0550/2007 - Acessibilidade a benefícios legais disponíveis no Rio de Janeiro para portadores de deficiência física
Accessibility of legal benefits available in Rio de Janeiro to physical handicap
Autor:
• Margareth Pereira Elias - Margareth Pereira Elias - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Instituto Fernandes Figueira - <margaret@iff.fiocruz.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Segundo a OPAS, só 2% dos 85 milhões de pessoas com deficiência têm assistência adequada na América Latina e 10% da população mundial vive com deficiência, mas sem acesso a direitos constitucionalmente adquiridos. A deficiência precisa ser abordada em diferentes níveis: clínico, de reabilitação, social e político. Pobreza e deficiência estão fortemente relacionadas. Estigma, discriminação e incapacidade física e financeira limitam o acesso à educação e saúde, levando a cronificação e agravamento da morbidade, aumentando os custos do tratamento, formando-se um ciclo vicioso que tem que ser quebrado. Embora a Constituição Federal inclua direitos a pacientes deficientes dando acesso à saúde e educação, eles não são obtidos e respeitados. Para compreender o problema, estudou-se o processo de obtenção de 3 destes benefícios em pacientes com deficiência física portadores de Mielomeningocele em Instituto de referência no Rio de Janeiro. Os resultados mostram um baixo índice de obtenção. A burocracia e o custo das múltiplas viagens foram as principais dificuldades, para famílias próximas ou abaixo da linha de pobreza e filhos com problemas de locomoção e doença crônica. Outras dificuldades foram desinteresse profissional, descrédito, sistema educacional despreparado e dificuldades de acesso.Palavras-chave: Portadores de deficiência; Mielomeningocele; Benefícios legais
Abstract:
According to PAHO, only 2 % of Latin America‘s 85 million disabled people receive adequate medical care. Ten percent of the world‘s population lives with disabilities without accessing their constitutional rights. Disability must be addressed on several levels: medical, rehabilitative, social and political. Disability is strongly linked to poverty. Stigma, discrimination and inability to pay limit access to health services and education and ill-health increases the treatment costs, creating a vicious circle to be broken. Although the Constitution includes rights for disabled persons, to increase access to health and education, they are not always obtained or respected. To discuss, better understand and address the problem, the process to obtain 3 of these legal benefits were studied among disabled pediatric patients with Myelomeningocele from a specialized Institute in Rio de Janeiro. Results show low achievement rate. Bureaucracy and multiple travel were main constrains, worsened for lack of time and resources in families struggling with poverty. Other difficulties were lack of professional attention and confidence in the system, problems related to documents, unqualified educational system and locomotion constrains.Key words: Disabled person;Myelomeningocele;Legal benefits
Conteúdo:
O Instituto Fernandes Figueira (IFF)/Fundação Oswaldo Cruz voltado para a saúde da mulher e da criança, é referência para atendimento a nível terciário no Rio de Janeiro. Entre os serviços prestados no IFF encontra-se o atendimento a pacientes com espinha bífida, que é causada por um defeito do tubo neural. A extremidade inferior do tubo neural não se fecha, causando danos medulares irreversíveis. A mielomeningocele (MMC) apresenta-se como uma protusão cística, contendo medula e/ou raízes nervosas. É passível de correção cirúrgica, mas a lesão nervosa é permanente. Múltiplas funções orgânicas podem ser afetadas, de acordo com a extensão e gravidade da lesão, o que leva os pacientes a conviverem, com problemas agudos e crônicos, muitas vezes, concomitantemente2. A MMC constitui a malformação congênita mais comum do Sistema Nervoso Central3-7. O Atlas Mundial de Defeitos Congênitos, publicado pela OMS em 2003, mostrou prevalências variáveis de defeitos do tubo neural para os diferentes países no período 1993-1998. No Brasil, os dados foram coletados nas 11 maternidades acompanhadas pelo Estudo Latino-Americano Colaborativo de Malformações Congênitas (ECLAMC)8. Segundo estes dados, o Brasil figura em quarto lugar na prevalência de espinha bífida, entre os 41 países pesquisados: 1,139 por mil nascidos vivos9. Embora a etiologia da espinha bífida seja desconhecida, considerando-se como de origem multifatorial, pesquisas sugerem que a complementação de ácido fólico antes da concepção reduza bastante a incidência de defeitos do tubo neural 9-11. No Brasil, ainda não existem políticas públicas para garantir a adição nutricional do acido fólico 9.
A lesão pode situar-se em qualquer nível da coluna vertebral e a localização e a extensão do defeito determina a natureza e o grau do problema neurológico12, 13 e conseqüentemente, o grau de comprometimento físico. A hidrocefalia está presente em cerca de 70 a 90% dos casos12, 14. Uma variedade de deformidades nos pés e nas pernas pode ocorrer provocando flexões, contraturas, deslocamentos do quadril ou paralisia flácida. O sistema urinário freqüentemente está afetado, com disfunção miccional por bexiga neurogênica, acompanhada de incontinência urinária e às vezes fecal.
A incontinência urinária vem sendo apontada pelos pacientes e seus familiares como um importante fator discriminatório e obstáculo de integração social, além das demandas constantes de tratamento e cuidados de saúde15, 16. Estas idas e vindas se tornam difíceis para a clientela do IFF, em geral provenientes de camadas mais desfavorecidas da sociedade, residindo longe e com dificuldade de acesso aos locais de tratamento. Uma das dificuldades observadas é a impossibilidade de arcar com custos de transporte para o paciente e seu acompanhante. Muitas vezes, pela dificuldade de locomoção, peso da criança e pela distância a ser percorrida, torna-se necessário que dois adultos acompanhem o paciente a consulta. Outro problema bastante comum, e que afeta negativamente a socialização da criança está relacionado com a aceitação escolar, devido ao estigma da doença e despreparo da rede educacional para incluir estes pacientes17, 18.
Segundo o Decreto nº 914,19 Pessoa com Deficiência (PcD) é aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou reduções de alguma estrutura ou função anatômica, o que gera incapacidade para certas atividades, dentro do padrão considerado normal. Dados do Censo 2000, divulgados pelo IBGE, indicam que 15% da população brasileira possui algum tipo de deficiência 20. A Constituição Federal (CF) de 198821 prevê benefícios específicos para pacientes portadores de deficiência. Não obstante, ainda observa-se pouca efetividade, visto que inúmeros dispositivos legais aguardam, em alguns casos, anos pelo processo de implementação22.
Entre os benefícios incluídos, podem-se citar alguns bastante importantes para os pacientes, como o Benefício da Prestação Continuada, Passe Livre Intermunicipal e Matrícula em Escola Próxima da Residência. No entanto, assim como apontado por Minc22, eles aparentemente não estavam disponíveis.
Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de estudar o real acesso à obtenção destes benefícios, e aprofundar a discussão sobre o tema, a partir das facilidades e dificuldades referidas pelos responsáveis por pacientes portadores de MMC.
DEFINIÇÃO LEGAL DOS BENEFÍCIOS:
Benefício da Prestação Continuada (BPC): institui a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família23. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) definiu como família sem condições de prover à subsistência da PcD que não tem renda própria ou aquela cuja renda per capita seja inferior a ¼ do salário-mínimo (Lei nº 623) 24.
Passe Livre Intermunicipal (PLI): assegura aos portadores de doenças crônicas e às pessoas com deficiência, que apresentam reconhecida dificuldade de locomoção, passe livre nos transportes coletivos de passageiros (rodoviários, metroviários, pré-metroviários e de navegação marítima) a obtenção do Passe Especial 25.
A Matrícula em escola pública mais próxima da residência (ME) é assegurada pela Lei nº 1941 ao educando portador de deficiência física, mental ou sensorial 26.
METODOLOGIA
Através de um estudo descritivo e prospectivo, foram pesquisados pacientes portadores de espinha bífida (MMC), com idades entre 4 e 16 anos, matriculados no IFF/Fiocruz, cujas famílias apresentavam renda per capita comprovada abaixo de ¼ do salário-mínimo e que haviam solicitado ou que já recebessem os benefícios. A renda per capita, a idade escolar e a doença de tratamento continuado são requisitos para a obtenção do BPC, da matrícula em escola próxima da residência e do PLI, respectivamente, por isso, a escolha da faixa etária, de pacientes portadores de MMC e da renda per capita menor que 1/4 do salário-mínimo como critérios de inclusão dos pacientes na pesquisa.
A coleta de dados realizou-se entre dezembro de 2002 e setembro de 2003. Foi necessário de uma a três entrevistas com cada responsável. A pesquisa foi composta de entrevistas baseadas em questionário com perguntas mistas, preenchido pela própria pesquisadora de acordo com as respostas dos entrevistados. Os pacientes foram incluídos neste estudo após a primeira entrevista com os responsáveis. Aqueles que já recebiam os 3 benefícios foram liberados. Os que ainda não recebiam foram orientados e estimulados a procurar seus direitos e retornar para uma segunda e se necessário uma terceira entrevista, em intervalos de 2 meses entre as mesmas.
Os resultados foram analisados utilizando-se percentual de freqüência, o teste de T e o teste qui-quadrado com nível de significância de p<0, 05.
As respostas objetivas foram analisadas de forma quantitativa, listadas uma a uma e expressas em percentagem. As perguntas com margem a respostas abertas que se repetiam com freqüência foram agrupadas e analisadas quantitativamente. As respostas sem similaridade foram analisadas individualmente.
Existe uma tendência para se acreditar que a deficiência física aparente facilite a obtenção dos benefícios. Por isso, os resultados foram também analisados com os pacientes estratificados de acordo com o grau de deficiência.
Por último, observou-se a influência dos esclarecimentos prestados pela pesquisadora e do incentivo para que os responsáveis buscassem novamente os benefícios.
Antes de iniciado, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFF, regulado pelas Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos, através da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, estabelecida em outubro de 1996. O objetivo maior da avaliação ética de projetos de pesquisa é garantir três princípios básicos: a beneficência, o respeito à pessoa e a justiça. Nesta garantia devem ser incluídas todas as pessoas que possam vir a ter alguma relação com a pesquisa, seja o sujeito da pesquisa, o pesquisador, o trabalhador das áreas onde a mesma se desenvolve e, em última análise, a sociedade como um todo.
RESULTADOS
Oitenta pacientes foram incluídos, 41 do sexo feminino e 39 do sexo masculino, com faixa etária entre 4 e 16 anos, média 8,7 ± 3,6 anos. Foram realizadas 153 entrevistas com 80 responsáveis: 78 (97,5%) mães e 2 avós, que tinham a guarda das crianças. Estes números confirmam a mulher como principal cuidadora, e na maioria das vezes, responsável pela manutenção dos cuidados de saúde dos pacientes pediátricos.
A idade média das mães foi de 33,8 anos e a média de filhos por família foi de 2,07 ± 0,92 filhos, o que se encontra abaixo da média descrita pelo Censo 2002 (IBGE) 20, que foi de 2,86 Oitenta por cento dos pais e 71,25% das mães cursaram o ensino fundamental. A média da renda per capita, excluindo o Benefício da Prestação Continuada, foi de 0,39 do salário-mínimo, com renda mínima de 0 (desemprego) e máxima de 0,67 do salário-mínimo. Entre estes, 51,25% possuíam renda superior a 0,25 do salário-mínimo quando entrevistados, mas continuavam recebendo o benefício. Eles foram anteriormente aprovados porque estavam desempregados quando da solicitação, e não tinham sido ainda reavaliados (a lei prevê reavaliação a cada dois anos, o que nem sempre acontece). A maioria das mães (81,25%) não trabalha fora, sendo que 51,25% pediram demissão para cuidar do filho com necessidade especial.
Trinta e sete (46,25%) responsáveis fizeram uma entrevista, 13 (16,25%) duas entrevistas e 30 (37,5%) três entrevistas, perfazendo a média de 1,9 entrevista/responsável.
Dos 80 responsáveis entrevistados, 87,5% receberam orientação sobre os benefícios legais nas instituições de saúde que prestam atendimento aos seus dependentes, sendo que 53,75% foram orientados pelos profissionais de saúde e 33,75% receberam as informações na sala de espera, em conversa com as outras mães. Isso ressalta o valor do conhecimento do profissional de saúde e a importância da instituição propiciar um ambiente de troca de informações entre seus usuários. Apenas 12,5% souberam pela mídia.
A metodologia da pesquisa previu que a pesquisadora esclarecesse e incentivasse os responsáveis a buscar o recebimento dos 3 benefícios contemplados no estudo.
Entre os 80 responsáveis entrevistados, 34% já possuíam todos os benefícios na primeira entrevista. Este percentual subiu para 37,5% na terceira entrevista, realizada cerca de 4 meses após a primeira.
O percentual de pacientes que recebia 2 benefícios era de 31,25% na primeira entrevista, aumentando para 36,25% na terceira entrevista.
Durante a primeira entrevista, 26,25% recebiam apenas um benefício. Este percentual havia caído para 20% na terceira entrevista.
O percentual de pacientes que não recebiam nenhum benefício também caiu de 8,75% na primeira entrevista para 6,25% na terceira. Esses números sugerem um efeito positivo da intervenção da pesquisadora.
O Benefício da Prestação Continuada e a Matrícula Escolar foram solicitados por 83,75% dos responsáveis entrevistados e o Passe Livre Intermunicipal por 82,5% dos mesmos.
Entre os 3, a Matrícula Escolar foi o que teve maior percentual de obtenção. Foi obtida em 71,25% dos casos, e foi considerada como de difícil obtenção por 38,75% dos entrevistados. As dificuldades maiores estiveram relacionadas com a aceitação da criança pela escola. Entre os entrevistados, 61,25% não relataram dificuldades para matricular seus filhos.
O Passe Livre Intermunicipal foi obtido em 66,25% dos casos e considerado de difícil obtenção por 48% dos entrevistados enquanto 51,3% relataram facilidades de obtenção.
O Benefício da Prestação Continuada foi obtido em 65% dos casos, embora tenha sido considerado de difícil obtenção pelo mesmo percentual de entrevistados. Somente 35% dos responsáveis não referiram dificuldades.
Não houve diferença significativa entre os percentuais de obtenção de benefícios, mas os resultados referentes à avaliação de dificuldade e facilidade para obtenção dos benefícios foram estatisticamente significativos.
A principal dificuldade referida no processo de obtenção dos benefícios foi à necessidade de várias idas aos postos de concessão, agravada pela falta de tempo para esses retornos. É importante ressaltar que a existência de pelo menos um destes benefícios está associada com a necessidade de várias idas ao médico e a dificuldade que o paciente crônico ou portador de deficiência e sua família têm de arcar com este ônus (financeiro, social e temporal). Outras dificuldades mencionadas foram o desconhecimento e desinteresse por parte dos funcionários, o descrédito no sistema, problemas com a perícia e documentos.
Especificamente em relação à escola, apesar de ter sido o benefício mais freqüentemente obtido, 71,78% das dificuldades encontradas estiveram relacionados ao despreparo do sistema de ensino para receber crianças com necessidades especiais: em 25,6% dos casos, a dificuldade esteve relacionada à falta de turma, 23% dos responsáveis esbarraram em preconceito dos educadores e 18 % relataram problemas na acessibilidade das instalações. O fato de a criança deficiente ser matriculada na escola não garante necessariamente a sua inserção escolar, embora seja um passo importante para que ela se inicie. Isto já havia sido apontado por Macedo17 quando esta estudou a escolarização de crianças com MMC e por Soares27 em estudo sobre a qualidade de vida de jovens portadores de espinha bífida. Ambos apontam também, que na maioria dos casos a matrícula escolar se faz por absoluta persistência do usuário, e não por incentivo do sistema. Muitas vezes, as mães precisam permanecer ou ir freqüentemente a escola para suprir as necessidades do aluno.
As facilidades referidas foram basicamente ir ao máximo três vezes aos postos de concessão e receber o benefício pelos Correios. Cabe ressaltar que nem sempre os entrevistados valorizaram os problemas encontrados a ponto de classificá-los como dificuldades para obtenção. Isso explica o baixo percentual de pacientes que referiram dificuldades, por exemplo, para obter a matrícula escolar para seus filhos. Acreditamos que a convivência sistemática com o desconhecimento e desrespeito pelos direitos humanos, acabam por aumentar a capacidade de resiliência da população e fazer com esta cada vez mais aceite as dificuldades como fatos normais da vida.
A deficiência física aparente estava presente em 88,75% dos pacientes, com 73,75% das crianças fazendo uso de órteses ou cadeira de rodas. Destes pacientes, 76% obtiveram a Matrícula Escolar; 67,6% o Passe Livre e 61,25% o Benefício da Prestação Continuada.
Entre os 11,25% pacientes sem deficiência física aparente, 66,66% usufruíam a Matrícula Escolar, 44,44% o Passe Livre e somente 11,11% o Benefício da Prestação Continuada, sugerindo que a ausência da marca visível da deficiência possa ser um fator que dificultou o recebimento deste benefício. No entanto, a avaliação da influência deste estigma na obtenção dos benefícios estudados ficou prejudicada, já que a grande maioria dos pacientes do estudo apresentava deficiência aparente.
DISCUSSÃO
De acordo com recente publicação da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS)28, somente 2% dos 85 milhões de pessoas portadoras de deficiência recebem assistência adequada na América Latina, e adverte que a situação pode piorar a menos que os profissionais de saúde se tornem mais capacitados e preocupados com o tema29. Com a mesma preocupação, a Organização Mundial de Saúde criou o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência30, no intuito de promover e aprofundar as discussões e o conhecimento sobre o assunto, e mobilizar suporte para a dignidade, direitos e bem-estar de pessoas com necessidades especiais. Mais de 10% da população mundial vive com algum tipo de deficiência. No entanto, estes cidadãos muitas das vezes continuam sem acesso a direitos constitucionalmente adquiridos. Inexistência de rampas de acesso e inadequados serviços de saúde são alguns dos exemplos que comprometem os direitos, a qualidade de vida e a contribuição social destes cidadãos. Promover e proteger os direitos e a dignidade de pessoas incapacitadas é um dos importantes objetivos relacionados à saúde e bem estar social, abordados pela OPAS31. Em maio de 2005, a Assembléia Mundial de Saúde enfatizou que existe uma forte relação entre pobreza e deficiência, e que 80% das pessoas portadoras de deficiência vivem com baixa-renda. O acesso a tratamentos e outros serviços de saúde e educação é limitado pelas condições financeiras, estigmas da doença e agravadas pelo preconceito e desinformação. A capacidade de trabalho pode estar limitada por sua incapacidade física, mas também por falta de oportunidades e preconceito por parte dos empregadores. Este conjunto cria um círculo vicioso que precisa ser quebrado.
No Brasil, a Constituição Federal (CF) de 198821 prevê direitos específicos para pacientes com deficiência, visando facilitar sua integração social. Temos acompanhado sua evolução, através da formação, em 1998, de um grupo de pesquisa multidisciplinar voltado para promover saúde e qualidade de vida, principalmente para pacientes com espinha bífida15. Mas, embora estejamos testemunhando alguns avanços, a situação está longe de ser ideal. No caso específico de crianças nascidas com MMC, pesquisas têm demonstrado que o acesso ao tratamento preventivo e adequado e a outros serviços básicos essenciais como a educação, podem modificar as histórias destes indivíduos, construindo para melhora da auto-estima e os capacitando física, mental e socialmente para maior independência. Mas o estigma, o preconceito e o desconhecimento continuam sendo firmes empecilhos para que isto aconteça. Principalmente nos casos em que a população é mais carente. Pacientes com deficiência, entre eles as crianças com MMC aqui estudadas, apresentam várias dificuldades no campo clínico e psicosocial. Entre os problemas clínicos se encontram a hidrocefalia, a dificuldade ou impossibilidade de locomoção, a incontinência urinária e fecal, entre outros. Para tratá-los, são necessárias várias visitas a especialistas, muitas vezes com necessidade de internação para cirurgias e tratamentos mais prolongados. As famílias estudadas encontram-se próximas ou abaixo da linha de pobreza, o que soma vulnerabilidade à vida destas crianças. A escassez de recursos para arcar com o transporte restringe a capacidade de buscar assistência médica, que por ser especializada, raramente está disponível nos hospitais e postos de saúde próximos à residência. Um ciclo vicioso se forma, já que a falta de tratamento adequado e preventivo gera maiores complicações clínicas, aumentando a necessidade de ir ao médico. Esta conseqüente falta de saúde reduz não só a capacidade da criança para freqüentar a escola como também sua capacidade de aprender. E gera mais exclusão. Que prejudica sua integração social e sua saúde psíquica. A simples obtenção dos benefícios aqui estudados poderia auxiliar a quebrar este ciclo.
Os direitos sociais visam assegurar o atendimento às necessidades diárias e permanentes do indivíduo proporcionando-lhes igualdade de oportunidades, tais como: direito à educação, à saúde, ao lazer e ao trabalho. O acesso a estes direitos tende a ser facilitado quando pessoas com deficiência e de baixa renda familiar passam a receber o Beneficio da Prestação Continuada, o Passe Livre e a Matricula em Escola Próxima da Residência. Esta linha de pensamento guiou a metodologia deste trabalho, desde a escolha dos benefícios estudados até os critérios de inclusão dos sujeitos na pesquisa. Renda per capita, idade escolar e doença de tratamento continuado são requisitos para a obtenção do BPC, da ME e do PLI, respectivamente.
A necessidade de informação e treinamento para profissionais de saúde é novamente apresentada aqui. Apesar de a maioria dos responsáveis (87,5%) haver recebido orientação a respeito dos benefícios legais dentro das instituições de atendimento médico-hospitalar, somente 54% receberam-na dos profissionais de saúde. Este é um índice insatisfatório, ainda mais, levando-se em consideração que a pesquisa foi realizada em um centro de referência, onde os profissionais estariam teoricamente mais capacitados para informar os pacientes. Salienta-se a importância da maior divulgação do conhecimento, enfatizando as ações sociais entre os profissionais da área de saúde, para que possam repassá-las aos pacientes. A troca de informação paritária, com mães dividindo experiências entre si durante a sala de espera, também ressaltou a importância da exploração deste espaço e do incentivo a grupos focais e reuniões para discutir esse assunto, como nos mostra Soares18.
Por aumentar a renda familiar, o Benefício da Prestação Continuada foi um dos mais procurados, porém foi o que apresentou maior dificuldade para obtenção, de acordo com a avaliação dos entrevistados. Não obstante o requerente apresentar toda a documentação exigida e enquadrar-se nos critérios legais exigidos, o INSS pode ainda emitir parecer sobre a situação socioeconômica da família do beneficiário, o que é visto como algo que pode dificultar ou até mesmo impedir sua obtenção. O processo de revisão dos processos também se mostrou irregular. Apesar de a lei determinar que o processo seja revisto a cada dois anos, 6,25% das mães entrevistadas disseram que recebiam o BPC há vários anos, sem que seu filho ou sua situação financeira tenha sido reavaliado. Além disso, 51,25% dos responsáveis possuíam renda per capita acima de 0,25 do salário-mínimo no momento da entrevista, o que não os incluiria atualmente no critério legal de necessidade. Provavelmente também não foram realizadas outras reavaliações de necessidade, buscando adequar os valores por região e realidade econômica do país. É importante salientar que o Banco Mundial classifica como pobres pessoas que apresentam renda per capita de até US$ 2/dia e como extremamente pobres aquelas com ou renda per capita diária de até US$ 1/dia. Sendo assim, os valores previstos para o recebimento do benefício (1/4 do salário mínimo) estão próximos da linha de extrema pobreza. Principalmente levando-se em consideração que a média de filhos por família foi de 2,07 ± 0,92 (OIT) 32. Além disso, a Constituição Federal33 garante aos trabalhadores em geral direito a um salário-mínimo capaz de atender às necessidades básicas e às de suas famílias e os portadores de doenças crônicas como a MMC têm despesas elevadas relacionadas à manutenção do tratamento, como: compra de fraldas descartáveis, sondas vesicais, antibióticos, equipamentos ortopédicos entre outros. Além disso, este estudo mostra que muitas das mães largaram o trabalho, para prover as necessidades da doença de seu filho. Sendo assim, para ter direito ao benefício, esses cidadãos e suas famílias precisariam estar vivendo com valores inferiores ao mínimo necessário para atender as necessidades vitais básicas, fato que pode se perpetuar mesmo com o recebimento do benefício como atualmente apresentado.
Verificou-se que, além do critério de miserabilidade, mais um fator dificulta o recebimento desse benefício. A LOAS define como Pessoa com Deficiência “o incapacitado para o trabalho e para a vida independente” 24. Isto contradiz totalmente o espírito do movimento mundial em prol da integração social destes cidadãos e à própria CF, que em conformidade com este movimento, contém vários dispositivos voltados para a melhoria das condições de vida e do resgate de sua cidadania. Também contradiz a proposta mundial de igualdade de direitos e saúde para todos e os preceitos de saúde púbica. E particularmente, contradiz a proposta de atendimento prestado aos pacientes incluídos neste estudo no IFF, que busca reduzir a incapacidade e promover a autonomia.
Não foi possível avaliar se a presença de deficiência física seria um facilitador para a obtenção do BPC e do PLI já que, entre os pacientes incluídos, a maioria (88,75%) apresentava marcas visíveis como hidrocefalia, retardo mental, malformação em membros inferiores e/ou coluna vertebral, sendo que 73,75% utilizavam órteses ou cadeira de rodas. Além disso, os outros 11,25% que não apresentavam essas anormalidades, eram portadores de incontinência urinária e/ou fecal com o uso de fraldas.
Mesmo entre os pacientes que conseguiam os benefícios, alguns fatores continuam impedindo os seu completo aproveitamento. Com relação ao Passe Livre no Estado do Rio de Janeiro algumas frotas de ônibus, estações de metrô e de trens não têm acesso adaptado aos deficientes e por vezes, os motoristas de ônibus não param para que as mães embarquem com seus filhos em cadeira de rodas. Essas experiências negativas, vivenciadas e compartilhadas entre os atores envolvidos, somam-se para que aumente o descrédito e o desestímulo e contribuem para a diminuição na obtenção do passe. É preciso reverter esta situação. Estes pacientes precisam da condição de mobilidade que os meios de transportes coletivos proporcionam, e que é seu direito acessar, mesmo quando não têm condições econômicas para sustentá-la. Para ir à escola, aos serviços de atendimento médico, praticar esportes e outras atividades da vida cotidiana, como qualquer outro indivíduo. Do ponto de vista econômico e social supõe-se, interesse do Estado, que essas pessoas adquiram autonomia, que tenham uma vida a mais próxima possível do normal e que não se tornem eternamente dependentes de programas sociais.
Os serviços de saúde têm também um importante papel na garantia de acesso e na melhoria da qualidade de vida e bem-estar destes pacientes. Os portadores de doenças crônicas, incluindo a MMC, necessitam de tratamento contínuo e habitualmente o acompanhamento médico é realizado por diversos especialistas e instituições. Devido à ausência de um Centro de Referência Multidisciplinar de Tratamento de Espinha Bífida (CRMT-SB), a dificuldade com o deslocamento é um dos motivos para a freqüência irregular aos ambulatórios, conforme relatado por Salomão et al2. Para solucionar esses problemas impõe-se a adoção de políticas institucionais, buscando concentrar e coordenar o atendimento para reduzir o número de visitas dos pacientes. A sensibilização e educação dos profissionais de saúde, em relação às políticas públicas, que propiciem igualdade de acesso e a criação de mecanismos para monitorar e avaliar resultados e demandas busca fomentar a criação e renovação de políticas públicas voltadas para pacientes com necessidades especiais.
Durante a infância e começo da adolescência, a escola também se constitui em um dos principais ambientes sociais. Por isso é importante que se garanta o acesso a todos. O terceiro benefício estudado, a Matrícula Escolar, obteve o maior percentual de obtenção. Mesmo com todos os obstáculos criados pela direção e professores, que talvez, por falta de capacitação, encontrem-se receosos em lidar com esses alunos. Não obstante se esperar que os educadores sejam os primeiros a lutar para garantir acesso universal à escola e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 determinar que se dê preferência à matrícula de deficientes em classes comuns. O direito à escola próxima da residência facilita a formação de vínculos de amizade e facilita a vida social desses alunos, além de diminuir o estresse tanto dos portadores de deficiência quanto de seus responsáveis, em relação aos seus deslocamentos. Espera-se que o espaço social de uma criança, fora do ambiente familiar, se crie a partir da convivência com a comunidade, iniciada na escola. Por isso, entre outros fatores, freqüentar uma escola perto de sua casa é importante para facilitar a integração social de uma criança com dificuldade de locomoção.
Apesar do alto percentual de obtenção, este estudo aponta para muitas dificuldades referidas pelos entrevistados e que estiveram, de algum modo, relacionadas à escola. São problemas já referidos em estudo realizado em 2001, no mesmo laboratório, para estudar especificamente a inserção escolar de pacientes com necessidades especiais17. Mais uma vez, a perseverança da mãe foi o fator mais importante para matricular e manter a criança na escola. Entre os pacientes estudados, 73,75% apresentavam dificuldades de deambulação e 90% sofriam de incontinência urinária e/ou fecal. A aceitação na escola dependia da disponibilidade das mães para atender as necessidades dos filhos. Assim, enquanto muitas mulheres no mundo usam o período em que seus filhos estão estudando para desempenhar sua vida profissional, as mães de pacientes com necessidades especiais continuam sendo obrigadas a permanecer com seus filhos na escola. E continuam assim obrigadas a abrir mão de seus empregos, reduzindo a capacidade orçamentária familiar. Além disso, a presença da mãe e o preconceito reduzem a possibilidade de integração deste aluno na vida escolar, prejudicando ainda mais sua aceitação na escola, o que se torna mais uma fonte de estresse e insegurança para as crianças e suas famílias.
Outro problema freqüentemente apontado na escola, mas que se estende a outros espaços freqüentados, foi à falta de acessibilidade física. É um problema grave para esses alunos, 17,94% das mães queixaram-se que nas escolas não existem rampas, banheiros ou mobiliário adaptados. Enquanto a necessidade de banheiros adaptados para pacientes com necessidades especiais seja muito importante, um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Ensino e Pesquisas Educacionais (INEP) revelou que 15,45% das 149.410 escolas de ensino fundamental do país não têm sequer um banheiro para uso dos alunos34.
Entre os pacientes estudados, 16,25% freqüentavam escolas particulares porque algumas mães consideravam o ensino público ruim, uma vez que as turmas são compostas por 30 ou 40 alunos, achavam que seus filhos ficariam segregados ou receavam pela sua integridade física. Este fato é intrigante, sendo a população de estudo de baixa-renda, e não podendo, portanto, arcar com custos altos para sustentar o estudo de seus filhos. A mensalidade das instituições privadas de ensino costuma ser alto e na busca de manter um preço competitivo, muitas vezes a qualidade é sacrificada, o que pode comprometer a capacitação destes alunos.
Em geral, analisando o acesso aos benefícios estudados, os dados apontam para a importância de um maior enfoque no treinamento dos profissionais ligados à saúde, educação e prestação de serviços, para que estes possam reconhecer e respeitar as necessidades de cidadãos com necessidades especiais e, que colaborem para que seus direitos sejam respeitados, levando-os a usufruir serviços públicos de qualidade. Com o objetivo de que as pessoas com deficiência passem a ter acesso a seus direitos e se aproximem de uma melhor integração na sociedade, faz-se necessária uma transformação dos espaços físicos e uma sensibilização dos recursos humanos, além de políticas públicas e institucionais mais adequadas, com ampla discussão em relação ao estigma, discriminação, direitos humanos e cidadania. A existência de leis, por si só, não garante o acesso.