0284/2024 - A neoinstitucionalização no contexto da reforma psiquiátrica: uma análise sobre o percurso de usuários de CAPS
Neoinstitutionalization in the context of psychiatric reform: an analysis of the journey of CAPS users
Autor:
• Luisa Motta Corrêa - Corrêa, L. M. - <luisamottacorrea@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6350-5979
Coautor(es):
• Rossano Cabral Lima - Lima, R. C. - <rossanolima@ig.com.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8583-4535
Resumo:
A desinstitucionalização promove a retirada de usuários dos manicômios com o apoio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como base. Um dos principais impasses atuais é a emergência de instituições particulares/religiosas que reatualizam o modelo manicomial. Para analisar o que leva à neoinstitucionalização nestes espaços, foi feita uma etnografia sobre nove casos de quatro CAPS das três RAPS do município do Rio de Janeiro, por meio de leituras de prontuários, entrevistas com o paciente, familiares, técnicos e gestores do CAPS e da instituição. Estes usuários foram institucionalizados apesar do acompanhamento no CAPS, sendo selecionados para a pesquisa devido à diversidade de características, territórios e destinos institucionais que permitiram investigar. Concluiu-se que a neoinstitucionalização é motivada por diferentes fatores: crise, imaginário manicomial, desarticulação e precarização das redes intra e intersetorial, equipes reduzidas e número insuficiente de serviços territoriais, institucionalização dos CAPS, baixa capacidade de acolhimento à crise, sobrecarga familiar e expectativa sobre a família, falta de suporte regular aos familiares e de projetos de moradia para usuários cujos cuidadores morreram, envelheceram ou adoeceram.Palavras-chave:
saúde mental; desinstitucionalização; Atenção PsicossocialAbstract:
Deinstitutionalization promotes the removal of usersasylums with the support of the Psychosocial Care Network (RAPS), which has the Psychosocial Care Centers (CAPS) as its base. One of the main current impasses is the emergence of private/religious institutions that re-update the asylum model. To analyze what leads to neoinstitutionalization in these spaces, an ethnography was carried out on nine casesfour CAPS of the three RAPS in the city of Rio de Janeiro, through readings of medical records, interviews with the patient, family members, CAPS technicians and managers and of the institution. These users were institutionalized despite the support of the CAPS, being ed for the research due to the diversity of characteristics, territories and institutional destinations that could be investigated trough their cases. It was concluded that neo-institutionalization is motivated by different factors: crisis, asylum imaginary, disarticulation and precariousness of intra- and intersectoral networks, reduced teams and insufficient number of territorial services, institutionalization of CAPS, low crisis reception capacity, family overload and expectations on the family, lack of regular support for family members and housing projects for users whose caregivers have died, aged or become ill.Keywords:
mental health; deinstitutionalization; Psychosocial CareConteúdo:
Quando falamos sobre reforma psiquiátrica, o conceito de desinstitucionalização se revela como potente analisador dos avanços, impasses e fracassos do movimento. Segundo os líderes da reforma italiana, este processo envolve não só a desospitalização, mas também a desconstrução da lógica manicomial e a construção de uma rede substitutiva, que, no Brasil, tem o CAPS como base principal , . Um dos principais impasses do cenário atual é a emergência de instituições particulares/religiosas/filantrópicas que reatualizam traços do modelo manicomial, produzindo novas formas de tutela da loucura. Olhar para estes retrocessos e investigar os percursos que levam a isso se faz urgente para garantir a continuidade da reforma psiquiátrica.
Apesar da escassez de material bibliográfico sobre neoinstitucionalização, há uma vasta bibliografia sobre porta giratória, que pode dar pistas dos fatores implicados no insistente movimento de exclusão da loucura. Este fenômeno começou a ser estudado na década de 1960, sendo considerado uma consequência de processos de reforma da assistência psiquiátrica em diversos países. O método para definir a porta giratória se baseia em uma razão entre a frequência de reinternações e o tempo de estudo, que podem variar em diferentes proporções: duas ou mais internações no período de um ano; três ou mais no período de dois anos; quatro ou mais em um período de cinco anos; quatro ou mais sem intervalo superior a dois anos e meio, no curso de dez anos (PARENTE et al., 2007). O fenômeno é objeto de uma série de estudos em diferentes países, que evidenciam o quanto muitas vezes a internação de longa permanência não vem sendo substituída pelo cuidado em liberdade, mas sim por sucessivas reinternações. Uma série de pesquisas foi desenvolvida para identificar as razões da porta giratória, mostrando o seu caráter multifatorial , . Segundo estas, além do curso e da natureza do transtorno mental, as altas taxas de reinternação psiquiátrica também refletem a resistência ao tratamento e a não adesão à prescrição medicamentosa, a falta ou baixa qualidade do acompanhamento pós-alta, deficiências do sistema de saúde, fatores sociais como a escassez de recursos comunitários, ni?vel socioecono?mico, educação deficitária, desemprego, origens culturais, problemas de moradia, falta de redes de suporte, estigma e dificuldade de reinserção social após a desospitalização. As condições do paciente, a família, a comunidade e a instituição psiquiátrica estão em jogo no processo que leva à porta giratória, não sendo suficiente um só instrumento para avaliar o fenômeno .
Em relação à neoinstitucionalização6 propriamente dita, que consiste em novas formas de institucionalização, não foram encontradas pesquisas sistemáticas sobre a permanência de usuários de saúde mental neste circuito. Apesar disso, o problema é reconhecido por uma série de autores, ao constatarem que, em muitos casos, a transinstitucionalização entrou no lugar da desinstitucionalização. Como mostra Rotelli7, a transinstitucionalização consiste na passagem de pacientes dos antigos manicômios para casas de repouso, albergues para idosos, “cronicários ‘não psiquiátricos’”. Na ausência dos grandes hospitais psiquiátricos, muitos usuários, ao invés de serem liberados para a comunidade, passaram a viver em asilos, casas de repouso, abrigos, comunidades terapêuticas e até prisões ,1,8,9,10,11. Seja pela passagem direta de uma instituição a outra – a transinstitucionalização - ou por novas internações daqueles que jamais haviam passado por internação de longa permanência, a neoinstitucionalização vem se colocando como obstáculo para a concreta efetivação da reforma psiquiátrica. Há um vasto debate sobre comunidades terapêuticas (CTs), mostrando que elas vêm reatualizando a lógica manicomial ao isolar sujeitos em uma rotina disciplinar pautada em tarefas repetitivas, laborterapia, religião e até castigos em caso de descumprimento das ordens, o que leva à massificação das subjetividades e à mortificação do eu anterior à institucionalização, como nas instituições totais12. Este circuito vem sendo estimulado pelas próprias políticas públicas. Medidas tomadas pelo governo Temer, a partir de 2016, e aprofundadas nos primeiros meses do governo Bolsonaro, a partir de 2019, levaram à ampliação do financiamento das comunidades terapêuticas e à redução no ritmo de cadastramento dos CAPS. Na Nota Técnica 11/2019, sobre a “nova política de saúde mental”, foi dada ênfase especial às CTs e à sua política de abstinência no tratamento da dependência química. No governo Lula, o incentivo a estas instituições se manteve com a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, em início de 2023, que embora tenha mudado de nome, continua abrindo caminho para o financiamento e a expansão destes serviços no país.
Entre 1966 e 1985, havia 108 CTs no Brasil, ao passo que atualmente já se identificam pelo menos 1.950 unidades13. O objetivo de ajustar condutas se evidencia nos novos usos que estão sendo feitos das comunidades terapêuticas. Se inicialmente a intenção era tratar apenas pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, hoje em dia estas comunidades vêm recebendo pacientes com diversos tipos de transtornos mentais (muitos sem possibilidade de retorno familiar), idosos sem moradia, pessoas de baixa condição econômica ou cujos comportamentos são considerados moralmente desviantes da norma, moradores de rua, e adolescentes cumprindo medidas socioeducativas ou protetivas14. Estas situações evidenciam que as comunidades ganharam a função de isolar sujeitos com condutas socialmente condenadas.
A tendência a excluir a loucura em espaços como este revela que, embora o manicômio enquanto estabelecimento venha sendo derrubado, a lógica manicomial ainda permanece. Isto fica evidente quando vemos os próprios serviços da reforma psiquiátrica desarticulados da rede, fechando-se em si mesmos, bem como perpetrando uma abordagem pautada no diagnóstico, na doença e na prescrição de medicamentos15,16. As mentalidades manicomiais também se mostram na rejeição de muitas vizinhanças à implantação e permanência de residências terapêuticas (RT), dificultando a ressocialização dos usuários desospitalizados.
Para analisar os fatores que levam à neoinstitucionalização e em que medida os CAPS, famílias e outros atores da rede e da sociedade estão implicados nisso, foram analisados casos de usuários que se tratavam nos serviços substitutivos e acabaram sendo institucionalizados. Os detalhamentos metodológicos e material primário desta pesquisa constam na tese intitulada “A persistência da institucionalização em tempos de reforma psiquiátrica: uma etnografia sobre casos acompanhados por CAPS da cidade do Rio de Janeiro”, disponível no repositório da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/18045).
Metodologia
Para aceder à estrutura de sentidos e valores subjacentes à neoinstitucionalização, optou-se pela etnografia, “descrição densa”17 capaz não só de acompanhar os fatos, mas de construir uma interpretação sobre eles junto aos sujeitos do estudo. Em meio aos signos, imaginários e sociabilidades construídos num contexto sociocultural, a loucura passa a ser vista sob determinada perspectiva e a gerar determinados sentimentos, determinantes do tipo de tratamento que lhe será reservado. Para acessar estes sentidos, foram feitas leituras de prontuários, entrevistas com o paciente, familiares, técnicos e gestores do CAPS de referência e da instituição onde está institucionalizado e diário de campo sobre a experiência nos diferentes espaços. Estas técnicas compuseram estudos de caso que permitiram transformar experiências singulares em analisadoras da situação-problema18.
Para abarcar a diversidade de áreas do município, optou-se por fazer a pesquisa nas três RAPS: Centro-Sul, Zona Norte e Zona Oeste. Com base nos contatos preliminares com os gestores, foram escolhidos quatro serviços, nomeados pelas letras do alfabeto para preservar o sigilo: A, B, C, D.
A apresentação da pesquisa nas reuniões de equipe dos CAPS permitiu o mapeamento dos casos em situações de neoinstitucionalização e a escolha dos nove que compuseram o estudo. Assim como sugere Patton19, esta “amostra” foi escolhida sobretudo pela diversidade de dinâmicas, características e destinos institucionais que permitiu investigar. Como se trata de pesquisa com seres humanos, o estudo foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética da Secretaria Municipal de Saúde da cidade do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da UERJ, sob o número 27834619.0.0000.5260. Para preservar o anonimato, todos os nomes usados são pseudônimos.
Resultados
Os casos:
RAPS Zona Oeste:
CAPS A
Augusta – nascida em 18/10/1945, teve a primeira crise após engravidar, com aproximadamente 19 anos e, desde então, sofreu inúmeros surtos psicóticos nos quais ficava muito violenta, quebrando coisas e agredindo pessoas, o que culminou em uma institucionalização de aproximadamente 30 anos em hospitais psiquiátricos. Em 2015, passou pelo processo de desospitalização com acompanhamento do CAPS de referência da região onde viveu e ainda vive sua irmã/curadora. Como ela era idosa e já cuidava da filha “bipolar”, não pôde recebê-la em casa e Augusta foi para uma residência terapêutica pública. Passava a maior parte do tempo reclusa, recusando-se a frequentar o CAPS ou fazer passeios. Em contrapartida, o serviço fazia algumas visitas domiciliares (VD), atendimentos no serviço e fornecia medicações. Após aproximadamente 1 ano, a irmã, que tinha muita resistência a dialogar com o CAPS e repassar o valor da aposentadoria de Augusta para a RT, optou por transferi-la para um asilo particular, sob a alegação de que lá ela teria um suporte médico mais adequado. Segundo relato da cuidadora e da ex-coordenadora da RT nas entrevistas, a curadora se incomodava com a necessidade de entregar todo o dinheiro de Augusta a ela na residência e buscava um controle total sobre o recurso, o que pôde ser obtido com a saída da RT e a inserção da usuária em uma instituição asilar. Ela permanece restrita a esta instituição até hoje.
Eduardo – nascido em 15/05/1987, foi adotado ainda bebê. O quadro de esquizofrenia desencadeou-se após a morte do pai, quando Eduardo tinha 22 anos e passou a se sentir perseguido, apresentar ideias megalomaníacas e ideação suicida. A mãe cuidava dele sozinha e, como relatou na entrevista, sofria de “depressão e síndrome do pânico”, não encontrando tratamento pela clínica da família. Eduardo iniciou acompanhamento no CAPS em 2009. Passava por consultas psiquiátricas e tinha um projeto terapêutico que envolvia oficinas no serviço, mas nunca frequentou regularmente. Viveu inúmeras situações de crise, ocasiões em que invadia casas vizinhas, movido por ideias delirantes, e era ameaçado de morte pela milícia local. Por isso, passou por algumas internações em hospitais públicos, até que foi institucionalizado em uma comunidade terapêutica, onde ficou internado 3 vezes, a terceira sem retorno previsto.
RAPS Zona Norte
CAPS B
Roberto – nascido em 4/09/1979, passou a se sentir perseguido e parou de frequentar a escola aos 16 anos. Após muitas internações, iniciou tratamento no CAPS em 2013. Sofria com ideias persecutórias e, às vezes, se tornava agressivo. Participava da convivência e da oficina de futebol devido ao interesse pelo jogador Romário. Com a morte da sua mãe e cuidadora, em 2014, o pai/curador optou por interná-lo em um hospital psiquiátrico particular em outro território, indicado por um pastor, pois alegava que não era possível cuidar do filho com a sua rotina de trabalho diária. O CAPS havia oferecido que ele deixasse Roberto no serviço todos os dias, mas isso não foi suficiente para demovê-lo da ideia de que a internação era a única saída possível. Nesta instituição, Roberto veio a morrer, em fevereiro de 2021, pelo que o administrador nomeou como “morte cerebral”.
CAPS C
Severino – nascido em 6/06/1959, apresentava irritabilidade, agressividade e dificuldade de interação social desde criança. Em 1994, foi institucionalizado na Colônia de Rio Bonito, no interior do estado do RJ, de onde só saiu em 2012, passando pelo processo de desospitalização com o auxílio do CAPS. Como tinha recursos financeiros, que se somaram à Bolsa de Volta para Casa, e a irmã/curadora, única parente ainda viva, sente medo dele e encontra-se sozinha para o cuidado, foi para uma “Residência Terapêutica” particular, indicada pela profissional que acompanhava Severino no instituto psiquiátrico onde ficou durante o processo de desospitalização. Embora fosse elegível para a RT pública, o fato de haver uma irmã viva, apesar de indisponível para o cuidado, determinou o destino do usuário. Lá, permanece até hoje, com uma rotina bastante fechada, recusando-se a ir ao CAPS ou fazer passeios. Raramente, vai ao serviço para passar por consulta psiquiátrica.
Jorge – nascido em 21/04/1961, apresentava agressividade e dificuldades nos relacionamentos sociais desde a infância. Na adolescência, passou a fazer uso abusivo de drogas. Em algumas situações, agredia a mãe violentamente. Passou por inúmeras internações particulares e, quando os pais já haviam morrido, a irmã, que assumiu sua curatela, o levou para o CAPS, em 2015, após um acompanhamento psiquiátrico ambulatorial pouco efetivo na rede pública. Como ele se recusava a ir ao serviço, eram feitas VDs, que se tornaram menos frequentes com o tempo. Foi internado algumas vezes no instituto psiquiátrico da região, até que, em 2017, a irmã optou por institucionalizá-lo em uma "Residência Terapêutica” particular, pois não suportava mais lidar com a agressividade de Jorge, a extrema desorganização psíquica e o uso abusivo de substâncias, somado às reivindicações da vizinhança para que saísse do prédio e ao fato de ter que cuidar de sua própria filha e neto. Jorge morava sozinho. Após 7 meses “internado” na RT particular, conseguiu sair com o auxílio de uma equipe de acompanhantes terapêuticos particulares, que passaram a oferecer um apoio intensivo em casa, auxiliando nas tarefas domésticas e oferecendo escuta no dia a dia do lar.
Vitor – nascido em 9/02/1964, sofreu a primeira crise aos 18 anos. Apresentava e ainda apresenta momentos de muita agressividade verbal e física, bem como dificuldade de dormir à noite. Circulava por diferentes lugares da cidade de madrugada e sobrecarregava seus pais, com quem morou até ser institucionalizado. Para protegê-los das agressões de Vitor e do trabalho que ele dava para a mãe/cuidadora, o irmão optou por institucionalizá-lo em uma “Moradia Assistida” particular, onde estava até o momento da pesquisa. Foi colocado um cadeado na porta para barrar as saídas do paciente, por ele não cumprir os restritos horários estabelecidos pela instituição. Já se tratava no CAPS desde 2013, para onde foi encaminhado pela psiquiatra do serviço ambulatorial após um tempo de um acompanhamento que não oferecia a intensividade da qual ele necessitava. As passagens pela emergência eram frequentes. O projeto terapêutico do CAPS se resumia a oficinas terapêuticas que Vitor não frequentava com regularidade.
RAPS Centro-sul
CAPS III D
Sandra – nascida em 30/10/1971, ela apresentou os primeiros sinais de autismo entre 2 e 3 anos de idade. Com aproximadamente 4 anos, foi institucionalizada, passando por diferentes clínicas públicas ou conveniadas. Apenas em 2016, deu-se o processo de desospitalização com auxílio de um CAPS III. Como o pai já havia morrido e a mãe não estava disposta a ficar com ela, Sandra foi para uma RT ligada ao serviço, onde permaneceu por poucos meses, porque a vizinhança pressionava pela sua saída e internação, devido aos gritos e autoagressões que costumava praticar nos momentos de crise. Para não arriscar a permanência da RT naquele imóvel, a própria superintendência de saúde mental entendeu que a usuária não deveria continuar ali. Consequentemente, foi para o acolhimento 24h do CAPS III em novembro de 2016, onde acabou permanecendo institucionalizada por 4 anos, devido à ausência de outros dispositivos de moradia para abrigá-la. No final de 2020, foi finalmente para uma RT em outro território, que por ser distante dos centros urbanos privilegiados, apresentava menos riscos de rejeição à usuária.
Francisco – nascido em 6/03/1955, Francisco iniciou uso abusivo de drogas na adolescência e sofreu inúmeras crises em que ficava agressivo, com ideias grandiosas e persecutórias, passando por numerosas internações. Em 1994, causou o óbito da tia que cuidava dele em um conflito, o que levou à sua institucionalização em hospitais de custódia e tratamento por 18 anos. Em 2012, iniciou-se o processo de desospitalização, até que em 2016, com o apoio do CAPS, foi para uma “Residência Terapêutica” particular, por ter renda e “família” (pai doente e irmãos indisponíveis para o cuidado). Após alguns meses nesta instituição particular e algumas crises, foi “expulso” do local e direcionado ao acolhimento 24h do CAPS III, onde ficou por 7 meses, sendo depois direcionado a outra “Casa” privada, onde permanece até a data da entrevista. O dono da instituição de moradia assumiu sua curatela, já que o curador anterior, cunhado de Francisco, não repassava seu dinheiro devidamente à “Casa”.
Neide – nascida em 12/01/1961, ela sofreu inúmeras crises ao longo da vida, apresentando agressividade, ideias persecutórias, alucinações e exaltação emocional. Foram várias internações antes de chegar ao CAPS, em 2016. Devido à resistência em comparecer ao serviço, eram feitas VDs regulares. Com a morte de sua tia/curadora e única cuidadora, aos 93 anos, em 2018, Neide ficou sem moradia. Desde então, passou por diferentes instituições, desde um tempo prolongado no acolhimento 24h do CAPS, até abrigo público e uma “Casa” particular, onde permaneceu por pouco mais de 2 anos, mesmo que a contragosto. Quando o dinheiro deixado pela tia acabou, ela foi direcionada para uma instituição filantrópica espírita em território distante.
Discussão
As diferentes formas de institucionalização relatadas têm caráter multifatorial. Os significados e circunstâncias identificados em cada caso se conectam e entrelaçam, mas para ajudar na compreensão, serão organizados em diferentes subtópicos/categorias.
Famílias
Na maioria dos casos, o cuidado é exercido por mulheres, demonstrando que a centralidade das figuras femininas nesta função permanece. A morte, adoecimento, envelhecimento ou sobrecarga das cuidadoras é, portanto, determinante no destino dos usuários. Mães, irmãs e tias se colocam à frente do cuidado, sem que haja outros membros para dividir esta tarefa ou até substituí-las no caso de morte, adoecimento ou envelhecimento. Quando outros parentes entram em cena ou se veem diante de uma situação mais tensa, acabam optando por uma instituição.
Seja por iniciativa das próprias cuidadoras ou dos parentes chamados a cuidar na ausência delas, estas situações demonstram que a família tem se tornado o novo agente da institucionalização. Como não cabe mais ao Estado circunscrever os pacientes graves aos hospitais psiquiátricos, os familiares passam a exercer esta função por outras vias, privadas, religiosas ou filantrópicas. Conforme a psiquiatria é desinstitucionalizada, os pacientes são reinstitucionalizados na e pela família típica20. Vale salientar que é comum a família buscar a instituição fechada nos momentos de crise do usuário, como ficou claro nos casos de Vitor, Jorge e Eduardo. Segundo Elia21, o paradigma psiquiátrico é frequentemente ativado por situações de crise, o que se evidencia quando vemos não só familiares, mas vizinhos clamando pela internação nestes momentos. O caso de Sandra é emblemático desta tendência. Como visto, a pressão da vizinhança pela sua internação quando demonstrava autoagressividade e agitação precipitou a institucionalização no acolhimento 24h do CAPS. O caso de Jorge também é um exemplo disso, considerando que a irmã, além de se ver sobrecarregada pelas crises do usuário, ainda tinha que lidar com as reivindicações da vizinhança para que ele fosse retirado do prédio.
No mesmo passo que os parentes são convocados a cuidar do membro acometido por grave comprometimento psíquico, eles também passam por processos de desestruturação e desfiliação comprometedores da sua capacidade de cuidar. O mesmo neoliberalismo que se aproveita da política de desinstitucionalização para reduzir drasticamente os investimentos no setor saúde e onerar o grupo familiar, também esvazia outras políticas sociais fundamentais para a sustentação financeira e simbólica desta instituição. Mães, tias e irmãs precisam encontrar forças para administrar a vida do membro com transtorno mental ao mesmo tempo que buscam manter a subsistência, o cuidado de outras pessoas que dependem delas e sua própria estruturação emocional. Pais, irmãos e cunhados se veem impossibilitados de cuidar diretamente por não se identificarem com esse lugar ou não abdicarem de suas rotinas produtivas. Estes perfis corroboram a análise de Vasconcellos22 sobre a situação do Brasil, que aponta para o aumento considerável de pessoas morando sozinhas ou famílias lideradas por mulheres, com vínculos familiares enfraquecidos.
Esse cenário parece revelar as consequências da desfiliação social e do individualismo de massa que lhe é correlato23. A fragilização dos vínculos de trabalho, dos laços parentais e da rede social mais ampla faz com que cada um precise se lançar em busca da própria sobrevivência de forma solitária. O uso que se faz da curatela e dos benefícios assistenciais é emblemático desta conjuntura. Os curadores direcionam os usuários a instituições fechadas e, assim, mantêm o controle sobre sua renda, que, em alguns casos, é vista como fonte de subsistência para famílias calejadas pelo sistema capitalista neoliberal. Atuando como símbolo de poder que autoriza o curador a tomar decisões à revelia do usuário e dos serviços, a curatela facilita as vias rumo à institucionalização. Dos nove casos analisados, sete são curatelados.
CAPS
Os casos nos ensinam que o trabalho territorial e o suporte à família são fundamentais para garantir o cuidado em liberdade. Na única situação em que o usuário conseguiu sair da neoinstitucionalização (o caso de Jorge), foi a atuação intensiva de uma equipe de acompanhantes terapêuticos e a escuta à irmã/cuidadora que fizeram a diferença. Embora o conceito de território seja central para a constituição da atenção psicossocial, o trabalho mais direto no lugar onde a vida do usuário acontece foi terceirizado para uma equipe particular de ATs e apenas se tornou possível porque ele recebe uma boa aposentadoria.
A terceirização do cuidado territorial e as indicações feitas nos casos analisados permitem supor que as tarefas de circular com a pessoa ou acompanhá-la em algumas rotinas domiciliares não são vistas como atribuições prioritárias da atenção psicossocial. Se por um lado, o número reduzido de profissionais e CAPS contribui para diminuir a mobilidade do serviço, por outro, os próprios projetos terapêuticos demonstram que não é só este o problema, pois uma determinada concepção de clínica também está na base destas indicações.
De diferentes formas, os casos estudados demonstram a tendência do serviço comunitário a se fechar em si e a reproduzir práticas assistencialistas ligadas à lógica hospitalar e/ou ambulatorial, restringindo-se a atendimentos ou visitas clínicas agendadas, em um movimento de institucionalização da própria reforma psiquiátrica, já indicado por outros autores24,25,26. Seja por um PTS restrito a oficinas terapêuticas, por uma rotina focada em atendimentos psiquiátricos e reprodução de receitas ou por VDs pontuais, os CAPS tendem ao “encapsulamento”2 e o objetivo da ressocialização não recebe a atenção necessária.
Somado a isso, observou-se uma tendência dos serviços em atribuir responsabilidades aos familiares sem necessariamente garantir seu apoio, o que parece revelar valores que embasam o olhar sobre a família. A concentração dos vínculos de fidelidade e afeto no âmbito familiar doméstico a partir da modernidade tornou este meio o centro das expectativas e cobranças sobre o desenvolvimento de seus membros27. O abandono do paciente à “família culpada”28 é uma expressão desta lógica e se revela tanto nas recomendações dos técnicos sobre o que os familiares devem fazer com o paciente a despeito de suas impossibilidades, quanto na compreensão de que usuários “com família” não são elegíveis para a RT pública. O meio familiar parece se colocar como valor tão absoluto que se desconsideram as reais condições e envolvimento afetivo das pessoas em questão. Na mesma medida em que lhe transferimos responsabilidades, a família encontra formas de repassar este peso para outras instituições.
Para mudar este cenário e desinstitucionalizar a própria assistência em saúde mental, não basta sugerir atividades fora dos serviços e explicar didaticamente às famílias que o cuidado não se dá mais pela via da internação e a responsabilidade agora está com elas. A mudança da lógica não passa apenas por um registro teórico, mas também afetivo, tocando nas experiências e emoções dos atores envolvidos. Neste sentido, a oferta de escuta e suporte emocional aos familiares é fundamental, tornando possível fazer frente à sobrecarga objetiva e subjetiva gerada pelo cuidado. Além disso, o apoio à família na gestão da vida cotidiana dos usuários aliviaria os fatores estressantes que poderiam até desencadear situações de crise29. Por fim, os esforços para a inserção no território deveriam se voltar não apenas ao usuário, mas também aos familiares, expandindo as relações de ambos além do ambiente privado30. Esta seria uma forma de aliviar a sobrecarga gerada pela centralização do cuidado na casa da família “nuclear”.
As instituições
Os casos analisados revelam distintas modalidades de institucionalização: “Moradias/Residências Terapêuticas/Assistidas” privadas, “Casa”/Centro de Convivência, comunidade terapêutica, clínica de repouso/asilo, hospital psiquiátrico particular, abrigo e CAPS III como instituição de longa permanência. Embora algumas destas instituições não sejam de agora, a novidade está nas formas pelas quais elas se atualizam e refazem diante das novas demandas. Na ausência dos antigos manicômios, as famílias e a sociedade como um todo encontram brechas para reformular o isolamento da loucura, adaptando as instituições existentes e impulsionando-as a estabelecerem novas articulações e práticas. Os diferentes dispositivos expressam graus variados de tutela, num espectro que tem o hospital, o asilo e a CT nos níveis mais altos e as instituições de “moradia” privadas, nos mais moderados.
Em diferentes níveis, os estabelecimentos estudados, sejam hospitais, asilos, CTs ou serviços residenciais, reproduzem características das instituições totais. Em todos eles, as atividades cotidianas são feitas por todos os internos/residentes nos mesmos horários e de forma semelhante. Neste contexto, normas, regras e monitoramentos buscam garantir a manutenção da ordem. Esta rotina pré-determinada, que massifica as subjetividades, favorece a mortificação do eu anterior e a conformação aos moldes institucionais.
O olhar psiquiátrico se mescla a práticas terapêuticas/religiosas que encerram o sujeito num universo de controle químico, emocional e comportamental. Medicações, terapias, orações, reuniões de cunho religioso e atividades diversas se combinam de diferentes formas para que o sujeito mantenha alguma estabilidade emocional e envolvimento no todo da instituição e, assim, continue sua carreira institucional de forma viável, garantindo o sustento do empreendimento. Junto ao equilíbrio emocional se mantém o equilíbrio da empresa, em uma dinâmica que favorece a convivência interna e não a socialização na cidade.
Além destes estabelecimentos, outra descoberta da pesquisa foi o CAPS III enquanto dispositivo de neoinstitucionalização. Como vimos no caso de Sandra, a permanência no acolhimento noturno se prolongou por 4 anos e foi marcada por uma rotina de isolamento no quarto, com pouca circulação. Havia poucos profissionais disponíveis para ajudá-la a sair com frequência, não só pelo baixo número de técnicos como pelo medo da usuária.
No caso de Sandra, as reflexões sobre as características do serviço que fazem dele uma espécie de instituição total esbarram com uma contradição inequívoca: se um dispositivo territorial passa a abrigar seu usuário, respondendo à defasagem de outros recursos, ele deixa de ser substitutivo ao manicômio para substituir a própria moradia que falta àquela pessoa, tornando-se uma nova forma de institucionalização. Tratamento e residência se condensam em um só lugar. Diante da escassez de RTs e da falta de projetos de moradia para determinados casos, o CAPS III acaba por desviar de sua função de atenção à crise e se tornar um ponto de longa permanência na rede. Enquanto a portaria que regulamenta o acolhimento noturno limita o repouso e/ou observação a sete dias corridos ou dez dias intercalados em um período de 30 dias por paciente, as situações analisadas mostram que, na prática, este período vem sendo consideravelmente excedido. Nos três casos do CAPS III D, o tempo no acolhimento noturno se prolongou após a estabilização do quadro devido à dificuldade de encontrar uma casa para os usuários. O caso de Sandra foi o mais emblemático pela extensão do tempo no serviço, mas Francisco e Neide também passaram por isso, em escala menor.
Redes intra e intersetorial
Os casos analisados revelam fragilidades e deficiências de pontos fundamentais da Rede de Atenção Psicossocial e da articulação entre eles. Como o nome já diz, este cuidado não se resume à atuação do CAPS, mas depende de conexões entre os serviços. O contorno emocional e simbólico capaz de estruturar os familiares depende da presença de profissionais e espaços de escuta também na atenção básica. A ausência deste suporte é marcante em alguns casos.
Para dar voz e amparo às angústias e sofrimentos dos familiares, o CAPS precisa da articulação com outros atores, como a CF e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Quando esta rede não é tecida, os processos de desestruturação social e emocional vivenciados pelos familiares não encontram borda. A fragmentação do sistema de saúde incide sobre as experiências de desagregação individuais, tornando-as ainda mais penosas. A já mencionada desfiliação, que compromete os laços familiares e a referenciação dos sujeitos no mundo, se intensifica. Nos casos de Augusta, Eduardo, Jorge, Roberto, Severino e Vitor, constatou-se a falta ou baixa oferta de escuta e suporte aos familiares pelo CAPS, bem como de comunicação destes serviços com Clínicas da Família e NASF para que pudessem apoiar usuários e cuidadores no território, como fatores que contribuíram para o esgotamento emocional dos familiares e a busca pela institucionalização.
O sistema de saúde deveria atuar construindo referências lá onde a simbolização perdeu seu lugar. O CAPS e a atenção básica não podem existir apenas como serviços estanques, mas sim pontos de ancoragem remetidos um ao outro, proporcionando continuidade ao sujeito, de modo que ele não caia mais uma vez nas fendas abertas pela política neoliberal.
Certamente, esta dinâmica de referenciação não garante apenas a escuta capaz de encadear discursos e ancorar o familiar/cuidador, mas também a agilidade na garantia de um cuidado intensivo em casos difíceis. Ao identificar e acolher um paciente grave de saúde mental, as unidades de atenção básica, ambulatórios, hospitais e emergências devem compartilhar logo o caso com os CAPS, permitindo que o usuário receba um suporte ampliado, o que não ocorreu em alguns casos estudados, como o de Roberto, Eduardo, Jorge e Vitor. Sem o apoio de um Centro de Atenção Psicossocial, estes usuários dependiam de consultas espaçadas e sofriam reinternações ou passagens frequentes por emergências.
Estas situações corroboram a pesquisa de Bezerra e Dimenstein31, segundo a qual a desarticulação entre serviços substitutivos, atenção básica, hospitais gerais, e a ausência de CAPS III mantêm a instituição psiquiátrica como centro de captação dos usuários em crise. Ao invés de recurso clínico, a internação acaba preenchendo a lacuna aberta pela descontinuidade da rede de saúde mental.
No âmbito da atenção básica, o apoio comunitário proporcionado pela estratégia de saúde da família é essencial para ligar o usuário ao território e garantir a sua continuidade lá. Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), peças fundamentais da estratégia, habitam o território da população que cobrem, sendo fundamentais para proporcionar esta vinculação e o suporte domiciliar necessário em situações nas quais o usuário vive sozinho, como Jorge, ou perdeu a figura central do cuidado, como Roberto.
No âmbito intersetorial, outras articulações também seriam fundamentais para a proteção social dos usuários e familiares. Em nenhum dos casos, os dispositivos do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) foram acionados. Como serviços voltados para situações de vulnerabilidade, violência, dificuldade ou falta de acesso a direitos e políticas públicas, estes dispositivos poderiam facilitar o acesso a benefícios, programas e serviços socioassistenciais capazes de estruturar a família para o cuidado do usuário.
A relação com o setor da justiça também merece atenção. Na mesma medida que se concede curatela aos familiares, é preciso fiscalizar o que estão fazendo com esta função. Tanto como objeto de interesse financeiro, como de um olhar que não os vê como sujeitos, os pacientes curatelados são colocados ou mantidos em instituições para que não tragam mais encargos aos familiares, não desacomodem suas rotinas ou não possam controlar seu próprio dinheiro, como se pôde depreender dos casos de 5 usuários que integraram o estudo (Augusta, Francisco, Jorge, Severino e Roberto). É fundamental que os dispositivos substitutivos mantenham contato com a justiça para reportar situações como estas, em que a curatela se torna instrumento de subjugação.
Considerações finais
Assim como o fenômeno da porta giratória, a reatualização da longa permanência institucional em asilos/clínicas de repouso, CTs, CAPS III, hospitais psiquiátricos particulares e “Residências” privadas tem caráter multifatorial. Os diferentes motivos identificados ao longo da etnografia foram: crise, imaginário manicomial, desarticulação e precarização das redes intra e intersetorial, equipes reduzidas e número insuficiente de serviços territoriais, institucionalização dos CAPS, baixa capacidade de acolhimento à crise, sobrecarga familiar e expectativa sobre a família, falta de um suporte regular aos familiares e de projetos de moradia voltados aos usuários cujos cuidadores morreram, envelheceram, adoeceram ou não estão disponíveis para uma moradia compartilhada.
Como visto, as situações de crise ativam a lógica hospitalocêntrica, impulsionando familiares e vizinhos a buscarem ou defenderem a internação permanente. Fica claro nestes momentos que o sentido mais profundo da desinstitucionalização ainda não foi alcançado, pois a instituição psiquiátrica permanece sendo reatualizada nas vozes da comunidade. Por isso, é fundamental que os serviços substitutivos se afirmem como dispositivos de acolhimento à crise no território, impedindo que novas instituições reatualizem esta função.
Foi possível observar ao longo da etnografia que muitas vezes os CAPS não têm conseguido atuar ativamente no território, seja para acolher a crise ou acompanhar o usuário de forma mais cotidiana, o que se explica tanto pela sobrecarga das equipes, quanto pela persistência de uma lógica que institucionaliza os serviços substitutivos, pois ainda os toma como locais de atendimento agendado, onde o paciente precisaria comparecer à despeito de sua condição, como num ambulatório.
A tarefa de desinstitucionalizar não pode prescindir de uma mudança de perspectiva sobre a família. Esta transformação deve se nutrir de uma rede capaz de referenciar usuários e familiares, fazendo frente à desfiliação social23, condizente com a tendência a centralizar na família toda a responsabilidade afetiva e formativa por seus membros. A oferta de suporte psicológico aos cuidadores, a promoção de iniciativas que os conectem a outras pessoas - seja por grupos de ajuda mútua ou outras iniciativas comunitárias -, a presença mais ativa dos ACS em articulação com os CAPS junto aos usuários, contribuindo para conectá-los aos recursos disponíveis no entorno, são iniciativas fundamentais para desinstitucionalizar o próprio meio familiar. A noção de território como lugar de referência identitária se mostra crucial, não só por situar o usuário e evitar a sua exclusão, quanto por alicerçar a família e permitir que escape do enredo privatista. A desinstitucionalização se torna assim um movimento de refiliação, capaz de fazer frente à privatização e individualização das subjetividades.
Nos casos de usuários cujos familiares/cuidadores envelheceram, adoeceram, morreram ou não conseguem mais conviver, a necessidade de pensar para além da família se mostra ainda mais urgente. Como visto, as formas de institucionalização que correm em paralelo à reforma psiquiátrica surgem justamente no ponto de limite das famílias, seja por morte ou sobrecarga. A reversão deste processo depende, então, de políticas públicas que façam o apoio se aproximar cada vez mais do território de vida dos usuários. Para que possam morar sozinhos ou junto a outras pessoas, a intensividade do cuidado não pode ficar restrita ao espaço físico do CAPS e precisa se direcionar à própria moradia.
Embora pareça desalentador, encarar os limites profundos que ainda se impõem à desinstitucionalização não é uma forma de declarar o fracasso do projeto diante de algo maior, mas de lançar luz sobre o quanto ainda precisamos caminhar e sobre a nossa potência neste processo. Como mostra Venturini1, o ato de desinstitucionalizar transforma a saúde mental em tema de uma comunidade inteira, promovendo um encontro de subjetividades que reabilita a cidade. O trabalho com a comunidade, seja para manejar a crise, mediar tarefas domésticas, passear com o usuário ou acolher a família reorganiza o cenário social, fazendo com que a loucura não seja simplesmente inserida na vizinhança, mas que se possa sobretudo inseri-la em outro registro de valores.
Referências
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