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Artigos

0207/2025 - A BISSEXUALIDADE E A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES ÍNTIMAS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: SOB O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE
BISEXUAL AND VIOLENCE IN INTIMATE RELATIONSHIPS DURING THE COVID-19 PANDEMIC: IN THE LIGHT OF THE PARADIGM OF COMPLEXITY

Autor:

• Ana Beatriz Campeiz - Campeiz, AB - <biacampeiz@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6964-8751

Coautor(es):

• Diene Monique Carlos - Carlos, DM - <diene.carlos@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4950-7350

• Maria das Graças Carvalho Ferriani - Ferriani, MGC - <gracacarvalho@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7103-4895



Resumo:

Objetivo: Compreender a violência na intimidade vivida por bissexuais adolescentes e jovens, de ambos os sexos, durante o isolamento social estabelecido na pandemia da Covid -19. Método: Abordagem qualitativa e teve como participantes 27 adolescentes e jovens, de ambos os sexos, que se autodeclaram bissexuais, residentes no estado de São Paulo. Os dados foram coletados através de formulário online pelo google docs, entrevista semiestruturada e diário de campo, e analisados à luz do referido Paradigma. Resultados: A pandemia foi usada como justificativa e amplificou os impactos de comportamentos violentos; a bissexualidade como fator motivador para a violência e usada como justificativa para as agressões; violência sexual como forma de punição e controle da sexualidade dos bissexuais; os discursos que exercem poder sobre as vivências relacionais das pessoas bissexuais. Conclusão: A população bissexual é invisibilizada e traz necessidades singulares. O fenômeno apresenta violência social de gênero e orientação sexual como fator de risco. Ressalta-se a escassa produção acadêmica sobre os bissexuais, com destaque para o fenômeno e a população masculina. O Paradigma da Complexidade contribuiu para um olhar integral sobre a temática, de modo articulado e contextualizado.

Palavras-chave:

Violência entre pares. Juventude. Bissexualidade. Pandemia. Complexidade.

Abstract:

Objective: This paper aims at analyzing violence in intimate relationships experienced by bisexual individuals during the Covid-19 pandemic, from perspective of the Paradigm of Complexity. Method: A qualitative approach of the strategic social research type and its participants were 27 adolescents and young individuals of both genders, who self-declared as bisexuals and lived in the state of São Paulo. The data were collected by means of a Google Docs online form, semi-structured interviews and a field diary, and they were analyzed in the light of the aforementioned Paradigm. Result: the pandemic was used as a justification for the violent behaviors; bisexuality as a motivating factor for violence and used as a justification for aggression; sexual violence as a form of punishment and control of bisexuals' sexuality; the discourses that exert power over the relational experiences of bisexual people. Conclusion: the bisexual population is invisible and has unique needs. The phenomenon presents social violence based on gender and sexual orientation as a risk factor. It is worth highlighting the scarce academic production on bisexuals, with emphasis on the phenomenon and the male population.
The Paradigm of Complexity contributed a comprehensive perspective on the theme, in an articulated and contextualized way.

Keywords:

Peer violence. Youth. Bisexuality. Pandemic. Complexity.

Conteúdo:

Introdução
A violência entre parceiros íntimos (VPI) no namoro (dating violence) constitui um problema de saúde grave, devido ao seu impacto negativo sobre a saúde dos adolescentes e jovens, e um tema prioritário de atenção por ser precursor da violência futura e intrafamiliar1.
Compreende-se relação de intimidade como a partilha de elementos intrínsecos e pessoais, envolvendo e ocasionando sentimentos e afetos, referentes a si próprio e ao outro, e a probabilidade de prática sexual1-2. A experiência e o reconhecimento desse significado pelas pessoas envolvidas na díade relacional são fundamentais para a existência da intimidade3. As relações de intimidade atuais e consideradas neste estudo figuram-se por meio do “ficar”, ou seja, dos “ficantes” que se encontraram mais de duas vezes compartilhando intimidade, do namorar e da união estável ou casamento. Estas são formas de relacionamento caracterizadas por níveis hierárquicos crescentes de comprometimento e decrescentes de superficialidade e flexibilidade.
Alinhada às constatações de relações de intimidade, nota-se a presença da violência, que se configura em condutas e atos de agressão física e verbal, coerção sexual, abuso psicológico e emocional e comportamentos controladores dirigidos ao outro1. Na adolescência, há certa dificuldade em reconhecer e diferenciar ações violentas e expressões de amor, as quais se misturam em suas percepções1-2. Dessa forma, podem se firmar a permissão e o consentimento da violência como uma interpretação do amor ou como aceitação, em algumas situações e contextos, que acentuam o risco de envolvimento numa relação abusiva e a naturalização desta2.
A literatura científica sobre VPI discorre de forma predominante sobre população cisgênero e heterossexual. Todavia, há poucos estudos sobre a VPI entre não heteronormativos, e são mais escassos os estudos sobre a população bissexual. Os índices de VPI entre as populações de orientações sexuais divergentes são alarmantes e desproporcionalmente altas se comparados às relações heterossexuais4-6.
Estudos realizados com jovens e adultos homossexuais e bissexuais que exploraram a produção e a percepção da VPI constataram que, no que tange à faixa etária, quanto mais novos os participantes, maior a ocorrência de perpetração e vitimização da violência, com predominância para a violência sexual7,8. Já entre os adultos, destacava-se a violência física, como apertões, socos e tapas8.
Diante disso, a literatura aponta que a taxa de VPI mais alta se encontra entre os adolescentes e jovens de 15 a 24 anos, homossexuais e bissexuais5-6. Nessa faixa etária, entre as mulheres que vivenciaram VPI, o índice das mulheres bissexuais (56,9%) é superior ao das mulheres lésbicas (40,4%) e significativamente maior se comparado às mulheres heterossexuais (32,3%)5. Assim, a literatura aponta as mulheres bissexuais como mais propensas a vivenciarem VPI físicas e psicológicas6. Dessa forma, estudos apontam a bissexualidade como a orientação sexual mais vulnerável e de risco para a VPI4-6.
Entende-se que as definições não devem ser tratadas como práticas estanques. Mas, de modo geral, consideram-se como pessoas bissexuais aquelas que se encontram fora da binariedade hetero e homossexual, pois a pessoa sente atração afetiva e/ou sexual por homens e mulheres e por diferentes gêneros, incluindo não binários e agêneros9. Essa atração afetivo-sexual pode ser fluida ao longo da vida, podendo ter intensidade diferente na atração pelos diferentes sexos e gêneros. É fato que algumas pessoas passam por um período de experiências, mas, para outras, a bissexualidade é permanente.
Há uma ordem compulsória entre desejo, sexo e gênero que é conjecturada socialmente, mas rompida pela bissexualidade10. Os indivíduos se veem pressionados a se demarcarem em um só sexo, gênero e orientação afetivo-sexual, nos quais a transitoriedade e as mudanças não são aceitas10-11. Diante disso, a bissexualidade foge da hetero e mononormatividade, não exprimindo as normas de condutas enrijecidas de sexualidade, por ter desejos múltiplos e de variadas formas10-12. A bissexualidade se encontra na fronteira entre homossexualidade e heterossexualidade e expressa pontos fundamentais para os debates das práticas normativas e compulsórias, já que, por não se definir e categorizar com parceiros(as) de um só sexo, expõe um limiar perante as práticas discriminatórias advindas, tanto por heterossexuais quanto por homossexuais10-12.
Além das áreas econômica e epidemiológica, os impactos da pandemia do novo coronavírus, Sars-CoV-2, denominado Covid-19, no campo social, como pela VPI, também se destacaram. O isolamento e a restrição de contato social, uma das principais medidas para contenção à Covid-19, foram documentados pela literatura nacional e internacional como fator de maior risco à VPI6,12.
Os noticiários nacionais e internacionais evidenciaram o fenômeno da VPI durante a pandemia apenas por casais heterossexuais, e não há menções sobre parceiros não heteronormativos. A invisibilidade do fenômeno VPI vivida por bissexuais, em um momento tão marcante e delicado para a história global, traz à reflexão o quanto é necessário discutir a temática. Assim, objetiva-se compreender a violência na intimidade vivida por bissexuais adolescentes e jovens, de ambos os sexos, durante o isolamento social estabelecido na pandemia da Covid -19.
Diante da complexidade e das multifacetas do fenômeno da VPI vivido por bissexuais, o posicionamento epistemológico da presente pesquisa está fundamentado no Pensamento Complexo14. Entende-se, por complexidade – do latim complexus –, “tecido junto”15. Por meio do Pensamento Complexo, o fenômeno da VPI vivido por bissexuais pode ser visto de modo sistêmico e complexo, superando a causalidade linear dos fenômenos sociais emergentes e apreendendo a causalidade circular que envolve as dimensões individual, social, cultural, histórica, econômica e global do fenômeno “violência”14-16. Dessa forma, o Paradigma da Complexidade caminha rumo a críticas de uma lógica dominante, que é mutiladora dos fenômenos humanos; lógica que reproduz ideais, noções e imaginários sociais excludentes e preconceituosos em relação àqueles que fogem da heteronormatividade e da monossexualidade. Assim, com este referencial, contribui-se para a construção de um olhar original e sistêmico do fenômeno da VPI vivido por adolescentes e jovens bissexuais.
Entende-se que a falta de investigação sobre o tema torna escassas as possibilidades de compreensão. Assim, ao produzir conhecimento nessa direção, serão oferecidos subsídios para a atuação intersetorial (saúde e educação conjugadas, por exemplo) e preventiva sobre o problema estudado, considerando sua diversidade e suas especificidades.
PERCURSO METODOLÓGICO
Desenho do Estudo e População
A presente pesquisa foi delineada em uma abordagem qualitativa. Foram utilizados os limites cronológicos definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para definição da adolescência e juventude. Assim, a pesquisa teve participantes adolescentes e jovens bissexuais, com idades entre 18 e 24 anos, de ambos os sexos, que tiveram relações de intimidade durante o isolamento social estabelecido pela Covid-19. Os mesmos deveriam ser residentes do estado de São Paulo/Brasil.
Os critérios de inclusão adotados foram: (i) autodeclarar-se bissexual; (ii) ter idade entre 18 e 24 anos; (iii) ter vivenciado uma relação íntima durante o isolamento social pela COVID-19; e (iv) residir no estado de São Paulo/Brasil. Constituiu-se como critério de exclusão de participação a pessoa cujo seu/sua parceiro/a também se encaixasse nas características acima e já tivesse respondido o formulário, para que não ocorresse sobreposição de dados.
Coleta e análise de dados
A elaboração de pesquisas em ambiente virtual foi o principal meio para a coleta de dados durante a pandemia da Covid-19. O impacto das tecnologias nas práticas sociais e a simbiose existente entre o mundo online e off-line requer modalidades de investigações que compreenda as interações e performances nestes ambientes. Assim, o entendimento metodológico da pesquisa social no ambiente digital se fez presente17.
Desta forma, no percurso de obtenção dos dados foram utilizados questionário online por meio de um formulário em plataforma virtual gratuita (Google forms), complementado por entrevistas semiestruturadas e o diário de campo. O instrumento funcionou on-line, possibilitando a visualização dos dados coletados e acompanhamento dos mesmos pela pesquisadora. Sendo assim, o formulário eletrônico ficou disponível para preenchimento durante um ano, de junho de 2021 a junho de 2022, até a saturação dos dados.
Para captação dos participantes foi utilizado o método bola de neve virtual que funciona a partir do envio/apresentação do link de acesso a um formulário eletrônico, por meio de redes sociais virtuais para um indivíduo que faz parte da população-alvo, que envia o link para outras pessoas do mesmo grupo populacional, e assim sucessivamente, semelhante à formação de uma bola de neve18. Assim, foi compartilhado o convite e link do formulário online no perfil de Coletivos e ONGs LGBTIQIAPN+ e no perfil pessoal da pesquisadora em três mídias eletrônicas (whatsapp, facebook e instagram), em diferentes páginas e grupos destas redes sociais digitais. O estudo era apresentado da seguinte forma: “Você está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) intitulada ‘Violência na relação íntima: percepções da juventude auto declarada bissexual do estado de São Paulo’”. Também pedia que o participante compartilhasse a pesquisa com outras pessoas de suas redes sociais. Ao final do roteiro de perguntas, havia novamente uma solicitação para que o convite de participação na pesquisa fosse compartilhado com a rede de contatos da pessoa.
Nesse procedimento foram dispensadas assinaturas que pudessem identificar os participantes, mantendo sigilo e anonimato. Os participantes foram codificados pela identidade de gênero, idade e um código alfanumérico aleatório mediante a ordem de participação. O instrumento consistia de 16 questões fechadas e 12 abertas, compondo caracterização sociodemográfica, e questões referentes: (i) às formas de violência na relação íntima vivenciadas durante a pandemia; (ii) a como eles percebiam a violência entre verbal, emocional, psicológica, física, patrimonial; (iii) a seus sentimentos diante da situação; (iv) se contaram com a percepção de pessoas próximas; (v) às tomadas de decisões durante o isolamento; (vi) se procuraram ajuda de algum serviço de saúde ou algum profissional da saúde; (vii) aos principais desafios vivenciados na relação nesse período de pandemia, entre outros. A última pergunta em aberto e não obrigatória se referia a sugestões sobre a pesquisa e se gostariam de compartilhar algum contato para uma possível entrevista posteriormente, além de conter o contato de whatsapp e e-mail, para que os participantes tivessem a liberdade de entrar em contato com a pesquisadora para a entrevista ou por qualquer dúvida no momento que fosse seguro para eles.
Devido ao momento pandêmico, as entrevistas semiestruturadas ocorreram de modo online e presencial. Esta foi orientada por roteiro que abrangeu quatro questões abertas e norteadoras: (i) Pode existir violência em uma relação de intimidade? Como?; (ii) Você já vivenciou alguma situação de violência com algum/a parceiro/a?; (iii) O isolamento social teve algum impacto no seu relacionamento e no modo como o vivenciam?; (iv) Houve aumento da violência durante o isolamento social e em qual dimensão? Pode me contar uma situação que mais lhe marcou nesse sentido? As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra.
A pesquisa recebeu 30 respostas de formulário online, mas três não se enquadraram nos critérios de inclusão, dessa forma, o estudo contou com a participação de 27 adolescentes e jovens. As entrevistas semiestruturas foram realizadas no período entre outubro de 2021 até junho de 2022. Ao todo, 11 pessoas entraram em contato após realizarem pesquisa do formulário online, mas apenas oito pessoas agendaram a entrevista, as outras três alegaram não terem privacidade para realizar sozinhos. No final, apenas cinco participantes, dentre os 27, compareceram e realizaram a entrevista semiestruturada: três foram entrevistadas por vídeo, pelo google meet, e duas foram entrevistadas presencialmente no município de Ribeirão Preto, nos lugares e horários escolhidos pelos participantes.
Os registros no caderno de campo se deram no momento das entrevistas. Após analisar os dados das entrevistas semiestruturadas, a pesquisadora realizou o member-check, isto é, consultar novamente os participantes para confirmar se seus achados correspondiam ao que eles exprimiam. Para manter a identidade dos participantes do formulário sob sigilo, adotou-se o gênero do participante numerados de acordo com a sequência em que foram recebidas e sinalizando se o conteúdo do participante veio do formulário (F). Aos cinco que realizaram entrevistas escolhidos nomes fictícios. Ao final de cada transcrição foi inserido o gênero do companheiro dos participantes, para melhor compreensão do leitor.
A caracterização sociodemográfica foi realizada por meio de estatística descritiva. As respostas do formulário online a questões abertas e das entrevistas foram organizadas em uma tabela em planilha do software Microsoft Excel. Os dados foram analisados mediante o Paradigma da Complexidade, seguindo-se o roteiro com três fases12: (i) Classificação e organização das informações coletadas, demarcando os pontos relevantes; (ii) Organização de quadros referenciais e; (iii) Estabelecimento de relações entre os dados por meio da organização destes em categorias.
Aspectos Éticos
O presente trabalho seguiu as normas para pesquisas envolvendo seres humanos estabelecidas pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Este foi aprovado sob o protocolo de número: 4.155.501, em 15 de julho de 2021.
RESULTADOS
Caracterização dos Participantes
Os participantes constituíram-se em: mulheres cisgênero (63%), homens cisgênero (22%), pessoas não binárias (7,4%) e indivíduos que ainda não têm certeza de como se identificam (7,4%). Em relação à cor da pele, identificaram-se como: branca (55,5%), preta (18,5%), parda (14,8%), não sei como me identifico (7,4%) e amarela (3,7%).
A escolaridade dos participantes caracterizou-se como ensino: fundamental completo (3,7%); médio incompleto (7,4%); médio completo (22,2%); superior incompleto (55,5%), e; superior completo (11%). Os participantes declararam não ter renda pessoal (29,6%), possuir até 1 salário mínimo (44,4%) e até 4 salários mínimos (18,5%).
Ademais, declararam estar em um relacionamento íntimo durante a pandemia com uma parceria que se identificava como: homem cisgênero (51,8%), mulher cisgênero (37%), homem transgênero (7,4%) e pessoa não binária (3,7%). Apesar de 29,6% dos participantes declararem ser casados ou viverem em união estável, nos dados encontrados (formulários e entrevistas), o número de participantes em coabitação era de 40,7%, ao declararem passar mais dias da semana, ou quase todos os dias, em apenas uma residência, no contexto da pandemia.
Dentre os participantes, 7,4% declararam não ter conhecimento sobre relação abusiva ou formas de violência dentro de um relacionamento íntimo entre casais. No que concerne à uma percepção inicial, 44,4% dos adolescentes e jovens assinalaram, no início do formulário, que não achavam seus/as companheiros/as violentos/as, seja sútil ou fortemente. Entretanto, nas perguntas posteriores sobre experiências vividas com a parceria, os mesmos mencionaram situações violentas, sendo 70,3% considerados como vítimas.
Violência na Relação Íntima no Contexto Pandêmico
As narrativas apresentaram elementos do contexto pandêmico que repercutiram no vivido na relação íntima durante a pandemia. Os participantes relataram a ocorrência de violência pela primeira vez:
Participante 05FMulher – Aconteceu pela primeira vez violência sexual. Foi terrível, mas sutil, e eu precisei de semanas para perceber o quão errado e ruim aquilo foi e conseguir assimilar que alguém que eu amo fez isso comigo e quando estava mais frágil com minha mãe de Covid. (companheira mulher)
Denota-se a presença do tempo para a compreensão de que a situação vivida se caracterizava como uma violência e de que aquela pessoa, de quem se espera receber cuidado, foi quem a machucou. Os participantes externaram como a pandemia os deixou em estado emocional frágil, intensificado pela percepção e vivência da experiência de violência íntima pela primeira vez.
A percepção de que a pandemia intensificou a violência já sofrida anteriormente encontra-se de forma evidenciada nos relatos, sendo atribuída ao isolamento compulsório e às vulnerabilidades que se encontravam, como narrado pela participante 09:
Participante 09FMulher - Já sentia violência social ampla, restringia minhas atividades sociais, ameaçava chorar e se machucar se eu falasse algo que a desagradava [...]. Agora na pandemia ela tá mais calma, deve tá gostando já que eu não posso sair de casa para nada, e continua controlando tudo, só intensificou o que já era. (companheira mulher)
Percebe-se que o isolamento social, juntamente à tensão e ao medo gerados frente ao desconhecido, foi usado como instrumento de controle e forma de exercer poder sobre o outro. Revelou-se, também, uma simbiose da tensão, pelo medo do vírus da Covid-19, com as ações violentas:
Participante 3FMulher - Ela surta, porque está preocupada demais com os pais por causa do vírus, mas diz que age assim por eu ser bi. Ela disse que não sabe como se interessou por mim, já que não confia em mulher bi. Horrível ela descontar o stress dela em mim, também estou com medo do vírus se meus pais pegarem. (companheira mulher)
Violências por Estar/Ser Bissexual
Na maioria das narrativas, as experiências de violência eram associadas de forma direta ou indireta à orientação sexual bissexual dos participantes. Os resultados apresentaram como esta era vista pelos/as parceiros/as dos participantes e como refletia na dinâmica do relacionamento íntimo e nas experiências de violência:
Participante 18FMulher - Ele fica xingando mulheres que beijam outras mulheres e homens, mesmo sabendo que sou bi também, chama elas de puta, que não prestam, pervertidas, infiéis, tudo na minha frente, nem disfarça. (companheiro homem)
Participante 21FHomem - No isolamento fui percebendo que ele estava com vergonha de assumir namoro comigo e já desconfiava que era porque eu era bi, porque ele ficava agressivo quando eu falava de alguma mulher que já tinha ficado. (companheiro homem)
Participante 21FHomem - A gente encontrava sempre os mesmos amigos, ouvi os amigos dele gays dizendo que nem quer saber de homem bi, que é furada, enrustidos. Me senti um lixo e entendi que quando ele me xingava era por isso. (companheiro homem)
Em muitos relatos, a bissexualidade era tida como um elemento de risco, o que surgia de pretexto para que a violência ocorresse. Observa-se que a bissexualidade é tida pelos/as autores/as da violência como um fator que desqualificava os participantes enquanto parceiros para uma relação íntima desejada.
Verifica-se uma noção errônea e bifóbica, como se a pessoa que se interessa por mais de um gênero, implicitamente, exibisse uma quebra dos acordos firmados na relação e se tornasse compulsoriamente infiel e não confiável. Dessa forma, constatou-se a presença do mito e imaginário social da bissexualidade, vista como perversão, putaria, confusão, infidelidade, indecisão, não confiável, enrustida e demais adjetivos desqualificadores, além de ter sua existência colocada em dúvida e contestada. Assim, a bissexualidade é vista como fator motivador para a violência íntima e também é usada como justificativa para as ações violentas.
Participante 11FMulher – [...] Ele me chama de coisas horríveis e forçou coisa em mim no sexo dizendo que já que sou bissexual tenho que aceitar tudo. (companheiro homem)
Entrevista 01 Felipa - Algumas vezes usava o fato de eu ser bissexual como um parâmetro para que eu tivesse que gostar de usar strap-on (dildo) com muita frequência, mesmo quando eu não queria, pois isso faria se sentir bem e, 'se fosse um homem eu deixaria' (não, eu não deixaria). Quando eu reclamava sobre essa postura ser abusiva a resposta era que 'não existe abuso entre mulheres' isso frequentemente me deixava insegura, achando que minhas queixas eram frescura. [...] insistia que eu devia 'aguentar' o uso do pênis de borracha, que era grande, em todas as relações e eu cedia, porque queria que se sentisse bem, mas só queria que acabasse logo. [...]. (companheira mulher)
Percebe-se o mito e imaginário simbólico de que entre mulheres não há violência e de que, por ser bissexual, a mulher tem que gostar e aceitar o strap-on dildo (cinta com o pênis de borracha) nas relações sexuais, ou seja, sob alegações de que deveria aceitar tudo durante a pratica sexual devido à sua orientação sexual. Nesse contexto, os/as autores/as da violência acabam por aludir à dimensão sexual, tentando um efeito de apaziguamento, já que não conseguem ter poder sobre a dimensão afetivo-amorosa de suas parceiras.
Nesse cenário, participantes mulheres que estavam envolvidas com homens expressaram sentimentos e percepções de não serem tratadas da mesma forma que as mulheres heterossexuais e de serem tratadas com menos cuidado pelo fato de serem bissexuais, fruto de crenças heterossexistas, machistas e patriarcais. Ao procurar respostas para o ato e estratégias de resolução, a percepção em comum e a justificativa encontradas referem-se ao fato de serem mulheres que também gostam de outras mulheres, assim como gostam de homens, ou seja, por ser uma mulher bissexual, como explicitado nos discursos a seguir:
Entrevistada 3/Amanda - É muito estranho porque eu acho que ele não me vê como uma mulher, ele me trata diferente, mesmo eu sendo bastante afeminada, mas pelo fato de eu ser bissexual ele não me trata como mulher. Geralmente o namorado é cuidadoso com a namorada, mas ele não tem cuidado comigo, como se eu não precisasse de cuidado, como se não me visse como mulher por eu também já ter gostado de mulher. E eu fico muito mal, porque tenho intimidade com ele e ele me trata como amigo, brother. Quando conto, percebo que chega a ser bizarro, porque ele já me xingou e falou que não me via como uma mulher de verdade. Eu não quero sentir culpa por gostar de homem e de mulher, mas vejo que ele tenta me fazer sentir culpada assim. O pior do meu namoro para mim é ser xingada e não ser reconhecida como uma mulher e como alguém digna de respeito só por eu também sentir atração por mulheres. (companheiro homem)
Para além de um imaginário social que alimenta o desejo de viver um amor romantizado com um companheiro que a proteja, transmita segurança, defenda-a e seja cuidadoso, os discursos das participantes reivindicam que elas sejam tratadas com respeito e dignidade, como toda pessoa deve ser tratada. Ademais, nos relatos dos participantes, denotam-se críticas às reduções por sua sexualidade bissexual e às expectativas de que os participantes cumprissem a binariedade compulsória e a monossexualidade. Nesse sentido, a existência da bifobia reflete na dinâmica relacional:
Entrevistada 2/Marta - A maior questão do meu namoro é que eu e minha namorada fazemos parte de um grupo de mulheres, a grande maioria são lésbicas, mas tem algumas poucas Bi, como eu. Elas meio que diminuem muito a atração por homens, como se fosse uma coisa nojenta, que não entra aqui. Não só ouvi da minha namorada, mas mulheres que namoram outras bi e até já ouvi essas falas das próprias outras bi, que sentir atração por homem é nojento. E eu fico mal né, porque eu me sinto excluída, não sei ao certo meu sentimento, é ruim. Lá, existe uma exclusão da masculinidade como um todo, e eu que sempre questionei minha sexualidade e meu gênero, me sinto mal. Esse aspecto da bissexualidade é excluído sabe, como se você ficasse com homem fosse meio traidora ou o 'por que você está fazendo isso, sabe?', ‘tem que ser lésbica por questão política’ [...]. Faz uns meses e minha namorada me chamou de ex deposito de porra, aquilo foi uma faca no meu peito, chorei dois dias. No grupo ela fez uma fala que essas mulheres bi são antigo depósito de esperma e que tem que tomar cuidado para se envolver e não pegar doença. Depois dessa fala ficamos o dia todo sem conversar. [...] Ouvir esses discursos nesses últimos meses me fez muito mal. Eu só me sinto invisível e não aceita como eu sou. (companheira mulher)
Averígua-se que as participantes mulheres que se relacionavam com companheiras mulheres lésbicas viviam o menosprezo por terem se relacionado com homens, o estigma de serem vetores de ISTs entre homens e mulheres e a “pressão” em se posicionar politicamente como lésbica. Dessa forma, há os sentimentos de culpa por também terem se relacionado com homens e terem tido um relacionamento padrão, além das sensações de inadequação e de incompreensão de sua sexualidade, o que gera a aparência de não serem aceitas, sendo, portanto, invisíveis diante do sofrimento. A violência da bifobia e da invisibilidade sofrida pelos bissexuais atinge o estado emocional, gerando sentimentos de angústia, inadequação, sofrimento e não pertencimento. Dessarte, a bifobia impacta as experiências e os relacionamentos íntimos e fomenta ações violentas por parte dos/as companheiros/as dos/as participantes.
DISCUSSÃO
O paradigma da Complexidade apresenta que, por meio do princípio dialógico, constata-se lógicas antagônicas e complementares, simultaneamente, e que coexistem em todas as interações dos seres humanos em sociedade e na natureza16. Assim, no presente estudo, foram constatados o relacionamento íntimo e as codependências existentes entre afeto e coerção presentes nas relações dos adolescentes e jovens bissexuais.
Em várias exposições os sentimentos de amor e opressão/constrangimento se misturaram, aspectos estes que se completaram e foram opostos nas relações durante o período de pandemia da covid-19. Diante disso, este estudo mostrou que o estado de tensão interno vivido pelos adolescentes e jovens bissexuais, entre receber atos de amor e de coação pela sua bissexualidade, advindo de sua parceria, é um fator de risco para a VPI.
Durante o isolamento social compulsório, violências psicológicas, morais, verbais e emocionais, tenderam a ser mais elevadas, amenizadas, toleradas e apreendidas como naturais da relação13. Assim, no dia a dia, as mudanças diárias dos protocolos de proteção da pandemia ganharam maior significado do que as ações violentas na relação ou misturaram-se, como expressado pela participante 03Fmulher. Ademais, o isolamento social pode ser utilizado como desculpa ou justificativa tanto para a ação violenta quanto para protelar uma possível ruptura do relacionamento íntimo, por aumentar a dificuldade de tomar decisões neste contexto13.
Nos relatos do estudo, de modo preeminente, a orientação sexual bissexual era um fator determinante da interação do casal. Os/as autores/as usavam a violência psicológica e/ou sexual como meio de repreender a sexualidade bissexual dos participantes. Assim, este estudo corrobora pesquisas recentes que caracterizam a bifobia como um agravante para o envolvimento da população bissexual na VPI no período do isolamento compulsório6,19.
A bifobia desqualifica o outro em função da sua sexualidade e/ou identidade de gênero, sendo uma violência simbólica, com estereótipos, insultos e julgamentos morais6-9. O estigma e a marginalização que a pessoa bissexual sofre reflete sobre sua saúde física e mental19. A sensação de anulação de si mesmo, falta de pertencimento, baixa estima, falta de autoconfiança e taxas maiores de ansiedade e depressão são geradas e atingem o psicológico dos adolescentes e jovens quando se sentem julgados e não aceitos como são por seus parceiros íntimos6-9,19.
Ao refletir sobre o princípio do recurso organizacional da Complexidade, que traz que os sujeitos são produtos e produtores de seus processos interacionais e rompe com a noção de linearidade, constata-se que todas as relações sociais dos seres humanos são construídas e desconstruídas de acordo com o contexto sócio-histórico-político-econômico-cultural de cada época16. Por isso, considera-se os relacionamentos íntimos dos adolescentes e jovens como construções sociais, que são concebidas e desenvolvidas em uma sociedade traçada e regulada, de forma dominante, pelo capitalismo, racismo, binarismo, classicismo, patriarcalismo, cis e heteronormativismo.
Segundo Foucault12, o dispositivo de poder da sexualidade, constituído por elementos estruturais sociais, produzem discursos, regulam e normatizam práticas sexuais, ao passo que perpetuam o saber-poder que moldam as vivências das sexualidades, controlando, assim, os corpos, os desejos e as subjetividades. Dessa forma, as lógicas das relações de poder coloniais são atualizadas na contemporaneidade normatizando e regulando corpos20.
Isto posto, o paradigma da complexidade propõe uma abordagem contra-hegemônica que questiona os paradigmas coloniais, eurocentrismos e universalismos, e suas interferências nos modos de agir, pensar e existir. Pelo prisma do Paradigma da Complexidade, discorre-se o quanto os homens criam ideias e por elas são dominados, morrendo e matando por elas, para que se mantenham e perpetuem14-15. “Os dogmas racionalizadores são os que se verificam, não em relação à experiência ou aos acontecimentos do mundo real, mas em relação à palavra sacralizada de seus fundadores”15(p.55).
Os discursos dominantes conservadores, patriarcais, racistas, lgbtfóbicos, reproduzidos por tempos em tempos, colonizando mentes, constituem os principais elementos que resultam nas relações íntimas não saudáveis e violenta, fundamentando-as e as alimentando. A VPI não é fruto da sexualidade bissexual, mas sim da sociedade que é violenta o tempo todo com aqueles que não são heteronormativos. Quando há violência na relação é porque a dinâmica relacional reflete a dinâmica vivida pela sociedade.
O ato de as companheiras lésbicas exprimirem desejo que sua namorada assuma a lesbianidade como escolha política e tenha repulsa aos homens ou qualquer forma de masculinidade ou em pessoas que se relacionem com eles, é consequências e resultados das diversas opressões advindas da heteronormatividade, misoginia, machismo e patriarcalismo que as lésbicas sofrem. Como exposto pela Complexidade, “a sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas a sociedade, uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e os produz. Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos”14(p.74).
Diante disso, as mulheres lésbicas criam estratégia de sobrevivência e política de enfrentamento das estruturas de opressão, sendo que o lugar e como são vistas na sociedade, reflete diretamente na qualidade de suas relações íntimas. Entretanto, em meio aos mecanismos de defesa e luta, acabam por gerar novas formas de violências, como as que resultam contra as mulheres bissexuais.
No que tange a violência vivida pela mulher bissexual que se relaciona com um homem cisheterossexual, implica compreender que há um contexto que produz interações sociais e é estruturado por um sistema de dominação masculina que produz práticas e regulam normas e instituições21. Também, quando em situação de desconforto, no qual não aceita a bissexualidade de sua companheira, interpretando-a como ameaça ainda maior à sua masculinidade, tende a agir com agressividade ou a reprimir suas emoções publicamente9,21-22.
A violência surge como uma possibilidade de demonstrar poder e virilidade quando se sentem inseguros, vulneráveis e fragilizados9,21. Assim, o homem acredita que sua companheira está fugindo dos papéis sexuais e sociais atribuídos a ela, ou seja, se interessar somente por homens, e passa a querer puni-la por ser vistas como transgressora ou que ousa desafiar as normas convencionais binárias de gênero5,9,20-22.
Apesar de a heterossexualidade e homossexualidade serem totalmente assimétricas, possuem em comum a moralidade da monossexualidade, que é a atração por um único gênero e é vista como o padrão aceitável e natural. A ausência desta é o que faz os bissexuais serem estigmatizados dentro das relações intimas, tanto por parceria homossexual quanto heterossexual, por transgrediram essa norma social e cultural. A bissexualidade ao romper com a monossexualidade causa a desestabilização das certezas. A sociedade, com princípios positivistas, antes inquestionáveis e irrefutáveis, passa a ser desafiada pelas instabilidades dos não monossexuais.
A bissexualidade é vista como vulnerabilidade e vulnerabilizante pelos/as companheiros/as das participantes, os/as autores/as da violência, já que recorriam ao abuso e à força das práticas sexuais como prova de interesse sexual no gênero e sexo deles, além de ser uma forma punitiva para o/a outro/a que foge da norma. Assim, na violência sexual praticada, a bissexualidade é vista como fator motivador e também é usada como justificativa para as ações violentas. Dessa forma, as mulheres bissexuais são duplamente vitimizadas e submetidas a muitas formas de violência que se sobrepõem, dado que sofrem violências pela orientação sexual e pelo gênero,18,20. Estudo desenvolvido na Espanha corroborou tais achados, em que mulheres adolescentes foram mais propensas à VPI quando tinham orientação bissexual, trazendo a relevância da interseccionalidade gênero-diversidade sexual21.
Ademais, no que concerne ao gênero e sexualidade bissexual, as dinâmicas são diferentes para homens e mulheres. São raros os estudos sobre identidade bissexual masculina, pois deve-se considerar que no campo das masculinidades há processo ativo de exercício de poder, por parte de quem nomeia e de quem é nomeado, por parte de quem sujeita e de quem é assujeitado21-22. Pois paralelo a dupla vitimização e fetichização sexual das mulheres bissexuais, para os homens, a masculinidade bissexual é condenada pelo afeto12,22. Foucault, ao discorrer sobre A amizade como modo de vida, apresentava que o que mais incomoda e perturba a sociedade vigente não é o fato de dois homens terem relações sexuais, mas a ideia de eles se amarem22. É o companheirismo, a amizade, o amor, a lealdade, a aliança, a parceria entre homossexuais que é condenável e desestabiliza essa sociedade22.
Os parceiros agiam violentamente pelo medo e aversão ao que foge do padrão e da norma binária heterossexual-homossexual e monossexual, sendo que procuravam por similaridades das identidades em meio a um mar de diversidades e diferenças. A similaridade entre as pessoas não exige um olhar profundo e reflexivo sobre nós mesmos e nossas relações com o outro. A superficialidade das relações estabelecidas pelas normas e a homogeneidade abre um espaço amplo para a disseminação de crenças infundadas e discriminações, como a bifobia. Isso porque sem a prática do pensamento crítico advindo da autorreflexão e da reflexão em relação ao diferente, ao outro, é mais fácil disseminar crenças, mitos, imaginários sociais, discursos conservadores e dominantes, pois não há parâmetros de comparação para tecer críticas sólidas onde impera a homogeneidade. Resultando assim, nas diversas formas de VPI15.
Os/as bissexuais têm uma inclinação a enfrentar maiores disparidades de saúde, pois muitos tendem a evitar exames médicos, seja por falta de informação, por retaliação dos companheiros íntimos, por mentir sobre seu histórico sexual, por não saber pedir ajuda em casa de VPI e por medo da discriminação nos serviços de saúde5,19,23. Neste contexto, a VPI está permeada pelos obstáculos sociais vividos pelos adolescentes e jovens bissexuais, o que intensifica ainda mais sua invisibilização, situando os sobreviventes, que muitas vezes não são assim autoreconhecidos, em estado de risco ainda maior19. A menor visibilidade deste fenômeno em suas especificidades produz um acréscimo nos obstáculos sentidos pela população bissexual, tal como a dificuldade no acesso a redes de apoio disponíveis no enfrentamento da VPI23. Estudos vêm discutindo o frágil suporte sexual que esta população tem acesso, indicando a necessidade de construção de redes culturalmente sensíveis, bem como ações sensibilizadoras para famílias e amigos 24-26.
Há necessidade de considerar um cuidado específico a população bissexual e à VPI vivenciadas por eles, por meio de uma abordagem contextualizada; do conhecimento dos conceitos de interseccionalidades e vulnerabilidades que se colocam sobre os bissexuais, e das reflexões sobre as crises de interpretação, intracepções ou inferências, que muitos profissionais da saúde fazem fundamentados em valores e preconceitos que reproduzem a cisheteronormatividade19. Neste ínterim, o papel da saúde coletiva se faz fundamental, contribuindo para um novo olhar do fenômeno e produção de novos significados a este, sendo uma peça importante para visibilização da VPI vivida por bissexuais e para a promoção de ações de prevenção e pósvenção do fenômeno 27.
A realização deste estudo foi marcada por algumas limitações. Algumas pessoas que poderiam ser potenciais participantes podem não ter tido acesso à internet em casa, não só por uma retaliação de uma parceria íntima abusiva, mas também pelo próprio sistema social que não oferece oportunidade e acesso a todos de forma equitativa. Desta forma a pesquisa pode ter atingido somente pessoas com acesso à internet e a eletrônicos como computadores e celulares.
O fato de o fenômeno estudado constituir uma experiência pessoal pode ser associado por alguns participantes a sentimentos de vergonha, culpa, medo e insegurança e assim, haver uma tendência a respostas que sejam consideradas por eles mais aceitáveis pela sociedade. A pesquisa contou predominantemente com participantes mulheres e poucos homens, o que pode sugerir algumas lacunas sobre as experiências íntimas que perpassaram por violência durante a pandemia da população masculina bissexual. Considera-se pertinente a realização de estudos específicos para a população masculina bissexual sobre o fenômeno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O avanço em direção a um paradigma que ultrapasse as fronteiras entre o micro e o macro é imprescindível na atualidade. Ressalta-se, assim, o ineditismo do tema da VPI vivida por bissexuais e analisada à luz do Paradigma da Complexidade. Nos enunciados dos adolescentes e jovens bissexuais encontraram-se diversas dimensões da violência manifestas em suas relações: verbais, psicológicas, físicas e sexuais. Os resultados apontaram: a forte presença da violência social de gênero; a bissexualidade como fator de risco para VPI; violência sexual como forma de punição e controle da sexualidade dos bissexuais; os discursos conservadores, preconceituosos e dominantes que exercem poder e controlam os corpos e sexualidades, refletindo diretamente nas vivências relacionais das pessoas bissexuais, vistos como transgressores da norma social e cultural.
A população bissexual, com toda sua diversidade, apresenta problemáticas de lutas específicas e demandas diferentes para o campo da saúde, ainda pouco escutadas. Ressalta-se a escassa produção acadêmica específica sobre os bissexuais e considera-se que um real enfrentamento da VPI vivida pelos adolescentes e jovens bissexuais dar-se-á por meio da devida visibilidade do fenômeno da violência na intimidade vivida pelos bissexuais. O Paradigma da Complexidade contribuiu de forma imprescindível para a busca do desenvolvimento de um olhar ampliado sobre a temática, proporcionando maior clareza sobre os elementos que compõem o fenômeno, e principalmente, sobre a interdependência e interconectividade entre eles, de modo articulado e contextualizado.

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Concepção do estudo: Campeiz A.B; Ferriani, M.G.C.
Coleta de dados: Campeiz A.B
Análise e interpretação dos dados: Campeiz A.B; Carlos, D. M; Ferriani, M.G.C.
Discussão dos resultados: Campeiz A.B;
Redação e/ou revisão crítica do conteúdo: Campeiz A.B;
Revisão e aprovação final da versão final: Campeiz A.B; Carlos, D. M; Ferriani, M.G.C.

REFERÊNCIAS
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Campeiz, AB, Carlos, DM, Ferriani, MGC. A BISSEXUALIDADE E A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES ÍNTIMAS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: SOB O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jun). [Citado em 25/07/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-bissexualidade-e-a-violencia-nas-relacoes-intimas-durante-a-pandemia-de-covid19-sob-o-paradigma-da-complexidade/19683

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