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Artigos

0153/2025 - Indicadores Avaliativos da Implementação das Diretrizes da Política de Prevenção de Acidentes e Violências
Evaluation Indicators for the Implementation of the Guidelines of the Accident and Violence Prevention Policy

Autor:

• Liana Wernersbach Pinto - Wernersbach-Pinto, L - <lianawep@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1928-9265

Coautor(es):

• Edinilsa Ramos de Souza - Souza, E.R - <edinilsaramos@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0903-4525

• Cosme Marcelo Furtado Passos da Silva - Silva, CMFP - <cosme.passos@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7789-1671



Resumo:

Vinte anos após a criação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, esses eventos permanecem como importantes causas de morbimortalidade no país. Este estudo apresenta o processo de elaboração de um conjunto de indicadores avaliativos da implementação das diretrizes da referida política. Sua formulação envolveu inicialmente a análise de indicadores de estudo prévio e, na sequência, utilizou a técnica de grupo nominal. Os indicadores propostos foram então aplicados a um banco de dados referente a questionários respondidos por gestores e profissionais de serviços de saúde municipais do SUS para os três níveis de atenção (Primária, Hospitalar e Reabilitação). Verificou-se que a maioria dos municípios foi classificada como tendo implementação regular da política; algumas diretrizes alcançaram boa implementação, enquanto outras apresentaram desempenho insatisfatório, especialmente as relacionadas à capacitação e à realização de pesquisas. Os indicadores apontaram questões importantes sobre a política, seus avanços e fragilidades. Considera-se que esta proposta possa subsidiar municípios na construção de avaliação da política como um todo ou de diretrizes específicas.

Palavras-chave:

Indicadores, Violência, Acidentes, Política de Saúde, Morbidade, Mortalidade

Abstract:

Twenty years after the creation of the National Policy for the Reduction of Morbidity and Mortality from Accidents and Violence, these events remain significant causes of morbidity and mortality in the country. This study presents the process of developing a set of evaluative indicators for the implementation of the guidelines of the policy. Its formulation initially involved the analysis of indicators from a previous study and subsequently employed the nominal group technique. The proposed indicators were then applied to a database containing responses to questionnaires completed by managers and health professionals from municipal SUS services across the three levels of care (Primary, Hospital, and Rehabilitation).
It was found that most municipalities were classified as having a regular level of policy implementation; some guidelines achieved good implementation, while others showed unsatisfactory performance, particularly those related to training and research. The indicators highlighted important issues regarding the policy, its progress, and its weaknesses. Therefore, this proposal would be considered to provide support to municipalities in evaluating the policy as a whole or in specific guidelines.

Keywords:

Indicators, Violence, Accidents, Health policy, Morbidity, Mortality

Conteúdo:

Introdução
A violência, em suas diversas manifestações, tem sido reconhecida como um preocupante problema de saúde pública mundial1, que afeta a saúde individual e coletiva, reduz a qualidade de vida e impõe desafios ao setor saúde2.
No Brasil, essa percepção levou à formulação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV)3, em 2001, cinco anos após a Assembleia Mundial realizada pela Organização Mundial da Saúde apontá-la como tema prioritário2 e um ano antes do Relatório Mundial sobre Violência e saúde 2002. Essa política foi uma resposta estratégica do governo para enfrentar e mitigar os impactos da violência e dos acidentes na saúde da população brasileira.
A PNRMAV foi elaborada com diretrizes e objetivos bem definidos, visando integrar e coordenar esforços em todos os níveis de governo para uma atuação eficaz no enfrentamento à violência. Compõem as suas diretrizes3: a promoção e adoção de comportamentos e de ambientes saudáveis; o monitoramento da ocorrência de acidentes e de violências; a sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar; a assistência interdisciplinar e intersetorial às vítimas; a estruturação e consolidação do atendimento voltado à recuperação e à reabilitação; a capacitação de recursos humanos; e o apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas.
Em 2007, uma análise diagnóstica detalhada foi realizada em cinco municípios brasileiros (Curitiba, Distrito Federal, Manaus, Recife e Rio de Janeiro) e seus achados foram reunidos no livro "Análise Diagnóstica da Política Nacional de Saúde para Redução de Acidentes e Violências"4. A referida análise, na qual se empregou a triangulação de métodos quantitativos e qualitativos incluindo entrevistas com gestores e aplicação de questionário, abarcou todas as diretrizes da política e teve como foco a atenção pré-hospitalar, hospitalar e de reabilitação. Essa avaliação destacou avanços significativos na implementação da PNRMAV, mas também apontou desafios importantes como a necessidade de maior integração intra e interinstitucional e a provisão de recursos continuados para sustentar as ações implementadas. Um aspecto que merece destaque é a ausência de inclusão da Atenção Primária, que ainda não tinha no país o peso que tem hoje.
Outros estudos foram realizados com vistas a analisar elementos que compõem a política, tais como: notificação e registro da violência intrafamiliar e exploração sexual de crianças e adolescentes5, avaliação do serviço de urgência pré-hospitalar móvel6-7, análise diagnóstica dos serviços de reabilitação que atendem a vítimas de acidentes e violências8-10, avaliação do atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência11, além de estudos que analisaram a integração entre o setor saúde e os demais setores governamentais no âmbito da PNRMAV no Distrito Federal12 e uma pesquisa específica sobre a aplicação da política no estado do Amapá13.
Passados vinte e três anos desde a implantação da PNRMAV, uma avaliação de seu desempenho é muito importante14. Assim, o Brasil, alinhado com as recomendações internacionais, enfrenta agora o desafio de reavaliar e fortalecer a PNRMAV frente a um cenário de mudanças sociais e de um progressivo desmonte de políticas públicas.
Este artigo tem como finalidade apresentar a elaboração de um conjunto de indicadores avaliativos da implementação das diretrizes da PNRMAV, sua junção em indicadores compostos que sintetizam as diretrizes e um outro indicador composto que agrega tais diretrizes e permite uma avaliação por estados e municípios. O objetivo é compreender os avanços e as barreiras enfrentados, e propor caminhos para o fortalecimento de ações de prevenção e melhorar a resposta da saúde pública à violência e aos acidentes.
O contexto de elaboração dos indicadores
A proposta aqui apresentada fez parte da “Pesquisa Avaliativa da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências”, demanda do Ministério da Saúde (MS) ao Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli da Escola Nacional de Saúde Pública (CLAVES/ENSP) da Fiocruz. Este estudo teve início em 2020, visando a avaliar o processo de implementação da PNRMAV desde sua promulgação em 2001 até o ano de 2023, tendo como base as suas sete Diretrizes.
Esta pesquisa avaliativa usou a triangulação de métodos quantitativos e qualitativos e envolveu quatro etapas: (1) análise dos dados de violências e acidentes segundo os sistemas de informação nacionais (Sistema de Informação sobre Mortalidade-SIM, Sistema de Informações Hospitalares-SIH e Sistema Nacional de Agravos de Notificação-SINAN); (2) elaboração e aplicação de questionário para coleta de dados nos municípios brasileiros sobre a implementação da política; (3) elaboração de indicadores avaliativos; (4) seleção de municípios para participação da etapa qualitativa a partir dos indicadores elaborados no passo três; e (4) realização de entrevistas com gestores e profissionais.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, sendo respeitados os preceitos estabelecidos nas Resoluções 466/2012 e 510/2016 (no.4732884, em 25/05/2021) e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O processo de construção dos indicadores
A elaboração dos indicadores fundamentou-se em duas fontes de dados: (1) os indicadores oriundos de pesquisa anterior realizada pelo CLAVES e presentes na publicação "Análise Diagnóstica da Política Nacional de Saúde para Redução de Acidentes e Violências"4; (2) o questionário desenvolvido pela equipe de pesquisa em colaboração com o MS para o presente estudo.
O questionário compreendeu os seguintes blocos de questões: (1) identificação do serviço e do programa; (2) estrutura existente para a realização de ações orientadas pela PNRMAV; (3) organização e articulação em rede existente entre serviços e programas; (4) formação em recursos humanos para o atendimento aos casos de vitimização por acidentes e violência; (5) monitoramento da ocorrência de acidentes e violências; (6) ações de prevenção de acidentes e violências e promoção de ambientes saudáveis e da cultura de paz.
A partir das duas citadas fontes, aplicou-se a técnica de grupo nominal15, por meio da qual um conjunto de especialistas, liderados pela coordenação da pesquisa, discutiu exaustivamente os elementos representativos de cada diretriz que, repetindo, foram os eixos estruturadores da avaliação do início ao fim. Ao término desse processo, que mobilizou a equipe de maio de 2021 a janeiro de 2022, construíram-se 14 indicadores simples para a atenção primária, 27 para o nível pré-hospitalar e hospitalar e 22 para o nível de reabilitação. Esses foram reunidos em respectivamente, cinco, seis e cinco indicadores compostos, um para cada diretriz avaliada em cada um dos níveis de atenção (Quadro 1).
Quadro 1
As diretrizes, o número de questões dos questionários que foram utilizadas e a forma de cálculo podem ser observadas no Quadro 2. Já no Quadro 3 é apresentado o resumo do procedimento para o cálculo dos indicadores compostos para os níveis de atenção à saúde. Cada um deles foi calculado por meio da soma dos indicadores pertinentes para cada nível de atenção. E os escores avaliativos foram categorizados em bom, regular ou ruim, segundo o grau de implementação da PNRMAV em cada um desses níveis (Quadro 2).
Quadro 2
Quadro 3
A aplicação dos indicadores avaliativos
Como mencionado, a elaboração dos indicadores também serviu de base para a seleção de outros dez municípios que, além das capitais, seriam alvo da etapa qualitativa da pesquisa. De forma a calcular os indicadores para a seleção dos municípios, empregou-se os dados coletados por meio do questionário, cuja aplicação online via plataforma Redcap se deu entre julho e novembro de 2021. Os links para acesso aos questionários foram enviados aos secretários municipais de saúde dos 5.570 municípios do país, aos quais foi solicitado que os direcionassem aos responsáveis municipais pelos três níveis de atenção. Desta forma, a partir dos dados dos 531 questionários respondidos por 379 municípios (290 pela Atenção Primária, 128 pela Atenção Pré-hospitalar/Hospitalar e 113 pela Atenção de Recuperação/Reabilitação) procedeu-se a análise dos indicadores. Estas foram estratificadas por região e porte do município (grande ? 100.000; pequeno ?99.999). Todos os procedimentos de análise foram realizados empregando-se o pacote estatístico SPSS 24 (IBM Corp, 2016)7.

Resultados
A partir da Tabela 1, é possível observar a classificação dos municípios que participaram da pesquisa quanto à implementação das diretrizes da PNRMAV, de acordo com o nível de atenção à saúde. Nessa tabela, são apresentados os resultados do indicador composto que agrega todas as diretrizes e os indicadores que as representam e a condição de implementação da Política nos municípios respondentes. Ao analisar o indicador composto, nota-se que a maioria desses territórios foi classificada como regular na implementação da Política. Observa-se na Atenção Primária, maior proporção de municípios com boa implementação (43,4%), enquanto na Atenção Pré-Hospitalar/Hospitalar encontra-se, a menor registrada (18,0%).
A implementação da Diretriz 1, medida por um único indicador relacionado à “mobilização da mídia e da sociedade em relação aos acidentes e violências”, mostra que mais de 50% dos municípios tiveram um bom desempenho em todos os níveis de atenção.
Em relação à Diretriz 2, avaliada por meio de três indicadores que abarcam “a notificação de casos de violência pelos serviços”, “a criação de fluxos de notificação inter e intrassetoriais” e “a melhoria na qualidade da informação” o desempenho dos municípios também foi classificado como bom. Nessa diretriz, a Atenção Primária se destacou com um percentual de 84,7%.
A Diretriz 3 se refere ao atendimento pré-hospitalar e inclui sete indicadores para avaliar “infraestrutura, equipamentos, materiais/insumos, atendimento/encaminhamento dos casos e eficácia da Central de Regulação”. Observa-se, em sua avaliação, que cerca de 60% dos municípios apresentaram boa implementação para o nível de Atenção Pré-Hospitalar.
Ao analisar “infraestrutura, equipamentos, materiais/insumos, recursos humanos, atendimento/encaminhamento dos casos, ações de prevenção, utilização de protocolos e linha de cuidado, existência de centro de referência e serviços especializados, bem como a articulação intersetorial” a Diretriz 4 apresentou um padrão diferente das anteriores. Para avaliá-la foram escolhidos 12 indicadores e a maioria dos municípios teve boa classificação em relação à Atenção Primária (56,9%), enquanto na Atenção Hospitalar a maioria teve implementação regular (45,1%). É importante notar que essa diretriz não inclui os serviços de Recuperação/Reabilitação.
A Diretriz 5, que diz respeito especificamente à Atenção de Recuperação/Reabilitação, abrangeu 15 indicadores relacionados à “infraestrutura, equipamentos, materiais/insumos, recursos humanos, atendimento/encaminhamento de casos, ações de prevenção, utilização de rotinas/protocolos e existência de ambulatórios/serviços especializados”. Nesse quesito a maior parcela dos serviços foi classificada como tendo implementação regular (44,2%).
A Diretriz 6 se refere à “capacitação de recursos humanos” foi avaliada por quatro indicadores, e a maioria dos municípios apresentou um desempenho ruim. Mais uma vez, a Atenção Primária se sobressaiu, em relação aos demais níveis, mas ainda com o percentual relativamente baixo de 36,4% dos municípios tendo boa implementação.
Por fim, a avaliação da Diretriz 7 envolveu apenas um indicador que visava verificar a “existência de parcerias com universidades no desenvolvimento de atividades de pesquisa, ensino e extensão”, evidenciou também um desempenho ruim (superando 80% dos serviços com essa classificação e destaque para a Atenção Pré-Hospitalar e Hospitalar, com 91,4%.

Tabela 1

No Gráfico 1a é apresentado o resultado do indicador composto para a Atenção Primária, segundo o porte dos municípios e regiões do país. Os dados por porte (categoria Brasil), mostram que a categoria bom predominou nos municípios grandes (68,0%) e a categoria regular nos pequenos (54,6%). Na Atenção Pré-hospitalar/Hospitalar, a classificação regular predominou na avaliação dos municípios de qualquer porte (Gráfico 1b), com percentuais de 45,8% e 53,8% nos de pequeno e de grande porte, respectivamente. Um grupo de 33,7% de municípios de pequeno porte apresentou implementação ruim nesse nível de atenção. A categoria regular também predominou na avaliação da Atenção de Recuperação/Reabilitação de mais de 50% dos municípios de ambos os portes (Gráfico 1c). Nesse nível de atenção, 28,6% das localidades menores tiveram implementação ruim. Ao comparar os níveis, existe maior disparidade entre os municípios de pequeno e os de grande porte.
Quando se observa a distribuição dos municípios, segundo o porte e a região, verifica-se que a maioria dos pequenos tiveram avaliação regular de implementação da PNRMAV em todos os níveis da atenção (Gráficos 1a a 1c). Exceção devida à Região Norte, na qual se destacou a categoria ruim na Atenção de Recuperação/Reabilitação. Entre os municípios de maior porte, predominou a avaliação de bom desempenho da Atenção Primária de todas as regiões, exceto a Sul, majoritariamente considerada como regular. No nível Pré-hospitalar/Hospitalar, os entrevistados das Regiões Nordeste e Centro-Oeste consideram a implementação como boa. No Sudeste e no Sul esse nível de atenção foi avaliado como regular. E no Norte, igual percentual de municípios foi classificado como regular e ruim (40% cada). Resultado bastante semelhante se observa para os municípios de grande porte quanto ao nível da Recuperação/Reabilitação: Nordeste e Centro-Oeste tiveram a maioria dos municípios considerados com boa implementação e, nas demais regiões, destacou-se a categoria regular.
Gráfico 1
Discussão
Este artigo apresenta o processo de elaboração de um conjunto de indicadores para avaliação da implementação da PNRMAV e a sua aplicação em um banco de dados oriundo da “Pesquisa Avaliativa do Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências” desenvolvida pelo CLAVES a partir de uma solicitação do Ministério da Saúde.
Os resultados da aplicação dos indicadores revelam a complexidade na implementação das diretrizes da PNRMAV nos municípios brasileiros estudados, a maioria dos quais foi classificada como tendo uma implementação regular da política, com algumas áreas apresentando bom desempenho, como é o caso da Atenção Primária. As deficiências maiores estão nos níveis da Atenção Pré-Hospitalar/Hospitalar e da Atenção de Recuperação/Reabilitação.
Observou-se que a Diretriz 2 da PNRMAV “Monitorização da ocorrência de acidentes e violências” é a que mostra melhor desempenho na avaliação de grande parte de municípios. Enquanto a Diretriz 7 “Apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas” teve a maior proporção de localidades com implementação ruim. Igualmente, a Diretriz 6, “Capacitação de recursos humanos” evidenciou-se como um ponto crítico em todos os níveis de atenção. Em relação a essas duas questões, cabe uma discussão importante. Com certeza, os entrevistados se referiram às ações (ou a falta delas) em suas unidades específicas. Porque, do ponto de vista mais amplo, houve um investimento considerável na organização de cursos de atualização, especialização, mestrado e doutorado voltados para as questões sobre violência e saúde por parte do Ministério da Saúde, da Fiocruz e de várias Universidades. E a última revisão decenal sobre a produção acadêmica do país, mostrou um campo de conhecimento florescente com mais 2.500 artigos publicados, sobre as várias expressões de violência, muitos deles escritos por pesquisadores junto com profissionais que atuam nos vários níveis de atenção17. Duas hipóteses podem ser levantadas sobre o tema: a aproximação da academia com os serviços continua deficiente, é a primeira. E a segunda, é que os profissionais da ponta que foram entrevistados estão reclamando da falta de formação continuada que não pode ser suprida só com o material acadêmico. Embora seja preciso dizer que ambos se complementam e se retroalimentam. A falta de investimento em capacitação profissional e pesquisa sobre os temas em pauta limita a eficácia das intervenções e a geração de evidências para orientar a tomada de decisões políticas. Esses achados corroboram com estudos anteriores que ressaltaram a importância da formação contínua dos profissionais de saúde18 e do investimento em pesquisa como componentes essenciais para o sucesso das políticas de prevenção da violência19.
A mobilização da mídia e da sociedade (Diretriz 1) parece ser uma área onde houve um progresso notável, com mais da metade dos municípios demonstrando uma boa implementação. Isso pode ser atribuído à crescente conscientização sobre a importância da prevenção da violência, impulsionada por campanhas de sensibilização e advocacy realizadas por organizações da sociedade civil e agências governamentais. Neste sentido, nota-se um avanço em relação ao estudo anterior4,8 que apontava pouco investimento nesta diretriz.
A monitorização da ocorrência de acidentes e violências (Diretriz 2) foi considerada boa na maioria dos municípios nos três níveis de atenção. É importante, contudo, destacar que apesar desse desempenho, ainda se observa percentual importante de municípios nos quais sua implementação foi regular ou ruim. Na análise diagnóstica já citada4, as autoras destacavam a necessidade de sensibilização dos gestores e profissionais quanto a importância da qualidade dos registros para um adequado monitoramento. Esse desafio persiste, especialmente nos municípios de menor porte. Ademais, destaca-se a inexistência de um registro nacional dos atendimentos de urgência e emergência por acidentes e violências. O VIVA Inquérito, iniciativa presente desde 2006, que teve seis edições (2006, 2007, 2009, 2011, 2014 e 2017), visa a preencher essa lacuna, trazendo dados sobre a magnitude desses agravos que chegam aos serviços selecionados de urgência e emergência. Sua última edição, contudo, ocorreu no ano de 2017. Em 2024, realizou-se a sétima edição do inquérito, que pela primeira vez envolveu uma amostra representativa dos serviços de urgência/emergência que atendem os casos de acidentes e violências. Incluiu as capitais brasileiras, e municípios das regiões metropolitanas das capitais e do interior do país.
A sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar (Diretriz 3) mostrou boa implementação na maioria dos municípios. Cabe ressaltar que persistem as deficiências apontadas na análise diagnóstica anterior4, especialmente no que tange à articulação dos vários níveis dos serviços. O mesmo resultado foi observado num estudo desenvolvido no estado de Santa Catarina7, que avaliou o serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU) no período de 2013-2014. Nele, além da falta de articulação e integração entre os serviços que oferecem resgate e salvamento, os autores relataram dificuldades relativas ao sistema de informação em constante modificação e incapaz de oferecer subsídios regulares e estruturados para a gestão.
Sobre a implementação da assistência interdisciplinar e intersetorial às vítimas de acidentes e violência prevista na Diretriz 4, seu desempenho foi considerado regular ou ruim em mais de 60% dos municípios que responderam ao questionário relativo ao nível hospitalar. A avaliação mostra ainda as deficiências no desempenho do atendimento voltado à recuperação e à reabilitação (Diretriz 5), classificada como regular ou ruim em 60% dos municípios, sendo esse o ponto mais fraco na prestação de serviços previstos pela PNRMAV. Persistem problemas apontados em várias avaliações, como carência de serviços, de infraestrutura, de pessoal, de informação, de comunicação, de articulação4,8, de recursos e de acesso à capacitação e educação permanente10. Avalia-se, portanto, que esta diretriz se mostra a menos difundida pelo país, com profissionais ainda carentes de capacitação específica e que ultrapasse a visão biologizante para o atendimento aos casos das sequelas decorrentes dos acidentes e violências e com serviços pouco articulados com os demais da rede de atenção e de apoio a essas vítimas.
Cabe aqui trazer um ponto positivo identificado nesta pesquisa que foi o crescimento e a organização da Atenção Primária, de longe a de melhor desempenho na implementação da política segundo esta pesquisa, diferente de uma avaliação anterior já citada4.
A análise dos dados por porte e região dos municípios destaca disparidades significativas na implementação da PNRMAV. Municípios de pequeno porte, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, tendem a apresentar uma implementação regular, enquanto municípios de grande porte, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, demonstram uma implementação mais variada. Essas diferenças podem ser atribuídas a uma série de fatores, incluindo disponibilidade de recursos de infraestrutura, tecnológicos e humanos, capacidade de gestão e priorização política. Estes achados reforçam as dificuldades de capilarização da PNRMAV no território brasileiro.
Conclusões
É fundamental fortalecer os mecanismos de monitoramento e avaliação para garantir que as políticas de prevenção da violência e de acidentes sejam eficazes e baseadas em evidências. O acervo gerado pela aplicação dos indicadores se mostra significativo e inédito no sentido de identificar as fortalezas e os pontos críticos relativos à implementação dessa política cujos temas têm grande impacto na morbimortalidade da população brasileira. Do ponto de vista mais amplo, pode-se destacar o avanço deste estudo de construção de indicadores avaliativos como instrumentos para a gestão.
Os resultados deste estudo fornecem insights importantes sobre a implementação da PNRMAV nos municípios brasileiros, e destacam áreas que necessitam de atenção e investimento adicionais. Enfrentar os desafios identificados requer uma abordagem abrangente e colaborativa, envolvendo não apenas o setor da saúde, mas também outras áreas relevantes, como educação, justiça e assistência social.
A utilização dos indicadores propostos trouxe resultados valiosos, mostrando que eles podem ser empregados para orientar decisões estratégicas de gestores de saúde e dos governos. Ao identificar as áreas com implementação bem-sucedida da PNRMAV e as que precisam de investimento, os gestores podem direcionar recursos e intervenções de forma mais eficaz, priorizando os pontos críticos e que merecem mais investimento em todos os sentidos. A compreensão das especificidades regionais e dos diferentes níveis de atenção à saúde permite uma abordagem mais adaptada e personalizada para enfrentar os desafios locais. É sobre eles que é preciso focar.
A utilização dos indicadores também oferece subsídios para a prestação de contas, ajudando os governos a monitorarem o progresso na implementação da PNRMAV e a identificar áreas exitosas e deficientes, o que é essencial para promover uma governança eficaz e responsável. Assim, entende-se que esta avaliação contribui para fortalecer o compromisso com a prevenção dos acidentes e violências no país, para melhorar a qualidade dos serviços de saúde que atendem às vítimas desses eventos, contribuindo assim para o bem-estar da sociedade.
É importante destacar uma forte limitação do estudo. No momento de realização da pesquisa, o Brasil passava pela pandemia de Covid-19, o que prejudicou enormemente a adesão dos profissionais e gestores às respostas ao questionário e à entrevista, assoberbados que estavam com a assistência aos doentes. Igualmente, faltou apoio político do Ministério da Saúde que vivia um momento delicado culminando no desmonte da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violência. Esse desinvestimento e a falta de apoio técnico e financeiro ficou evidente nos achados da pesquisa. Houve desmobilização de equipes que haviam sido capacitadas e transferência de vários profissionais, restando apenas aos que individualmente adotaram o tema como compromisso social permanecerem trabalhando, frequentemente em silêncio, mantendo a chama de seu compromisso com a promoção da vida e da paz.
Contribuições
Referências

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Artigo apresentado em 10/11/2024
Aprovado em 16/12/2024
Versão final apresentada em 18/12/2024
Editores-chefes: Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva



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Citar

Wernersbach-Pinto, L, Souza, E.R, Silva, CMFP. Indicadores Avaliativos da Implementação das Diretrizes da Política de Prevenção de Acidentes e Violências. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mai). [Citado em 07/08/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/indicadores-avaliativos-da-implementacao-das-diretrizes-da-politica-de-prevencao-de-acidentes-e-violencias/19629?id=19629

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