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Artigos

0236/2025 - REPERCUSSÕES PSICOSSOCIAIS E FATORES RELACIONADOS À VIVÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR: UMA ANÁLISE MULTINÍVEL
PSYCHOSOCIAL REPERCUSSIONS AND FACTORS RELATED TO THE EXPERIENCE OF INTRAFAMILIAL DOMESTIC VIOLENCE: A MULTILEVEL ANALYSIS

Autor:

• Kétilly Dayane Faria Gomes - Gomes, KDF - <ketillygomes@outlook.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8907-9266,

Coautor(es):

• Sônia Maria Oliveira de Andrade - ANDRADE, SMO - <soniaufms@gmaill.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9897-6081

• Elenir Rose Jardim Cury - Cury, ERJ - <elenir.cury@ufms.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2711-0667

• Melina Raquel Theobald - Theobald, MR - <melinatheobald@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1683-3280

• Alessandro Diogo De-Carli - De-Carli, AD - <alessandrodecarli@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4560-4524



Resumo:

O objetivo foi identificar repercussões psicossociais e fatores relacionados à vivência de violência doméstica intrafamiliar. Estudo quantitativo, analítico, realizado com estudantes de escolas públicas da zona urbana de Campo Grande - Mato Grosso do Sul. A amostra foi calculada considerando-se 95% de intervalo de confiança, em uma população de 43.796 estudantes, correspondendo a 381 estudantes. Como foi definido o uso da amostragem por conglomerados, havendo efeito de desenho, este quantitativo duplicado (n=762). Coletou-se dados referentes a variáveis individuais dos estudantes e de seus responsáveis; os estudantes responderam ao Inventário de Frases no Diagnóstico de Violência Doméstica (IFVD). Como variável contextual, utilizou-se o Índice de Exclusão Social. Os dados foram submetidos à análise estatística multinível, usando os programas R e SAS. Cerca de um terço dos participantes vivenciaram a violência doméstica intrafamiliar, apresentando repercussões psicossociais relevantes. Houve relação desta vivência com fatores individual e contextual. Concluiu-se que a vivência de violência doméstica intrafamiliar: implicou repercussões psicossociais nas subescalas emocional e comportamental do IFVD e foi relacionada às maiores faixas etárias dos estudantes e à média e alta exclusões sociais.

Palavras-chave:

criança; adolescente; violência doméstica; impacto psicossocial

Abstract:

The aim was to identify psychosocial repercussions and factors related to the experience of intrafamilial domestic violence. This was a quantitative, analytical study conducted with students from public schools in the urban area of Campo Grande, Mato Grosso do Sul. The sample was calculated considering a 95% confidence interval, in a population of 43,796 students, resulting in 381 students. As cluster sampling was used, accounting for design effect, the sample size was doubled (n=762). Data was collected on individual variables of the students and their guardians; students responded to the Inventory of Phrases for Diagnosing Domestic Violence (IFVD). The Social Exclusion Index was used as a contextual variable. The data were subjected to multilevel statistical analysis using the R and SAS programs. About one-third of the participants experienced intrafamilial domestic violence, presenting significant psychosocial repercussions. This experience was related to both individual and contextual factors. It was concluded that the experience of intrafamilial domestic violence resulted in psychosocial repercussions on the emotional and behavioral subscales of the IFVD and was associated with older age groups of students and medium to high levels of social exclusion.

Keywords:

child; adolescent; domestic violence; psychosocial impact

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
A violência contra crianças e adolescentes constitui-se em grave problema de saúde pública mundial1 sendo a violência doméstica intrafamiliar o tipo mais prevalente nesta população2, especialmente na América Latina3. Sabe-se que, no contexto brasileiro, cerca de 80% dos casos notificados de violência contra crianças e adolescentes são oriundos do ambiente doméstico, tendo como agentes violentadores pais/responsáveis.4
Configurando-se como relação social, a violência é indissociável da forma como as pessoas produzem e reproduzem suas condições sociais de vida, expressando padrões de estilos de vida e os mais recentes padrões de comportamento que são efetivos em momentos específicos da história da sociedade5. Nessa perspectiva, sustenta-se que a violência doméstica intrafamiliar é um fator de grande risco para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, produzindo efeitos na construção de sua identidade, como distúrbios de personalidade, problemas de adaptação social e impacto negativo no processo de aprendizagem6.
Portanto, há suporte teórico para considerar que, em crianças e adolescentes, visto que ainda estão em desenvolvimento, a vivência de violência doméstica intrafamiliar, seja esta qual for, pode implicar desvios de entendimento próprio sobre comportamentos violentos, passando a considera-los aceitos socialmente7. Assim, estes poderão ser replicados ao longo da vida, como forma de resolução de conflitos8 ao passo que podem também aumentar as chances de vitimizações futuras9.
A vivência de violência doméstica intrafamiliar pode compreender tanto o sofrimento da violência em si (ser a vítima do ato violento), quanto o fato de presenciar episódios de violência. Nesse sentido, justifica-se este estudo pelo fato de que a vivência da violência doméstica intrafamiliar configura-se como um agente comprometedor do desenvolvimento físico, cognitivo, social, psicológico e escolar, evidenciando-se que a contribuição sobre o diagnóstico situacional do tema pode ser o principal meio para a proposição de estratégias de intervenções, prevenção e promoção de combate à violência doméstica10, especialmente quando se trata do envolvimento de crianças e adolescentes.
O objetivo desse estudo foi identificar repercussões psicossociais da vivência de violência doméstica intrafamiliar em crianças e adolescentes escolares e verificar se houve fatores individuais e contextuais relacionados.

MÉTODO

Trata-se de estudo quantitativo, transversal, com base em dados primários, realizado em escolas públicas urbanas do município de Campo Grande (MS), no período de junho a novembro de 2023.
Foram incluídas 762 crianças e adolescentes escolares de ambos os sexos, de um total de 43.796 estudantes matriculados nas 90 escolas urbanas da rede municipal. Foram excluídos aqueles que, mesmo que o responsável tenha consentido com sua participação, não assentiram por escrito.
Para a definição da amostra estratificada por distrito e por ano em que o aluno estava matriculado (5º ao 9º), foi realizado o cálculo considerando 95% de intervalo de confiança e 0,5 de margem de erro, em uma população de 43.796 estudantes, ficando a amostra composta por 381 estudantes. Como foi definido o uso da amostragem por conglomerados, havendo efeito de desenho, este quantitativo foi multiplicado por 2, estabelecendo-se a amostra final em 762 estudantes (n=762). O processo de seleção dos participantes ocorreu em duas etapas, compreendendo o sorteio de uma escola de cada um dos sete distritos sanitários, seguido do sorteio de duas turmas para cada ano (10 turmas).
Para a coleta de dados, foi utilizado o instrumento Inventário de Frases no Diagnóstico de Violência Doméstica – IFVD6, composto por 56 frases de expressões verbais mais utilizadas pelas crianças e adolescentes que vivenciam ou são vítimas de algum tipo de violência, e que podem denotar transtornos emocionais, físicos, comportamentais, cognitivos e sociais. O instrumento responde ao que as crianças e os adolescentes percebem de sua realidade, contemplando situações domésticas que sugerem a experiência de vitimização.
No IFVD, cada resposta do participante equivale a um (1) ponto, seja ela sim ou não, indicando o transtorno a que se refere. Para declarar que uma criança ou adolescente teve vivência ou experiência de violência doméstica, a pontuação total do IFVD deve ser de 22 pontos ou mais6.
Todas as variáveis do estudo estão apresentadas no Quadro 1. As variáveis sociodemográficas dos responsáveis e dos estudantes foram coletadas em formulário específico disponibilizado após a assinatura do TCLE e do TALE, respectivamente. As variáveis referentes aos estudantes foram: sexo, idade, com quem moravam, série e turno; em relação aos responsáveis, compuseram o quadro de variáveis: idade, sexo, escolaridade, cor/raça autodeclarada, situação de emprego e estado civil.
Como variável contextual, para a análise da vulnerabilidade social dos participantes, foi utilizado o Índice de Exclusão Social (IES) dos distritos sanitários. Este varia de 0 - menor exclusão social a 1 - maior exclusão social11.
INSERIR QUADRO 1

Os dados foram analisados usando os programas R e SAS, com nível de significância de 5%. Realizou-se análises descritivas de todas as variáveis. Foram calculadas as frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas e as médias, desvios padrão, medianas, valor mínimo e máximo para as demais variáveis. Para as análises de associação, utilizou-se modelos de regressão logística múltipla multinível. Primeiramente, foram ajustados modelos de regressão logística simples associando cada variável individualmente com o desfecho experiências de violência doméstica vivenciadas por escolares.
Após, foram ajustados quatro modelos. O primeiro consiste de um modelo vazio (apenas com o intercepto); subsequentemente, ajustou-se um modelo em que foram testadas as variáveis individuais dos escolares que tiveram p<0,20 nas análises individuais, permanecendo no modelo 1 apenas a variável dos escolares que manteve p?0,05 na análise múltipla. A seguir, foi ajustado o modelo 2, incluindo as variáveis individuais dos responsáveis que tiveram p<0,20 nas análises individuais, também permanecendo no modelo 2 apenas as variáveis que mantiveram o p?0,05 após a inclusão das outras variáveis. Por fim, incluiu-se no modelo múltiplo a variável contextual do município (IES).
Assim, foram mantidas no modelo final apenas as variáveis que tiveram p?0,05 no modelo múltiplo multinível. Em todos os modelos múltiplos foram considerados os escolares aninhados nos distritos, já que foram avaliados mais de um escolar por distrito. A partir dos modelos, foram estimados os odds ratio brutos e ajustados, com os respectivos intervalos de 95% de confiança. A partir do modelo nulo foi calculada a correlação intraclasse que estima a porcentagem da variação total que é devida a variação entre distritos. O ajuste dos modelos foi avaliado pelo QIC (critério de quasi-verossimilhança).
Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CAAE 55435422.6.0000.0021, parecer nº 5.322.096).

RESULTADOS

As variáveis sociodemográficas referentes a sexo, idade e grupo doméstico com quem vive, estão expressas na Tabela 1.
INSERIR TABELA 1

Observa-se, na Tabela 1, que a amostra de escolares (n=762), foi formada por 52,9% do sexo feminino e 47,1% do sexo masculino, com idade média de 12,6 anos variando de 9 a 17 anos e o escore total médio foi de 17,65, variando de 1 a 36.

Na Tabela 2 são apresentadas as análises brutas (individuais) para o desfecho experiências vivenciadas de violência doméstica pelos participantes.

INSERIR TABELA 2

Observou-se que os participantes entre 16 e 17 anos tiveram 12 vezes maior chance de terem vivenciado a violência doméstica do que os escolares com idade entre 9 e 12 anos (OR=12,08; IC95%: 5,11-28,56), p<0,05. Participantes cujos responsáveis se autodeclaram com cor de pele amarela têm duas vezes maior chance de vivenciarem violência doméstica do que os que se autodeclaram de cor branca (OR=2,28; IC95%: 1,79-2,90), p<0,05.
Os participantes de distritos com média (OR=2,68; IC95%: 1,94-3,71) e alta (OR=1,42; IC95%: 1,03-1,95) vulnerabilidade social tiveram maiores chances de vivenciarem ar violência doméstica do que aqueles de distritos com baixa vulnerabilidade (p<0,05).

Na Tabela 2, do total da amostra, 35,3% tiveram escore do IFVD de pelo menos 22, caracterizando casos de vivência de violência doméstica. Quando as variáveis foram analisadas individualmente, nota-se que a idade, a série, a cor de pele autodeclarada pelos responsáveis, o estado civil dos responsáveis e a vulnerabilidade social apresentaram associação significativa com a vivência de violência doméstica (p<0,05).
Considerando-se a Tabela 3 e a Figura 1, em que são demonstrados os resultados da análise de regressão múltipla multinível, observa-se que a faixa de idade, a cor da pele autodeclarada pelo responsável e a vulnerabilidade social (p<0,05), permaneceram significativos no modelo final.
INSERIR TABELA 3 E FIGURA 1

DISCUSSÃO
Os resultados desse estudo demonstram que a vivência da violência doméstica intrafamiliar é uma realidade presente entre os escolares, considerando-se que mais de um terço destes já vivenciou algum tipo de violência em suas casas. Assim, entende-se que este ainda é um problema de saúde pública que implica consequências para comunidades e famílias, que sofrem com prejuízos sociais e econômicos1.
Os escores médios obtidos no IFVD indicaram que os participantes relataram experiências de violência em todas as subescalas, especialmente nas subescalas emocional e comportamental. Estes resultados corroboram com estudos anteriores que demonstraram a associação entre a violência doméstica e o impacto negativo no bem-estar psicológico das crianças e adolescentes 13, 14. Isto se torna relevante pois, tendo em vista a especificidade da população estudada e o instrumento de coleta de dados utilizado, emergem parâmetros importantes sobre a potencialidade que a vivência desse tipo de violência tem para a promoção de transtornos cognitivos, emocionais, sociais, comportamentais e físicos11. Nesse sentido, desvelam-se caminhos interpretativos que sinalizam para os efeitos desta vivência, os quais contemplam agravos que não se restringem ao desempenho em ambiente escolar, mas que podem permear a vida em sentido amplo.
Quanto aos fatores relacionados à experiência de violência doméstica intrafamiliar verificou-se que a idade e a cor da pele autorreferida dos participantes (ambos fatores individuais) e o IES dos distritos sanitários (fator contextual) mostraram-se significativas estatisticamente.
Dessa forma, com o avançar das faixas etárias, as chances de vivência de violência doméstica intrafamiliar foram maiores (OR: 1,65 e OR: 12,08, para as faixas etárias de 13 a 15 e 16-17 anos), tendo como referência a faixa etária de 9-12 anos. Este achado sugere que a adolescência é um período de maior vulnerabilidade a esse tipo de vivência, o que destaca a necessidade de compreender as particularidades do grupo de adolescentes e as circunstâncias que podem contribuir para a maior vivência de eventos violentos. Tais particularidades podem estar relacionadas ao próprio processo de desenvolvimento e à busca de autonomia, posto que a adolescência é uma fase de transição e transformação, em que os jovens estão lidando com mudanças físicas, emocionais e sociais, o que pode gerar instabilidades emocionais e levar a confrontos. Além disso, os adolescentes são influenciados pelo grupo de pares e pela mídia, podendo expô-los a contextos de risco, aumentando a vulnerabilidade à violência doméstica15, especialmente no contexto intrafamiliar.
Os resultados sinalizam para a relação entre a exclusão social e a vivência de violência doméstica intrafamiliar, havendo maiores chances de sua ocorrência entre os estudantes que residem em distritos sanitários com médio e alto IES em comparação aos escolares de distritos sanitários com baixo IES. Pode-se observar, dessa forma, que a violência doméstica afeta de forma desigual crianças e adolescentes de diferentes contextos. Isto corrobora com a ampla literatura já desenvolvida sobre esta temática, porém, considerando-se o estudo das iniquidades em saúde, impõe a necessidade de abordar a violência doméstica de forma integral e interseccional, considerando não apenas a vulnerabilidade social, mas também fatores como a cor da pele autodeclarada e gênero 16.
Os participantes cujos responsáveis se autodeclararam com cor de pele amarela apresentaram duas vezes maiores chances de vivenciarem violência doméstica intrafamiliar em comparação com aqueles que se autodeclaram de cor branca. Essa associação entre cor de pele e violência doméstica chama a atenção para a existência de desigualdades nesse contexto, ressaltando a necessidade de abordagens sensíveis às questões raciais ao se discutir e enfrentar a violência doméstica. Portanto, este resultado deve ser interpretado com parcimônia, tendo em vista que, considerando-se o total da amostra (n=762), somente 22 responsáveis (2,9%), se autodeclaram amarelos. Assim, este achado, embora significativo estatisticamente ao modelo final, pode ser devido ao número pouco expressivo desses participantes, considerando-se a amostra como um todo.
No entanto, é fundamental considerar que a distribuição da violência doméstica por raça/cor da pele apresenta um comportamento padrão, em que a maioria das pessoas ignora a raça e a cor17. Isso indica a necessidade de ampliar a discussão sobre o papel desses fatores sociodemográficos na ocorrência da violência doméstica, bem como a importância de desenvolver estratégias de enfrentamento que levem em consideração a diversidade racial.
Apesar disso, compreender as características dos responsáveis pelos escolares participantes da pesquisa e como elas podem influenciar na dinâmica familiar e na violência doméstica se mostra relevante, visto que crianças que vivem em lares com situações de violência doméstica sofrem muitas sequelas, pois costumam ser negligenciadas. Nestes casos, problemas de comportamento e traumas emocionais podem ser detectados, tornando a criança ou adolescente mais propensos a apresentar distúrbios de saúde mental na idade adulta18.
Além disso, sabe-se que a violência doméstica pode também afetar o desempenho escolar, uma vez que a criança ou o adolescente pode apresentar dificuldades de concentração e aprendizagem, com queda no desempenho acadêmico e, ainda, comportamentos disruptivos como agressividade, rebeldia, provocação de colegas ou professores, entre outros19. Desse modo, é importante que a comunidade escolar esteja atenta a sinais como mudanças repentinas no comportamento ou no desempenho acadêmico do adolescente, queda significativa nas notas, aumento de faltas ou desinteresse nas atividades escolares, comportamentos agressivos, isolamento social ou dificuldade de relacionamento com colegas e professores, além de sinais de estresse, ansiedade ou tristeza persistentes.
Sendo a maioria dos participantes do sexo feminino, pode-se pensar que embora a violência intrafamiliar não seja vivenciada apenas pelas meninas, a capacidade de defesa dos meninos, baseada em sua maior força física, pode explicar também o menor número de vivência de violência doméstica pelo sexo masculino20. Além disso, conforme o sexo, cabe salientar que a vivência dessa violência também pode contemplar modos subjetivos e diferenciados de enfrentamento psíquico-comportamental-social frente à exposição/vitimização de adolescentes.
Esses resultados ressaltam a necessidade de intervenções voltadas para a prevenção e enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar em crianças e adolescentes. A identificação destas experiências, especialmente nas subescalas emocional e comportamental, destaca a importância de estratégias de intervenção direcionadas para o suporte emocional, o fortalecimento de habilidades sociais e o desenvolvimento de mecanismos de resiliência nessas populações21. Considerando a complexidade e o impacto da violência doméstica na vida das crianças e adolescentes, é fundamental que profissionais de saúde, educação e assistência social estejam capacitados para identificar, acolher e encaminhar adequadamente tais casos. Assim, ratifica-se a necessidade de identificação dos sinais de violência sofrida pela criança. Os sinais mais comuns de que uma criança vítima de violência pode apresentar, além daquelas causadas por violência física, associadas a distúrbios emocionais, ansiedade, distúrbios neurológicos, depressão, dificuldades acadêmicas, maior probabilidade de violência reincidente sofrida em outros contextos sociais22.
Dessa forma, é possível fortalecer a abordagem multidisciplinar, interprofissional e intersetorial da violência doméstica intrafamiliar no contexto educacional, contribuindo para a construção de um ambiente escolar seguro e promovendo o bem-estar e o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.
Os dados aqui apresentados sinalizam para o fato de que a violência doméstica não apresenta consequências físicas e emocionais restritas a uma pessoa; pelo contrário, é uma questão de saúde pública, afetando comunidades inteiras e famílias, que sofrem com prejuízos sociais e econômicos1. Portanto, é um problema social, que afeta o trabalho, a educação, a saúde, a segurança, a economia e a sociedade de modo geral23.
Nesse sentido, faz-se necessário analisar o papel das escolas na identificação precoce dos casos de violência doméstica intrafamiliar, visto que este é um espaço privilegiado de convivência e formação das crianças e dos adolescentes, promovendo, dessa forma um ambiente seguro e acolhedor para as vítimas. Além disso, seria relevante explorar a necessidade de programas de capacitação para professores e demais profissionais da educação, para que possam lidar adequadamente com situações de violência e oferecer apoio às crianças e adolescentes envolvidos24.
Isto ganha relevância na medida em que se considera a escola como um cenário propício para a prevenção da violência doméstica, a promoção da educação para a igualdade de gênero, estimulando o respeito mútuo, a valorização das diferenças e o combate aos estereótipos de gênero que perpetuam a desigualdade e a violência; o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, especialmente para a construção de relacionamentos saudáveis; campanhas de sensibilização e conscientização sobre a violência doméstica, envolvendo toda a comunidade escolar e auxiliar na disseminação de informações sobre o tema, combater o silêncio e promover a busca por ajuda. A escola pode estabelecer parcerias com instituições e serviços especializados no atendimento a vítimas de violência doméstica, como centros de referência, serviços de assistência social e de saúde. Essas parcerias permitem uma resposta mais efetiva diante de situações de violência, oferecendo suporte e encaminhamento adequado25, 26.
No entanto, é importante ressaltar que a escola não deve substituir os órgãos competentes na abordagem e acompanhamento de casos de violência doméstica, mas sim atuar como um agente de prevenção, sensibilização e apoio. O trabalho em conjunto com a família, a comunidade e os serviços especializados é fundamental para um enfrentamento efetivo da violência doméstica e para a promoção de uma cultura de paz e respeito25,26.
Assim, é preciso direcionar esforços para a prevenção e intervenção nos casos de violência doméstica intrafamiliar nestes grupos em específico, considerando os fatores relacionados aqui apresentados. Além disso, visando oferecer suporte adequado às vítimas e suas famílias, também é importante explorar estratégias de conscientização e educação sobre a temática, tanto para os adolescentes quanto para suas famílias e a comunidade em geral, bem como fortalecer os serviços de proteção e assistência, como os centros de referência e os programas de apoio psicossocial15.
Discutir e pesquisar a violência doméstica intrafamiliar no contexto educacional pode contribuir para a identificação de casos e para a proposição de intervenções pedagógicas e de socialização. Além disso, há possibilidade de se embasar estratégias de intervenção, prevenção e combate à violência doméstica no Programa Municipal de Ensino Fundamental, para promover um ambiente seguro e acolhedor para os estudantes.
Esse estudo possui limitações e potencialidades. Quanto à amostra, esta foi composta somente por participantes que frequentam escolas públicas e até o 9º ano. O problema de pesquisa certamente tem relevância em outros contextos escolares e outras faixas etárias. Além disso, a maior amplitude do intervalo de confiança para os participantes entre 16 e 17 anos (Figura 1), demonstra que o objeto de estudo necessita ser melhor explorado considerando essa faixa etária específica. Por outro lado, evidencia-se a potência da análise estatística utilizada, que demonstra robustez para o entendimento da distribuição do desfecho em relação às variáveis pesquisadas.
Há que se considerar que a vivência de violência doméstica intrafamiliar ocupa uma posição limítrofe entre questões objetivas e subjetivas que podem ser manifestadas ou não por quem a vivencia. Nessa perspectiva, estudos futuros devem avançar na construção do conhecimento sobre esta temática, impondo-se a necessidade de realização de estudos de metodologia mista que contemplem, para além da análise quantitativa, a compreensão do processo envolvido no entendimento da vivência da violência doméstica intrafamiliar por estudantes, seu enfrentamento e sequelas/desdobramentos. Para tanto, são necessárias abordagens qualitativas e por triangulação de métodos, para que essa problemática seja melhor investigada, com a profundidade e adensamento teórico-metodológico que demanda.
Concluiu-se que, entre os participantes do estudo, as repercussões psicossociais mais prevalentes, oriundas da vivência de violência doméstica intrafamiliar foram relativas à subescala emocional e comportamental, e relacionadas às maiores faixas etárias dos estudantes (fator individual) e à média e alta exclusão social (fator contextual).

REFERÊNCIAS

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Citar

Gomes, KDF, ANDRADE, SMO, Cury, ERJ, Theobald, MR, De-Carli, AD. REPERCUSSÕES PSICOSSOCIAIS E FATORES RELACIONADOS À VIVÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR: UMA ANÁLISE MULTINÍVEL. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jul). [Citado em 10/08/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/repercussoes-psicossociais-e-fatores-relacionados-a-vivencia-da-violencia-domestica-intrafamiliar-uma-analise-multinivel/19712?id=19712

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