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0400/2024 - Fiocruz no contexto da pandemia do Covid-19: experiência frente ao negacionismo científico
Fiocruz in the context of the Covid-19 pandemic: experience facing scientific denialism

Autor:

• André de Souza Lemos - Lemos, A.S - <andredrelemos@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6068-8642



Resumo:

O presente artigo se expressa como uma opinião em relação ao comportamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no contexto da pandemia do Covid-19, frente ao posicionamento negacionista do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Para tanto, esboça elementos da trajetória da instituição relacionando-a com a gestão pública, demonstrando iniciativas para estruturação da saúde pública no enfrentamento ao Covid-19 e ao negacionismo científico. No âmbito técnico, vide o aprofundamento de pesquisas sobre o Covid-19 e novos marcos institucionais de combate às pandemias tendo como referência a vacina Astrazeneca/Oxford/Fiocruz. E no âmbito social, vide a participação no debate público pró vacinação e mecanismos de prevenção tendo como referência projetos de integração da saúde pública nas favelas. Sabendo-se que, além desses exemplos, houve outras ações de forma variada envolvendo diferentes setores. Assim, dado este comportamento da Fiocruz, é possível avaliá-la como um componente institucional e social determinante no enfrentamento à pandemia do Covid-19 e ao negacionismo científico naquele trágico momento do Brasil. Sendo para a presente análise, fundamentada na sociologia do conhecimento, um comportamento gerador de novos significados nas ciências, na saúde e na gestão pública.

Palavras-chave:

Gestão Pública, Pandemia do Covid-19, Negacionismo Científico.

Abstract:

This article is expressed as an opinion regarding the behavior of the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), in the context of the Covid-19 pandemic, in the face of the denialist position of the government of former president Jair Bolsonaro (2019-2022). To this end, it outlines elements of the institution's trajectory, relating it to public management, demonstrating initiatives to structure public health in the face of Covid-19 and scientific denialism. In the technical field, see the in-depth research on Covid-19 and new institutional frameworks to combat pandemics using the Astrazeneca/Oxford/Fiocruz vaccine as a reference. And in the social sphere, see the participation in the public debate on vaccination and prevention mechanisms using public health integration projects in the favelas as a reference. Knowing that, in addition to these examples, there were other actions in a variety of ways involving different sectors. Thus, given this behavior of Fiocruz, it is possible to evaluate it as a determining institutional and social component in confronting the Covid-19 pandemic and scientific denialism at that tragic moment in Brazil. For this analysis, based on the sociology of knowledge, it is a behavior that generates new meanings in science, health and public management.

Keywords:

Public Management, Covid-19 Pandemic, Scientific Denialism.

Conteúdo:

Introdução
O presente ensaio faz uma análise do comportamento da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) no contexto da pandemia do Covid-19, entre 2020 e 2022, demonstrando características desta instituição no enfrentamento ao negacionismo científico. Comportamento, esse, que seria natural e óbvio não fosse o contexto referido, no qual havia ameaça às instituições democráticas e às ciências a partir do (des) governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Dessa maneira, a produção e a entrega da vacina contra o Covid-19, pela Fiocruz, a partir de 2021, juntamente com o estímulo à campanha de vacinação, estímulo às medidas protetivas, participação em fóruns institucionais nacionais e internacionais, e cooperação social junto a projetos sociais, podem ser vistos como um comportamento de enfrentamento ao negacionismo científico.
O objetivo é demonstrar que Fiocruz direta e indiretamente encampou posicionamentos delimitadores das interposições interinstitucionais-inconstitucionais, reveladas no negacionismo científico apresentado em determinadas atividades do Ministério da Saúde no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Tal demonstração parte de ações que entre outros feitos se somaram com contundência aos esforços da comunidade científica e do movimento sanitário para mitigar o negacionismo científico. Isto, a partir da sua própria natureza institucional, que se apresenta cada vez mais como instituição estratégica de Estado, para além de reafirmar seu compromisso com a com a Carta Magna de 1988, em defesa da democracia. E em última instância em defesa da vida.
A base teórica, desta análise, parte a sociologia do conhecimento, em que as relações sociais é uma condição proeminente para compreensão de como se estruturam os determinantes sociais que direta ou indiretamente impactam na realidade social, e no caso em tela, mais especificamente na ciência e na saúde pública (coletiva). E que tem como perspectiva, dialogando com Pedro Demo (2017, p. 66), de que “existe sempre um débito social da ciência” quando essa ignora a conjuntura histórica, o contexto político e as práticas sociais.
Para reforçar, conforme Bourdieu (2008, p. 438): “(...) a percepção primeira do mundo social, longe de ser simples reflexo mecânico, é sempre um ato de conhecimento que faz intervir princípios de construção exteriores ao objeto construído (...)”. Ainda sob a reflexibilidade do autor, os campos sociais e suas intersecções são estruturados por trajetórias históricas, tendo no cerne a relação entre agentes sociais e instituições, onde tensões, conflitos e mediações são elementos inerentemente correlatos às trajetórias de uma sociedade.
Dessa maneira, partindo da contextualização histórica, as ações da Fiocruz frente à pandemia do Covid-19 se iniciam eminentemente a partir do primeiro quadrimestre de 2020, com a criação do Observatório do Covid-19 pela gestão da presidente Nísia Trindade. No qual, é possível considerar que a Fiocruz passou a promover a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma ainda mais incisiva, por se apresentarem ataques político-ideológicos à saúde pública incorporados do negacionismo científico buscando gerar uma atmosfera social para negar a vacina e medidas protetivas contra o Covid-19 em plena pandemia. Um dos símbolos mais marcantes dessa realidade foi a orientação do uso da Cloroquina pelo (des) governo Jair Bolsonaro, substância comprovadamente ineficaz em relação ao Covid-19. Além disso, no escopo do Observatório do Covid-19, houve a preocupação com a realidade social e consequentemente com os territórios vulnerabilizados, justamente pela condição de proliferação da contaminação.
Durante o período mais intenso do enfrentamento ao negacionismo científico, houve o IX Congresso Interno do Fiocruz (2021), que formulou e aprovou 10 teses tendo o seguinte lema para a gestão dos quatro anos conseguintes: “Desenvolvimento sustentável com equidade, saúde e democracia: a Fiocruz e os desafios para o SUS e a saúde global”. Nas quais estão presentes princípios basilares como a Gestão Democrática e Participativa (advindos da gestão Sérgio Arouca, 1985-1989), e pautas que tratam do futuro, como as diretrizes da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).
E que dentre a discussão está a pauta da implementação de políticas públicas sob o signo de Saúde Coletiva, sugerido da seguinte forma pelo Relatório Final do referido congresso: “A implementação desta estratégia pressupõe atuação integrada, em rede, animal e ambiental, bem como as ciências sociais para a governança de Doenças Infecciosas e Resistência antimicrobiana em níveis global, nacional e local”. (Fiocruz/CD; 2022, p. 11)
Não obstante, em lócus, ainda estão grandes preocupações que perpassam os efeitos da pandemia do Covid-19, no que tange, para além das enfermidades, a “desmemória” e possíveis “novas pandemias” como ressalta a cientista Margareth Dalcomo (2022). Pois, no contexto da pandemia do Covid-19 ficou nítido o protagonismo da desinformação, pelo qual a passagem de quatro ministros pelo Ministério da Saúde no (des) governo Jair Bolsonaro, foi uma clara demonstração de ausência de governança, contribuindo fortemente para gerar a tragédia que levou 700 mil pessoas à morte.
Fiocruz frente ao negacionismo científico do Covid-19 e na defesa do SUS
A principal iniciativa da Fiocruz no enfrentamento ao negacionismo científico, pode ser chamada de tecnocientífica, e foi a produção da vacina para Covid-19 através de acordo com a empresa Astrazeneca/Oxford (Reino Unido), numa transação que a instituição passou de simples importadora de Insumo Farmacêutica Ativo (IFA), para receptora de tecnologia e produtora do próprio IFA, ou seja, da própria vacina, chamada Astrazeneca/Oxford/Fiocruz.
Acordo, este, que foi anunciado ainda em 2020, com a participação do Ministério da Saúde, tendo no cargo o primeiro dos quatro ministros da saúde, do (des) governo Jair Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta. Com o destaque do feito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ao executar a tramitação com extrema agilidade para os níveis padronizados de burocracia para liberação de vacinas.
A Fiocruz, com sua governança e participação social, foi a grande protagonista desse processo. Com grande crédito em audacioso e potente papel de mediação no âmbito institucional e político. A iniciativa fez com que a Fiocruz passasse a entregar vacinas produzidas no Brasil para a população brasileira, a partir de março de 2021, através do Plano Nacional de Imunização (PNI) do Sistema Único de Saúde (SUS). Cabendo ainda, o registro, que a Fiocruz na figura da ex-presidente, Nísia Trindade, ingressou na Cúpula de Preparação para Pandemias da Organização Mundial da Saúde (OMS), um ano depois, em março de 2022.
Além disso, houve também as iniciativas que podemos chamar de tecno-políticas, numa perspectiva orientadora para produzir informação e práticas (tecnologia social) pró distanciamento social e no enfrentamento a desinformação sobre o Covid-19, colocada em prática por todas as unidades da Fiocruz.
Um dos maiores exemplos, se não o maior, pode ser considerado a composição da cooperação social e institucional a partir de movimentos sociais em defesa da saúde pública. Tais iniciativas serviram inclusive como instrumento de comunicação, pesquisa e conhecimento, que entre outros fatores, aliado à pauta da comunidade científica e da sociedade civil, produziu conteúdo para desmistificar as narrativas negacionistas e popularizar a ciência. Ambas com elementos de mediação com o poder público e participação social.
Dentre as referências está o movimento Vacina Maré, que é uma parceria entre a Fiocruz, Secretaria Municipal de Saúde, a ong Redes da Maré sociedade civil e movimentos sociais organizados da Maré, em especial no campo da comunicação popular, pela campanha de imunização da Covid-19 no Complexo da Maré (conjunto de 16 favelas no Rio de Janeiro com aproximadamente 150 mil habitantes). Que alcançou o estrondoso dado de 93,4% de vacinação da segunda dose vacina contra o Covid-19 daquela população, no segundo semestre de 2021, segundo dados da própria Redes da Maré.
Outra referência é a Chamada Pública para Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à Covid-19, lançada em março de 2021, é oriundo do Plano Fiocruz de Enfrentamento à COVID19 e do Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro. Composto pelas instituições públicas (além da própria Fiocruz): Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio); a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); e Fundação de Apoio à Fiocruz (FIOTEC). Que integrou projetos sociais aptos ao objetivo de mitigação das consequências da pandemia do Covid-19 em seus respectivos territórios (favelas), da nutrição à informação.
Além dessas iniciativas, cabe destacar o caráter de comunicação institucional da Fiocruz que acompanhou todo esse processo, via boletins, informes e relatórios, publicados inclusive nas redes sociais institucionais. Em algumas situações gerando condições para maior visibilidade de pesquisadores e profissionais da área da ciência e da saúde coletiva, gerando repercussão inclusive na mídia tradicional. Os quais, evidentemente, tinham eixo principal na vigilância do Sistema Único de Saúde (SUS). Se perfazendo num acompanhamento informacional, desde 2019, visualizando entre outros a subestimação da pandemia do Covid-19 do então Governo Federal, quando a infecção ainda era incipiente no Brasil.
O debate público e o enfrentamento ao negacionismo avançou
No âmbito da contextualização contemporânea, é representativo a participação da Ministra da Saúde, Nísia Trindade, na 75ª Reunião Anual da SBPC, em agosto de 2023, onde destacou a necessidade da “criação de uma frente científica para potencializar a estrutura médica pública”. E de que nesse sentido um “desafio do Ministério da Saúde é estimular pesquisas que busquem resolver demandas estratégicas do SUS”. Ou seja, de forma irretocável a conferência da ministra se pautou por grandes demandas e desafios do SUS, que por sua vez, dialogam com as teses do IV Congresso Interno da Fiocruz e com a Agenda 2030.
Numa rápida observação do que seriam as demandas estratégicas do SUS, é preciso levar em conta o caráter de integralidade do SUS em consonância com a Reforma Sanitária, promovida (e em andamento), a partir da antológica 8ª Conferência Nacional da Saúde, ocorrida em 1986. Com essa referência uma diretriz primordial basilar é a ideia/conceito da Saúde Coletiva, tendo em vista o fato da saúde não ser só objeto de perspectiva ou preocupação de quem não tem saúde, e sim, por se realizar como discorre Narvai (2022, p. 113): “o sujeito dos processos que devem produzir a saúde de todos é a própria população, suas comunidades, grupos e classes sociais e suas interações, incluindo o conjunto das instituições e, como não poderia deixar de ser, o próprio Estado”.
A temática é pauta central da Assessoria da Presidência da Fiocruz, sendo destacada na criação do Observatório do Covid-19, em 2020. E estando presente, inclusive, na pauta de representantes da Fiocruz em participação nas mesas de debates do XXXVII Congresso Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), em 2022, onde foi refletido justamente a relação da integralidade e intersetorialidade, a partir da atuação de coletivos sociais de diferentes territórios. E através do qual é possível demonstrar a força com que o referido tema está presente nos desafios e pautas dos atores sociais que se envolvem com a Saúde Pública, com destaque para o elemento “territorialidade”, e que perpassa também a literatura científica.
Vejamos a discussão de centralização e descentralização da saúde pública, a partir do debate sobre a municipalização consubstanciada na década de 1980, onde grande parte do conteúdo de defesa da descentralização eram reflexos da rejeição à centralização autoritária do Regime Militar (1964-1984). E que na atualidade se verifica inversamente as debilidades geradas pelas municipalizações, na qual a grande preocupação é a dependência da execução SUS em relação a vontades políticas ou interesses corporativos. Acerca disso, podemos dialogar mais uma vez com o livro, “SUS: uma reforma revolucionária para defender a vida”, do Paulo Capel Narvai:
“A “prefeiturização” comporta muitos riscos, sendo os três principais: 1) desconsideração e hostilidade ao conselho municipal e à “participação da comunidade”; 2) atitudes e práticas equivocadas e reacionárias à constituição de redes regionais de atenção à saúde, imprescindíveis ao desenvolvimento do SUS; 3) omissão na governança do SUS com a privatização dos serviços e a captura da gestão do SUS pelo mercado do município”. (Narvai, 2022, p. 120)

Assim, em síntese, é demonstrado que a principal demanda estratégica do SUS é a garantia de sua própria execução, que é constitucional, e, portanto, é dever das diferentes instâncias públicas gestoras. Para as quais se faz presente a importância e aprimoramento do SUS, visando a promoção de uma cultura política e institucional que compreenda o papel macro e imersivo do SUS. Sem “capturas” de sua gestão nas diferentes circunstâncias e dimensões, e garantindo a incorporação de um plano de atendimento territorial diverso.
Mas, para além do entendimento das demandas do SUS, que estão incorporadas em mais de uma tese do IX Congresso Interno da Fiocruz (2021), é possível demonstrar através da Tese 4 que:
“A Fiocruz prioriza uma agenda científica estratégica alinhada aos desafios da sociedade e do Sistema Único de Saúde (SUS) e baseada em redes e plataformas sustentadas por moderna infraestrutura, tecnologias e modelos inovadores de produção e gestão da ciência e do conhecimento, contribuindo para a redução das desigualdades.” (Fiocruz/CD, 2022, p. 37)

É demonstrável que o enfrentamento ao negacionismo científico pela Fiocruz, se deu mais como um comportamento institucional do que propriamente uma bandeira política. Uma referência é o próprio relatório do referido IX Congresso Interno da Fiocruz, que ratifica em suas 10 Teses a defesa da ciência, mas não se utiliza da terminologia de enfrentamento ou combate ao negacionismo científico. Numa perspectiva técnica é possível visualizar essa postura através do Relatório da Administração, da Fiocruz, publicado ainda em 2022, intitulado Action by Fiocruz in the Covid-19 pandemic, onde se concentra nos dados da vacinação para Covid-19.
No que diz respeito à atualização do contexto do movimento sanitário, é visível pautas estratégicas que trazem à tona um debate no limiar da gestão pública da contemporaneidade fomentando ou ratificando o marco da junção da tecnologia e prevenção. E que no caso da Fiocruz, tem como eixo preponderante a perspectiva de fortalecimento do SUS, e da própria Fiocruz, em consonância com os temas de defesa da vida e da ciência como política de Estado. Pois, ainda que existam garantias constitucionais, estas estão suscetíveis à fragilização a nível de gestão.
Neste sentido, a posse do presidente da Fiocruz, Mario Moreira, no dia 12 de maio de 2023 (no cumprimento de completar a gestão Nísia Trindade, 2020-2024 – e eleito em 2024 para a gestão 2025-2028, da Fiocruz, com a chapa “Nossa História, Nosso Futuro”), foi um grande e significante encontro, por reunir gerações diretivas, instâncias, servidores da instituição e sociedade civil. Demonstrando fortemente o fator do simbolismo da conjuntura recente pelo protagonismo da Fiocruz no enfrentamento à pandemia do Covid-19. Assim, o evento também foi rico em representatividade, reunindo entre outros o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI), com intervenções do mais alto nível garantindo para além das formalidades (ou protocolo) uma verdadeira aula sobre o movimento sanitário no Brasil e sobre a gestão pública. Como pronunciado em ato de posse pelo Mario Moreira:
“Não é apenas uma cerimônia de posse, é a celebração do projeto democrático da Fiocruz. Um projeto rico, histórico, consolidado e em movimento, sempre se atualizando nos nossos debates, que garantiu à Fiocruz estabilidade em tempos de crise. A conjuntura muda, a esperança prevalece, mas teremos que trabalhar muito para retomar o país”. (Flaeschen; Abrasco, 2023)

O modal institucional da atualidade e o que se projeta em caráter de expansão da Fiocruz é inerente à trajetória do movimento sanitário no país, que formulou e formatou o conceito de “universalidade” materializado, no SUS, quando pensado duas de suas principais características: o de ser antagônico a um sanitarismo corporativista que não atua nas causas e na prevenção do adoecimento da população, e o de ampliar a saúde pública para o interior (ou rincões) do vasto território nacional.
Permitindo, basicamente, que se almeja e se efetive a execução da gestão pública da saúde com maior grau de prevenção de enfermidades, sendo o maior exemplo a produção de vacinas e a defesa de campanhas nacionais de vacinação, ainda que a saúde preventiva e coletiva não se encerre neste fator. Sendo que as demandas mais gerais vêm sendo aprofundadas, a começar pelos desafios do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), incluindo a consolidação de plataformas digitais robustas.
De modo que, se for possível verificar a atual conjuntura na saúde pública como um marco na trajetória do movimento sanitarista, ele representa um modelo de gestão e execução de saúde preventiva que garante a sinergia entre o combate à desigualdade social e a implementação de novas tecnologias. Diferentemente do que se viu antes da constituição de 1988, onde prevenção (via de desenvolvimentismo) e tecnologia (via de corporativismo) eram apartadas (Campos, 2006), e do que se apresentou como consolidação do SUS diante da tentativa de sua fragilização em determinados contextos políticos, a exemplo do período recente no (des) governo Jair Bolsonaro.
Considerações finais
A sociologia do conhecimento prevê que a interpretação de um objeto de análise científico deve levar em conta os determinantes sociais, para não cair no cientificismo, mesmo nas ciências sociais. No âmbito metodológico, quando se faz uma análise dos determinantes sociais relacionando-os com os fenômenos e estruturas sociais perante contextos políticos e conjunturas históricas através da acepção de informações e das práticas sociais em territórios, se entende que o conhecimento está dialeticamente presente. E, executada na praxiologia, se entende que a prática de pesquisa é exercida socialmente e considera de forma processual a construção do próprio objeto de análise. Dessa forma, a constatação do objeto e da hipótese, e, respectivamente dos resultados de pesquisa é verificado no universo relacional ao qual o objeto está inserido. Pois, é no universo relacional onde estão presentes os campos sociais, e nesse caso, sendo preponderantemente o da saúde pública, o da ciência, o da comunicação e o da política.
Diante de tais premissas, ficou demonstrado que a Fiocruz apresentou um comportamento institucional de enfrentamento ao negacionismo científico durante a pandemia do Covid-19, com o testemunho e participação da sociedade civil. Reforçando, inclusive, sua legitimidade como referência na ciência e na saúde coletiva. Comportamento, esse, que se tornou abrangentemente público e notório no engendramento institucional e na participação em projetos de cooperação de caráter popular pró-vacina contra o Covid-19. Assim, popularizando a ciência, até mesmo pelo fato do uso do método de vacinação para prevenção do Covid-19 ser toda calcada na ciência. Sendo, portanto, possível garantir que a Fiocruz pelas suas dimensões e inserções impactou politicamente e cientificamente favoravelmente, corroborando para impedir o avanço do negacionismo científico no contexto da pandemia do Covid-19.
Dessa maneira, também, é necessário distinguir a adesão popular às pautas extremistas e conservadoras a partir da realidade social vigente nas crises política e econômica e não somente a partir de uma plataforma ideológica reacionária de um determinado segmento político. Além disso, é importante lembrar que o negacionismo científico e a referida plataforma ideológica se alimentou da miséria social e da narrativa antipolítica e “apolítica”, se utilizando do instrumento de fake news (desinformação) em massa. Que, finalmente, saindo-se derrotada na conturbada eleição presidencial de 2022, gerou condições para a retomada dos valores do democráticos no governo federal, a partir de 2023, enterrando de diversas maneiras o negacionismo científico no recente bloco histórico. Seja através da revogação de portarias, seja por novos marcos institucionais, onde a Fiocruz tem participação inerente pelo conteúdo constitucional.
Com isso, aliando conhecimento e ciência, para além de um comportamento de caráter democrático, a Fiocruz demonstrou não ignorar o lastro político e ideológico do negacionismo científico. Ao tempo que projetou e promoveu o seu próprio lastro nos campos tecnicocientífico e tecno-político na defesa da ciência e do SUS. Conjuntamente, disseminando a importância da saúde pública em níveis de experiências benéficas para o futuro da humanidade, como visto nas convenções e fóruns nacionais e internacionais, os quais o Ministério da Saúde participou ao longo de 2023 e 2024.
Ficando evidente que na retomada democrática os planos imersivos com pauta na defesa do SUS, têm o grande desafio de se estruturar cada vez mais, garantindo entre outros fatores a centralidade da informação com maior persuasão e espraiamento na sociedade civil. E que somados à Agenda 2030 da ONU, tem a missão de modelar a transversalidade que envolve as políticas prioritárias para o desenvolvimento sustentável no enfrentamento à crise climática. A começar pela segurança alimentar e nutricional, em sinergia com os novos adventos das tecnologias social, ambiental e industrial, onde a ciência, o conhecimento e as práticas sociais são proeminentes.
Bibliografia

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Lemos, A.S. Fiocruz no contexto da pandemia do Covid-19: experiência frente ao negacionismo científico. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em ]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/fiocruz-no-contexto-da-pandemia-do-covid19-experiencia-frente-ao-negacionismo-cientifico/19448?id=19448&id=19448

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