0292/2009 - A Magnitude do Aborto por Anencefalia: um estudo com médicos
Anencephaly: the magnitude of the judicial authorization among medical doctors in Brazil
Autor:
• Debora Diniz - Diniz, D - Brasilia, DF - unb - <d.diniz@anis.org.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6987-2569
Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Este artigo tem por objetivo descrever a magnitude da assistência médica em casos de gravidez de feto com anencefalia, por meio de uma pesquisa empírica com médicos. A anencefalia é uma má-formação incompatível com a sobrevida do feto após o parto. O direito à interrupção da gestação nesse caso é tema de ação no Supremo Tribunal Federal. Realizou-se uma pesquisa tipo survey com 1.814 médicos, filiados à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o que corresponde a 12% do total de médicos da entidade. Os resultados indicam que, em um universo de 9.730 mulheres atendidas pelos médicos nos últimos 20 anos, 85% preferiram interromper a gestação nesse caso. Esse dado mostra o quanto a assistência médica a mulheres grávidas de fetos com anencefalia é uma experiência cotidiana nos serviços de saúde, bem como o desafio ético imposto pela ilegalidade do procedimento médico de interrupção da gestação nesses casos.Palavras-chave
Aborto, Anencefalia, Antecipação Terapêutica do Parto, Interrupção da Gestação
Abstract:
This paper describes the magnitude of the medical care of women pregnant with an anencephalic fetus. Anencephaly is an abnormality incompatible with life. The right to abort in this case is under litigation at the Brazilian Supreme Court. This survey was conducted among 1,814 medical doctors, all of them affiliated to the Brazilian Federation of Gynecology and Obstetrics (Febrasgo), which corresponds to 12% of the doctors within this federation. The results show that, in a group of 9,730 women cared by the physicians over the last 20 years, 85% preferred to interrupt pregnancy in case of anencephaly. This fact reveals how common the experience of caring of women pregnant with an anencephalic fetus is in health care services, as well as the ethical challenge of Brazilian restrictive legislation on abortion.Key-words
Abortion, Anencephaly, Therapeutic Abortion, Interruption of Pregnancy
Conteúdo:
Introdução
A anencefalia é uma má-formação incompatível com a sobrevida do feto após o parto1. As causas da anencefalia são variadas, mas a carência de ácido fólico durante a gestação é uma das mais comuns2. Não há cura ou tratamento para anencefalia, e estima-se que mais da metade dos fetos não sobrevivem à gestação1. Os excludentes de ilicitude para o aborto no Brasil não preveem a situação clínica da anencefalia ou de outras más-formações incompatíveis com a vida do feto, o que obriga as mulheres a manter a gestação ou buscar autorização judicial para interrompê-la sem risco de punição. Alguns estudos mostram que o recurso ao Poder Judiciário para a autorização do aborto em caso de feto incompatível com a vida é um fenômeno que teve início nos anos 1990 no Brasil3.
Uma ação de anencefalia foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2004, por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com suporte técnico da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero4. Nesse mesmo ano, uma medida liminar concedida pelo STF autorizou que mulheres grávidas de fetos com anencefalia optassem pela interrupção da gestação, assim como protegeu os profissionais de saúde que atuassem em tal procedimento médico5. A liminar foi cassada ainda em 2004, mas o mérito da ação não foi julgado até o presente momento6, havendo a expectativa de que o caso seja finalizado em 2009.
Sob a compreensão de que o Código Penal não autoriza o aborto em caso de anencefalia no feto, hoje, as mulheres que desejam interromper a gestação não podem fazê-lo, a não ser que busquem individualmente autorização judicial. Porém, elas não têm garantias de obter a autorização, afinal, dependem da interpretação que o juiz ou promotor dará a cada caso. Esse quadro de exigência de autorização judicial para o procedimento médico é ainda mais agudo para as mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual o controle de legalidade do procedimento é maior e, de forma concreta, constitui condição para o direito à assistência7.
Há uma série de desafios éticos na pesquisa sobre o aborto no Brasil. O mais importante é que o cenário de criminalização dificulta a recuperação dos dados, pois a participação em uma pesquisa pode trazer riscos à mulher que realizou um aborto7. No caso específico da anencefalia ou de outras más-formações incompatíveis com a sobrevida do feto, algumas pesquisas foram conduzidas com mulheres protegidas por autorização judicial8, ao passo que a maioria foi realizada com fontes documentais, como alvarás ou despachos do Ministério Público9,10. Os estudos atestam a permanência do recurso ao Poder Judiciário para a garantia do direito ao aborto, sob a tese de que o procedimento médico não deveria se configurar como aborto tal como especificado pelo Código Penal.
A ADPF apresentada ao STF também se amparou nesse giro argumentativo, comum às ações de cortes locais. O objetivo não foi instituir um novo permissivo legal no Código Penal, mas demonstrar que a situação clínica da anencefalia não se enquadraria na determinação penal do crime de aborto. Para que se sustente o argumento de aborto como crime contra a vida em potencial do feto, é preciso que haja expectativa de vida extrauterina, algo inexistente para o feto com anencefalia2. Por esse caminho argumentativo, a ação de anencefalia propôs a categoria médica e jurídica de antecipação terapêutica de parto para representar os procedimentos médicos autorizados judicialmente havia uma década no país4. Uma vez que a realização do aborto por anencefalia no feto não se enquadraria na definição jurídica de aborto segundo o Código Penal, a ação apresentou um novo conceito médico, posteriormente reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, ao definir o feto com anencefalia como “natimorto cerebral”11.
Este artigo verifica a magnitude do fenômeno da assistência médica à mulher grávida de feto com anencefalia, por meio de uma pesquisa empírica com médicos ginecologistas-obstetras filiados à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Dada a dificuldade de recuperação de dados por meio de consulta aos processos judiciais em tribunais locais de todo o país, os médicos são uma fonte alternativa para a representação do fenômeno da garantia judicial e da assistência às mulheres grávidas de feto anencefálico.
Sujeitos e Método
A pesquisa foi realizada com médicos ginecologistas-obstetras filiados à Febrasgo, maior entidade médica no campo da ginecologia e obstetrícia no Brasil. O levantamento de dados foi realizado por um survey eletrônico, postado em um endereço específico para a pesquisa durante o mês de setembro de 2008. O convite à participação foi enviado pela diretoria da Febrasgo ao banco de endereços da entidade, cujo universo de filiados era de mais de 15.000 médicos. A enquete eletrônica era composta de cinco perguntas, três delas com respostas fechadas do tipo “sim” ou “não” e duas delas com respostas abertas do tipo simples (número de mulheres atendidas com gravidez de feto com anencefalia). O questionário foi anônimo, o que garantiu o sigilo das informações. Para evitar respostas duplicadas, o site onde foi depositado o questionário reconhecia o endereço IP do respondente e impedia a dupla entrada do participante.
Em 2008, a Febrasgo contava com mais de 15.000 médicos associados, com representação em todas as cidades do país. Foram enviadas 15.000 mensagens com convite à participação na enquete eletrônica. Destas, 2.500 retornaram por erro de registro do endereço eletrônico ou por inexistência de destinatário. Isso resultou em 12.500 médicos como potenciais participantes da pesquisa. Foram recebidas 1.814 respostas, o que correspondia a 14,5% do total de médicos que deveriam ter recebido o questionário.
Consultou-se os médicos ginecologistas-obstetras sobre sua experiência na assistência da mulher grávida de feto com anencefalia nos últimos 20 anos. O marco temporal de 20 anos de registro da memória dos médicos se justifica, uma vez que foi no início dos anos 1990 que surgiram os primeiros indícios de autorização judicial para a interrupção da gestação em caso de anencefalia do feto no Brasil3,9.
Há duas fragilidades na recuperação dos dados sobre a magnitude da autorização judicial para o aborto em caso de anencefalia por meio da memória dos médicos. A primeira é que o uso da lembrança como recurso de recuperação da informação pode levar a variações no número de casos atendidos, em particular dado o recorte temporal de 20 anos. A segunda é que, nos serviços públicos de saúde, mais de um médico participa do pré-natal de uma mulher, o que pode provocar o múltiplo registro de um mesmo caso. Ou seja, mais de um médico pode recordar-se de ter atendido a mesma mulher grávida de feto com anencefalia.
Somente médicos com experiência prévia de atendimento a mulheres grávidas participaram da pesquisa, tendo sido este um quesito de exclusão à participação. Evitaram-se perguntas relativas a valores ou crenças sobre o aborto, a fim de afastar vieses nas respostas. Duas perguntas procuraram delinear a decisão das mulheres diante do diagnóstico de anencefalia no feto: (1) nos últimos 20 anos, você já atendeu mulheres grávidas de fetos diagnosticados com anencefalia que desejaram interromper a gestação? e (2) nos últimos 20 anos, do total de mulheres grávidas de fetos diagnosticados com anencefalia que atendeu, quantas delas conseguiram na justiça a autorização para interromper a gestação?. As perguntas incluíam a assistência tanto na rede privada quanto na rede pública de saúde.
As enquetes respondidas foram processadas eletronicamente e inseridas em um banco de dados sem eliminação prévia de registros. A partir desses dados, foram realizadas as análises uni e bivariadas apresentadas na seção de resultados. Não houve registros inválidos ou intercorrências que prejudicassem o processo de tabulação. A incidência de respostas em cada etapa do fluxo que começava pelo do envio das enquetes e culminava na contabilização de médicos que atenderam mulheres que desejavam interromper a gestação é apresentada na Figura 1 constante no anexo.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas da Universidade de Brasília, tendo sido aprovado em agosto de 2008. Os médicos registraram o consentimento livre e esclarecido eletronicamente, antes de responder às perguntas da enquete.
Resultados e Discussão
Dos 1.814 médicos ginecologistas-obstetras que responderam à enquete, 1.804 haviam atendido mulheres grávidas nos últimos 20 anos. A grande maioria desses médicos (1.503 de 1.804 ou 83,3%) tinha atendido pelo menos uma grávida de feto com anencefalia (Figura 1). Como a pesquisa incluiu médicos com pouco tempo de prática obstétrica, essa proporção pode ser ainda maior caso se considere apenas a experiência dos médicos com maior percurso profissional. Isso significa que a prática de assistência à mulher grávida de feto com anencefalia é compartilhada por quase todos os ginecologistas-obstetras durante o seu curso de vida profissional. Além disso, atender uma grávida com feto anencefálico não é algo tão excepcional, já que a média foi de 6,5 casos em até 20 anos de prática, para um total de 9.730 grávidas com essa experiência (Figura 2).
Os dados também permitem verificar que quase 85% dos médicos que atenderam casos de anencefalia relataram que as mulheres desejavam interromper a gestação (Figura 1). Os resultados revelam que 3.602 mulheres atendidas conseguiram na justiça a autorização para interromper a gravidez. No entanto, os dados não permitem saber quantas das 9.730 mulheres grávidas de fetos com anencefalia teriam declarado o desejo de solicitar a interrupção aos médicos. Como o objetivo da pesquisa era o de explorar a magnitude da assistência médica às mulheres grávidas de fetos com anencefalia e, secundariamente, levantar informações sobre a busca por autorização judicial nesses casos, não foram feitas perguntas que pudessem criar receios jurídicos ou éticos, tais como o da realização do procedimento médico sem autorização judicial.
Os dados permitem afirmar que 37% (3.602 entre 9.730) das mulheres que tiveram gravidez de feto com anencefalia conseguiram autorização judicial para interromper a gestação; porém, não revelam qual é a porcentagem das que desejavam o aborto e efetivamente obtiveram essa autorização. Caso se transfira o dado de 84,8% de médicos que atenderam mulheres que desejavam interromper a gestação às 9.730 mulheres grávidas de fetos com anencefalia, chega-se a uma estimativa de 8.251 mulheres que teriam desejado interromper a gestação, tendo 43,7% delas (3.602 entre 8.251) obtido autorização para fazê-lo (Figura 2). Esse resultado pode ser interpretado de três maneiras.
Em uma primeira hipótese, isso poderia sugerir que mais da metade das mulheres que desejaram interromper a gestação solicitou, mas não conseguiu autorização judicial. Essa, no entanto, não é uma afirmação possível de se fazer nesta pesquisa e não é o resultado encontrado em estudos qualitativos com decisões judiciais e autorizações do Ministério Público, que demonstram tendência favorável ao aborto em caso de anencefalia no feto9,12.
A segunda possibilidade é que as mulheres não busquem a justiça para interromper a gestação após o diagnóstico de anencefalia no feto, seja por subordinação à ordem penal, seja por desconhecimento do processo judicial ou, ainda, por falta de acesso à Justiça. Esse é um caminho interpretativo que necessitaria ser explorado, uma vez que grande parte dos estudos empíricos brasileiros foi conduzida com mulheres durante o processo judicial, ou seja, após a tomada de decisão pelo aborto ou após sua finalização, no caso dos estudos documentais9,12.
A terceira possibilidade, e talvez a com maiores chances explicativas sobre o fenômeno, é que a autorização judicial não é exigida de todas as mulheres, havendo um grande espaço para a negociação ética protegida pelo segredo médico. Se vier a ser confirmada em estudos futuros, essa hipótese poderá criar oportunidades de outras reflexões no campo ético.
A mais importante reflexão é a que sugere haver uma correlação entre classe social e submissão ao poder judicial para o aborto em caso de anencefalia no Brasil. Em serviços de saúde privados, há uma tendência de que um mesmo médico acompanhe o pré-natal de uma mulher, o que não ocorre em muitos serviços públicos. Essa ruptura no acompanhamento da trajetória reprodutiva dificulta a recuperação do dado da autorização judicial por meio de enquete com médicos que trabalham em serviço público. Além disso, deve-se considerar a hipótese de que, em alguns serviços privados de assistência pré-natal, haja a possibilidade de um pacto de solidariedade entre equipe de saúde e mulheres não condicionar o procedimento médico à autorização judicial. O fato é que os estudos empíricos realizados com mulheres que abortaram, especialmente em casos de má-formação fetal, são quase todos conduzidos em serviços públicos de saúde7, onde há maior rigidez quanto à exigência de autorização judicial para o acesso à interrupção da gestação.
A via judicial seria um fenômeno das mulheres mais pobres e usuárias dos serviços públicos de saúde, para quem a exigência da autorização judicial seria condição para o acesso ao aborto, em razão da rigidez no controle da legalidade nesses contextos. Em geral, os serviços públicos de saúde são locais onde há menor espaço para o sigilo médico e a confidencialidade dos dados, o que dificulta a negociação de escolhas privadas em detrimento da lei. Vários estudos sobre as consequências da ilegalidade do aborto no Brasil já mostraram o quanto a restrição do direito e da assistência para essa prática impõe efeitos mais perversos às mulheres pobres7.
Considerações Finais
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) deverá ser julgada pelo STF em 2009. Será a primeira vez que a suprema corte brasileira decidirá uma questão de direito reprodutivo, uma tendência crescente às cortes latino-americanas, como já ocorreu na Argentina e na Colômbia. Por ser um tema rodeado de desafios éticos para a pesquisa, há uma carência de estudos com evidências empíricas sobre o fenômeno do aborto em caso de anencefalia no Brasil. Esta pesquisa, conduzida com médicos ginecologias-obstetras, sinaliza a magnitude do fenômeno médico, jurídico e ético nos últimos 20 anos.
Os resultados mostram que 83,3% dos médicos ginecologistas-obstetras brasileiros já atenderam mulheres grávidas de fetos com anencefalia e que em torno de 84,8% dessas mulheres desejaram interromper a gestação. Esse dado indica o quanto o fenômeno da gestação de fetos incompatíveis com a vida é uma experiência cotidiana às equipes de saúde no Brasil. O reconhecimento do direito ao aborto nesses casos deve ser entendido como uma matéria de ética privada, por isso, mulheres que desejarem manter a gestação ou que optarem pelo aborto serão igualmente protegidas e assistidas pelas equipes de saúde. No entanto, o acolhimento às escolhas sem interferência do Judiciário deve ser entendido também como uma medida terapêutica, pois transfere o tema da esfera do crime para a das decisões éticas cotidianas à assistência em saúde.
A verdadeira magnitude da autorização judicial para o aborto em caso de anencefalia no feto é ainda desconhecida, pois há possibilidades de que nem todos os casos de procedimento médico de aborto tenham sido condicionados à autorização judicial prévia. A pesquisa mostra o quanto o encontro da ética com a justiça e a assistência médica foi um fenômeno crescente para a mediação do desafio do aborto nos últimos 20 anos no Brasil.
A anencefalia é uma má-formação incompatível com a sobrevida do feto após o parto1. As causas da anencefalia são variadas, mas a carência de ácido fólico durante a gestação é uma das mais comuns2. Não há cura ou tratamento para anencefalia, e estima-se que mais da metade dos fetos não sobrevivem à gestação1. Os excludentes de ilicitude para o aborto no Brasil não preveem a situação clínica da anencefalia ou de outras más-formações incompatíveis com a vida do feto, o que obriga as mulheres a manter a gestação ou buscar autorização judicial para interrompê-la sem risco de punição. Alguns estudos mostram que o recurso ao Poder Judiciário para a autorização do aborto em caso de feto incompatível com a vida é um fenômeno que teve início nos anos 1990 no Brasil3.
Uma ação de anencefalia foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2004, por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com suporte técnico da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero4. Nesse mesmo ano, uma medida liminar concedida pelo STF autorizou que mulheres grávidas de fetos com anencefalia optassem pela interrupção da gestação, assim como protegeu os profissionais de saúde que atuassem em tal procedimento médico5. A liminar foi cassada ainda em 2004, mas o mérito da ação não foi julgado até o presente momento6, havendo a expectativa de que o caso seja finalizado em 2009.
Sob a compreensão de que o Código Penal não autoriza o aborto em caso de anencefalia no feto, hoje, as mulheres que desejam interromper a gestação não podem fazê-lo, a não ser que busquem individualmente autorização judicial. Porém, elas não têm garantias de obter a autorização, afinal, dependem da interpretação que o juiz ou promotor dará a cada caso. Esse quadro de exigência de autorização judicial para o procedimento médico é ainda mais agudo para as mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual o controle de legalidade do procedimento é maior e, de forma concreta, constitui condição para o direito à assistência7.
Há uma série de desafios éticos na pesquisa sobre o aborto no Brasil. O mais importante é que o cenário de criminalização dificulta a recuperação dos dados, pois a participação em uma pesquisa pode trazer riscos à mulher que realizou um aborto7. No caso específico da anencefalia ou de outras más-formações incompatíveis com a sobrevida do feto, algumas pesquisas foram conduzidas com mulheres protegidas por autorização judicial8, ao passo que a maioria foi realizada com fontes documentais, como alvarás ou despachos do Ministério Público9,10. Os estudos atestam a permanência do recurso ao Poder Judiciário para a garantia do direito ao aborto, sob a tese de que o procedimento médico não deveria se configurar como aborto tal como especificado pelo Código Penal.
A ADPF apresentada ao STF também se amparou nesse giro argumentativo, comum às ações de cortes locais. O objetivo não foi instituir um novo permissivo legal no Código Penal, mas demonstrar que a situação clínica da anencefalia não se enquadraria na determinação penal do crime de aborto. Para que se sustente o argumento de aborto como crime contra a vida em potencial do feto, é preciso que haja expectativa de vida extrauterina, algo inexistente para o feto com anencefalia2. Por esse caminho argumentativo, a ação de anencefalia propôs a categoria médica e jurídica de antecipação terapêutica de parto para representar os procedimentos médicos autorizados judicialmente havia uma década no país4. Uma vez que a realização do aborto por anencefalia no feto não se enquadraria na definição jurídica de aborto segundo o Código Penal, a ação apresentou um novo conceito médico, posteriormente reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, ao definir o feto com anencefalia como “natimorto cerebral”11.
Este artigo verifica a magnitude do fenômeno da assistência médica à mulher grávida de feto com anencefalia, por meio de uma pesquisa empírica com médicos ginecologistas-obstetras filiados à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Dada a dificuldade de recuperação de dados por meio de consulta aos processos judiciais em tribunais locais de todo o país, os médicos são uma fonte alternativa para a representação do fenômeno da garantia judicial e da assistência às mulheres grávidas de feto anencefálico.
Sujeitos e Método
A pesquisa foi realizada com médicos ginecologistas-obstetras filiados à Febrasgo, maior entidade médica no campo da ginecologia e obstetrícia no Brasil. O levantamento de dados foi realizado por um survey eletrônico, postado em um endereço específico para a pesquisa durante o mês de setembro de 2008. O convite à participação foi enviado pela diretoria da Febrasgo ao banco de endereços da entidade, cujo universo de filiados era de mais de 15.000 médicos. A enquete eletrônica era composta de cinco perguntas, três delas com respostas fechadas do tipo “sim” ou “não” e duas delas com respostas abertas do tipo simples (número de mulheres atendidas com gravidez de feto com anencefalia). O questionário foi anônimo, o que garantiu o sigilo das informações. Para evitar respostas duplicadas, o site onde foi depositado o questionário reconhecia o endereço IP do respondente e impedia a dupla entrada do participante.
Em 2008, a Febrasgo contava com mais de 15.000 médicos associados, com representação em todas as cidades do país. Foram enviadas 15.000 mensagens com convite à participação na enquete eletrônica. Destas, 2.500 retornaram por erro de registro do endereço eletrônico ou por inexistência de destinatário. Isso resultou em 12.500 médicos como potenciais participantes da pesquisa. Foram recebidas 1.814 respostas, o que correspondia a 14,5% do total de médicos que deveriam ter recebido o questionário.
Consultou-se os médicos ginecologistas-obstetras sobre sua experiência na assistência da mulher grávida de feto com anencefalia nos últimos 20 anos. O marco temporal de 20 anos de registro da memória dos médicos se justifica, uma vez que foi no início dos anos 1990 que surgiram os primeiros indícios de autorização judicial para a interrupção da gestação em caso de anencefalia do feto no Brasil3,9.
Há duas fragilidades na recuperação dos dados sobre a magnitude da autorização judicial para o aborto em caso de anencefalia por meio da memória dos médicos. A primeira é que o uso da lembrança como recurso de recuperação da informação pode levar a variações no número de casos atendidos, em particular dado o recorte temporal de 20 anos. A segunda é que, nos serviços públicos de saúde, mais de um médico participa do pré-natal de uma mulher, o que pode provocar o múltiplo registro de um mesmo caso. Ou seja, mais de um médico pode recordar-se de ter atendido a mesma mulher grávida de feto com anencefalia.
Somente médicos com experiência prévia de atendimento a mulheres grávidas participaram da pesquisa, tendo sido este um quesito de exclusão à participação. Evitaram-se perguntas relativas a valores ou crenças sobre o aborto, a fim de afastar vieses nas respostas. Duas perguntas procuraram delinear a decisão das mulheres diante do diagnóstico de anencefalia no feto: (1) nos últimos 20 anos, você já atendeu mulheres grávidas de fetos diagnosticados com anencefalia que desejaram interromper a gestação? e (2) nos últimos 20 anos, do total de mulheres grávidas de fetos diagnosticados com anencefalia que atendeu, quantas delas conseguiram na justiça a autorização para interromper a gestação?. As perguntas incluíam a assistência tanto na rede privada quanto na rede pública de saúde.
As enquetes respondidas foram processadas eletronicamente e inseridas em um banco de dados sem eliminação prévia de registros. A partir desses dados, foram realizadas as análises uni e bivariadas apresentadas na seção de resultados. Não houve registros inválidos ou intercorrências que prejudicassem o processo de tabulação. A incidência de respostas em cada etapa do fluxo que começava pelo do envio das enquetes e culminava na contabilização de médicos que atenderam mulheres que desejavam interromper a gestação é apresentada na Figura 1 constante no anexo.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas da Universidade de Brasília, tendo sido aprovado em agosto de 2008. Os médicos registraram o consentimento livre e esclarecido eletronicamente, antes de responder às perguntas da enquete.
Resultados e Discussão
Dos 1.814 médicos ginecologistas-obstetras que responderam à enquete, 1.804 haviam atendido mulheres grávidas nos últimos 20 anos. A grande maioria desses médicos (1.503 de 1.804 ou 83,3%) tinha atendido pelo menos uma grávida de feto com anencefalia (Figura 1). Como a pesquisa incluiu médicos com pouco tempo de prática obstétrica, essa proporção pode ser ainda maior caso se considere apenas a experiência dos médicos com maior percurso profissional. Isso significa que a prática de assistência à mulher grávida de feto com anencefalia é compartilhada por quase todos os ginecologistas-obstetras durante o seu curso de vida profissional. Além disso, atender uma grávida com feto anencefálico não é algo tão excepcional, já que a média foi de 6,5 casos em até 20 anos de prática, para um total de 9.730 grávidas com essa experiência (Figura 2).
Os dados também permitem verificar que quase 85% dos médicos que atenderam casos de anencefalia relataram que as mulheres desejavam interromper a gestação (Figura 1). Os resultados revelam que 3.602 mulheres atendidas conseguiram na justiça a autorização para interromper a gravidez. No entanto, os dados não permitem saber quantas das 9.730 mulheres grávidas de fetos com anencefalia teriam declarado o desejo de solicitar a interrupção aos médicos. Como o objetivo da pesquisa era o de explorar a magnitude da assistência médica às mulheres grávidas de fetos com anencefalia e, secundariamente, levantar informações sobre a busca por autorização judicial nesses casos, não foram feitas perguntas que pudessem criar receios jurídicos ou éticos, tais como o da realização do procedimento médico sem autorização judicial.
Os dados permitem afirmar que 37% (3.602 entre 9.730) das mulheres que tiveram gravidez de feto com anencefalia conseguiram autorização judicial para interromper a gestação; porém, não revelam qual é a porcentagem das que desejavam o aborto e efetivamente obtiveram essa autorização. Caso se transfira o dado de 84,8% de médicos que atenderam mulheres que desejavam interromper a gestação às 9.730 mulheres grávidas de fetos com anencefalia, chega-se a uma estimativa de 8.251 mulheres que teriam desejado interromper a gestação, tendo 43,7% delas (3.602 entre 8.251) obtido autorização para fazê-lo (Figura 2). Esse resultado pode ser interpretado de três maneiras.
Em uma primeira hipótese, isso poderia sugerir que mais da metade das mulheres que desejaram interromper a gestação solicitou, mas não conseguiu autorização judicial. Essa, no entanto, não é uma afirmação possível de se fazer nesta pesquisa e não é o resultado encontrado em estudos qualitativos com decisões judiciais e autorizações do Ministério Público, que demonstram tendência favorável ao aborto em caso de anencefalia no feto9,12.
A segunda possibilidade é que as mulheres não busquem a justiça para interromper a gestação após o diagnóstico de anencefalia no feto, seja por subordinação à ordem penal, seja por desconhecimento do processo judicial ou, ainda, por falta de acesso à Justiça. Esse é um caminho interpretativo que necessitaria ser explorado, uma vez que grande parte dos estudos empíricos brasileiros foi conduzida com mulheres durante o processo judicial, ou seja, após a tomada de decisão pelo aborto ou após sua finalização, no caso dos estudos documentais9,12.
A terceira possibilidade, e talvez a com maiores chances explicativas sobre o fenômeno, é que a autorização judicial não é exigida de todas as mulheres, havendo um grande espaço para a negociação ética protegida pelo segredo médico. Se vier a ser confirmada em estudos futuros, essa hipótese poderá criar oportunidades de outras reflexões no campo ético.
A mais importante reflexão é a que sugere haver uma correlação entre classe social e submissão ao poder judicial para o aborto em caso de anencefalia no Brasil. Em serviços de saúde privados, há uma tendência de que um mesmo médico acompanhe o pré-natal de uma mulher, o que não ocorre em muitos serviços públicos. Essa ruptura no acompanhamento da trajetória reprodutiva dificulta a recuperação do dado da autorização judicial por meio de enquete com médicos que trabalham em serviço público. Além disso, deve-se considerar a hipótese de que, em alguns serviços privados de assistência pré-natal, haja a possibilidade de um pacto de solidariedade entre equipe de saúde e mulheres não condicionar o procedimento médico à autorização judicial. O fato é que os estudos empíricos realizados com mulheres que abortaram, especialmente em casos de má-formação fetal, são quase todos conduzidos em serviços públicos de saúde7, onde há maior rigidez quanto à exigência de autorização judicial para o acesso à interrupção da gestação.
A via judicial seria um fenômeno das mulheres mais pobres e usuárias dos serviços públicos de saúde, para quem a exigência da autorização judicial seria condição para o acesso ao aborto, em razão da rigidez no controle da legalidade nesses contextos. Em geral, os serviços públicos de saúde são locais onde há menor espaço para o sigilo médico e a confidencialidade dos dados, o que dificulta a negociação de escolhas privadas em detrimento da lei. Vários estudos sobre as consequências da ilegalidade do aborto no Brasil já mostraram o quanto a restrição do direito e da assistência para essa prática impõe efeitos mais perversos às mulheres pobres7.
Considerações Finais
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) deverá ser julgada pelo STF em 2009. Será a primeira vez que a suprema corte brasileira decidirá uma questão de direito reprodutivo, uma tendência crescente às cortes latino-americanas, como já ocorreu na Argentina e na Colômbia. Por ser um tema rodeado de desafios éticos para a pesquisa, há uma carência de estudos com evidências empíricas sobre o fenômeno do aborto em caso de anencefalia no Brasil. Esta pesquisa, conduzida com médicos ginecologias-obstetras, sinaliza a magnitude do fenômeno médico, jurídico e ético nos últimos 20 anos.
Os resultados mostram que 83,3% dos médicos ginecologistas-obstetras brasileiros já atenderam mulheres grávidas de fetos com anencefalia e que em torno de 84,8% dessas mulheres desejaram interromper a gestação. Esse dado indica o quanto o fenômeno da gestação de fetos incompatíveis com a vida é uma experiência cotidiana às equipes de saúde no Brasil. O reconhecimento do direito ao aborto nesses casos deve ser entendido como uma matéria de ética privada, por isso, mulheres que desejarem manter a gestação ou que optarem pelo aborto serão igualmente protegidas e assistidas pelas equipes de saúde. No entanto, o acolhimento às escolhas sem interferência do Judiciário deve ser entendido também como uma medida terapêutica, pois transfere o tema da esfera do crime para a das decisões éticas cotidianas à assistência em saúde.
A verdadeira magnitude da autorização judicial para o aborto em caso de anencefalia no feto é ainda desconhecida, pois há possibilidades de que nem todos os casos de procedimento médico de aborto tenham sido condicionados à autorização judicial prévia. A pesquisa mostra o quanto o encontro da ética com a justiça e a assistência médica foi um fenômeno crescente para a mediação do desafio do aborto nos últimos 20 anos no Brasil.










