0048/2024 - Princípios e características da Educação Permanente em Saúde: resgate e resistência em favor de um SUS potente e em defesa da vida
Principles and characteristics of Permanet Health Education: rescue and resistance in favor of a powerful SUS and in defense of life
Autor:
• Marcia Naomi Santos Higashijima - Higashijima, M. N. S - <psicologanaomi@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4924-5346
Coautor(es):
• Helvo Slomp Junior - Slomp Junior, H. - <helvosj@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5346-0965
• Alcindo Antonio Ferla - Ferla, A. A - <ferlaalcindo@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9408-1504
• Laura Camargo Macruz Feuerwerker - Feuerwerker, L. C. M. - <laura.macruz@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6237-6167
• Emerson Elias Merhy - Merhy, E. E. - <emerhy@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7560-6240
• Ricardo Burg Ceccim - Ceccim, R. B. - <burgceccim@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0379-7310
• Jader Vasconcelos - Vasconcelos, J. - <vasconcelosjd@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4889-3883
• Alessandro Diogo De Carli - De Carli, A. D. - <alessandrodecarli@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4560-4524
• Mara Lisiane de Moraes Santos - Santos, M. L. de M. - <mara.santos@ufms.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6074-0041
Resumo:
A Educação Permanente em Saúde (EPS) transcende a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, forjada com princípios e características próprias para atender a necessidade de qualificação dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde. Embora a EPS aspire a uma transformação dos paradigmas formativos convencionais e dominantes na área da saúde, ela também pode atuar como um dispositivo para repetir e reforçar esses mesmos modelos. Neste sentido, o presente estudo teve por objetivo explorar, sistematizar e problematizar as características e princípios da EPS, a partir da análise da literatura e, encontros dialógicos com alguns de seus forjadores conceituais. Compreende-se que a EPS é uma aposta na vida, com ações formativas que problematizam os processos de trabalho e articulam ensino e intervenção na realidade, trazendo implicação com os usuários e suas singularidades. O resultado foi um ensaio de sistematização das características da EPS, apresentando reflexões para os modos de se produzir gestão, atenção, participação e formação como trabalho vivo na saúde.Palavras-chave:
Sistema Único de Saúde. Educação Permanente. Políticas Públicas em Saúde.Abstract:
Permanent Health Education (PHE) transcends the National Policy for Permanent Health Education, crafted with its own principles and characteristics to meet the qualification needs of workers within the Unified Health System. While PHE aspires to transform conventional and dominant training paradigms in the field of healthcare, it can also function as a mechanism to replicate and reinforce these same models. In this context, the present study aimed to explore, systematize, and problematize the characteristics and principles of PHE through literature analysis and dialogical encounters with some of its conceptual creators. It is understood that PHE is an investment in life, with educational actions that question work processes and integrate teaching and intervention into reality, with implications for users and their uniqueness. The result was a synthesis essay on the characteristics of PHE, providing insights into ways to produce management, care, participation, and education as live work in healthcare.Keywords:
Unified Health System. Permanent Education. Public Health Policies.Conteúdo:
Os desafios para a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) suscitaram a necessidade de uma política nacional para qualificar os trabalhadores da saúde, tendo como foco a centralidade nos usuários, os princípios legais do SUS e que usasse o cotidiano do trabalho como espaço formador. Em 20041, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) foi criada e pautou a defesa da vida, as relações de poder no cuidado, a democratização das relações e o reconhecimento de diversos saberes.
Na década de 1960 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) traz a Educação Permanente como uma “autoeducação permanente” para atender as rápidas evoluções das profissões2. No âmbito da América Latina e Brasil, no final dos anos 1970 a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) adota e propaga a educação permanente como um novo modelo de educação continuada (EC)3 e tal concepção passa a ser uma aposta para qualificação dos trabalhadores da área da saúde.
Nesse contexto, no Brasil a EPS tem seu início com o propósito de superar as limitações da EC. A EC é desenvolvida com ações pontuais de formação para suprir lacunas técnicas dos profissionais da saúde3, ainda que não ofereça mecanismos para que tal expertise seja reconfigurada em consonância com as realidades inerentes a esses serviços4. A EPS, por sua vez, é desenvolvida a partir das singularidades de cada usuário, das forças que o cruzam e do território para a travessia de fronteiras entre a complexidade da produção da saúde, as características atuais da formação profissional e o desenvolvimento do trabalho5, com foco na qualificação do cuidado e melhoria da equidade e ampliação do acesso em saúde4.
No entanto, embora a EPS tenha em sua concepção a transformação dos paradigmas convencionais e dominantes na área da saúde, ela também pode atuar como um dispositivo para repetir e reforçar esses mesmos modelos3.
Estudos5-9 têm retratado diferentes conceitos e fazeres da EPS, o uso indiscriminado do termo e o desconhecimento de gestores e trabalhadores sobre o tema, além da ausência dos usuários ou do controle social nas ações de EPS.
Nestas publicações observa-se a presença marcante do modelo predominante de educação, isto é, a recognição nomeada como EPS, o que implica em perdas substanciais para a formação no e pelo trabalho, quando não a supressão total dos desígnios propostos na sua apresentação como política estratégica. Os estudos não problematizam os resultados, invisibilizam as disputas e conflitos no contexto político da PNEPS e o seu forjamento no interior de uma concepção de implementação profunda do SUS, bem como da própria EPS, para que se expanda como desenvolvimento metodológico.
Nesse sentido, no esforço de explorar e conhecer os movimentos de EPS nas produções científicas, até o momento da redação deste artigo, não foram identificados na literatura textos que sistematizem, em um único material, os princípios e características da EPS, não como um checklist, mas problematizando-os. Assim, ficaram evidentes a necessidade e a importância de se explorar tais características e princípios, sistematizando-os e dando visibilidade a essas premissas da EPS, com o intuito de fortalecer essa importante caixa de ferramentas, bem como incentivar sua utilização no cotidiano dos serviços e do ensino, a fim de potencializar o trabalho vivo na saúde, tendo sempre em vista a centralidade dos trabalhadores e usuários em todo o processo de cuidado em saúde.
Diante dessa lacuna na literatura, o objetivo desse estudo foi explorar, sistematizar e problematizar as características e princípios da EPS. Mais que um produto acadêmico, trata-se de um movimento que problematiza a naturalização da utilização do termo EPS em práticas de formação hierarquizadas, esvaziadas de invenção, sem o protagonismo dos trabalhadores e sem suficiente implicação com os usuários e suas singularidades e complexidades de vida, ou seja, o seu afastamento da profunda identificação com o SUS. Ao reunir e debater princípios e características da EPS, pretende-se que o texto contribua para o resgate da sua formulação e de sua potência como ferramenta para a qualificação do trabalho vivo em ato na saúde.
Percurso Metodológico
A análise e problematização dos princípios e características da EPS fizeram parte da pesquisa intitulada “Experimentações da Educação Permanente em Saúde – cartografia a partir dos caminhos percorridos por gestores e trabalhadores da saúde em uma capital brasileira”, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o CAAE nº 15449419.6.0000.0021.
Foi realizado um estudo exploratório qualitativo desenvolvido em 3 etapas: 1. Revisão Crítica10; 2. Entrevistas com autores; 3. Sistematização e discussão das características da EPS (Figura 1).
Etapa 1. Revisão Crítica:
O objetivo da Revisão Crítica foi identificar produções que abordassem os princípios e características esperadas para que uma ação pedagógica pudesse ser considerada EPS. As buscas foram realizadas entre abril/2019 a outubro/2020 nas bases PubMed®, Scientific Eletronic Library Online (SciELO), Google Scholar, Biblioteca Virtual em Saúde, com os descritores, “educação permanente”, “educação continuada AND saúde pública”, e a palavra-chave “Educação Permanente em Saúde” AND descritor “Saúde Pública”, nos idiomas português e inglês, sem restrição quanto ao período de publicação. O sítio eletrônico do Ministério da Saúde também foi consultado.
Foram identificadas 107 publicações. Dessas, 6 artigos11-16 abordaram os princípios e características da EPS publicados nas revistas Interface, Comunicação, Saúde e Educação, Ciência & Saúde Coletiva e Saúde em Redes (Quadro 1). Nesses materiais identificou-se três autores que estavam transversalmente presentes em todos os artigos: Emerson Elias Merhy, Laura Camargo Macruz Feuerwerker e Ricardo Burg Ceccim. Diante desses resultados os 6 artigos foram escolhidos como base para a etapa seguinte da pesquisa: as Entrevistas com os autores.
Etapa 2. Entrevista com os autores
Foram realizadas entrevistas individuais com os autores mencionados, via Google Meet®, com duração aproximada de 2 horas, gravadas. Como disparadores das entrevistas foram utilizados trechos dos artigos selecionados relacionados ao objeto da pesquisa. Foi solicitado aos autores que discorressem sobre o tema de modo a possibilitar o recolhimento de informações que subsidiassem a sistematização e discussão dos princípios e características da EPS.
????Etapa 3. Sistematização e discussão das características da EPS:
Foi realizada a sistematização e discussão das características da EPS, levando em consideração os materiais selecionados, os debates e problematizações abordadas nas entrevistas com os autores. O fio condutor foi a análise das experiências designadas por EPS em relação aos seus princípios originais e à valorização da vida e das pessoas.
Fig.1
Resultados e discussão
O que dizem os textos-guia11-16
Os princípios da EPS envolvem o trabalho em equipe, o serviço, a prática, o campo da ação, o fato de poder acontecer em qualquer espaço e o reconhecimento de que todo mundo é “sabido” de algo ou alguma coisa. Assim, as características apresentadas abordam a compreensão de EPS como concepção e prática, afastando-se completamente da noção de educação como reprodução de conhecimentos.
Há a compreensão de que sendo EPS a ação envolve uma resposta do SUS às necessidades em saúde e o fortalecimento das redes de acolhimento. Entre as características, a forma de conduzir (ou o “método”) envolve os próprios atores do cotidiano do trabalho. A EPS é um conceito-ferramenta para o pensamento que gera produção em ato, mobilização, encontros, reconhecendo que a formação também é porosa à nossa existência17. A EPS é a estreita relação entre educação e trabalho em saúde no cotidiano de suas práticas. Sendo uma orientação educativa, apoia-se no ensino problematizador18, ou seja, em problematizar a realidade, efetivando-se “através da aplicação à realidade na qual se observou o problema, ao retornar posteriormente a essa mesma realidade, com novas informações e conhecimento”19 e, na aprendizagem significativa20; estratégia do e para o SUS na formação de trabalhadores e no desenvolvimento do trabalho21.
Na EPS o mundo do trabalho é considerado como “meio pedagógico”, não sendo caracterizado apenas como um espaço formal de produção, em oposição aos espaços da formação. A rede SUS deve ser uma escola permanente, implicando processos formativos13 a partir da problematização da realidade14,15, levantamento de conhecimentos prévios11,12 e de problemas que mobilizam os diferentes atores, além da identificação das necessidades dos trabalhadores em seus diversos contextos, de forma ascendente12.
A EPS não se realiza pela prescrição de cursos e programas de atualização. É fundamental que os processos de educação façam sentido para trabalhadores e usuários, não somente à gestão, reconhecendo que todos sabem, fazem e governam11-13,15, perfazendo-se na produção coletiva do cuidado, estimulando práticas inovadoras e mais democráticas12. Deve ser espaço protegido para dar voz, produzir dizibilidades, discussão de processos de trabalho, processamento coletivo e conhecimento compartilhado15, assim como produzir mobilização, questionamentos, provocação, desacomodação, desterritorialização13, com a articulação de coletivos que ressignificam o cotidiano vivenciado e compartilhado12. Torna-se trabalho organizado de reflexão e produção de alternativas12, transformando o processo de trabalho no objeto da reflexão participativa e ativa pelos trabalhadores12, poroso à realidade11,13,15, tornando visível o invisível13.
Compreendeu-se que há uma condição primária para a mudança das práticas: o incômodo11,12,15. A partir dos desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho, disparados pela detecção e contato com o modo de fazer que se mostra insuficiente para dar conta dos desafios, é que se pode elaborar alternativas e enfrentar o desafio de produzir transformações, de se permitir estranhar-se e reconhecer-se15. É o incômodo que provoca o protagonismo individual e coletivo13, abre espaço para compartilhamento do cuidado entre trabalhadores e entre trabalhadores e usuários, novas possibilidades de relações, de agenciamento14; sendo o usuário (e o coletivo em que está inserido) e suas necessidades o foco da organização do trabalho em saúde, considerando-o portador de saberes e desejos15, propiciando ganhos de autonomia e vida12,14.
Os encontros emergentes nestas situações de troca, colaboração, convivência, provocação, desconforto e possibilidade de práticas fazem com que novos sentidos sejam incorporados às formulações sobre o trabalho, consistindo, possivelmente, no principal “método” da EPS.
Quadro 1
O que dizem os autores-guia
Com base nas características de EPS identificadas nos textos, durante as entrevistas individuais foi possível colocá-las em contato com os (as) principais autores (a) dos artigos analisados, retomando-as e atualizando-as em relação à compreensão da temática à ocasião da produção dos artigos.
Mundo do trabalho como meio pedagógico
Merhy utiliza do conceito “imanência”22 para dizer que a aprendizagem se dá em todos os lugares em que se vive, lugares de vida e de trabalho são ambientes pedagógicos quando problematizamos nossa experiência em interação com o outro, e usa como referência o líder indígena Ailton Krenak23, que diz que a vida é uma escola (informação verbal). Essa característica diz do processo de produção de conhecimento nos modos e espaços de viver, ou seja, da nossa experiência em campo, daquilo que nos convoca a produzir saberes (conhecimentos e práticas). Por exemplo, a técnica em enfermagem compartilhando o acolhimento com o Agente Comunitário de Saúde (ACS) percebe que uma recepção mais calorosa do usuário, sem atropelos, faz com que ele se sinta mais seguro e confortável para falar sobre o que veio demandar ao serviço, enquanto o ACS aprende que as condições clínicas para definição de caso suspeito de Covid-19 foram atualizadas pela Nota Técnica publicada no dia anterior.
Aprendizagem significativa e produção de sentidos
A aprendizagem significativa20 foi sendo ampliada, chegando a um novo conceito: a produção de sentidos24. Ensinar e aprender é um afetar-se mútuo, por isso é preciso afetar e deixar-se afetar, aprender com o corpo, com a experiência das interações, no cotidiano, nas vivências. Feuerwerker relata a necessidade de falar das diferenças de expectativas, pois o trabalhador tende a colocar a doença no centro da vida do usuário, por sua vez, o usuário quer ajuda para que o problema incomode o menos possível (informação verbal). A partir da escuta (sensível), da compreensão dos modos de viver do usuário, dos valores e expectativas com que se está operando é que é mais possível traçar caminhos juntos, e assim produzir sentidos comuns e compartilhamento do projeto terapêutico. Por exemplo, a médica orienta a usuária com diabetes a fazer alterações na sua alimentação para não descompensar seu estado de saúde, inclusive com indicação de horários para se alimentar. No entanto, a usuária, diarista, beneficiária ou não de programa de transferência de renda, sequer tem condições de escolha nem dos horários e nem da composição de sua alimentação.
Problematização da realidade18 e do cotidiano do trabalho
Um termo frequente na EPS é a problematização, simplificada por Ceccim como interrogar seus saberes (informação verbal). Feuerwerker complementa: problematizar é fazer perguntas para o que estamos fazendo, sentindo e recolhendo (informação verbal).
Problematizar é fazer perguntas para si e para o outro, é dar visibilidade ao conhecimento que está implícito, apropriado de forma individual, é um modo de fazer a “ficha cair”, não é encaixe esperado, é antes o desencaixe para produzir outras correlações. Um exemplo sobre isso é se perguntar sobre a construção de agenda da unidade e dos setores. Por que a agenda é temática, com o dia do idoso, da gestante, do hipertenso e diabético? Essa agenda temática atende às necessidades do território ou é a reprodução de um modelo sem reflexão? É importante realizar um levantamento sobre demanda programada e espontânea para programar a agenda durante a semana.
Considerar os conhecimentos prévios
Os conhecimentos prévios25 são características que partem do princípio de que todo mundo é “sabido” sobre algo e alguma coisa à sua maneira, afirma Merhy (informação verbal). Não há saber maior ou menor, todo mundo é sabido, e é importante este reconhecimento, desde sua diversidade, seus universos explicativos, suas apropriações intelectuais. Não é possível problematizar sem considerar que cada um tem suas próprias vivências e concepções, pois as perguntas devem partir dessas experimentações da vida, do cotidiano que produz conhecimento.
Na experiência do cuidado considerar o saber do outro é necessário. Precisamos que isso seja transposto para as equipes de saúde, pois são múltiplas, amplas, de todas as faixas etárias e das mais diversas origens culturais ou de procedência. Como por exemplo, considerar que a bucha (vegetal) é hortaliça, alimento usado para fazer sopa, e apreciado regionalmente por ser comida gostosa e barata.
Processo ascendente
Merhy aponta que ser ascendente é considerar as necessidades identificadas pelos trabalhadores e usuários (informação verbal), e não simplesmente dispor uma demanda da gestão de cima para baixo, “goela abaixo”, imposição (a gosto ou contragosto). O “processo ascendente” é característica da diferença da educação emanada “desde o gabinete”, como os treinamentos e capacitações, e a educação que “chega até o gabinete”, segundo uma leitura problematizadora de necessidades, processos de escuta e acompanhamento, redes de conversa e interlocução.
Um exemplo é relativo à noção de acolhimento, ideia lançada como um desafio ao entrosamento das equipes e diálogo com usuários em geral, e que passou a ser um lugar de classificação de risco, triagem; migrando de um debate em equipe para um modelo a ser replicado.
Gestão compartilhada
É o entendimento de que todos governam, gestores, trabalhadores e usuários, inclusive de que isso é esperado para que problemas possam ser resolvidos; é o governo de si e do outro e as disputas entre aqueles que produzem o cuidado em saúde, compartilhando compromissos, arranjos, pactos26. Em que pesem as relações hierárquicas, todos governam em alguma medida nos espaços micropolíticos e ao reconhecer que todos governam é necessário criar espaços dialógicos e colocar o trabalho em análise. A produção coletiva do cuidado através do compartilhamento estimula trocas de experiências e abre possibilidades para práticas inovadoras e mais democráticas. É poder definir junto, em equipe e com a participação do usuário, o que pode ser feito para a melhoria da qualidade do cuidado.
Reflexão participativa e ativa pelos trabalhadores
Está expressa aqui a aposta de que o processo de trabalho é dos trabalhadores, sendo necessário que dele se apropriem, por isso devem ter participação ativa e reflexiva nessa organização; o trabalho capaz de cuidar não resulta de apenas seguir um protocolo ou uma diretriz. Tecnologias leves27 valorizam o trabalho vivo, não bastam as tecnologias leve-duras27 (informação verbal), como reafirma Merhy. Não é só criar uma carteira de serviços, é analisar “se” e “como” essa carta atende às necessidades em saúde, dialoga com os valores e desejos da população em cada território; bem como não é só propor uma agenda temática se ela não dá conta de dialogar com as condições de saúde das pessoas. O que pode dar super certo em um lugar pode dar muito errado em outro, porque as dinâmicas econômicas, sociais, culturais, políticas e as pessoas são diferentes.
Espaço protegido
O espaço, momento, horário, condição que se reserva para que se dê voz ao que não é dito, mas pensado/sentido/vivido, onde/quando se compartilha, discute e rediscute processos de trabalhos e são processadas as pactuações, quando existem, deve ser um espaço protegido, seja por ter sido reservado e respeitado, seja pela liberdade de manifestação, de opinião ou de lugar de fala, além de integrar a própria lógica de organização do ambiente de trabalho da/em equipe. “Espaço protegido” como característica da EPS é garantia da liberdade em coletivos acolhedores. Pode dizer a respeito à reserva de tempo e lugar (protegidos), ou pode apontar que tempo e lugar sejam espaços protegidos (um modus operandi) e condição de construção de confiança para falar o que se sente e pensa, sem represálias.
O processamento coletivo das práticas ao invés de prescrições e delegações, as reuniões como rodas de conversa e não puramente informativas, demandam espaços protegidos, assim como podem ser os vários tempos e lugares informais, tais como o chá na copa em que se conversa sobre um atendimento, o grupo no WhatsApp® em que se discute como fazer as visitas domiciliares em tempos de pandemia, ou ainda a dúvida tirada com a colega sobre o relatório do mês e assim por diante.
Desterritorialização28 e porosidade22 ao outro e suas questões
Um efeito da problematização é a produção de mobilização, questionamentos, provocação, desacomodação. Desnaturalização, afrouxamento radical das certezas, abertura à criação. A EPS abre espaço às criações, invenções. Rompe barreiras, faz sair do lugar, proporciona olhar por outras perspectivas.
A porosidade é a peneira, podemos escorrer por ela, vazar para fora ou parar em sua tela, ficar para dentro. Merhy coloca que no campo das tecnologias leves do cuidado27, as relacionais, devemos compreender que ser poroso à realidade é reconhecer que todos somos afetados por diversos conceitos e disputas (informação verbal), e que para produzir cuidado é preciso falar disso, estar na vida das pessoas, sair da aposta de governar a vida do outro a partir das nossas prescrições. É poder correr nos entres da vida, é estarmos abertos às novas possibilidades de cuidar do outro que não seja pela nossa própria perspectiva, nossas vivências e valores, e sim pelo diálogo com a vivência do outro, de quem nos dispomos a cuidar e/ou com quem trabalhamos. É reconhecer também as diferenças constitutivas de cada trabalhador, das vidas em cada um e como todas as realidades vividas impactam a forma com que estabelecemos relações entre pares e com os usuários.
Dizibilidade e contato com o incômodo
A dizibilidade28 é falar, ver, sentir, colocar em cena. Dar visibilidade por meio da fala ao que está invisível/encoberto. Feuerwerker explica que é expor o subentendido, é interrogar/desdizer o que está naturalizado ou rotineiro, mesmo sem estar escrito, explicitado (informação verbal). Caberia perguntar-nos se já refletimos sobre nosso trabalho, já falamos sobre ele, já o questionamos, sem ficarmos aprisionados na queixa, pois é aí que vem o incômodo, que é aquela pedrinha no sapato que nos machuca ao pisar, ou seja, que nos cutuca quando colocamos peso/força/energia em cima dela e então pensamos: “preciso tirar essa pedra do meu sapato”.
Este é o incômodo da EPS, àquele que leva à ação, que move a algo. Pois não basta ficar no pensamento e reflexão, tem que ter energia, prática, cuidado, transformação. Quantas vezes organizamos um processo inteiro de trabalho para favorecer os confortos individuais, mas com menor compromisso com o usuário? Quantas vezes podemos comemorar que os serviços em que atuamos são de fato voltados à nossa equipe, ao nosso território e, principalmente, aos nossos usuários?
Trabalho organizado de reflexão e produção de alternativas
Feuerwerker diz: “reconhecer que a unidade de saúde é uma torre de babel”, porque é habitada por todas as multiplicidades, e porque todos partem de determinados conhecimentos e apostas que não foram conversados e compartilhados (informação verbal). Um processo educativo em ato reconhece que há diversas disputas, por isso insiste para que espaços dialógicos possam coexistir com uma rotina conturbada para que se organize o desorganizado e se o reorganize, quantas vezes forem necessárias, produzindo-se alternativas para além das já dispostas. É usar o espaço para produzir saídas e, por mais que pareça uma bagunça, por exemplo uma roda com 30 pessoas e várias pessoas falando ao mesmo tempo, o resultado final pode ser a construção conjunta de algum processo de trabalho, e o próprio processo é um método que contempla essa aparente desordem. A EPS favorece a instituição de coletivos minimamente organizados de produção, e tempo e lugar protegidos favorecem a emergência de enunciados novos, o planejamento participativo29 em ato, novas dizibilidades.
Envolvimento do usuário e seu coletivo
Se o usuário é o foco do trabalho em saúde, devemos reconhecer os seus saberes, redes de conexão e sua autonomia. Nós, trabalhadores, estamos disponíveis para apoiá-lo a produzir saúde e não para condicioná-lo à nossa vontade, como se não tivesse desejos, valores, crenças, rotina própria etc. Por isso, a EPS envolve o compartilhamento do cuidado entre trabalhadores e entre trabalhadores e usuários, produzindo novas possibilidades de relações, de agenciamentos, desenvolvendo protagonismo e autonomia de vida individual e coletiva.
Essa característica, portanto, aparece como central à EPS: o usuário, como maior interessado, não pode ficar de fora dos processos de EPS, ao contrário, é o protagonista e principal beneficiário dos mesmos. Para Merhy, assumir o usuário como co-criador produz significados novos, novos conceitos e práticas de cuidado, de formação e de gestão; promove a confiança dos usuários nos serviços, assim como a melhoria da qualidade do cuidado profissional e institucional (informação verbal).
Quem somos ou o quão prepotentes somos para pretender determinar o caminho dos usuários que atendemos? Como dizer ao outro o que fazer da sua vida, sem estabelecer com ele processos de conhecimento, processos de vida, sem conhecer sua rotina, sua cultura, seu meio? É preciso vínculo, diálogo, reconhecimento da potência de vida que está em cada um.
Considerações finais
A sistematização e problematização das características e princípios da EPS evidenciam que a EPS emerge como uma aposta para fomentar que o trabalho em saúde ultrapasse a noção de prescrição de condutas e desenvolvimento vertical de protocolos. Emerge como uma aposta de colocar o trabalho em saúde a favor da produção de potências de viver, escapando das lógicas de subordinação e assujeitamento. É preciso ter olhares, jeitos, modos de cuidar que atendam às necessidades sociais em saúde e favoreçam um sistema de saúde em redes de acolhimento e atendimento.
Além disso, a EPS é espaço para diálogo entre trabalhadores, entre trabalhadores e gestores, entre trabalhadores, gestores e docentes, entre todos esses e os usuários das ações e serviços de saúde. É uma aposta de que no cotidiano do trabalho se construam de maneira compartilhada projetos de produção de vida, inclusive como compreensão do cuidado. Com esse exercício é possível reconhecer um jeito de formar e qualificar em saúde que ultrapassa a sala de aula, que não estabelece fronteira de afastamento entre ensino e serviço, e que coloca o cotidiano como processo vivo, criativo, inventivo e formador.
Assim, este artigo carrega o desejo de operar como um dispositivo para pensamentos e práticas que enriqueçam o viver. É esperado que seja útil para trabalhadores, gestores e usuários(as) que tenham como intencionalidade a transformação das práticas, ou para docentes e instituições de ensino que tenham como intencionalidade a transformação da educação e uma produção subjetiva do cuidado.
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