1049/2008 - A INTERSUBJETIVIDADE NO CUIDADO À SAÚDE MENTAL: NARRATIVAS DE TÉCNICOS E AUXILIARES DE ENFERMEAGEM DE UM CENTRO DE ATENÇÃO PISCOSSOCIAL
THE INTERSUBJECTIVITY IN MENTAL HEALTH CARE: NARRATIVES OF NURSING TECNHICIANS OF A PSHYCHOSOCIAL CENTER
Autor:
• rosana onocko Campos - Onocko Campos, R.T. - Campinas, SP - Departamento de Medicina Prveentiva e Social/FCM/Unicamp - <rosanaoc@fcm.unicamp.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Diante da demanda por atenção em Saúde Mental e na tentativa de renovar-se o tratamento psiquiátrico destinado a portadores de transtornos mentais severos, surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Este artigo visa à análise de repercussões subjetivas do trabalho nos CAPS nos profissionais de nível médio, buscando-se contribuir com o planejamento em Saúde. Realizaram-se dois grupos focais com trabalhadores de um CAPS III. A metodologia utilizada para análise alicerça-se na abordagem hermenêutico-crítica proposta por Ricoeur e na filosofia gadameriana. Revelou-se como principal desencadeante de sofrimento a desvalorização do trabalho. Destacaram-se temas como dificuldade de cooperação com familiares de usuários, a fraca interligação do CAPS com a Rede de Saúde, a responsabilização pelo plantão noturno, controvérsias sobre a liberação de pacientes em leito-noite, e excesso de carga horária. Propõe-se adequado planejamento de estrutura e de organização institucional, quando da abertura de novos CAPS, visando diminuir impacto de trabalho nos técnicos e melhorar o desempenho clínico da equipe.Descritores: pesquisa avaliativa, saúde mental, políticas de saúde, planejamento em saúde, narrativa, hermenêutica.
Abstract:
The Psychosocial Centers (Caps) were established because of the demand for attention in Mental Health and they were an attempt to renew the psychiatric treatment for the carriers of severe mental perturbation. This article analyzes subjective repercussion of work in Caps on professionals of medium level. It also aims to contribute with policies of planning in health. Two focal groups were made with workers of a Caps III. The methodology applied to the analysis was based on the approach hermeneutic-critical proposed by Ricoeur and Gadamerian philosophy. The devaluation of work was revealed as the main trigger to suffering. Some themes were distinguished such as the difficulty of cooperating with users’ relatives, the weak interconnection between Caps and Health Network, the responsabilization for the night duty, controversies about the discharge of the night-bed patient, and the excess of working hours. Suitable planning of structure and institutional organizing is proposed to the opening of new Caps in order to diminish the work impact on the technicians and to improve the clinic performance.Key-words: evaluative research, mental health, health policies, health planning, narrative, hermeneutics.
Conteúdo:
Introdução
Apesar de significativa a prevalência de transtornos mentais – no Brasil, 3% severos e persistentes, 6% de dependência química –, a relevância dada à saúde mental está muito aquém daquela concedida à saúde física1. No Sistema de saúde único (SUS) brasileiro a reconstrução dos modelos de assistência, desencadeada pela Reforma Psiquiátrica desde os anos oitenta, vincula-se mais recentemente à emergência dos CAPS – Centros de Atenção Psicossocial –, comprometidos em consolidar práticas e saberes condizentes com um tratamento terapêutico renovado. Nesse sentido, por meio da gradativa substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos por serviços oferecidos pelo CAPS, busca-se o deslocamento de uma lógica baseada na exclusão para uma outra, apoiada na busca de recursos para que o sujeito seja reintegrado à sociedade e recupere, na medida do possível, sua autonomia.
A Portaria 224/922 do Ministério da Saúde estabeleceu critérios para os novos serviços de responsabilidade do Sistema Único de Saúde, permitindo o suporte necessário à expansão da rede – que se ampliou consideravelmente, chegando a cerca de 1400 unidades em 20083.
A preocupação com um compromisso inadiável de mudança de paradigma torna necessário que sejam rompidos pelo menos quatro referenciais: o método epistêmico da psiquiatria; o conceito de doença mental como tachativo de erro ou desrazão e sua arbitrária correlação com a periculosidade; o princípio pineliano de isolamento terapêutico; e o tratamento moral que permeia os métodos de cuidado hegemônicos4. Soma-se a essas negações a afirmação da prática de uma clínica ampliada, que priorize o sujeito e que o destaque 5,6.
Tais considerações situam-se em uma área em que se entrelaçam práticas e saberes relacionados à Saúde Mental e à Saúde Coletiva7 o que eleva o patamar de complexidade das discussões e análises. Essa interface viabilizaria a resolução de problemas e favoreceria medidas que visassem à evolução de um modelo de atenção consistente e de fato comprometido com o bem-estar de todos os agentes envolvidos. Precisa-se superar a distância artificialmente construída entre esses campos do conhecimento 8. Estudos recentes apontam como, no cenário europeu, a constituição de serviços comunitários e alternativos obedece a singularidades próprias de cada Sistema Nacional de Saúde9, e a singular conformação da rede brasileira e a importância dos CAPS nela10.
No presente estudo, considerou-se fonte adequada de informação as histórias de profissionais diariamente envolvidos na prática da atenção – auxiliares e técnicos de enfermagem – para trazer à tona problemáticas, reflexões e soluções apropriadas a circunstâncias similares as encontradas na assistência nos CAPS III. Espera-se contribuir para a resolução de entraves identificáveis na estrutura do CAPS, com o intuito de estimular os benefícios que a expansão do sistema configura10.
A categoria profissional de nível médio foi escolhida por constituir-se maioria dentro dos serviços e devido às características de sua rotina, em geral exaustiva, o que implicaria susceptibilidade aos impactos provenientes do contato emocional envolvido em suas práticas. Realizamos esta investigação no marco de uma pesquisa avaliativa maior na qual outras categorias de trabalhadores dos CAPS foram escutadas. Tratando-se de um campo numa cidade que conta com numerosos CAPS III (acolhimento diuturno) a categoria de técnicos e auxiliares de enfermagem se destacou também por serem esses profissionais a maioria dos que trabalham no período da noite, quando a falta de outros profissionais os torna responsáveis pelos pacientes em leito noite.
Efetuou-se assim, nesta investigação, uma aposta naquilo que um grupo homogêneo de profissionais de nível médio teria a dizer sobre a prática dos serviços, sem a inibição supostamente causada pela presença de pessoas de outros núcleos funcionais e pelas relações de poder. Optou-se por uma equipe pertencente ao único CAPS da cidade que prevê em sua organização institucional o rodízio de auxiliares e técnicos durante todos os turnos, de maneira que cada profissional sempre participa da atenção em todos os horários, o que - em tese - permitiria uma abordagem mais integral dos pacientes, mas também submete aos trabalhadores a variações freqüentes de seu horário de trabalho. Mostrou-se inviável, do ponto de vista logístico, a realização de grupos em todos os CAPS da cidade.
Este projeto teve por objetivo geral a análise de repercussões subjetivas do trabalho no CAPS ao profissional de nível médio, buscando-se contribuir com as políticas de planejamento em Saúde. Foram objetivos específicos:
- Permitir a expressão de experiências, dificuldades e motivações particulares à rotina de auxiliares e técnicos de enfermagem;
- Identificar perspectivas e abordagens emergentes do processo de atendimento diário e que, embora fundamentais, passem despercebidas.
Materiais e Métodos
Elegeu-se a pesquisa avaliativa como instrumento detector de conceitos envolvidos na implementação desta rede e de entraves que a dificultariam11. A pesquisa realizou-se numa cidade de grande porte, cuja rede de CAPS III distingue-se por sua complexidade e natureza pioneira no universo dos serviços substitutivos de saúde mental implementados a partir dos alicerces estabelecidos pela Reforma Psiquiátrica.
As informações foram obtidas por meio da técnica de grupos focais, caracterizada por sessões previamente planejadas entre pessoas que compartilham um traço comum e durante as quais se discutem assuntos pertinentes tanto aos interesses do pesquisador quanto dos participantes12. 13.14. Durante seu desenvolvimento, a moderadora propôs os temas de interesse de maneira a adequar-se à imprevisibilidade das respostas e cuidando para que a discussão não fugisse dos propósitos do trabalho. Tal dinâmica flexível não comprometeu o cumprimento dos objetivos e sim facilitou a construção de um diálogo verdadeiramente recíproco12.
O primeiro grupo reunido contou com seis trabalhadores, a moderadora, uma observadora e uma anotadora. Foi moderado, gravado em áudio, transcrito e transformado em narrativa pela moderadora. Embora construído pelo pesquisador, esse texto teve por alicerce as opiniões discutidas pelos sujeitos da pesquisa e retornou a eles, reforçando a idéia de que um sentido maior e mais abrangente pode ser resgatado por meio de uma postura pautada na bilateralidade e efetivada no laço social15.
Visando aproximação ao preceito hermenêutico de passar várias vezes pelo mesmo lugar16, optou-se pela realização de uma segunda etapa de campo, em que a primeira narrativa foi lida a um grupo de quatro auxiliares e técnicos do mesmo serviço, momento no qual a narrativa pode ser validada, mas também corrigida e completada por novas reflexões e aprofundamentos.
O segundo grupo foi conduzido pela mesma moderadora e contou com uma observadora. Seguiram-se nova transcrição e construção de narrativa, com aprofundamento de questões e desdobramento de outras.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição e cada um dos sujeitos envolvidos autorizou o uso das informações gravadas, desde que mantido o sigilo de suas identidades por meio de um termo de consentimento livre e esclarecido. Foram critérios de inclusão nos grupos focais:
- Exercer função de auxiliar ou de técnico em enfermagem no CAPS escolhido;
- Trabalhar no serviço há pelo menos seis meses;
- Ter interesse em colaborar com a pesquisa.
A metodologia utilizada para interpretação sustenta-se na abordagem hermenêutico-crítica, proposta por Ricoeur, segundo a qual as narrativas (construídas a partir do material coletado em campo) são propícias para o estudo de conceitos, de práticas e para a elaboração de linhas interpretativas. Para Ricoeur17 as narrativas nada mais são do que “histórias não (ainda) narradas”, cuja vinda à tona explicitaria e tornaria públicas práticas que já estão inseridas no social. A distância necessária entre fato e interpretações seria propiciada pela fixação textual pela escrita. Dessa forma, se de algo se fala, é porque o fato não mais está situado em sua circunstância de ocorrência, mas em algum lugar do passado. É por meio de um tempo (distancia efeitual), portanto, que se revela, e sua vinda à tona faz parte de um movimento de instância interpretativa17, 18.
A partir de uma revisão do modelo aristotélico de mimese, Ricoeur define três estágios, sucessivos e contínuos, em que pode se basear o movimento reconstrutivo da experiência por meio da mediação do texto. Do emaranhado de intrigas em que está mergulhada a vida real, no senso comum (mimese I) emergem narrativas, cuja construção em forma de tessitura (mimese II) pode ser entendida como intermediária entre a linguagem e a ação. Depois, no ato da leitura a narrativa é devolvida ao tempo da ação (mimese III)17. Nesse sentido, os textos são processos miméticos que permitem ao pesquisador a aproximação a versões de mundo presentes nas experiências cotidianas17. A leitura da primeira narrativa permitiu que os sujeitos da pesquisa reconhecessem seu discurso e refletissem sobre suas ações, de maneira que o círculo metodológico não se tornasse vicioso, já que passou pelo mesmo ponto sempre em uma altitude diferente em termos de entendimento11, 16.
Ainda, apoiando-se na filosofia de Gadamer, em cujo fundamento se prevê iluminar os preconceitos no movimento analítico16, o grupo focal surgiu a partir da iniciativa do pesquisador, porém permitiu que houvesse natural convergência de conveniências múltiplas. Nesse sentido, a aplicação está sempre pressuposta pelo próprio ato de pesquisar, uma vez que o questionamento levantado pelo pesquisador e a predisposição dos sujeitos a participarem da pesquisa apontam a pertinência do tema.
O objeto do estudo emana no bojo da confluência entre os programas de saúde coletiva e mental. Para Gadamer, o destaque do objeto só é possível pelo seu contraste com aquilo de que é destacado16. Ao ser eleito, ele se projeta à maneira de uma escultura em alto-relevo, isto é, seu plano de fundo é parte integrante e fundamental da obra. Utilizando-se dessa concepção, torna-se possível supor que aquilo que foi narrado é uma representação qualitativa de uma realidade subjacente. As histórias estão inseridas no contexto dos CAPS de Campinas, que por sua vez incluem-se nos serviços de saúde pública brasileiros, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Resultados
A desvalorização do trabalho pelos colegas da equipe, decorrente da ausência de reconhecimento de sua competência, foi apontada como principal desencadeante de sofrimento. Conflitos relacionados à hierarquia levam estes profissionais a acreditarem que sua experiência - advinda de amplo contato diário com os doentes - seja descartada, pelo fato de não terem nível superior de estudo. Afirmam que esse fator os desestimula a compartilhar seus saberes e provoca uma queda em sua auto-estima.
Outra repercussão é descrita como uma resistência da equipe a considerar o encaminhamento de pacientes para o hospital geral ou mesmo conseguir uma reavaliação pelo psiquiatra responsável de um ponto de vista clínico ampliado. Tal dificuldade faz com que muitos pacientes sofram por problemas não psiquiátricos e posterga diagnóstico e tratamento adequados. Essa postura favorece a medicalização, pois referem que às vezes são testados inúmeros psicotrópicos a fim de que se excluam todos os diagnósticos relativos à Saúde Mental antes que se faça uma internação no hospital geral – dado que faz vislumbrar um verdadeiro paradoxo produzido pela Reforma Psiquiátrica. Relataram-se casos variados: pneumonia avançada, neoplasia de medula, crises desencadeadas por medicamentos. Problemas clínicos que, na análise dos auxiliares e técnicos, foram subestimados e seus sintomas considerados alucinações.
Conflito com a equipe também é estabelecido quanto ao fato dos auxiliares e técnicos discordarem da liberação de pacientes em leito-noite para projetos externos. Consideram que se o paciente está no leito de acolhimento noturno, está internado, e isso porque está em risco: se ele estivesse apto para sair sozinho, também estaria para ir para casa. No entanto, é comum que seja dada essa permissão pela equipe graduada, o que os técnicos de enfermagem consideram particularmente problemático nos casos de usuários de drogas. Esses pacientes, medicados e sob responsabilidade da enfermagem para acompanhamento mais rigoroso, estão ausentes quando procurados para controle no leito, sendo recorrentes casos em que usam outras drogas antes de retornarem ao CAPS.
O fato de o trabalho noturno ser restrito a esses profissionais trouxe à tona a discussão da responsabilidade pelo paciente recair integralmente sobre eles durante esse turno. Verificaram-se progressos no período entre a realização dos dois grupos (4 meses): duas enfermeiras foram contratadas e trabalham em algumas noites, embora auxiliares e técnicos continuem sozinhos na maioria das vezes.
É pertinente ainda a questão da estrutura física dos CAPS favorecer riscos a acidentes, já que há muitos vidros em janelas e portas, sendo narrados casos em que funcionários tenham se cortado na tentativa de socorrer pacientes que os quebraram.
Destaque foi dado à dificuldade de cooperação com familiares, o que causa dor aos profissionais na medida em que impede ou dificulta o progresso do tratamento, por conseguinte, provocando uma sensação de inutilidade das ações implementadas. Quanto a esse aspecto, sugeriu-se o desenvolvimento de um projeto que incentive e apóie mudanças jurídicas no sentido de dar maior autonomia aos pacientes para decidirem a utilização do benefício financeiro, que tende a ficar com familiares que não o assistem. No segundo encontro realizado, ponderou-se que a forma de organização do trabalho nos CAPS não é favorável para um adequado acompanhamento familiar: seria necessário um programa institucional que estabelecesse a divisão de responsabilidades de forma a integrar à rotina a visita domiciliar, sem que se prejudiquem os serviços de atendimento à demanda e à emergência.
Todos os participantes afirmam trabalhar na atividade por inclinação e livre escolha, mostrando-se confortáveis quanto a seu papel profissional, embora relatem formação deficiente, compensada pela rica experiência adquirida no dia-a-dia. Narraram-se episódios geradores de desgaste e sofrimento – a maioria situada na época em que começaram a trabalhar no CAPS – e cuja angústia foi superada sem ajuda terapêutica, pois afirmam que a classe não possui condições financeiras para tal. Essas situações foram consideradas determinantes de amadurecimento pessoal; outras fazem parte da rotina e foram descritos casos que geraram sensibilização ao trabalhador. Fazem-se pertinentes os temas do excesso de carga horária a que estão sujeitos e do salário incondizente com a atuação profissional: cumprem uma jornada de trinta e seis horas semanais; enquanto a dos graduados é de vinte a trinta horas.
As narrativas também tornaram públicas formas afirmativas postas em prática no manejo das experiências. Apesar de o trabalho em Saúde Mental ser considerado maior do que em outras áreas, é visto como uma lição de vida. Os profissionais contam que nele aprenderam a valorizar as pequenas coisas e a mudar seus valores, além de preferirem o CAPS ao hospital. Quanto a isso, é de extrema importância esclarecer que consideram os problemas de trabalho nos CAPS menos acentuados do que em outros locais nos quais já trabalharam – Centros de Saúde, hospitais gerais, hospitais psiquiátricos. Reconhecem que o trabalho é exercido de maneira muito mais horizontal no CAPS. Exceção é dada às questões do melhor acesso aos familiares e domicílios, cujo progresso percebem maior nos Centros de Saúde pela implantação da estratégia de saúde da família. No entanto, pelo avanço que os CAPS representam à atenção, crêem que muitos dos entraves poderiam ser superados. Afirmam que nas suas práticas no CAPS sofrem, sentem tristeza, angústia, impotência; mas também amadurecem, aprendem que não podem fazer tudo, e descobrem que há limites para o alcance de suas intervenções.
Discussão
1- Sobre os efeitos do método:
Dos sujeitos da pesquisa à intersubjetividade: a escolha das experiências narradas as evidenciou como significativas para o grupo e as repercussões de sua exposição durante os grupos focais não se descolaram do sujeito que as vivenciou, obrigado que foi a refletir sobre elas. Ainda, a fixação pela escrita operada permitiu destacar os principais núcleos argumentais sustentados durante a discussão e não a mera reprodução das fitas gravadas. Isto além de dar leveza ao encontro teve efeitos de narratividade19, produzido na apresentação de uma historia que “se deixa seguir” na construção narrativa17.
Foi notável o efeito causado pelo confronto entre os grupos e seu discurso transformado em narrativa. A leitura da primeira narrativa provocou a reconstrução de muitos diálogos no segundo encontro: as palavras tornaram-se por vezes mais suaves, embora as idéias quase sempre se mantivessem; desabafos transformaram-se em análise de problemas e sugestões para que a realidade pudesse ser modificada. Nesse percurso os agentes perceberam a possibilidade de se deslocar da posição de queixosos a de agentes ativos na proposição de mudanças, um ganho secundário não pouco interessante deste tipo de pesquisa20.
Do subjetivo ao objeto do planejamento: as narrativas de fenômenos vivenciados não são, todavia, isentas, pois das inúmeras experiências diárias, algumas foram escolhidas pelos sujeitos da pesquisa para serem narradas. Por outro lado, estava também presente o pesquisador levando consigo sua visão e a discussão que foi por ele provocada e moderada. Assim, o ato de contar uma história torna-se também, e sobretudo, a eleição de pontos de vista a serem evidenciados, por estarem enovelados à história priorizada. Surge com isso uma travessia da existência inexorável à outra, susceptível de intervenção.
A reflexão sobre a ação narrada é mediada pelo conhecimento de efeitos da prática em situações análogas e, portanto, já não pode ser imparcial, torna-se encarnada. Somam-se estratégias construídas a partir de eventos anteriores e o nível de reflexão e conseqüentemente a amplitude da abordagem tendem a elevar-se – assim como o conjunto dos conhecimentos disponíveis para que se planejem formas de agir em cada conjuntura. Dessa forma, o resultado é o apontamento de saídas ou a compreensão da possibilidade de buscá-las. À situação impõem-se novas verdades e métodos. “A narrativa torna-se ela mesma ação”21, na medida em que a pesquisa torna-se também texto passível de ser compartilhado17.
2. Sobre as relações dos achados com a conjuntura das políticas públicas
A dificuldade decorrente da hierarquia mostrou-se principal obstáculo para que potenciais contribuições de trabalhadores da mesma equipe pudessem ser aproveitadas de forma útil na solução dos problemas. Há necessidade de incentivar maior escuta entre os profissionais e favorecer o respeito às opiniões de auxiliares e técnicos de enfermagem sobre seu campo, ainda que permaneçam questões cuja decisão final caiba a profissionais de nível superior – por ser este seu núcleo de trabalho. A queixa dos auxiliares e técnicos reflete a dimensão da divisão social do trabalho e ecoa a imensa desigualdade brasileira, cuja pirâmide salarial não tem par nos sistemas de saúde do mundo desenvolvido. São esses técnicos os mesmos que moram no bairro, ao qual os outros profissionais só vão para trabalhar. Eles se sentem discriminados negativamente pela falta de estudo universitário e apontam a não valorização da experiência pela equipe. Esses achados salientam a importância de estudos que dêem voz aos próprios trabalhadores de saúde22 e da instituição de modalidades democráticas e participativas de gestão como recurso promotor de saúde mental nas equipes de nível médio5.
Levanta-se também a problemática da responsabilidade pelo plantão noturno como algo que precisa ser reavaliado, tanto porque a qualidade da assistência nesse período mostra-se comprometida, quanto pelo fato de que, em circunstâncias de emergência, auxiliares e técnicos são chamados a executar procedimentos que eles consideram fugir de sua capacitação – evidenciando-se a carência de uma contratação mínima para que seja garantido o atendimento integral em todos os turnos. Essa característica escancara uma das fragilidades do sistema de saúde brasileiro: a de travestir de interdisciplinaridade e de desmedicalização o abaratamento dos serviços, como se o cuidado de pacientes graves pudesse prescindir de contar com os recursos qualificados necessários.
Ademais, o dilema acerca de se o paciente em leito e sob a responsabilidade da equipe deve permanecer no serviço ou sair, acompanhado ou não de um funcionário, está no âmago da concepção de CAPS. O serviço substitutivo prevê o uso de leito noturno como recurso que não se equipara à internação integral, podendo ser utilizado ainda que o paciente não se encontre em risco, como recurso terapêutico para determinados casos. Quanto a isso, ressalta-se que cada paciente precisa ser tomado em sua individualidade e de forma integrada pela equipe. Significa, portanto, que um profissional universitário pode em determinadas circunstâncias autorizar a saída do paciente, contudo, deveria fazê-lo considerando sua situação – se foi medicado, quão grande pode ser o risco de deixá-lo sair – e para tal, precisará ao menos informar-se com a equipe de enfermagem a respeito dos medicamentos que foram administrados. Entretanto, vale destacar que esse equívoco de identificar leito-noite com a internação clássica foi uma exceção no discurso dos auxiliares e técnicos, que se mostraram bastante engajados aos preceitos da Reforma Psiquiátrica.
O modelo de trabalho em Centros de Saúde que implantaram a estratégia de Saúde da Família é uma deixa para constatar-se que, apesar da demanda e do atendimento dispensado às emergências, é possível que se realizem visitas domiciliares de forma sistemática. Os técnicos avaliam que o tratamento psiquiátrico de pacientes com apoio familiar evolui de forma consideravelmente melhor; por outro lado, a dificuldade de trazer o familiar para o CAPS é grande. Salientam-se assim as vantagens de os trabalhadores estarem inseridos na rede social e familiar para que esses laços sejam resgatados. Com relação à estrutura física do CAPS, um equipamento que tem por objetivo a reinserção social deve caracterizar-se como uma parte habitual da sociedade, de forma que não seria recomendada a retirada dos objetos de vidro e sim sua substituição por vidros temperados, por exemplo.
Merece destaque a necessidade de que auxiliares e técnicos recebam melhores salários, além de que seja criado algum tipo de auxílio institucional no sentido de amenizarem-se as dificuldades subjetivas próprias do trabalho em Saúde Mental, nesse sentido chama a atenção eles não se referirem à supervisão clínico-institucional existente no CAPS no momento do estudo.
Enfim – porém não menos importante –, torna-se urgente refletir sobre a forma como o avanço da Reforma Psiquiátrica tem sido avaliado, a saber, medindo sua efetividade por meio da quantificação do número de internações ou de encaminhamentos para serviços de saúde externos. Cumpre lembrar que reduzir esses números a custa de abdicar-se de um tratamento eficaz apenas disfarçaria limites clínicos, embaçando os reais méritos da reforma. Parece essencial que se estabeleçam novos parâmetros e/ou indicadores que reflitam a evolução da Reforma sem que o processo avaliativo se converta em empecilho para seu progresso23, 24,25. Apontar as dificuldades do grupo de trabalhadores de nível médio implica em apostar em que seu conhecimento facilitará sua resolução.
Retoma-se aqui o fato de o campo ter sido realizado em apenas um CAPS, de forma que é inegável que haja limites. No entanto, prefere-se denominar limite em vez de viés à constatação de que talvez haja fatores diferentes – e até importantes – nas “histórias não (ainda) narradas”17 dos profissionais de outros CAPS. A diferença de terminologia justifica-se pelo fato de que se é verdade que muito ainda poderia ser dito, é também incontestável que as questões valorizadas neste trabalho – por apontarem problemas superáveis pelo planejamento – servem como norte para aprimorar os equipamentos de forma geral e que nossa abordagem qualitativa mostrou-se potente para aprimorar a nossa compreensão do processo subjetivo dos técnicos de enfermagem.
A Guisa de Conclusão
Os CAPS do tipo III constituem-se equipamentos de saúde ímpares e requerem um planejamento estrutural condizente com sua complexidade. Devem ser tomados como pré-requisitos quando de sua abertura:
- Organização institucional que favoreça horizontalidade de poder;
- Distribuição de tarefas que propicie integração da equipe;
- Discernimento da pertença do equipamento CAPS à Rede – cuja acepção da palavra já deveria pressupor-lhe um caráter interligado;
- Composição da equipe profissional de forma que efetivamente se realize assistência integral em todos os turnos;
- Estrutura física apropriada para que se minimizem riscos;
- Suporte clínico para seus profissionais, na forma de supervisões clínico-institucionais ou outras;
- Salários adequados.
Os dois primeiros critérios e, em parte, o terceiro resvalam ainda na concepção do pessoal especializado acerca do núcleo de suas funções e dependem, portanto, do quão disposto cada um estará para aceitar/desejar mudanças em nome do desenvolvimento conjunto. Concernem, portanto, ao perfil do trabalhador a ser contratado e ao modelo de sua formação profissional. Recomenda-se que se priorizem funcionários com a clareza da extensão de suas responsabilidades técnicas. Torna-se importante também, então, propiciar instâncias em que um processo formativo continuo se apóie nas experiências cotidianas e nos quais se crie a confiança necessária para que sugestões pertinentes sejam consideradas. Os dispositivos de gestão participativa e de supervisão clínico-institucional poderiam ser considerados.
Conclui-se acertada a escolha pelos sujeitos da pesquisa, já que as questões foram abordadas de forma original e diferenciada pela categoria de profissionais. As cerca de quatro horas de discussões gravadas, cinqüenta e uma páginas transcritas e posteriormente compiladas em nove páginas de narrativas evidenciaram, de forma inequívoca, que a grande maioria do que foi dito não o seria se estivessem presentes outros atores durante as sessões. Para além disso, a liberdade da forma como foram abordados os problemas estaria comprometida de forma integral.
Os relatos trazem à tona aspectos individuais do relacionamento humano, cuja singularidade não exclui questões universais do fenômeno social envolvido na relação subjacente da assistência nos CAPS., como já constataram outras investigações22. Assim também, entraves emblemáticos do SUS e da reforma psiquiátrica, podem ser reconhecidos (a sensação de exclusão, a marcada desigualdade salarial, etc.). As narrativas constituíram a vinda à linguagem de uma porção de mundo composta por práticas “não (ainda) narradas”, no dizer de Ricoeur, e a pesquisa tornou-se dispositivo para destacar vozes que nem sempre são ouvidas.
Referências bibliográficas
1. Brasil. Ministério da Saúde / Coordenação de Saúde Mental e Coordenação de Gestão da Atenção Básica. Saúde Mental e Atenção Básica: o vínculo e o diálogo necessários. Mimeo; 2003.
2. Brasil. Portaria 224/92. Estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Brasília: Diário Oficial da União, 1992.
3. Brasil. Ministério da Saúde: Programa Mais Saúde – Direito de Todos: 2008 - 2011. [Acessado 2008 Set 28] Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/mais_saude_direito_todos_2ed.pdf
4. Amarante P, Torres EHG. A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil. Revista Saúde em Debate, Col 2001; 25(58):26-34.
5. Campos GWS. Gestión em salud, em defesa de la vida. Tradução de Asia Testa. Buenos Aires: Lugar Ed.; 2001, 253p.
6. Garcia C. Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental: Interfaces. Belo Horizonte: Oficina de Arte&Prosa; 2002, 187 p.
7. Onocko Campos RT, Amaral M. Cândido Ferreira: experimentando uma mudança institucional. In: Merhy EE, Onocko Campos RT, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997, 385p.
8. Onocko Campos RT. Análise do planejamento como dispositivo mediador de mudanças institucionais com base em um estudo de caso. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(4):1021-1030, out-dez, 2000
9. WHO, 2008. Policies and practices for mental health in Europe - meeting the challenges.
10. Mateus, MD; Mari, JJ, Delgado, PGG, Almeida- Filho, N, Barrett, T, Gerolin, J, Goihman,S, Razzouk,D; Rodriguez, J, Weber, R, Andreol, SB and Shekhar Saxena. The mental health system in Brazil: Policies and future challenges In: International Journal of Mental Health Systems 2008, 2:12.
11. Onocko-Campos, R & Furtado, JP. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde In: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(5):1053-1062, mai, 2006.
12. Westphal MF, Bógus CM, Faria MM. Grupos focais: experiências precursoras em programas educativos em saúde no Brasil. Boletim da Oficina Sanitária do Panamá Col 1996; 120(6): 472-482.
13. Gatti BA. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro Editora; 2005, 77p. Série Pesquisa em Educação, 10.
14. Wiggins, GS, 2004. The analysis of focus groups in published research articles. The Canadian Journal of Program Evaluation Vol. 19 No. 2 Pages 143–164
15. Onocko Campos RT. Pesquisa qualitativa em Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde Coletiva. In: Barros NF, Cecatti JG, Turato ER, organizadores. Pesquisa Qualitativa em Saúde – Múltiplos Olhares. Campinas: Editora Unicamp; 2005.
16. Gadamer H-G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes; 1997, 731p.
17. Ricoeur P. Tempo e narrativa. Tomo I. Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus; 1994.
18. Flick U. A construção e a compreensão de textos. In: Uma introdução à pesquisa qualitativa. Tradução de Sandra Netz. Porto Alegre: Bookman; 2004. p. 45-53
19. Onocko Campos, R.T. & Pereira Furtado, J. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saúde Pública 2008;42(6):1090-6.
20. Furtado, JP. Onocko-Campos, R. Participação, produção de conhecimento e pesquisa avaliativa: a inserção de diferentes atores em uma investigação em saúde mental. In: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(11):105-114, nov., 2007
21. Kristeva J. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras. Rio de Janeiro: Rocco; 2002. v.1, p.19-27.1.
22. Sivalli Campos, C. M. & Baldini Soares, C. A produção de serviços de saúde mental: a concepção de trabalhadores. C & Saúde coletiva, 8(2): 621-628, 2003.
23. Tanaka OU, Lauridsen-Ribeiro E. Desafio para a atenção básica: incorporação da assistência em saúde mental. In. Cad. Saúde Pública, Set 2006, v.22, n.9, p.1845-1853.
24. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. In. Cad. Saúde Pública, Out 2007, v.23, n.10, p.2375-2384.
25. WHO & WONCA, 2008. Mental health into primary care: a global perspective.










