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0095/2025 - Análise crítica das políticas e estratégias de enfrentamento de Zika vírus no Brasil: utilizando a abordagem WPR
Critical analysis of policies and strategies to combat the Zika virus in Brazil: using the WPR approach

Autor:

• Laís Cardozo dos Santos - Santos, LC - <llaayscs@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4234-830X

Coautor(es):

• Ariadne Barbosa do Nascimento Einloft - Einloft, ABN - <ariadne.einloft@ufv.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5322-4700

• Jessica Aparecida da Silva - Silva, JA - <jessica.aparecida@ufv.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0295-8154

• Danielle Cabrini - Cabrini, D - <danielle.cabrini@ufes.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4653-9672

• Rosangela Minardi Mitre Cotta - Cotta, RMM - <rmmitre@ufv.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5331-9734

• Glauce Dias da Costa - Costa, GD - <glauce.costa@ufv.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2630-194X



Resumo:

Explorar narrativas presentes nas políticas públicas de controle do Zika vírus se torna fundamental, haja visto a possibilidade de novas ondas epidêmicas e seus efeitos danosos. O objetivo deste estudo foi analisar criticamente os documentos norteadores do enfrentamento do Zika vírus, implementados pelo governo brasileiro, no período de 2016 a 2022. Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, documental e analítico, utilizando a abordagem What’s The Problem Represented (WPR). Da análise emergiram três categorias: (I) Representação do problema: narrativa biomédica e tecnicista no processo saúde-doença; (II) Soluções, opções políticas e os efeitos destas na operacionalização das ações e na vida das crianças e das mães e; (III) Os silêncios e a negligência das políticas na efetividade das ações: baixa integração entre os sistemas de informações e baixo enfoque em ações estruturais e coletivas, limitação do acesso a tecnologias de cuidado de maior complexidade e custo para crianças com síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika; limitada rede de apoio a grupos familiares compostos por mulheres negras, de baixa renda e pouca escolaridade. A análise evidencia um conjunto de opções políticas que possuem relevância contextual e epidemiológica, porém que invisibilizam populações vulneráveis.

Palavras-chave:

Zika vírus, Política de Saúde, Infecções por Arbovirus

Abstract:

Exploring narratives present in public policies to control the Zika virus becomes fundamental, given the possibility of new epidemic waves and their harmful effects. The objective of this study was to critically analyze the documents guiding the fight against the Zika virus, implemented by the Brazilian government,2016 to 2022. This is a qualitative, exploratory, documentary and analytical study, using the What's The Problem Represented approach (WPR). Three categories emergedthe analysis: (I) Representation of the problem: biomedical and technical narrative in the health-disease process; (II) Solutions, political options and their effects on the operationalization of actions and on the lives of children and mothers and; (III) The silence and neglect of policies in the effectiveness of actions: low integration between information systems and low focus on structural and collective actions, limited access to care technologies of greater complexity and cost for children with congenital syndrome associated with Zika virus infection; limited support network for family groups made up of black women, with low income and little education. The analysis highlights a set of policy options that have contextual and epidemiological relevance, but that make vulnerable populations invisible.

Keywords:

Zika Virus, Health Policy, Arbovirus Infections

Conteúdo:

Introdução
A epidemia do Zika vírus no Brasil, instaurada em 2015, trouxe um cenário desafiador para a saúde pública, devido sua associação com os casos de microcefalia congênita e outras malformações fetais, uma vez que ainda havia pouco conhecimento para uma intervenção eficaz1-3.
Apesar de a segunda onda de infecção ter se espalhado por todo o país, a região Nordeste permaneceu apresentando número elevado de casos registrados de microcefalia quando comparada às demais, evidenciando diferenças regionais importantes. Até o momento, são desconhecidas as causas que levaram esta região a ser mais afetada4. Contudo, parece existir uma relação entre a gravidade da infecção e os determinantes socioambientais, dentre eles: condições de moradia precárias e vulnerabilidade social5,6.
Particularmente, a vulnerabilidade social se apresenta de forma marcante nas famílias das crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV), aumentando a carga já imposta pela doença7. Abandono pelo parceiro; baixo apoio familiar8; precária condição financeira; dificuldade no acesso aos serviços de saúde; desgaste materno físico e mental, podem ser listados entre as questões que influenciam negativamente os já graves resultados fetais pós-infecção8-10.
Na tentativa de mitigar os efeitos da epidemia do Zika vírus, o governo federal brasileiro implantou e implementou diretrizes, estratégias de controle e monitoramento, além de protocolos de atendimento11. No entanto, alguns fatores como baixa articulação entre os atores, deficiências nos serviços de saneamento básico, desigualdade social, baixa responsabilização de autoridades públicas e culpabilização da população mais vulnerabilizada resultaram na baixa resolutividade das estratégias de enfrentamento adotadas12-15.
Nesse contexto, a análise de políticas públicas pode ser importante na mitigação de problemas sociais por meio do aprimoramento da formulação e execução das políticas avaliadas16. No Brasil, apesar da evolução alcançada nos últimos anos em relação à análise e avaliação de políticas de saúde, ainda há algumas questões a serem superadas, haja visto que o processo de implementação de programas e políticas constitui um terreno de barganhas, coalizões e ‘encontro de diferentes intenções’17.
As abordagens convencionais de análise de políticas normalmente focalizam a resolução dos problemas em lugar de questionar sua origem18. Como inúmeras vezes a representação dos problemas em uma política pode acarretar distorções nos desenhos, na estruturação e operacionalização desta, questioná-la e explorá-la pode contribuir para melhorar sua análise e direcionar correções19. Neste contexto, a utilização de ferramentas analíticas que permitam a compreensão de ‘problemas implícitos’ em políticas públicas pode abrir perspectivas de solução, inclusive por possibilitar a reflexão do papel de governos e instituições na geração dos referidos problemas20.
Nesse sentido, este estudo teve como objetivo analisar criticamente os documentos implementados pelo governo brasileiro para o enfrentamento do Zika vírus, utilizando o método What’s The Problem Represented to Be? (WPR)18.

Métodos
Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, documental e analítico, baseado na abordagem WPR. Para seleção dos documentos estudados, foram realizadas quatro etapas: (1) consulta nos canais de comunicação do Ministério da Saúde brasileiro para levantamento dos documentos, (2) seleção dos documentos, (3) leitura e fichamento dos materiais, (4) análise crítica utilizando o método WPR. A figura 1 ilustra as etapas adotadas para a pesquisa.
Na primeira etapa, foi solicitado à Coordenação-Geral de Vigilância de Arbovirose através da plataforma Fala.BR o acesso a todos os documentos referentes às políticas e ações implementadas pelo governo brasileiro, que abordam orientações e estratégias de controle e prevenção para o enfrentamento do Zika vírus, tais como diretrizes, protocolos, políticas, estratégias e planos de ação publicados a partir da emergência e identificação do vírus no país em 201521.
Foram incluídos todos documentos que abordam orientações e estratégias de controle e prevenção para o enfrentamento do Zika vírus. Foram excluídos documentos que se referiam exclusivamente às questões clínicas e ao manejo de vetor.
Em seguida, foi realizada a leitura e o fichamento dos documentos na íntegra e a análise por meio da abordagem WPR, que parte da reflexão de seis questões analíticas (Quadro 1)18:
(1) Representação do problema;
(2) Lógicas conceituais e pressupostos implícitos;
(3) Origem do problema;
(4) Silêncios;
(5) Efeitos produzidos por problematizações específicas;
(6) Questões não problemáticas.
As perguntas propostas visam explorar e questionar criticamente ‘o que não é problematizado’, uma vez que políticas públicas podem incorrer em limitações em virtude da forma como evidenciam ou silenciam questões ‘problema’18, (p. 13). Portanto, discutir e identificar as questões que são silenciadas nas representações de problemas nos permitem olhar de uma outra perspectiva, refletindo sobre as práticas que podem produzir esses ‘problemas’20.
Os documentos analisados são apresentados no Quadro 2.
De acordo com a resolução do Conselho Nacional de Saúde do Brasil nº 510, de 07 de abril de 2016, estudos que utilizam informações de acesso público estão dispensados da apreciação ética.

Resultados
Foram selecionados quatro documentos, publicados entre 2016 e 2022, com destaque para o período de epidemia de Zika vírus. A análise crítica de narrativa, a partir das questões WPR, resultou em três categorias: representações do problema, detectados a partir dos objetivos e linhas de atuação presentes nos documentos; soluções delineadas a partir das opções políticas no recorte histórico; silêncios explorados na análise dos documentos e apontados no Quadro 3.

Representação do problema: narrativa dominante sobre o processo saúde e doença
Verifica-se, nas políticas analisadas, que a representação para o aumento de casos de infecção por Zika vírus e de microcefalia, em decorrência da SCZV, se dá a partir de respostas pautadas ainda em um conhecimento apoiado no modelo médico centrado, negligenciando aspectos socioambientais. As causalidades da doença perpetuam uma visão tecnicista, vetorial, biologicista, clínica, estatística, sem avançar nos Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Mesmo que se reconheça a importância dos DSS, estes não fazem parte dos aspectos de operacionalização das políticas. O risco ainda é compreendido a partir da sua concepção clássica, epidemiológica e estatística, direcionada para o controle de indicadores biológicos e quantitativos, com pouco desenvolvimento das discussões dos aspectos de vulnerabilidades, tão importantes ao tratar o grupo afetado.
Os defeitos congênitos são apresentados a partir da exposição ao vírus, visão biologicista, atenuando, portanto, as causas sociais, econômicas, ambientais e ecológicas. A construção de orientações e ações focalizam a funcionalidade da criança e não sua qualidade de vida. O combate ao vetor se mantém apoiado na responsabilização individual, pelo controle peridomiciliar dos focos de Aedes aegypti, bem como utilização de inseticidas (larvicidas e adulticidas) durante inspeção de Agentes de Combate às Endemias.
As representações do problema afetam as opções políticas e demarcam ausências de questões importantes nas políticas para uma melhor efetividade das ações, afetando, em particular, a prevenção de novas epidemias e o monitoramento dos casos de Zika vírus e SCZV.

Soluções, opções políticas delineadas e os efeitos destas na operacionalização das ações e na vida das crianças e das mães
As opções políticas delineadas demarcam a importância das questões epidemiológicas e emergenciais que marcaram o período analisado. As estratégias de enfrentamento foram apoiadas em dados epidemiológicos, mesclando ações de combate ao vetor, cuidado e acolhimento do grupo afetado e permitiram integrar e ampliar as ações e os serviços relacionados ao monitoramento das alterações no crescimento e no desenvolvimento, diferenciando-se de outras doenças infecciosas por vírus. Também foram publicados relatos de experiência e histórico da epidemia do ponto de vista de diversos profissionais, visando preencher lacunas de conhecimento sobre o impacto do Zika vírus.
Porém, apesar de apresentar opções contextualizadas e relevantes diante o cenário epidemiológico enfrentado, tais opções políticas influenciadas pelas representações dos problemas, apresentam impactos e efeitos no processo de operacionalização das ações tornando-as: fragmentadas no campo de ação e no processo de trabalho; incipientes no campo contextual, conceitual e efetivo do uso dos DSS; frágeis no contexto intersetorial; unidirecionais ao não apontar os problemas como sistêmicos e estruturais; procedimentais e não respaldadas no cuidado integral; insuficientes no que tange aos aspectos de vulnerabilidades sociais, econômicas, raciais e de gênero; excludentes quando se trata da percepção e inclusão da mulher e da criança como sujeitos primordiais no desenvolvimento das ações e políticas.
Os efeitos destas políticas para as crianças com SCZV, se dá na medida em que os casos são tratados a partir dos seus aspectos de funcionalidade e não da qualidade de vida. A fragmentação do cuidado na rede de atenção à saúde emerge quando o acesso a tecnologias de cuidado, que exigem instalações e equipamentos de maior complexidade e custo não é materialmente definido em linhas de cuidados com responsabilização clara dos entes federados.

Os silêncios identificados e a negligência das políticas na efetividade das ações
Entre os silêncios percebidos, verificou-se a limitação da integração entre os sistemas de informações, além de não serem definidas ações específicas para garantir a confiabilidade dos sistemas, particularmente na notificação dos casos. As questões decorrentes, como inconsistência e baixa agilidade na geração de dados, podem incorrer em limitações na investigação e monitoramento dos casos, o que dificulta a tomada de decisão para prevenção e controle de surtos e epidemias.
As diferenças regionais e de recortes populacionais são muitas vezes ignoradas, sendo a epidemia de Zika vírus tratada a partir de uma única ótica. Em especial, o contexto de vida das mulheres negras, de baixa renda, pouca escolaridade, residentes em comunidades periféricas que não possuem saneamento básico, coleta de lixo adequada e acesso à água potável poderia ser melhor retratado, com completude de dados e inclusão de variáveis na ficha de notificação dos casos, porém não existem propostas específicas para elaboração de políticas e ações que considerem essas especificidades. A ausência das interrelações destas variáveis, nas políticas analisadas, demarca ausência de discussões importantes da interseccionalidade e consequentemente a repercussão na atenção e cuidado dados às mulheres, crianças e famílias afetadas.
Os documentos deixam de abordar ou abordam de forma superficial as causas estruturais, como: saneamento básico, infraestrutura urbana, desmatamento, moradia precária, vulnerabilidade social e acesso à água potável (Figura 2). A superação das fragilidades nas ações de educação em saúde também não são tratadas e negligenciam o processo participativo das famílias. Há ausência de espaços de escuta qualificada, bem como, a forma de realizar esta escuta a fim de atender as necessidades de saúde destas mulheres e crianças.
No âmbito de combate ao vetor, as medidas propostas pelo governo têm como foco o controle mecânico ou químico em ações de prevenção de curto prazo, minimizando a importância de ações a longo prazo que visem questões infraestruturais e de saneamento, que alcancem a coletividade.
Embora os documentos retratem as questões sobre os cuidados com as gestantes e crianças com microcefalia, a garantia do diagnóstico completo, atendimento e acompanhamento de qualidade não é materializada. Considerando o cuidado integral, verificam-se diretrizes, mas não há encaminhamentos e direcionamentos específicos, especialmente considerando as diferenças regionais. Ademais, são desconsideradas as dificuldades vividas por essas mães durante seu itinerário na rede de saúde.
Ainda em relação ao diagnóstico, é reconhecida a importância dos recursos humanos e materiais adequados e suficientes, infraestrutura laboratorial, equipamentos necessários e profissionais qualificados para o diagnóstico preciso, completo e precoce, entretanto, não se discutem formas específicas e duradouras de financiamento para a garantia destes recursos.
Apresentamos um resumo gráfico dos achados a partir dos documentos analisados sobre as políticas e ações de monitoramento de Zika vírus na Figura 2.

Discussão
Os silêncios identificados no estudo evidenciam a opção política para enfrentamento do Zika vírus, a partir de uma ótica biologicista, médico-medicamentosa, com forte presença da prevenção de doenças/agravos e baixa proposição de ações a partir dos DSS, estes muitas vezes reduzidos a questões relativas ao combate do vetor. A narrativa dominante do processo saúde-doença minimiza a complexidade desta arbovirose e seus impactos, indo ao encontro de outros estudos brasileiros26,27 que evidenciaram a presença desta mesma narrativa, porém em doenças crônicas.
No que tange às campanhas de prevenção e combate ao vetor das arboviroses, existe uma falha na comunicação educativa nas campanhas implementadas pelo governo brasileiro, sendo consideradas apenas informativas ao invés de educativas. Assim, expõem a necessidade de elaboração de estratégias dialógicas que visem a transformação das práticas cotidianas, visto que a prevenção e o controle das arboviroses vão além da eliminação dos criadouros do vetor28.
Como foi possível perceber no estudo realizado por Pereira29, as campanhas de prevenção apregoam uma responsabilização individual, desconsideram fatores que visam o coletivo, cuidado com o espaço público, além da falta de compromisso e corresponsabilização de todos no processo de prevenção30. Assim, colocam a população na posição-sujeito preventivo, pensando apenas no individual, culpabilizando o mosquito vetor e desconsiderando as questões ambientais e climáticas na causalidade, bem como nas ações preventivas29.
Diante dos achados do estudo, é visível a necessidade do desenvolvimento de sistemas integrados eficazes, que possibilitem o acesso a dados atualizados e que permitam a construção de informações consistentes e fidedignas31,32. Assim, em consonância com o estudo realizado em Pernambuco, que identificou a necessidade da reorganização dos serviços, recursos e investimentos na qualificação dos profissionais da vigilância, verifica-se que ações específicas para melhoria de qualidade dos sistemas de informação são primordiais para o alcance devido aos seus objetivos33.
Estudos demonstram que a epidemia do Zika vírus no Brasil afetou principalmente, de modo desigual, as mulheres negras e de baixa condição socioeconômica34,35. Além disso, apontam que as mulheres negras e pardas têm maiores chances de ter um nascido vivo com SCZV em relação às mulheres brancas34.
Devido a fatores como vulnerabilidade social, moradia precária e acesso inadequado à educação, as mulheres negras são as mais expostas ao risco de doenças35, como pode ser verificado no estudo de Lima et al.36. Neste estudo, foi evidenciado que as mulheres negras, solteiras, desempregadas e com baixa escolaridade são mais acometidas pela infeção Zika vírus, o que reforça a relevância de planejar estratégias para o combate da discriminação racial e da vulnerabilidade social, discussões ausentes nas políticas analisadas30.
Destaca-se nesta questão, que algumas variáveis como raça/cor e escolaridade são subnotificadas, e isso pode contribuir para a manutenção da desigualdade social e racial, além de dificultar o reconhecimento das demandas de cada grupo específico36.
Importa ressaltar que o notório racismo e sexismo sofrido pelas mulheres negras nas políticas brasileiras obstaculiza o acesso universal e equitativo prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS)37. Verifica-se, nas políticas analisadas, o silêncio de ações e políticas específicas a este grupo, ignorando a importância da interseccionalidade de categorias como raça, gênero e classe na determinação da saúde deste grupo, cujos direitos são negados diariamente37.
Nessa perspectiva, é fundamental a prática de debates contínuos nas instituições e organizações de saúde a respeito do racismo institucional, uma vez que isso possibilita o combate a essas desigualdades, proporcionando uma saúde igualitária para essa população e consequentemente, ações mais direcionadas e efetivas a este grupo38. A operacionalização do racismo ocorre através de ações em conjunto com diferentes políticas e mecanismos de controle repressivo, fornecendo o mínimo à sobrevivência para os grupos específicos. Dessa forma, o estado negligencia as populações negras por meio de políticas públicas, que não fornecem os princípios básicos da justiça, equidade e universalidade39.
Quanto às condições socioeconômicas e emergência sanitária, o estudo desenvolvido em Pernambuco, observou que famílias que residem em bairros onde a renda mensal é menor que dois salários possuem um risco maior de infecção pelo Zika vírus40. Esses resultados condizem com os achados de Souza et al.41, em que foi identificado a alta prevalência de casos de microcefalia em áreas com condições de vida desfavorecidas.
De acordo com Queiroz e Medronho42, observou-se uma associação entre a alta incidência das arboviroses e o baixo nível econômico. Em contraste, alguns autores apontam a importância do tratamento e abastecimento adequado de água e esgotamento sanitário4, 34, 41, 43 evidenciando a importância desses fatores no combate às doenças infecciosas43.
O acesso aos serviços de saúde pelas mães e familiares das crianças afetadas pela SCZV é outro ponto crítico que deve ser considerado em relação ao pós-epidemia de Zika vírus2. Alguns estudos evidenciaram dificuldades no acesso aos serviços de saúde apropriados, devido à falta de profissionais especializados, transporte público e vulnerabilidade social2,44.
Meireles et al.45, enfatizam que fatores como condições socioeconômicas e o acesso aos serviços de saúde são os maiores desafios enfrentados pelos cuidadores, uma vez que o atendimento a essas crianças, na maioria das vezes, não acontece no município de residência. O tempo elevado de deslocamento para as unidades ou instituições de serviços de saúde especializados (algumas famílias viajam até 6 horas de ida e volta para consulta de 30 minutos)44 ou ausência de transporte público, que atenda aos residentes em áreas periféricas das cidades ou moradoras da zona rural, resulta no abandono das sessões de estimulação precoce46. Mesmo tendo sido definido pelo governo federal o auxílio financeiro (sancionado pela Lei nº 13.985) para famílias de crianças com SCZV, o valor recebido é insuficiente para cobrir as despesas decorrentes dos inúmeros tratamentos, exigindo que outras estruturas de apoio a estas famílias aconteçam na dinâmica da rede de saúde47.
A ausência de ações específicas de acolhimento e de escuta a estas mulheres e famílias na execução das políticas fragiliza a inserção das mulheres deste grupo na elaboração das ações de planejamento até à reabilitação destas crianças.
A falta do conhecimento sobre o risco e gravidade da SCZV destaca a necessidade da difusão de informações adequadas48. Temas como planejamento familiar, direito ao aborto em condições específicas, acesso à rede de saúde, seguridade social, carecem ser melhor trabalhados nos documentos oficiais sobre o Zika vírus.
Além disso, a construção de espaços dialógicos com outras mães que vivenciam situação semelhante possibilita a troca de experiência, apoio e suporte emocional, além de momentos de alegria e fortalecimento coletivo49.
Sendo assim, cabe aos gestores incluírem nas políticas soluções e alternativas estruturais para enfrentar as fragilidades encontradas na rede de atenção à saúde, bem como nas relações entre os profissionais e serviços de saúde, favorecendo o cuidado integral de grupos vulneráveis à ação do Zika vírus, particularmente mulheres e crianças. Ações voltadas ao enfrentamento do Zika vírus somente serão verdadeiramente efetivas se englobarem práticas de equidade social1,48,50.

Conclusão
A abordagem WPR aplicada aos documentos implementados pelo governo brasileiro para o enfrentamento do Zika vírus permitiu identificar os silêncios que repercutem negativamente no combate, controle e prevenção das arboviroses, culminando em políticas que desconsideram seus determinantes sociais, como o princípio da equidade nas questões de raça, gênero e renda para o desenvolvimento de ações integrativas.
Portanto, ampla discussão sobre a reestruturação da Rede de Atenção à Saúde é fundamental para que esta seja capaz de acolher as mulheres e crianças com SCZV, considerando a integralidade, a interseccionalidade e a redução dos impactos psicossociais e econômicos a estas famílias, questões ainda abordadas de forma imprecisa e pouco efetiva nos documentos oficiais.
Contribuição dos autores
LCS contribui para a concepção, busca, análise e interpretação dos dados, escrita e revisão do artigo; ABNE contribuiu para concepção e revisão do artigo; JAS contribuiu para a busca, análise e interpretação dos dados, escrita e revisão do artigo; DC, RMMC e GDC contribuíram para a concepção, revisão crítica do conteúdo e revisão do artigo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo.

Agradecimentos
Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Viçosa e à Coordenação de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Conflitos de interresse
Nada a declarar.

Fonte de financiamento
Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), processo 02554-18, por meio da Chamada Demanda Universal 2018.
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Santos, LC, Einloft, ABN, Silva, JA, Cabrini, D, Cotta, RMM, Costa, GD. Análise crítica das políticas e estratégias de enfrentamento de Zika vírus no Brasil: utilizando a abordagem WPR. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/abr). [Citado em 15/04/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/analise-critica-das-politicas-e-estrategias-de-enfrentamento-de-zika-virus-no-brasil-utilizando-a-abordagem-wpr/19571

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