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0478/2007 - A relevância do uso de técnicas qualitativas em pesquisas sobre a biomedicina
The relevance of the use of qualitative techniques in research on biomedicine

Autor:

• Kenneth Rochel de Camargo Jr. - Kenneth Rochel de Camargo Jr. - Rio e Janeiro, RJ - IMS/UERJ - <krcj@terra.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3606-5853


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Ao observar-se a forma como estudos qualitativos e quantitativos são relatados na literatura biomédica, vê-se que, além da virtual ausência dos primeiros há uma forma diferenciada na sua apresentação. Os autores de estudos qualitativos parecem necessitar quase que invariavelmente de explicar a necessidade de sua opção pelo qualitativo, o que não ocorre com os estudos quantitativos. Este texto se apóia na epistemologia comparativa de Ludwik Fleck como forma de explorar essas diferenças empiricamente, ilustrando, com base em dois estudos que abordam diferentes aspectos das práticas no campo biomédico, como a investigação com base em técnicas qualitativas pode iluminar diferentes questões desse campo. O artigo conclui com a exposição de algumas características estruturais do campo biomédico que por um lado não seriam bem exploradas a não ser pelo emprego das técnicas qualitativas utilizadas nos respectivos estudos, e que por outro lado ajudam a entender o menor valor atribuído às mesmas no interior do próprio campo.

Palavras-chave: biomedicina; epistemologia; ciências sociais em saúde

Abstract:

On observing how qualitative and quantitative studies are reported in the biomedical literature, it becomes evident that, besides the virtual absence of the former there is a differential form in their presentation. Authors of qualitative studies seem to need almost invariably to explain the necessity of choosing the qualitative approach, whereas that does not happen with quantitative studies. This paper leans on Ludwik Fleck‘s comparative epistemology as a means of exploring those differences empirically, illustrating, based on two studies that deal with different aspects of practice within the biomedical field, how inquiries based on qualitative methods may shed new lights on several issues pertaining to that field. The paper concludes with the presentation of a few characteristics of the biomedical field which wouldn‘t be properly explored unless the qualitative techniques deployed in the respective studies were used, which help as well to understand the lesser value attributed to them within that field itself.

Keywords: biomedicine; epistemology; social sciences in health

Conteúdo:

Charles Taylor1, ao discutir o papel fundamental do círculo hermenêutico para as ciências do homem, contrasta o modo de produção de conhecimento destas, necessariamente qualitativo por conta desta característica, com uma concepção de ciência (até certo ponto datada) como a aplicação de técnicas quantitativas a dados brutos. Como este modelo é difusamente percebido como a “verdadeira ciência”, segue-se uma assimetria fundamental na apresentação de pesquisas empíricas, onde com freqüência os autores sentem-se compelidos a justificar sua escolha metodológica, ao contrário dos que adotam técnicas quantitativas.
Similarmente, num livro de introdução à metodologia qualitativa, Maykrut e Morehouse2p7 fazem a observação de que ao contrário dos métodos quantitativos, com freqüência demanda-se dos primeiros justificativas filosóficas para seu emprego. Segundo estes autores, isto se deve à incompreensão dos princípios filosóficos subjacentes à investigação qualitativa; esta explicação é parcial, como comentarei mais adiante, mas o quê desejo assinalar é uma certa percepção de “inferioridade epistemológica” que leva às situações descritas tanto por Taylor quanto pelos dois últimos autores.
A área de saúde de um modo geral confirma esta regra; basta contemplar qualquer periódico médico para ver-se que a predominância quase absoluta de artigos com base em métodos quantitativos, em especial as técnicas estatísticas. Mais ainda, ao longo do tempo esta é uma tendência crescente, reduzindo-se cada vez mais o espaço para textos baseados em técnicas qualitativas. Apenas a título de ilustração, uma busca na base de dados Ovid em três das mais importantes revistas médicas – New England Journal of Medicine, Lancet e British Medical Journal – pelo unitermo “qualitative research” no triênio 2004 a 2006 não identificou nenhum artigo nas duas primeiras, e apenas um na última. Outro unitermo, “focus group”, não identificou no mesmo período nenhum artigo na primeira, três na segunda e sete na última. O total de artigos publicados pelas revistas no período citado foi, também respectivamente, 4.433, 5.183 e 7.099. Com todas as limitações inerentes à busca por unitermos em bases bibliográficas, trata-se de forte evidência da predominância da lógica quantitativa na publicação.
Esta ampla hegemonia obscurece um aspecto fundamental, contudo: a de que a base de onde surgiu o moderno conhecimento na área de saúde (em particular da medicina), a clínica, é uma técnica essencialmente qualitativa. A medicina moderna nasce, segundo Foucault3, a partir do surgimento de uma disciplina eminentemente qualitativa, a anátomo-clínica e um de seus atributos certamente é o que Ginzburg4 define como paradigma indiciário, isto é um modo de produção de conhecimentos que se concretiza na individualização de singularidades a partir de indícios recolhidos de forma não-sistemática. Isto se reflete na forma como médicos hierarquizam e selecionam diferentes estratégias de validação e incorporação de novos conhecimentos, levando-os a adotar uma estratégia que é ela própria, intuitiva e indiciária, com grande valorização da experiência; mas ainda assim, essa estratégia se rende a um corpo de literatura que é, como já visto anteriormente, quase totalmente quantitativista5.
A articulação entre a perspectiva epistemológica de que só aquilo que é mensurável e generalizado é verdadeiramente “científico” e a estratégia de legitimação da biomedicina frente à sociedade pela sua “cientificidade” são o ponto de emergência da co-produção de duas tendências que se reforçam mutuamente. Por um lado, a produção textual na qual o que é quantificável constitui a quase totalidade do que é publicado; por outro, uma prática profissional em cujo interior as técnicas direcionadas à singularidade e à subjetividade dos pacientes é desvalorizada e relegada a segundo plano, ao menos no plano do saber, a começar pelo ensino. Como compreender esta divergência? Este texto pretende apontar para uma possibilidade de resposta a esta questão, bem como apresentar dois exemplos de estudos sobre a própria medicina onde o uso de técnicas qualitativas foi fundamental para por em relevância os aspectos singulares e subjetivos usualmente imperceptíveis pela quantificação. Preliminarmente, contudo, e atendendo ao chamado dos autores citados no início deste texto, devo explicitar o referencial teórico que o embasa.
A referência teórica central deste texto é a epistemologia comparativa de Ludwik Fleck6,7. As próximas linhas apresentarão um esboço breve de seus desdobramentos teóricos; a atualidade e importância de Fleck são comentadas, entre outros, por Ian Hacking8 e Thomas Kuhn9,10pviii-ix.
Dois conceitos são centrais em Fleck: o coletivo de pensamento (Denkkollektiv) e ao estilo de pensamento (Denkstil). O primeiro é definido como "(...) uma comunidade de pessoas intercambiando idéias mutuamente ou mantendo interação intelectual; também veremos por implicação que esta também provê o "suporte" especial para o desenvolvimento histórico de qualquer campo do pensamento, bem como do nível de cultura e conhecimento dados."6p39 e o segundo como "(...) uma constrição definida do pensamento, e até mais; (...) a totalidade da preparação ou disponibilidade intelectuais para uma forma particular de ver e agir ao invés de qualquer outra."6p64. Note-se que o estilo de pensamento não é uma característica opcional que pode ser voluntariamente adotada, mas antes uma imposição feita pelo processo de socialização representado pela inclusão em um coletivo de pensamento.
Fleck distingue duas áreas de importância no interior de um coletivo de pensamento na ciência moderna6p111-2, uma compreendendo os experts que efetivamente produzem conhecimento, por ele chamada de círculo esotérico (ele ainda detalha mais esta região, descrevendo o círculo mais interno de experts especializados e o círculo externo de experts generalistas), e o outra constituída pelos “leigos educados”, o círculo exotérico. Esta topografia permite a distinção entre formas diferentes de comunicação6p112; a ciência dos experts é caracterizada pelo periódico técnico/científico e pelo livro de referência, o primeiro representando o diálogo intenso, fragmentado, pessoal e crítico dentro de um campo dado do conhecimento, e o segundo a organização sinóptica deste6p118; o círculo exotérico é alimentado pelos periódicos de ciência popular ou de divulgação, que são uma “(...)exposição artisticamente atraente, vívida e legível (...) com uma atribuição de valores apodíctica para simplesmente aceitar ou rejeitar um dado ponto de vista”6p112. Finalmente, a introdução ao círculo esotérico – comparada por Fleck a um ritual de iniciação6p54 – é baseada num quarto tipo de meio textual científico, o manual básico6p112.
Estes elementos permitem a construção da geografia de um campo intelectual, descrevendo não apenas pessoas e lugares, mas as trocas que ocorrem entre eles. Note-se que eu não pretendo atribuir a estes objetos mais valor do que o de uma notação conveniente – transformar o modelo de Fleck num relato ontologicamente fundado seria ir contra a própria lógica de suas idéias.
As instituições médicas (incluindo a saúde pública, a assistência à saúde e as escolas médicas), o conhecimento e prática médicos são permeados por um estilo de pensamento específico11. Um complicador adicional é o fato de que a medicina, enquanto prática social, extrai sua legitimidade de sua “cientificidade”, embora não seja ela própria uma ciência em sentido estrito, isto é, ela depende do conhecimento produzido por outras disciplinas. Sendo assim, uma primeira explicação para a menor valorização de técnicas qualitativas passa pela necessidade de se identificar ao modelo das ciências “duras” do campo biomédico, em particular das biociências de um modo geral (como por exemplo a biologia molecular) e a epidemiologia, ambas embasadas em extenso instrumental matemático.
Deste modo, torna-se inteligível a assimetria apontada no início deste texto; o próprio estilo de pensamento da medicina tende a valorizar um conjunto de técnicas que, num certo sentido, lhe são externas, ou ao menos externas ao que este tem de mais específico, isto é, a metodologia clínica.
Como exemplo das questões levantadas até aqui, comentarei rapidamente dois estudos empíricos realizados em momentos diferentes, que tiveram como objeto algum aspecto do campo de atuação da biomedicina: o primeiro sobre a experiência da internação hospitalar12, o segundo sobre o atendimento ambulatorial13.
O primeiro estudo baseou-se na observação participante de estudantes de medicina treinados nessa metodologia, que acompanharam todo o período de internação de 19 mulheres, com duas a três visitas de 30 a 40 minutos cada. O segundo utilizou também a observação participante, com os mesmos estudantes acompanhando consultas ambulatoriais num período de cerca de seis meses. O último estudo foi baseado num conjunto de entrevistas com informantes-chave, selecionados entre os professores mais respeitados (identificados por outro conjunto de entrevistas, com estudantes de medicina) de duas tradicionais faculdades de medicina do Rio de Janeiro.
Tomados em conjunto, estes estudos compõem um painel sobre vários espaços da atuação médica, dos valores e crenças que guiam a sua estratégia de aquisição de informações, ao atendimento prestado em diferentes espaços institucionais. Os dois estudos mostraram a solicitação intensa de algum tipo de laço afetivo por parte dos pacientes, e a não-percepção sistemática dessa busca por parte dos médicos. Eles apontaram ainda para um gap comunicacional na interação médico/paciente, que por vezes pareciam manter um verdadeiro diálogo de surdos, onde ao invés de interação observava-se o estabelecimento de dois discursos paralelos. O segundo estudo apontou para uma relação bastante flexível entre o acervo do conhecimento médico disponível e sua aplicação, mostrando que a prática biomédica não é simples decorrência lógica de um conhecimento transformado em ação. Finalmente, os dois estudos apontaram para a importância do conhecimento formal da biomedicina como aspecto de valorização profissional e mesmo de legitimação social da prática médica, o que auxilia a explicar tanto as dificuldades na interação com pacientes naquilo que escapa a esse modelo (tudo que diz respeito à subjetividade, por exemplo) quanto a valorização dos aspectos mais “duros” do modelo mesmo quando esse não auxilia ou até entra em conflito com as situações encontradas na prática.
Estas inferências, formuladas com base em processo interpretativo orientado pela epistemologia Fleckiana, e dificilmente seriam alcançadas de outra forma. O conjunto destes estudos permitiu explicitar um estilo de pensamento pouco reflexivo com relação às suas próprias bases; que valoriza excessivamente determinados processos de produção de conhecimento sem que estes sejam propriamente apreendidos criticamente, contradizendo em parte as observações de Maykrut e Morehouse2 relatadas no início deste texto; se de fato as concepções filosóficas subjacentes às técnicas qualitativas são pouco conhecidas, isto não autoriza supor por outro lado que inversamente os pressupostos subjacentes às técnicas quantitativas sejam melhor compreendidos. Em particular, estes estudos colocaram em questão a idéia de que a prática médica seja knowledge-driven, ou seja, que o conhecimento técnico determine de forma unívoca as ações dos médicos.


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Citar

Kenneth Rochel de Camargo Jr.. A relevância do uso de técnicas qualitativas em pesquisas sobre a biomedicina. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/ago). [Citado em 17/07/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-relevancia-do-uso-de-tecnicas-qualitativas-em-pesquisas-sobre-a-biomedicina/1007?id=1007

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