandemia. Para as brasileiras também se verificou excesso de óbitos, porém num patamar inferior de 1,53 (IC95% 1,47-1,59) (Tabela 2).
A análise da mortalidade proporcional por causas mostrou que antes da pandemia predominavam as causas obstétricas diretas, tanto para imigrantes (61,25%) como para brasileiras (66,42%), sendo as mais frequentes as causas hipertensivas, as hemorragias e as infecções. Durante a pandemia, houve diminuição da proporção de causas diretas, passando a representar 48,21% dos óbitos de imigrantes e 41,22% dos óbitos de brasileiras. No entanto, em termos absolutos houve um aumento destas causas entre as imigrantes, com razão de óbitos de 1,65 (IC95% 0,89-2,80), porém sem significância estatística. Neste grupo, destacaram-se os óbitos por causas hipertensivas com razão de óbitos de 2,67 (IC95% 1,15;5,25), indicando excesso de óbitos por essa causa durante a pandemia.
Durante a pandemia, cresceu a participação dos óbitos por causas obstétricas indiretas, que passaram de 36,25% para 48,21%, entre os imigrantes, e de 30,43% para 55,95%, entre brasileiras (Tabela 3). Neste grupo de causas, destaca-se o agrupamento classificado como “outras doenças virais complicando a gravidez, o parto e o puerpério (O98.5)” com 33,93% para as imigrantes e 39,44% para as nativas, enquanto no período pré-pandemia essa causa representou menos de 1% nos óbitos de brasileiras e nenhum registro para imigrantes. Neste agrupamento de causas, tanto para brasileiras (97,8%) como para imigrantes (94,7%), houve menção em uma das linhas da DO dos códigos utilizados para identificar covid-19: B34.2 (infecção por coronavírus de localização não especificada), B97.2 (coronavírus como causa de doenças classificadas em outros capítulos) ou U07.1 (COVID-19, vírus identificado)17.

DISCUSSÃO
Evidenciou-se um aumento importante no número de óbitos durante a gravidez, parto e puerpério, no período 2020-2021, em relação à média observada no período pré-pandêmico. Esse aumento foi maior no grupo de imigrantes da Venezuela e Haiti, quando comparado com as brasileiras.
No Brasil, antes da pandemia, havia uma tendência de redução na razão de morte materna, entre 1990 e 2019, apesar deste indicador apresentar um patamar elevado de 62/100.000 nascidos vivos18. Durante a pandemia, identificou-se a reversão dessa tendência com aumento da mortalidade materna12,14,19, entretanto, não há estudos específicos para a população imigrante.
Estudos mostraram que a covid-19 contribuiu para desfechos desfavoráveis na gravidez, como o maior risco de morte materna e natimortalidade9,20. Nas fases iniciais da epidemia, as grávidas sem comorbidades não foram consideradas sob maior risco para covid-196, o que contribui para atrasar a organização dos serviços para sua assistência, além do retardo na disponibilização das vacinas6. Entretanto, com a disseminação da doença, estudos começaram a descrever a ocorrência de formas graves e de desfechos negativos como aborto e mortes, mesmo entre mulheres grávidas sem comorbidades21, e em julho de 2021, com atraso, o Ministério da Saúde ampliou a vacinação para todas as grávidas e puérperas com 18 anos e mais, independente da presença de comorbidades6.
O aumento de óbitos observado para brasileiras e imigrantes pode resultar de complicações diretamente relacionadas à infecção por covid-19 ou de um efeito indireto, como o distanciamento social e as interrupções e/ou desestruturação dos serviços de saúde causadas pela pandemia. Nesse período, foram exacerbados velhos problemas de desorganização da rede, como as dificuldades no uso de protocolos e a insuficiência de leitos de UTI obstétrica6,22. Adicionalmente, a sobrecarga nos serviços de saúde e as mudanças na organização dos serviços pré-natais podem ter causado atrasos nos diagnósticos e no atendimento oportuno, contribuindo para mortes maternas, que de outra forma poderiam ter sido evitadas6,12,23. Há que se considerar também que em alguns municípios houve uma reorganização da rede hospitalar de atenção ao parto, para o enfrentamento da emergência sanitária ocasionada pela pandemia. Essa situação pode ter agravado um problema antigo que é a peregrinação durante o trabalho de parto18. Durante a crise da covid-19, é provável que a peregrinação de gestantes tenha acontecido para garantir não só acesso à atenção ao parto, como também o acesso ao aborto previsto em lei6.
Nosso estudo identificou que no período pré-pandemia predominavam entre imigrantes as causas obstétricas diretas, com destaque para hipertensão, hemorragia e infecção puerperal. Em 2020-21, o quadro mudou, as causas se distribuíram igualmente entre as obstétricas diretas e indiretas, sendo que parte importante dos óbitos por causas indiretas poderia estar relacionada com casos de covid-19. Vale lembrar que esses números podem ser ainda maiores devido a dificuldades na realização de testes e possível subnotificação, naquele período.
No caso dos óbitos relacionados à covid-19, existem diversas barreiras na atenção à saúde da mulher que podem ter contribuído para o excesso de mortalidade, como atraso na vacinação, dificuldades no acesso ao pré-natal e serviços de emergência, atraso no diagnóstico da doença, intervalo de tempo longo entre o início dos sintomas e da internação quando necessária, falta de leitos e demora na prestação de cuidados intensivos após a internação6. Essas barreiras afetaram de forma desigual os vários subgrupos populacionais e as regiões do país, com maiores dificuldades de acesso para as gestantes e puérperas pretas e pardas6,22.
Diferente do perfil de óbito das brasileiras, observamos um aumento de mortes por causas obstétricas hipertensivas entre as imigrantes. Essas causas, que incluem pré-eclâmpsia, eclâmpsia e síndrome HELLP, em geral, estão relacionadas à dificuldade de acesso ou do acompanhamento na assistência pré-natal, que foi comprometido durante a pandemia.
Estudo anterior identificou que o cenário da mortalidade materna se agravou durante a pandemia12 em todas as regiões do Brasil. Nosso estudo mostrou que o impacto foi mais drástico para imigrantes do Haiti e Venezuela. O deslocamento induzido por conflitos e a migração forçada são reconhecidamente disruptores dos cuidados de saúde, restringindo o acesso a serviços de saúde materna vitais e causando grave estresse psicológico e trauma para as mulheres grávidas e no puerpério2,24. Adicionalmente, as disparidades de gênero, a renda, a educação e a etnia/raça são fortes preditores de morte durante a gravidez, no parto e no período pós-parto. A discriminação, o preconceito sistêmico e a injustiça social estão frequentemente associadas a maus resultados maternos para mulheres de minorias raciais e étnicas24.
Em diversos países, os imigrantes lidam com distintas barreiras de acesso aos cuidados com a saúde e estão sujeitos a diferentes situações de vulnerabilidade. As barreiras linguísticas, falta de informações sobre o sistema de saúde e falta de competência intercultural dos membros das equipes de saúde são os principais motivos para a não utilização de serviços de saúde25. Os imigrantes internacionais compõem um dos grupos cujo acesso aos serviços de saúde no Brasil, embora garantido pela Constituição, é dificultado por uma série de fatores estruturais26, sendo que, em geral, são mais vulneráveis social e economicamente, sobretudo os recém-chegados. Desde o terremoto no Haiti, em 2010, o Brasil tem sido um dos destinos de imigração. Nesse estudo, as mulheres haitianas registraram o maior volume de óbitos maternos no grupo de imigrantes, o que pode estar relacionado com condições de vida mais precárias e dificuldades de acesso a serviços de saúde. Pesquisa realizada na Grande Cuiabá mostrou que 47,3% dos haitianos entrevistados não estavam trabalhando e tinham baixa escolaridade e que menos da metade utilizou serviços de saúde, sendo mais utilizado pelos que tinham maior renda, maior tempo de residência no Brasil e melhor entendimento da língua portuguesa27.
Da mesma forma, o número elevado de óbitos observado na população venezuelana, para além dos problemas na resposta brasileira à pandemia, pode estar relacionado às condições impostas pela crise venezuelana e pela situação de vulnerabilidade decorrente do processo migratório, que pode ter efeito negativo na situação de saúde. Um estudo que comparou desfechos maternos e perinatais de migrantes venezuelanas com a população local, na Colômbia, identificou que as complicações severas, como hipertensão materna, foram mais comuns nas imigrantes28. No Brasil, um estudo conduzido em um hospital de Roraima, no final da pandemia, identificou situação vulnerável das gestantes venezuelanas, com destaque para baixo volume de consultas de pré-natal, início tardio de suplementação, alta incidência de infecção do trato urinário e intercorrências no parto29. Ademais, observamos que 86% dos óbitos maternos de mulheres venezuelanas ocorreram na região Norte, a principal fronteira para a entrada desse grupo no país, uma região que conta com menor infraestrutura hospitalar e que foi muito afetada na pandemia.
Em relação às diferenças de magnitude, cabe pontuar que o maior excesso de mortalidade entre as venezuelanas quando comparado às haitianas pode ter a influência do período de migração, uma vez que a intensificação do fluxo migratório venezuelano para o Brasil é mais recente do que o haitiano, o que pode explicar a ausência de óbitos de venezuelanas entre 2014 e 2017. Dados do Observatório das Migrações mostram que, a partir de 2015, as haitianas se tornaram a principal nacionalidade em termos de registros migratórios até 2018, quando foram superadas pelas venezuelanas3.
No Brasil, não há estudos sobre os diferenciais na mortalidade materna da população imigrante, anterior à pandemia, diferente de outros países. Pesquisa na Espanha, no período 2000-2018, identificou desigualdades na razão de mortalidade materna de acordo com o país de origem das gestantes, com maiores riscos para aquelas provenientes de regiões menos desenvolvidas8. Uma revisão sistemática recente30, com estudos em países de alta renda, identificou diferentes riscos; na Europa, por exemplo, as mulheres migrantes apresentaram um risco mais elevado de morte materna do que mulheres nativas, o que não foi observado nos EUA e na Austrália. Verificou-se também que alguns subgrupos de migrantes, incluindo as nascidas na África Subsaariana, Ásia, América Latina e Caribe, estavam em maior risco de mortalidade materna do que as mulheres nascidas no país receptor.30
Durante a pandemia, foi observada mortalidade mais elevada entre os imigrantes de forma geral, não só para as gestantes. Em países de alta renda, os imigrantes apresentaram um maior risco de infecção por covid-19 e, em 2020, registraram um aumento da mortalidade por todas as causas, sendo especialmente afetados os indocumentados, trabalhadores da saúde e alojados em campos de refugiados32. A primeira onda de covid-19 teve um impacto desproporcional sobre os migrantes na França; anteriormente à pandemia essa população apresentava uma taxa de mortalidade menor que os nacionais, porém, durante a primeira onda, o risco de morte inverteu, principalmente para grupos da África Subsaariana, Ásia e Oceania, das Américas e do Norte de África, com destaque para a população economicamente ativa31. O que evidencia que os migrantes são particularmente vulneráveis em situações de crise sanitária.
Nosso estudo contém algumas limitações, pois não foi possível calcular a razão de mortalidade materna, que é um indicador mais sensível que a razão de óbitos e a mortalidade proporcional, em função da não disponibilização no site do Datasus da variável nacionalidade na base de nascidos vivos. Outra possível fragilidade é o pequeno número de óbitos que pode afetar o cálculo dos intervalos de confiança, não sendo possível identificar se algumas diferenças são significantes, principalmente para as causas de morte menos frequentes.
Por outro lado, há um bom registro da variável nacionalidade nos óbitos maternos, a ausência dessa informação está presente em apenas 5,7% dos óbitos. Outro ponto forte foi a desagregação das nacionalidades, preservando as particularidades de cada grupo, uma vez que os contextos específicos pré e durante a migração somados às condições de acolhimento em cada local apresentam diferentes riscos à saúde para cada grupo de migrantes2,30,31, o que ficou evidenciado pelas diferenças observadas na mortalidade segundo nacionalidade.
Apesar dos avanços nos últimos anos, ainda há problemas que afetam a precisão das estatísticas de mortalidade materna no país, como incompletude e inconsistências dos campos referentes ao momento da morte (durante abortamento, gravidez, parto, puerpério ou após)33 e a falta de acurácia na classificação das causas, que colaboram para a persistência de erros na determinação se o óbito foi materno ou não, ocasionando subestimação.
Não obstante, os resultados obtidos evidenciam as falhas no enfrentamento da epidemia de covid-19 no país, especialmente para grupos em situações mais vulneráveis, mostrando o agravamento de um quadro que já não era favorável antes de pandemia. A redução da mortalidade materna tem sido um desafio complexo no Brasil. O seu enfrentamento dependerá de investimentos adequados e da construção de uma agenda de garantia de direitos e de acesso a serviços de saúde integrados, de qualidade e com equidade6, com especial atenção para subpopulações negligenciadas, nas quais, entre outros, se inserem alguns grupos de migrantes e de refugiados.

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SILVA, ZP, Silveira, RC, Alencar, GP, Almeida, MF. EXCESSO DE ÓBITOS MATERNOS ENTRE IMIGRANTES, DURANTE A PANDEMIA, NO BRASIL. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/abr). [Citado em 07/04/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/excesso-de-obitos-maternos-entre-imigrantes-durante-a-pandemia-no-brasil/19569

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