0426/2024 - Pesquisa-ação em comunidades da pesca artesanal afetadas pelo desastre-crime do derramamento de petróleo
Action-research in artisanal fishing communities affected by the oil spill crime disaster
Autor:
• José Erivaldo Gonçalves - Gonçalves, J.E - <goncalves.erij@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7841-8296
Coautor(es):
• Evelyn Siqueira da Silva - Silva, E.S - <evanyss@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4367-9263
• Rafaella Miranda Machado - Machado, R.M - <rafaella.mmachado@gmail.com, rafaella_mac@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9857-6523
• Egeval Pereira da Paz Neto - Paz Neto, E.P - <egeval.pazneto@upe.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7421-5456
• Mariana Olívia Santana dos Santos - Santos, M.O.S - <mariana.santos@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2129-2335
• Idê Gomes Dantas Gurgel - Gurgel, I.G.D - <ide.gomes@fiocruz.br, idegurgel44@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2958-683X
Resumo:
O objetivo deste artigo é descrever a experiência de pesquisadores(as) da aplicação da pesquisa-ação como recurso metodológico em territórios da pesca artesanal afetados pelo desastre-crime de petróleo ocorrido em 2019 no litoral do Nordeste brasileiro. Trata-se de um estudo hermenêutico crítico-reflexivo, com base na análise da vivência dos(as) pesquisadores(as), relatórios e diários de campo desenvolvidos durante atividades de pesquisa conduzidas no período entre 2021 e 2023. A imersão na realidade e territorializar o saber para além de uma questão epistêmica, contribui no processo dialógico nos territórios, fortalecendo os aspectos do saber, ser e poder em busca de justiça social, racial, ambiental e de gênero. A pesquisa-ação demonstra a necessidade de reflexões acerca das limitações condicionadas às pesquisas com metodologias descontextualizadas dos territórios, permitindo avanços epistemológicos no campo da saúde coletiva, na promoção da emancipação e autonomia das comunidades nos seus processos sociais e de saúde.Palavras-chave:
Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade, Derramamento de Petróleo, Vulnerabilidade Social, Saúde Ambiental.Abstract:
The aim of this article is to describe the experience of researchers in applying action research as a methodological tool in territories of artisanal fishing affected by the oil disaster that occurred in 2019 on the Northeast coast of Brazil. This is a critical-reflective hermeneutic study, based on the analysis of researchers' experiences reports, and field diaries developed during research activities conducted between 2021 and 2023. Immersing oneself in reality and territorializing knowledge beyond an epistemic matter contributes to the dialogical process in territories, strengthening aspects of knowledge, being, and power in pursuit of social, racial, environmental, and gender justice. Action research demonstrates the need for reflections on the limitations imposed by research with methodologies that are disconnectedthe territories, allowing for epistemological advances in the field of public health, promoting the emancipation and autonomy of communities in their social and health processes.Keywords:
Community Based Participatory Research, Oil Spill, Social Vulnerability, Environmental Health.Conteúdo:
Em 2019, decorre no Brasil o desastre-crime de derramamento de petróleo, que afetou sobretudo a região litorânea do Nordeste do país, provocando diversos processos de vulnerabilização a toda população costeira, principalmente os(as) pescadores(as) artesanais1,2,3. Dentre os impactos causados pelo desastre-crime, pode-se citar os socioeconômicos, ambientais e à saúde das populações expostas4,5,6. Nesse contexto de exposição, foram observados acometimentos dermatológicos, oftalmológicos, intoxicações agudas e repercussões na saúde mental dos(as) pescadores(as) tradicionais atingidos4 7.
Observar a realidade em profundidade nesses territórios afetados exige uma reformulação epistêmica e descolonizadora do ser, do saber e do poder8,9. Os territórios expressam uma construção coletiva e individual de sentimentos e saberes que implicam na sua formação política, cultural, social, econômica e espiritual10. Nesse sentido, as abordagens qualitativas para a saúde coletiva denotam preocupações metodológicas no alcance da compreensão em saúde e de transformação social em territórios vulnerabilizados11,12,13.
A emersão de diversos processos críticos refletidos em questões sociais, políticas, sanitárias e ambientais configuram cenários de injustiças socioambientais, acentuando processos de vulnerabilização14. Isso pôde ser percebido em diversos cenários, como no desastre-crime do derramamento de petróleo, com as perdas materiais e simbólicas, adoecimentos e agravos à saúde4,6. Por sua vez, esses processos de vulnerabilização são advindos das relações históricas e sociais que foram se complexificando a partir de uma assimetria da política e do poder do capital financeiro, reproduzindo-se em empreendimentos que afetam, principalmente, o modo de vida tradicional15.
É necessário que as abordagens metodológicas e conceituais da pesquisa científica estejam integradas às comunidades, obedecendo ao ritmo e ao tempo narrativo dos territórios, percebendo as amarrações críticas e existências relacionadas à vida16. Este construto promove uma maior compreensão real, integral e sistematizada das condições de saúde dessas populações, a partir de proposições da determinação social17 e a reprodução social da saúde18, numa perspectiva dialética e histórica dos fenômenos sociais.
A pesquisa-ação se mostra como possibilidade metodológica contextualizada, uma vez que experimenta ações co-participativas de análise e intervenção da realidade e incentiva a participação da comunidade nessa construção19. Essa metodologia apresenta uma racionalidade ambiental necessária, sobrepujante a dualidade metafísica do espaço e do tempo, e a fragmentação da saúde, dissociando os processos sociais e históricos.
Tendo em vista as potencialidades e contribuições da pesquisa-ação para o campo da saúde coletiva, este artigo tem como objetivo descrever a experiência da aplicação da pesquisa-ação como recurso metodológico em territórios da pesca artesanal afetados pelo desastre-crime do derramamento de petróleo ocorrido em 2019 no litoral brasileiro. O estudo foi realizado por meio das vivências do projeto de pesquisa “Desastre do Petróleo e Saúde dos Povos das Águas” desenvolvido pelo Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (Lasat/IAM/Fiocruz).
Procedimentos Metodológicos
Trata-se de um estudo hermenêutico crítico-reflexivo. Foi adotado a sistematização da experiência proposta por Oscar Jara Holliday (2018), consolidado no campo da Educação Popular, onde a própria experiência é o ponto de partida para a produção de conhecimentos, reforçando uma interpretação crítica, num espectro complexo do que se vive na experiência20.
Buscou-se descrever, num primeiro momento, a experiência de atuação da equipe durante a pesquisa-ação, a qual abrangeu perspectivas transversais da determinação social da saúde e da epidemiologia crítica, contribuindo para diagnósticos multidimensionais, produzidos com os participantes e/ou representantes dos territórios de forma dialógica, desde a análise dos instrumentos de pesquisa, a produção dos dados, como a sistematização e estratégias devolutivas. O fazer pesquisa foi sendo desenvolvido condizente com as realidades comunitárias, articulando as colônias de pescadores, serviços e gestores do SUS, possibilitando ações de promoção da vigilância popular em saúde como uma prática para a transformação social dessas comunidades, aspecto fundante na obra de Holliday (2018)20.
Foram incluídos na análise relatórios e diários de campo desenvolvidos durante atividades de pesquisa circunscritas entre os anos de 2021 e 2023, com as populações da pesca artesanal atingidas pelo desastre-crime do derramamento de petróleo em 20 municípios litorâneos da região Nordeste, sendo 16 do estado de Pernambuco, dois da Bahia e dois de Sergipe. A partir da análise hermenêutica crítica-reflexiva, a análise do material qualitativo foi sistematizada nas seguintes categorias: desastre-crime do petróleo; processos destrutivos nos territórios; pesquisa-ação em contextos de vulnerabilização e atuação da equipe.
Os resultados foram apresentados em quatro seções que correspondem a ordem do conjunto de categorias estabelecidas durante o processo de análise: i) a compreensão do fenômeno a partir dos diferentes contextos e realidades; ii) a pesquisa-ação como uma prática de emancipação e transformação social e em saúde; iii) os desafios e implicações da pesquisa em contextos de vulnerabilização. Por fim, iv) os desafios, potencialidades e contribuições da pesquisa-ação para o campo da saúde coletiva.
Resultados e Discussão
A compreensão do fenômeno a partir dos diferentes contextos e realidades
O desastre-crime do derramamento de petróleo ocorreu em agosto de 2019, atingindo o Nordeste brasileiro e os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. É considerado o maior desastre em extensão registrado no Brasil, afetando mais de 5000 km de costa e cerca de 724 localidades em 120 municípios2. Este desastre-crime não se deu uniformemente, mas demonstra diferentes afetações nos territórios que se interpõem aos processos de vulnerabilização prévios, estruturando e determinando problemáticas que reverberam em fragilidades políticas, econômicas, socioecológicas e em saúde. Os diferentes contextos territoriais contribuem no entendimento das condições de enfrentamento experienciado pelas comunidades, assim como a gravidade decorrente da exposição ao petróleo13.
Percebe-se uma dupla expressão dos processos de vulnerabilização nas comunidades afetadas, onde há o vislumbramento de repercussões macroestruturais e microestruturais, representando tanto a dinâmica política, quanto existencial de cada território. Tais perspectivas, também, podem ser distribuídas e identificadas de maneira inter e intracomunitária, em comunidades pertencentes ao mesmo município ou estado. No entanto, também é constatado que existe um padrão homogeneizador de vulnerabilidade decorrente de um modelo econômico extrativista que incide nos territórios caracterizado por processos de racismo e injustiças ambientais14,15.
Nos estados de Pernambuco, Bahia e Sergipe existem condições comuns de processos produtivos e extrativistas que experienciam conflitos nos territórios e contextos de injustiça socioambiental, dentre os quais: carcinicultura, especulação imobiliária, presença de grandes empreendimentos nos territórios como empresa automobilística e têxtil e polos petroquímicos. Apesar de semelhantes causadores de danos, os problemas e iniquidades decorrentes desses processos, manifestam-se de maneira particular nos territórios ou permanecem latentes, tornando-se um problema crônico e adoecedor.
Os dispositivos sociais presentes nas comunidades, como, por exemplo, as colônias e associações de pescadores(as), o Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) no estado de Sergipe e litoral Norte da Bahia; reservas extrativistas como RESEX - Canavieiras, no litoral Sul da Bahia; Conselho Pastoral da Pesca (CPP); Fórum Suape em Pernambuco; o Movimento das Marisqueiras de Sergipe (MMS) e defesa civil ou órgãos ambientais se localizam na dimensão organizacional dessas comunidades e fortalecem as estratégias de enfrentamento das vulnerabilidades em situações como o desastre-crime do derramamento do petróleo. No entanto, Azevedo e Costa (2010), alertam que a existência de um serviço em um determinado local – no caso, os dispositivos sociais como a Resex ou as secretarias de meio ambiente e defesa civil – “apesar de constituir um aspecto importante, não garante sua efetiva utilização” 21 (p.798).
Podem ser citadas como exemplo as comunidades que fazem parte da Resex-Canavieiras, no litoral sul na Bahia, que apresentaram uma resposta mais efetiva no enfrentamento ao desastre-crime do petróleo em relação a outras comunidades no estado; e São José da Coroa Grande em Pernambuco, onde a atuação planejada de um comitê de crise implantou barreiras de contenção contra o avanço do petróleo nos rios, estuários e praias. Há uma ambivalência em relação às organizações sociais e os serviços nos territórios, que podem ser vistos como fatores protetores e/ou destrutivos17.
Foi identificado, em alguns estados, que o trabalho de limpeza das praias contaminadas foi realizado majoritariamente por voluntários. Fato este que demonstra a omissão do governo em responder de maneira imediata à emergência em saúde pública, e do sentimento de defender o território, como foi o caso de Pernambuco4,22. Segundo Samaja (2000), apesar das aproximações dos meios de reprodução como condições de existência do metabolismo individual e criação de uma corporeidade inorgânica, dando origem a partir da supressão do biológico a subespécies culturais, é na esfera menor que se constitui a autonomia e o sentimento de pertencimento dos indivíduos, subjugados a uma ordem de intersubjetividades criadas numa concepção comunal e depois societal18.
No litoral Sul do estado de Sergipe e Norte da Bahia, empresas que atuavam no território, como a Petrobras, contrataram os(as) pescadores(as) para o trabalho de retirada do petróleo das praias, mangues e rios, durante meses, sem inicialmente receber treinamento ou equipamentos de segurança adequados. Essa decisão, embora vista como benéfica por alguns pescadores(as), insere no território uma problemática relacionada a rotatividade de empregos, trabalhos temporários que não correspondem a pesca artesanal e maior exposição ao componente químico interferindo nas dimensões biocomunal, societal, tecnoeconômica e político-ecológica dessas comunidades18. Um estudo desenvolvido por Rusiecki et al. (2022) indica que indivíduos que trabalharam na limpeza do petróleo têm uma chance maior de adquirir doenças no sistema respiratório23.
A contaminação por exposição ao petróleo está relacionada ao aparecimento de sintomas e problemas de saúde física, como doenças e alterações do sistema neurológico, endócrino, cardiovascular, renal e respiratório e condições de saúde mental, como estresse pós-traumático e ansiedade24. É importante ressaltar que não há um limiar seguro de exposição ao benzeno, um dos principais compostos químicos do petróleo que pode provocar o aparecimento de câncer e agravos em indivíduos expostos numa escala de tempo muito variável que pode corresponder a meses ou anos25. Além dos impactos diretos, outros são amplamente analisados, como as repercussões ambientais, econômicas, sociais e dos modos de vida1, 2, 4, 6.
O território pesqueiro constitui-se por áreas de captura de animais marinhos, locais de beneficiamento, armazenamento, comercialização direta e indireta, além do consumo em bares característicos dos litorais. As áreas de praia que foram contaminadas pelo petróleo acumulam diferentes etapas da pesca artesanal, e por isso, somatizaram bloqueios à sua continuidade, relacionados, sobretudo, à captura, comércio e ao consumo dos peixes e crustáceos que comumente acontecem nestes locais. Os(as) pescadores(as) artesanais acompanharam uma modificação na imagem e no simbólico das praias, o que atingiu sobremaneira a sua subsistência, mas inclusive sua saúde mental, diante das diversas incertezas que foram se instalando ao longo do enfrentamento à problemática.
Os(as) pescadores(as) apresentam um vínculo extremamente afetivo e cultural com o trabalho da pesca que ultrapassa as questões financeiras e laborais. O afeto são as disposições corporais e sentimentais que determinam os eventos e situações, tornando-os importantes enquanto outros passam despercebidos, não implicando uma expressão afetiva ou simbólica no mundo para esse sujeito26. O mundo, neste caso, se constitui enquanto um lugar onde está intrínseco o valor, a moral, os significados e os significantes que vão dando sentido e sentimento à vida. Não havendo, assim, um ser preexistente, mas sim, um ser que é constituído a partir das relações sociais com esse mundo27.
Assim, as narrativas das comunidades surgem em redes que se formam dentro de outras redes, complexificando e manifestando-se plural e interconectadas, onde o desastre-crime do petróleo é compreendido como mais um dos processos danosos ao território. Sendo o discurso dos indivíduos atravessado pelas marcas da história do corpo-território que se expressa como a extensão de si no mundo ou ainda, como um território vivo e pulsante10. O caso do desastre-crime do derramamento de petróleo foi visto e sentido pelas comunidades, mas subsumido nas questões da contaminação dos mangues pelas substâncias químicas da produção da carcinicultura e as ameaças de grandes latifundiários às marisqueiras no caso de Sergipe; a invasão e desterritorialização pelos grandes complexos hoteleiros do Sul da Bahia; a covid-19 em Pernambuco e todos os estados.
É necessário estratégias que compreendam esse movimento relacional de supressão, conversação e superação que acontece nos territórios e pensar mecanismos de compensação social que se adequem a um plano de reparação integral comunitária que considere o tempo não linear dessas comunidades e seus sujeitos de desejos19, 28.
A pesquisa-ação como uma prática de autonomia, emancipação e transformação social e em saúde
A construção da pesquisa-ação em cenários de emergências em saúde pública, com processos recentes de vulnerabilização associados a uma gama de problemáticas pré-existentes, assim como ocorreu durante o desastre-crime do petróleo, suscitam ainda mais desafios à sua concretude. A população atingida por esse desastre-crime do derramamento de petróleo, continuam em um longo processo reivindicatório quanto às suas perdas e danos, mesmo após quatro anos da ocorrência (período de realização da pesquisa). A chegada dos pesquisadores nos territórios vulnerabilizados remete a dois sentimentos expressos pelas comunidades: 1) a ação governamental, ainda que tardia, sobre os desejos populares de reparação justa e integral; e 2) o sentimento de injustiça das comunidades e a necessidade de culpabilização, principalmente em casos como o desastre-crime do petróleo que não há judicialmente um responsável.
Nesta perspectiva, pesquisas que abordem um evento específico, dissociando a sobreposição e a multiplicidade de processos históricos que são imbricados e indissociáveis da realidade, se distanciam da compreensão complexa e sistemática dos territórios. A pesquisa-ação pressupõe a dinamicidade e a dialética com o território, que exige movimentos relacionais no decurso das pesquisas diante da subsunção dos processos e do materialismo histórico na determinação social da saúde dessas populações, como pôde ser observado nos diários de campo.
A experiência vivenciada pelos(as) pesquisadores(as) evidenciam a importância do movimento de translocação do conhecimento científico para um saber territorial aplicado, tecendo e integrando saberes diversos para fortalecimento de ações coletivas e de uma ciência cidadã. Foram realizados encontros entre os(as) pesquisadores(as), organizações sociais, lideranças comunitárias da pesca artesanal e comunidade civil em espaços institucionais, como a sala de emergência da Fiocruz Pernambuco em 2019 e também no território para que se pudesse compreender a dimensão dos danos causados e ouvir experiências de resistência e luta dessas comunidades frente às injustiças socioambientais. Como mencionado por Paulo Freire, é necessário trazer as experiências e os saberes das comunidades “onde cedo se aprende que só à custa de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência e negação” 29 (p.77).
A ecologia de saberes que se refere ao “conjunto teórico em que se insere resulta exatamente da necessidade de articular conhecimentos diferentes, científicos e populares que há perspectivas diferentes ou conhecimentos distintos sobre os temas que nos congregam” 30 (p.24), é sobrepujante a monocultura científica dos “claustros” das universidades ou como escreveram Rigotto et al. (2018), a “Universidade Torre de Marfim”, alheia à sociedade, dedicada à teoria, reivindicando independência e autonomia para definir seus objetos de estudo” 15 (p.366). Essa estratégia, inserida em contextos de pesquisa-ação, traz uma maior autonomia das comunidades sob os processos de pesquisa, contribuindo para a emancipação e a transformação social.
Outro destaque foi a elaboração de momentos entre o grupo de pesquisadores(as) com discussão os quais os temas da saúde ambiental, saúde coletiva, saúde mental estavam presentes. Esses encontros aconteciam entre pesquisadores(as) da Fiocruz Pernambuco, Fiocruz Ceará, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal de Sergipe, Fundação Joaquim Nabuco, estudantes de doutorado, mestrado, especialização e graduação das áreas das ciências da saúde, sociais e humanidades. Para além da discussão teórica, houve o reconhecimento do território a partir da perspectiva das pessoas das comunidades.
No estado de Pernambuco, foi possível acompanhar durante o trabalho de campo, pescadores(as) no seu processo de trabalho e em momentos de lazer, onde relataram, no caso do desastre-crime do petróleo, até onde havia chegado petróleo e como agiram para proteger seu território. Essa narrativa era atravessada pelas problemáticas que se somaram ao derramamento de petróleo. A escuta e a aproximação com os problemas dos territórios moldaram esta pesquisa, implicando um caráter dinâmico em que as necessidades do território permeavam as decisões e reformulações dos objetivos. A pesquisa-ação promove uma relação dialética entre a construção do conhecimento – para os pesquisadores, mas inclusive para os sujeitos dos territórios – e a promoção de intervenções sobre problemas sociais31.
A interdisciplinaridade é recurso fundante para compreensão da realidade em casos complexos como acidentes ou desastres ampliados32 apresentando características que reforçam o processo pedagógico com os participantes, e a intervenção sobre um problema presente no contexto de vida dos participantes em sua totalidade na busca pela transformação social. Todas as etapas desenvolvidas ao longo da pesquisa necessitam da expressiva participação dos sujeitos envolvidos, em um movimento autônomo, compartilhado e emancipatório20.
Dito isso, a pesquisa apresenta como seu lócus principal os territórios e comunidades historicamente vulnerabilizadas, que expressam algum nível de abandono por parte da ação governamental, seja na área da educação, saúde, cidadania, empregabilidade, moradia, entre outros. O que denota uma gama de desafios para os pesquisadores, substancialmente relacionados à criação de um ambiente propício ao compartilhamento de saberes relacionados à realidade social experienciada, e ao fomento a uma postura de engajamento social e política.
Os desafios e a implicação da pesquisa em contextos de vulnerabilização
Para além das ações realizadas e percepções, a reflexão da vivência e a inscrição desses códigos em contexto singular e coletivo, reverbera na convergência do pesquisador no território de atuação e consequentemente no confronto com a realidade, que esbarra nas limitações institucionais e científicas da modernidade. Esse fato implica, por uma certa medida, em maior sensibilidade em relação à elaboração de estratégias de pesquisa-ação, reconhecimento das comunidades e a apreensão dos significados e significantes dessas populações. Por outro lado, há um efeito rebote que incide na insuficiência da ação em relação à problemática territorial.
As afetações e a construção de uma corporeidade de ser no mundo, suplanta a biologia e compreende dimensões sociocultural, econômica, política e espiritual que agem como moduladoras de sentidos e determinam contextos de vulnerabilidade social e em saúde. Essa leitura dinâmica e profunda do território, centraliza discussões sobre como esses processos e condições podem ressoar no pesquisador e no processo de pesquisa, fazendo-o pensar sobre questões de formação humana, mas também a sua prática de trabalho, como retratado a seguir: "Isso me faz refletir sobre minha vida, o meu processo [...] tamanha vastidão de iniquidades” (Diário de Campo).
É sob essas circunstâncias que o trabalho de campo desvela o ser pesquisador, conformando e estruturando suas ações ao decurso das experiências que, muitas vezes, confrontam paradigmas hegemônicos da academia em relação aos aspectos metodológicos e científicos. Sendo necessário pensar outras epistemologias que considerem o ser ecológico e sua ecologia de saberes, que se distancia da linha abstrata da ciência que separa outras formas de conhecimento onde “De um lado está a ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem nem aos critérios científicos de verdade, nem aos critérios dos conhecimentos reconhecido como alternativos, da filosofia e da teologia” 33 (p.31).
Humberto Maturana e Francisco Varela (2009), autores chilenos que desenvolveram o conceito de autopoiese, deram contribuições importantes sobre como o observado e o observador sa?o interdependentes, tecendo construções e?ticas sobre o fazer cie?ncia com conscie?ncia. Assumem que as “emoc?o?es sa?o feno?menos pro?prios do reino animal” 34, e que somos constituídos no entrelac?amento do emocional com o racional, gerando campos de ac?ões e espac?os sistêmicos operacionais substanciados pelas ac?o?es humanas11, 34.
Isto implica que mesmo em estudos epidemiológicos clássicos com instrumentos fechados e delimitados como o que subsidiou parte desta pesquisa, há por meio da condição humana e relacional uma faixa de envolvimento que ultrapassa a técnica e avança ao campo dos afetos e emoções, e considerar esses e outros elementos na análise de dados para além da estatística. Ouvir as histórias das lutas e sofrimentos advindos dessas comunidades, incutir no pesquisador a responsabilidade de acolhimento exige uma organização psíquica.
Durante a pesquisa, um grupo de apoio psicológico foi formado. Quinzenalmente, um psicólogo se reunia com a equipe para ouvir as demandas apresentadas pelos indivíduos decorrentes dessas experiências em campo. O grupo era aberto e de participação espontânea. Durante os encontros, foram apresentados o sentimento de frustração e de impotência em relação ao cenário de vulnerabilização das comunidades.
Essas vivências foram resgatadas durante o desenvolvimento do grupo de acompanhamento, e refletidas sob a luz das limitações condicionadas ao pesquisador numa determinada realidade e as potencialidades e ações de sentido nos territórios. Essa experiência alerta sobre como as instituições têm operacionalizado seus projetos, demonstrando a importância de medidas de acolhimento de saúde mental nos grupos de pesquisa e como o pesquisador e sua equipe têm enfrentado os desafios de fazer pesquisa num contexto de vulnerabilização.
A operacionalização da PA nesses territórios, suscita desafios epistemológicos e profundos que confrontam a ordem das coisas pela própria condição dinâmica do território vivo e pulsante. As complexas e sistêmicas relações dos territórios, por vezes, se estendem aos pesquisadores manifestando-se a partir da ambivalência acoplada a nossa condição de sistema aberto e fechado, capaz de incorporar em sua dinâmica de pesquisa ao território, a vida e as intersubjetividades que sobrepõem as relações humano-sociedade-natureza 34.
Considerações finais
A narrativa territorializada da ciência para aproximações das complexidades dos territórios e a compreensão rizomática da realidade, permeia desafios metodológicos e acadêmicos que incidem em uma ciência asséptica que reside na "torre de marfim". É reconhecido também, que mesmo técnicas/metodologias como a pesquisa-ação, que aproximam a compreensão sistematizada, localizada e participativa dos fenômenos sociais e em saúde expressos nos territórios, essa medida não alcança em absoluto as problemáticas, processos e condições das comunidades. No entanto, oferece subsídios e estratégias que contribuem na emancipação, autonomia e transformação social das comunidades que passam a autogerir seus processos e dos pesquisadores que se implicam no processo pesquisa-ação-reflexão.
Os desafios exigem do(a) pesquisador(a) para a compreensão contextualizada da realidade dessas populações, tornar-se vulnerável à realidade das comunidades, tentar superar as afetações na saúde mental adquiridas e buscar estratégias de contribuição social a partir da construção científica, seja em pequenas intervenções durante o pesquisar, seja posteriormente nas instâncias sociais estabelecidas para mudanças ou aprimoramento de políticas públicas.
Faz-se necessário repensar o papel da academia na atenção à complexidade e ao tempo-território, compreendendo integralmente os processos atrelados à vida, destituindo-se dos ritos da colonização do saber, e aprofundando-se em epistemologias do Sul Global que elaboram e interpelam o sentir-pensar dessas comunidades.
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