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0040/2024 - Percepções, conhecimentos e orientações desenvolvidas por profissionais de saúde no contexto pós-epidemia do vírus zika
Perceptions, knowledge and guidelines developed by health professionals in the post-epidemic context of the zika vírus

Autor:

• Fernanda Macedo da Silva Lima - Lima, F. M. da S. - <nanda_msl@hotmail.com>
ORCID: 0000-0001-9108-7831

Coautor(es):

• Jorge Alberto Bernstein Iriart - Iriart, J. A. B. - <iriart@ufba.br>
ORCID: 0000-0002-9518-1240

• Eduardo Massad - Massad, E. - <edmassad@usp.br>
ORCID: 0000-0002-7200-2916

• John Kinsman - Kinsman, J. - <johnkinsman@hotmail.com>
ORCID: 0000-0003-1332-4138



Resumo:

Profissionais de saúde constituem uma categoria fundamental para orientar a população sobre diversos problemas de saúde e medidas eficazes de prevenção. Apesar disso, até o momento não foram identificados estudos no Brasil que analisem conhecimentos e orientações realizadas sobre o vírus zika por profissionais de saúde. Objetivou-se compreender as percepções, conhecimentos e orientações desenvolvidas por profissionais de saúde de Salvador-Bahia sobre o vírus zika no contexto pós-epidemia. Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido através de treze entrevistas semiestruturadas. Os dados demonstraram que os profissionais de saúde tinham a percepção de não estar adequadamente preparados, mesmo no pós-epidemia, para o enfrentamento do vírus zika. Situação evidenciada por insuficiências no conhecimento sobre aspectos importantes desta arbovirose. Ademais, as orientações no curso da epidemia responsabilizaram a população por mitigar o risco de infecção, restringindo-se à reprodução dos discursos das autoridades sanitárias, desconsiderando as vulnerabilidades socioambientais. Para além da capacitação dos profissionais e recomendações apropriadas em saúde, é necessário que os determinantes sociais que propiciam distintos níveis de suscetibilidade ao adoecimento sejam efetivamente transformados.

Palavras-chave:

zika vírus; profissional da saúde; conhecimento.

Abstract:

Health professionals are a fundamental category to guide the population about various health problems and effective prevention measures. Despite this, so far, no studies have been identified in Brazil that analyze knowledge and guidance given about the zika virus by health professionals. The objective was to understand the perceptions, knowledge and guidelines developed by health professionals in Salvador-Bahia about the zika virus in the post-epidemic context. This is a qualitative study, developed through thirteen semi-structured interviews. The data showed that health professionals had the perception of not being adequately prepared, even in the post-epidemic, to face the zika virus. Situation evidenced by insufficiencies in knowledge about important aspects of this arbovirus. Furthermore, guidelines in the course of the epidemic made the population responsible for mitigating the risk of infection, restricting themselves to the reproduction of the speeches of health authorities, disregarding socio-environmental vulnerabilities. In addition to professional training and appropriate health recommendations, it is necessary that the social determinants that provide different levels of susceptibility to illness are effectively transformed.

Keywords:

zika vírus; Health professionals; knowledge.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Entre 2015 e 2016, o Brasil vivenciou uma epidemia ocasionada pelo vírus zika (ZIKV) com significativas repercussões sobre a vida da população. Este vírus é transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti, que tende a se reproduzir em espaços domésticos ou periurbanos. Além dessa via de contágio, o ZIKV também pode ser transmitido por via sexual e vertical. A infecção por esse vírus pode resultar em uma série de consequências sobre o desenvolvimento fetal, como a microcefalia e outras alterações congênitas, condição conhecida como síndrome congênita do vírus zika (SCZ), que representou, à época, uma emergência de saúde pública nacional e internacional1,2,3.
A epidemia do ZIKV intensificou vulnerabilidades sociohistóricas de grupos populacionais minoritários, uma vez que suas repercussões afetaram principalmente famílias mais pobres residentes em locais com piores condições de infraestrutura e saneamento básico. Somado a isso, barreiras no acesso aos serviços de saúde e informação repercutiram sobre os direitos sexuais e reprodutivos desses grupos, o que incluiu a dificuldade de acesso aos métodos contraceptivos e planejamento da gravidez 4,5,6.
Diversos documentos produzidos por autoridades em saúde durante a epidemia recomendavam o desenvolvimento de práticas de cuidado em nível individual como medidas de proteção corporal e supervisão do ambiente doméstico, a fim de reduzir a exposição ao vírus e suas principais consequências7,8,9. Rodrigues et al10 analisou as recomendações do Ministério da Saúde e ressaltou fragilidades inerentes a estas orientações, por não considerarem as particularidades dos grupos populacionais mais afetados, influenciando na efetividade das ações de prevenção.
Já Ribeiro et al11 ao avaliarem artigos publicados em meios de comunicação de grande circulação entre 2015 e 2016evidenciaram o foco das comunicações sobre medidas de erradicação do mosquito vetor e controle de sua principal consequência, a microcefalia, atribuindo a responsabilidade de prevenção principalmente às mulheres. A este respeito, Diniz5 destacou como as famílias mais acometidas pela epidemia estavam expostas a situações de maior vulnerabilidade socioambiental, o que reforça a necessidade das medidas de controle empreendidas considerarem os distintos níveis de suscetibilidade ao adoecimento.
Uma importante categoria para orientar a população sobre problemas de saúde e medidas eficazes de prevenção são os profissionais de saúde. Na conjuntura atual, os poucos estudos que analisaram os conhecimentos e orientações realizadas sobre o ZIKV por prestadores de serviços de saúde identificaram lacunas importantes na compreensão sobre a doença12,13,14 e até o momento não foram identificados estudos desta natureza desenvolvidos no Brasil. Frente à permanência da exposição da população brasileira ao mosquito vetor e à imprecisão sobre futuros surtos do ZIKV15, torna-se imprescindível que os serviços de saúde estejam preparados para orientar a população de maneira adequada sobre a doença.
Portanto, objetivou-se compreender as percepções, conhecimentos e orientações desenvolvidas por profissionais de saúde de Salvador-BA sobre o ZIKV no contexto pós-epidemia. Para a elaboração desta análise, serão tomados como subsídio os conceitos de risco e comunicação de risco no campo da saúde pública a partir dos aportes teóricos de Deborah Lupton16, que irão sustentar a avaliação das orientações em saúde realizadas durante a epidemia do ZIKV. Somado a isso, o conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres et al17 será examinado para compreender os fatores estruturais que influenciam no processo de adoecimento da população e que não dependem exclusivamente de uma mudança de comportamento individual, já que essas decisões se encontram atravessadas por condicionamentos socioeconômicos, políticos, ambientais e culturais.

MÉTODO
Pesquisa qualitativa - socioantropológica em que foram realizadas treze entrevistas semiestruturadas com profissionais da saúde da Atenção Básica. Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior intitulada “Percepções e conhecimento da população brasileira sobre o ZIKV: Um estudo qualitativo comparativo sobre a veiculação de informações em saúde”. Os dados foram produzidos em Salvador, entre os meses de abril e agosto de 2017.
Privilegiou-se a equipe multiprofissional da atenção básica por considerar a multiplicidade das formações em saúde e o modo de abordagem à população, enquanto referência na comunidade para o ZIKV, na busca de refletir a pluralidade do universo de significados que representam o campo da pesquisa. Assim, profissionais de nível médio e superior constituíram o corpus de entrevistados a partir de uma estratégia de seleção por conveniência, que considerou a disponibilidade, interesse e oportunidade para participação. O critério de inclusão foi estar exercendo a função pública em contato com a população no momento da pesquisa.
Os entrevistados atuavam em duas unidades de atenção do município de Salvador, sendo eles três enfermeiros; dois médicos; uma técnica em nutrição; uma assistente social; quatro agentes comunitários de saúde; uma coordenadora dos agentes comunitários de saúde; e uma profissional da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde (Quadro 1).
O roteiro utilizado buscou a interlocução entre o referencial teórico e a realidade empírica18. Sua finalidade foi nortear a entrevista, explorando a dialética dos sujeitos e aprofundamento da discussão com o intuito de abranger todos os objetivos do estudo19. O roteiro abordou as seguintes temáticas: percepções, conhecimentos e significados atribuídos ao ZIKV; fontes de informações sobre o ZIKV; preocupação com doenças transmitidas por mosquitos; orientações sobre o ZIKV realizadas para população; suscetibilidade da comunidade às doenças transmitidas por mosquitos e suas consequências. As entrevistas foram gravadas, transcritas e tiveram duração média de 40 minutos.
A análise de dados foi desenvolvida tomando como referência o método de interpretação de sentidos, ancorando-se em princípios hermenêutico-dialéticos. De acordo com Minayo20, a abordagem hermenêutico-dialética permite o desenvolvimento de uma análise, ao mesmo tempo, compreensiva e crítica da realidade social. Nesse sentido, a hermenêutica possibilita a compreensão do sentido da comunicação entre seres humanos, partindo da linguagem como espaço propício de realização da intersubjetividade e do entendimento, enquanto a dialética considera como fundamento da comunicação as relações sociais que são historicamente dinâmicas, antagônicas e contraditórias entre as classes, grupos e culturas.
A codificação dos dados foi realizada de forma indutiva a partir da leitura das entrevistas e identificação dos núcleos de sentido. O software de análise qualitativa QSR NVivo versão 8 foi utilizado para organizar os códigos em árvores temáticas Mapas temáticos constituíram objeto de análise para seleção dos tópicos mais relevantes. Assim, a análise de dados foi desenvolvida em três passos: 1- Avaliação da totalidade do material coletado e apreensão das particularidades dos dados da pesquisa; 2- identificação das percepções e sentidos atribuídos ao ZIKV pelos entrevistados; 3- elaboração da síntese interpretativa, buscando articular os objetivos do trabalho, com os marcos teórico-metodológicos, dados empíricos e resultados obtidos por meio de outras investigações.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Jundiaí sob parecer n° 1.953.782. O trabalho foi desenvolvido conforme estabelece a Resolução n° 466/2012. Nomes fictícios foram atribuídos aos entrevistados, a fim de preservar-lhes o anonimato.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Percepções, conhecimentos e fonte de informações sobre o ZIKV entre profissionais de saúde
O nordeste do Brasil foi a região mais afetada pela epidemia do ZIKV e o estado da Bahia concentrou os maiores índices de casos entre 2015 e 2016. A partir de 2017, houve redução significativa na ocorrência de casos na Bahia21. Assim, após aproximadamente dois anos do início da epidemia no país, esperava-se que os profissionais de saúde apresentassem bom conhecimento sobre a doença causada pelo ZIKV para orientar a população. Entretanto, observou-se que os profissionais de saúde, de maneira geral, apresentavam pouco conhecimentos e dúvidas sobre aspectos básicos da doença:
“Até hoje ninguém tem uma resposta concreta, né, da questão da microcefalia. Foi mesmo? É mesmo? É causado mesmo? Não sei...as coincidências existem, mas as certezas ainda faltam”. (Enfermeira Sabrina).
“Olha, eu ouvi pouco sobre esse caso. Eu não ouvi nenhum caso de dizer “Olha, o homem tá com medo(...)”, porque foi uma coisa que não ficou provada ainda. Acho que ficou vago, essa questão, não teve muita informação sobre isso não. Então essa questão de ser transmitida pelo ato sexual ainda ficou meio que...duvidoso. (...)Isso aí pra mim foi uma coisa que até eu ainda fiquei meia que “Será que é mesmo?”, entendeu?” (Enfermeira Sabrina).
Até o momento, não foram identificados estudos no cenário nacional que avaliem o conhecimento e orientações realizadas por profissionais de saúde sobre o ZIKV. Entretanto, estudos desenvolvidos com a população em geral sugerem insuficiências nas informações fornecidas por prestadores de serviços de saúde6,22,23. Neste sentido, o trabalho realizado por Arias et al6 com mulheres em idade reprodutiva do Brasil, Porto Rico e Estados Unidos demonstrou que a falta de conhecimento médico para orientá-las sobre a doença aumentou a sensação de insegurança, preocupação e ansiedade, além de haver uma forte crítica às recomendações em saúde que estavam direcionadas majoritariamente à proteção contra a picada do mosquito por meio da aplicação contínua de repelentes químicos.
O estudo desenvolvido por Lima et al23 com gestantes em um dos epicentros da epidemia no Brasil também identificou que apesar das mulheres estarem vinculadas aos serviços de saúde para o acompanhamento pré-natal, isso não repercutiu no conhecimento sobre a doença, pois as orientações estavam voltadas basicamente para os métodos individuais de proteção. Do mesmo modo, outros estudos evidenciaram a baixa influência dos serviços de saúde na orientação da população24,25.
Em consonância com esses achados, uma médica entrevistada ressaltou que os aprendizados sobre o ZIKV ocorreram com a evolução da epidemia, tendo em vista o ineditismo dessa enfermidade, o que explicaria a falta de conhecimento e dificuldade de atualização dos profissionais de saúde:
“Não, eu acho que os médicos não tão [bem informados sobre a doença], quem dirá o povo! (risos) É uma doença nova, né? Então assim, pouca coisa se sabe sobre ela, então eu acho que existe uma dificuldade até do ponto de vista dos técnicos se adaptarem à novidade, né?! (...)Então foi todo mundo se adaptando, dançando a dança das cadeiras, né?! Foi tipo isso aí e aí eu acho que o que realmente ficou, né?! Que é uma doença que dá coceira, que pode dar dor nas juntas e febre e que pode fazer microcefalia. Foi isso que ficou na cabeça das pessoas e a microcefalia como a principal coisa que ela podia fazer, de complicação”. (Médica Lívia).
Os profissionais de saúde entrevistados relataram buscar informações sobre o ZIKV de maneira individual e destacaram a ausência de cursos e capacitações para prepará-los para aconselhar a população. Em seus relatos, houve baixa expressão da busca por fontes acadêmicas para a atualização sobre o ZIKV. As mensagens oficiais produzidas por autoridades em saúde contribuíram de maneira substancial para o aprendizado dos profissionais de saúde sobre o ZIKV. Assim como evidenciado pelos estudos desenvolvidos com a população em geral24,26, os profissionais de saúde também destacaram a internet e televisão como importantes fontes de atualização sobre a doença:
“Onde eu aprendi mais?! São tantos locais, foi mais a nível do que eu recebi da própria secretaria, que eles sempre mandam né, alguns boletins epidemiológicos...A gente vai, consulta a internet, entendeu? Mas assim, não houve assim um curso, alguma coisa assim, uma capacitação específica”. (Coordenadora dos Agentes comunitários de saúde Vilma).
Os meios utilizados pelos profissionais de saúde para adquirir informações podem justificar a falta de conhecimento sobre aspectos importantes da infecção pelo ZIKV. Ao analisar os materiais produzidos por autoridades de saúde no Brasil, Clancy et al3 identificaram que as mensagens enfatizavam principalmente a responsabilidade individual e comunitária pela prevenção, orientações semelhantes às produzidas por décadas durante os surtos de dengue no país. Entretanto, esses materiais não foram devidamente atualizados à medida que o conhecimento sobre o ZIKV progredia e poucos materiais evidenciavam a possibilidade da transmissão sexual e congênita deste vírus. A pouca atenção direcionada a estas vias alternativas de transmissão do ZIKV pelas campanhas de saúde somado à ausência de capacitações sobre a doença pode ter resultado na falta de conhecimento dos profissionais de saúde e isto representa uma oportunidade perdida para o aconselhamento adequado da população, uma vez que estes profissionais ocupam um espaço central e são corresponsáveis por veicularem informações durante os surtos, o que poderia contribuir para reduzir os riscos potenciais de transmissão do ZIKV por via sexual e suas repercussões congênitas.
Esses resultados adquirem especial relevância pois os serviços de saúde, enquanto componente do suporte social, atuam como fator de proteção para às mães e famílias de crianças com SCZ27,28. As crianças com SCZ apresentam importantes demandas de cuidado em saúde29, estão submetidas a piores condições de vida30 e suas mães exibem maior probabilidade de sintomas de depressão, estresse e ansiedade em cenários de baixo suporte social31 com negativos impactos nas atividades de vida diária. Após cinco anos do nascimento das crianças, Oliveira et al32 encontraram níveis de ansiedade significativamente elevados nas genitoras, o que reflete a manutenção de circunstâncias desfavoráveis que requerem abordagem integrada, intersetorial e multidisciplinar dentro da rede de atenção à saúde33.
Dessa forma, quando os profissionais de saúde não estão adequadamente preparados, o cuidado é negligenciado e a potencialidade do espaço dos serviços comprometida34. Em nosso estudo, o caráter sensacionalista das comunicações em saúde com ênfase nas consequências e sequelas causadas pela doença, responsáveis por causar medo e pânico em vez de conscientizar a população, foi evidenciada pela profissional da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde:
“Você observa que às vezes em Saúde pública as coisas são muito até...acompanham muito o sensacionalismo e a questão da informação...A informação às vezes quando ela vem com um certo peso, né, o peso do medo, ela acaba trazendo alguns benefícios no ponto de vista do cuidado, o que não é bom porque poderia esse cuidado seguir de uma forma mais tranquila(...)”. (Profissional da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde Cláudia).
“Cercar mais e todo momento você ouvir falar da mesma coisa, acaba que por osmose, né? A população absorve, porque o que a gente percebe na informação é isso, ou ela vem de uma forma meio que terrorista, né? No sentido de causar o medo ou o pânico (...)E aí você trabalha com uma população meio assustada, ela meio que...motivada pelo medo. Mas a informação natural daquilo incorporado, daquilo do dia-a-dia, ela ainda não parece ter chegado. Então, a informação...Foram várias áreas da saúde que fizeram, né? A própria área da assistência, né?! O próprio Ministério da Saúde, e aqui nós fizemos, mas acaba que no final as coisas vão enfraquecendo, né? Não há uma constante, ela aparece junto com o problema(...)”. (Profissional da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde Cláudia).

Assim, é possível identificar fragilidades nas políticas de saúde no Brasil, no qual as ações de comunicação em saúde priorizadas durante os picos epidêmicos não são mantidas, ainda que em menor intensidade, com foco nas práticas educativas e de promoção da saúde a longo prazo para a população aprender a lidar e prevenir esses problemas de saúde. Nesta direção, constatou-se que as orientações em saúde no Brasil foram direcionadas para a febre amarela a partir de 2017 em consequência de um surto que acometeu o país35 e em 2020 o novo coronavírus (SARS-COV-2) se tornou foco das orientações em saúde em decorrência da pandemia e altos índices de mortalidade36.
Entretanto, é necessário ressaltar que a população brasileira continua exposta ao mosquito Aedes aegypti e alguns estudos sugerem a possibilidade de novos surtos do ZIKV em cenários futuros37. Dado o aumento da incidência do ZIKV no ano de 2022 em comparação aos períodos anteriores – 2019/202138, faz-se necessário investir em capacitações para que os profissionais de saúde assegurem orientações em saúde que sejam factíveis para a população e considerem seus contextos socioambiental, histórico e cultural, perspectiva esta que será melhor discutida no próximo tópico.

Do risco à vulnerabilidade: para a renovação das recomendações em saúde e práticas preventivas
As orientações em saúde desenvolvidas por profissionais de saúde no curso da epidemia do ZIKV seguiram as recomendações propostas por autoridades em saúde. As mulheres em idade reprodutiva e gestantes foram os principais alvos das recomendações em saúde, sendo estimuladas a permanecerem em constante vigília para minimizarem a possibilidade de infecção pelo ZIKV e seus desfechos fetais. Esta ênfase na responsabilidade individual aparece na fala de diversos profissionais de saúde entrevistados por este estudo:
“A gente acaba repetindo a cartilha, né? Na época em que tava mais em evidência, que tava com todas as outras condições associadas, né?! (...)Era aqueles conselhos mais da proteção individual mesmo, EPI [Equipamento de Proteção Individual], sabe? Calça, blusa, repelente, né?! (...)Aconselhamento com relação a situações de risco, né? A pessoa que tá gestante, essas coisas, né?” (Médica Lívia).
Em seu estudo, Deborah Lupton35 vai destacar as variedades de risco que são responsáveis por causar apreensão aos diversos grupos populacionais dentro de seis grandes categorias. Destes, o risco relacionado ao estilo de vida adquire especial relevância para este trabalho, por ressaltar o autocontrole ou a responsabilidade individual por ações e comportamentos que se caracterizam como uma ameaça à saúde e são considerados modificáveis. De acordo com essa perspectiva, o indivíduo é o principal responsável por adotar comportamentos que minimizem os riscos à sua própria saúde, assim como da comunidade em que vive. Ao optar por ignorar esses riscos, os indivíduos estão se expondo a uma situação de perigo para o desenvolvimento de enfermidades. Nesse contexto, a principal função dos profissionais de saúde seria conscientizar a população sobre potenciais perigos relacionados as suas condutas20. Durante a epidemia do ZIKV, os profissionais de saúde desenvolveram orientações prescritivas que enfatizavam a responsabilidade individual pela prevenção da infecção e seus agravos e, desta maneira, preteriram as dimensões estruturais que propiciaram condições necessárias para a eclosão e, posteriormente, manutenção da epidemia.
O discurso do risco no campo da saúde possibilita aos profissionais de saúde exercerem poder sobre os corpos dos indivíduos, ao estimularem o desenvolvimento de ações de autocontrole e vigilância constante de comportamentos que podem se caracterizar como uma ameaça à saúde. Essas estratégias continuam a ser reproduzidas ao longo da história em decorrência do seu caráter ‘benevolente’ em garantir o controle de riscos que influenciam nas condições de vida e saúde da população16,40. O Brasil possui ampla experiência no desenvolvimento de ações para o combate ao Aedes aegypti. Entretanto, medidas que priorizam apenas a erradicação do mosquito e cuidados individuais não são sustentáveis a longo prazo e esta perspectiva foi evidenciada pela enfermeira Sara ao ressaltar as sucessivas falhas no controle das doenças vetoriais no país:
“(...)A sensação que eu tenho é que esse cuidado já não é mais o suficiente. Porque a quantidade de pessoas doentes aumenta, a quantidade do mosquito aumenta e eu vejo, eu percebi que teve essa atenção com essa questão da água parada, então eu acho que...já não é mais o foco do mosquito a água parada, tem alguma outra forma ainda, eu acredito, porque não é possível (enfatizando)...que venha brotar tanto mosquito assim, com tanta atenção, tanto cuidado, entendeu? (...)Não, a sensação de que eu tive que não, por exemplo, primeiro começou com a dengue, depois chikungunya e aí eu digo, “Meu Deus, vai parar onde? Cadê o cuidado? Não adiantou?”, foi tudo por água abaixo, a microcefalia surgiu aí como um alastro, acometeu tantas famílias, tantos bebezinhos, então...A sensação de que eu tive é que não bastou, faltou mais, entendeu? E aí fica aquela dúvida, será que só mesmo era esse mesmo o cuidado com a água parada, entendeu?” (Enfermeira Sabrina).
Nesta perspectiva, os perigos ambientais representam uma segunda variedade de risco importante para a saúde pública. Assim, ameaças à saúde estão relacionadas a riscos externos sobre os quais os indivíduos possuem pouco poder de intervenção16. Durante a epidemia do ZIKV, esta perspectiva possuiu um caráter marginal tanto na gestão quanto na comunicação de risco por autoridades e profissionais de saúde. As orientações desconsideraram as vulnerabilidades socioambientais que contribuíram para o surgimento e a rápida disseminação da doença pelo país11.
Nesse contexto, o conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres et al.17 adquire especial relevância, por reconhecer os determinantes mais amplos que influenciam no curso de uma epidemia, para além da atuação patogênica de um agente viral sobre a dimensão individual. Evidencia-se aqui a vulnerabilidade social da população mais desfavorecida que reside em locais com maior infestação do Aedes aegypti e com menor acesso aos meios de prevenção, como repelentes, e informação de qualidade sobre a epidemia e a SCZV. Observa-se também vulnerabilidade programática na ausência de uma política de estado efetiva para controle do mosquito e acesso aos meios de prevenção. O conceito de vulnerabilidade se caracteriza ao mesmo tempo como um construto e um construtor de uma realidade abrangente e reflexiva no qual epidemias podem ser pensadas desde susceptibilidades individuais à organização socioeconômica e política da sociedade17. Isto posto, alguns profissionais de saúde entrevistados por este estudo destacaram a influência dos fatores estruturais na vulnerabilidade social da população às doenças vetoriais, o que tornam as orientações genéricas sobre os cuidados individuais pouco sensíveis frente às distintas realidades sociais:
“(...)Você vai num bairro que...onde tem casa que tem piscinas, que são tratadas, não é? Bota cloro, as pessoas se cuidam. Aí vai em um outro, tipo, vamos ver, lá embaixo... você vê, lagos, você vê, totalmente sujos, você vê rios, essas coisas assim, córregos, e isso é que causa, o mosquito gosta disso, é onde ele coloca sua larvazinha, seu óvulo (...)Quando passa na televisão “Olha, o bairro não sei aonde é onde tem, aonde teve a incidência maior de zika”, e tudo, quando você vai ver, realmente, é um bairro mais populoso, mais humilde e com o saneamento básico bem mais precário do que um bairro de que a pessoa tem uma classe mais alta (...)Você já ouviu falar alguma vez ou já viu que alguma pessoa de classe alta teve algum bebê com microcefalia? Até agora eu ainda não vi, não vi nenhum! (...)Agora você vai nos postos de saúde, fica na fila de vacina, no teste do pezinho, onde você vai ver pessoas que são totalmente humildes e é onde tem a maioria das crianças que tem mais microcefalia. Por que será?” (Enfermeira Eliana).
Assim, a noção de risco, apesar de relevante, deixa de ser suficiente por enfocar prioritariamente a dimensão individual. Ayres et al17 apontam que a responsabilização dos indivíduos pelo desenvolvimento de comportamentos preventivos não é totalmente efetivo para controlar a disseminação de doenças, tendo em vista que a adoção de condutas preventivas não resulta de uma simples combinação entre acesso a informações e possibilidade de escolha. Ao contrário, esta decisão se encontra atravessada por fatores socioeconômicos, políticos e culturais desigualmente distribuídos entre os gêneros, grupos étnicos e segmentos sociais. Por isso, torna-se imperioso investir em ações que atuem sobre as dimensões estruturais, uma vez que elas operam na produção de desigualdades sociais e iniquidades em saúde, propiciando as condições necessárias para a manutenção da ocorrência das doenças vetoriais.
A partir dessas lacunas, a concepção da vulnerabilidade (social, programática e individual) se desenvolve e adquire amplas aplicações ao considerar “a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos”17. Essa perspectiva ressalta a relevância de analisar o impacto dos distintos contextos sociais na determinação dos graus variados de susceptibilidade, o que também reforça a necessidade do desenvolvimento de intervenções sensíveis a essas particularidades. Nesse sentido, a médica Lívia desenvolve uma crítica contundente as campanhas de saúde por possuírem uma postura reiterada e repetitiva de responsabilização dos indivíduos pela minimização do risco de adoecimento. No entanto, ela ressalta que enquanto não houver intervenções efetivas sobre as dimensões da pobreza e vulnerabilidade, não existirá soluções adequadas e duradouras para controlar a ocorrência dessas enfermidades:
“Eu acho que a grande questão é que as campanhas, né?! O foco é que você resolva o problema do lixo que tem no seu quintal ou no seu bairro ou na sua comunidade, né?! A história da microcefalia era o risco de você estar com o problema, você ter tido a zika quando você tá grávida e você correr atrás. É um processo assim, reiterado e repetitivo da política pública de responsabilização do indivíduo, entendeu? Então eu acho que isso é muito doloroso, né? E no caso da situação da zika e da microcefalia gera pânico, né?! (...)Não é exatamente a pobreza, mas enfim, é um sintoma, né? Enquanto existir esse tipo de situação, pessoas que vivem nessas condições, que trabalham nessa situação de vulnerabilidade, vai existir circulação de Aedes, dengue, zika, chikungunya, então acaba que essa que é a grande condição, né?” (Médica Lívia).
A epidemia do ZIKV expôs a interferência do contexto socioambiental na situação de saúde da população. Sobre isso, o conceito de vulnerabilidade socioambiental de Spink41 é fundamental para analisar como os riscos sociais e ambientais impactam grupos populacionais mais vulneráveis. Estes habitam em locais com piores condições estruturais e estão mais suscetíveis aos efeitos das alterações ambientais. Desse modo, a restrição a direitos essenciais como o acesso a água tratada, coleta de lixo e esgotamento sanitário submete grupos específicos da população a sucessivas epidemias ao longo da história. Estes aspectos normalmente são negligenciados pelas comunicações em saúde durante epidemias como a do ZIKV, por serem tratados apenas como um problema vetorial que requer o desenvolvimento de práticas de proteção individual, enquanto a dimensão estrutural que, há gerações, sustenta estas disparidades, recebe pouca atenção e intervenção necessária para garantir adequadas condições de vida e saúde aos indivíduos42.
Compreender que a exposição ao vírus não ocorre da mesma maneira entre os grupos sociais reforça a perspectiva de que mudanças contextuais não dependem exclusivamente da vontade individual. Desta maneira, é fundamental investir em estratégias que atuem de forma integrada sobre as dimensões comportamentais, os contextos sociais e as restrições estruturais, ou seja, as desigualdades sociais e as vulnerabilidades ambientais que influenciam as condições de saúde da população. Assim, a garantia de proteção aos direitos humanos e sociais, adequadas condições de infraestrutura, acesso aos serviços de saúde e informação se caracterizam como elementos indissociáveis das ações de prevenção e cuidado individual à saúde pois estão implicados nas múltiplas dimensões do risco em nível comunitário17,40.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados produzidos por este estudo demonstraram insuficiências no conhecimento dos profissionais de saúde sobre aspectos importantes da infecção pelo ZIK um ano após o término da epidemia no Brasil. Em relação às orientações em saúde, a comunicação de risco adotada pelas campanhas de educação em saúde e profissionais de saúde evidenciaram seu alcance limitado, em especial entre os grupos populacionais que possuíam maior probabilidade de desenvolver a doença pois o controle do risco individual é pouco sensível às especificidades existentes entre os distintos contextos sociais.
Desse modo, autoridades em saúde devem investir em programas de capacitação, incorporando as concepções de vulnerabilidade, para profissionais de saúde de maneira permanente sobre as doenças vetoriais para disponibilizar informações atualizadas a população, estímulo às práticas de prevenção e controle efetivas. Além de empreender ações conjuntas com gestores e formuladores de políticas, visando garantir condições adequadas de infraestrutura urbana com o objetivo de romper o ciclo da pobreza e vulnerabilidade socioambiental que afetam os grupos populacionais mais suscetíveis às consequências das arboviroses. Por fim, mais estudos são necessários no cenário nacional a fim de propor estratégias de comunicação eficazes, culturalmente relevantes e de amplo alcance.






AGRADECIMENTOS
À CAPES por oportunizar o desenvolvimento deste trabalho a partir da concessão da bolsa de pós-graduação.

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Lima, F. M. da S., Iriart, J. A. B., Massad, E., Kinsman, J.. Percepções, conhecimentos e orientações desenvolvidas por profissionais de saúde no contexto pós-epidemia do vírus zika. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/fev). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/percepcoes-conhecimentos-e-orientacoes-desenvolvidas-por-profissionais-de-saude-no-contexto-posepidemia-do-virus-zika/19088?id=19088&id=19088

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