0457/2007 - Assimetria nas relações internacionais, propriedade industrial e medicamentos anti-Aids
Asymmetry in international relations, industrial property and anti-HIV medication
Autor:
• Maria Helena Costa-Couto - COSTA-COUTO, M.H. - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Brasil - <costacoutomh@uol.com.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Este artigo analisa a assimetria nas relações internacionais entre países no que diz respeito ao reconhecimento da propriedade industrial no setor específico da indústria farmacêutica. O foco é o impacto destas relações no acesso a medicamentos anti-retrovirais (ARV), questão de interesse mundial em face da sua relação com o desenvolvimento das nações.A disputa de interesses no campo e o posicionamento de alguns países frente às leis patentárias, ao longo do tempo, apontam um cenário pouco favorável para acesso aos medicamentos anti-aids pelos países que não pertencem ao núcleo do sistema mundial.
O sucesso do programa brasileiro de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e Aids nas negociações dos preços dos ARV, ao contrário, aponta para novas possibilidades de enfrentamento desta realidade. A saída parece ser o fortalecimento interno dos Estados Nacionais e um papel ativo das Agências do Sistema das Nações Unidas na defesa dos interesses humanos coletivos.
PALAVRAS-CHAVE: Aids, assimetria, desenvolvimento, medicamentos, propriedade industrial e relações internacionais.
Abstract:
This paper analyzes the asymmetry in international relations among countries, concerning the recognition of industrial property in the pharmaceutical industry. It focuses on the impact of such relations in the access to ARV medication, a worldwide issue due to its connection with the development of nations. Clashing interests and the position taken by some countries in patent legislation, over time, point to a less favorable scenario for the access of peripheral countries to anti-HIV/AIDS medication. Conversely, it seems that the success of the Brazilian transmitted diseases and AIDS programs in negotiating ARV’s prices will turn into conflict. The solution may be the internal strengthening of the National States and the active role played by the United Nations System Agencies on behalf of collective human interests.Key words: AIDS; asymmetry; development; medication; industrial property; international relations.
Conteúdo:
O acesso aos medicamentos anti-aids é um problema de interesse mundial, em face do entrave que representa ao desenvolvimento das nações. Por outro lado, o Programa Brasileiro desafia as regras hoje estabelecidas pelo modelo de relações interestatais.
A partir da identificação dos múltiplos interesses, atores e projetos conflitantes em face da assimetria de poder entre os países, suas indústrias e mercados, prioriza-se a compreensão das implicações do não-acesso aos medicamentos por países mais pobres. A bioética e o campo dos direitos humanos poderiam auxiliar na argumentação sobre a legitimidade do acesso, livre desenvolvimento e comercialização de produtos farmacêuticos para o cuidado de pessoas doentes e sob risco de vida. Mas acredita-se que o projeto brasileiro não encontrou aí sua força motriz.
O entendimento parcial de como e porquê o Brasil consegue avançar nas negociações neste setor, pode se aproximar do debate estabelecido no campo das relações internacionais, área de investigação intensificada, na década de 70, para entender e explicar a suposta crise da hegemonia americana. Este campo incorpora diferentes linhas de pesquisa sobre a teoria da hegemonia mundial, seus fundamentos, pré-condições e resultados. Em comum, estes estudos traduzem o termo hegemonia como dominação, mas diferem muito entre si.2,3
Analisando a produção no campo das relações internacionais sobre hegemonia, Fiori3 destaca, dentre outros autores, a produção do neomarxista Robert Cox, que aponta a necessidade de se olhar para o movimento mundial na sua totalidade e tomar cuidado para não ‘reificar’ um sistema mundial, não subestimar o poder do Estado, e dar a ‘devida atenção às forças e processos sociais’, mais especificamente, como se relacionam com o desenvolvimento dos estados e da ordem mundial.
Ainda segundo Fiori, Cox ressalta que a discussão da hegemonia internacional não pode se resumir à universalização dos interesses nacionais da potência hegemônica, pois o interesse dos estados nacionais é fruto das ‘contradições e conflitos entre classes, frações de classes e dentro das burocracias estatais’. Estes interesses estão presentes nos ‘elementos internos’ dos estados, nas suas ‘estruturas históricas’ que são a sua ‘capacidade material, instituições e idéias’ e estas sempre estão comprometidas com a ‘organização da produção e das forças sociais’, com as formas dos estados e com as configurações do poder mundial.
Talvez seja esta uma das razões que fazem Fiori afirmar não existir evidência – como gostariam de crer alguns – de que a globalização esteja ‘reduzindo o poder das grandes potências, diminuindo o papel dos estados nacionais’ ou promovendo o desenvolvimento global em direção à convergência de interesses, de modo a tornar o mundo mais ‘homogeneizado e inclusivo’. Ao contrário, a realidade mostra crescente acirramento das desigualdades entre todos os países (desenvolvidos ou periféricos) e entre as classes sociais. A ‘assimetria de poder e a dominação estão na origem do projeto globalizante’ e é o que explica o seu êxito e a sua força3.
Apesar dessa tendência global ser observada também na questão do acesso aos medicamentos, não deve ser encarada com absoluto pessimismo, haja vista o avanço permanente do Brasil, país em desenvolvimento e que não pertence ao núcleo central do sistema mundial, nas negociações neste campo.
O PROBLEMA:
Em recente relatório mundial, tornado público em maio de 2004, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que o mundo está despreparado para lidar com os impactos sociais e econômicos da epidemia de Aids. Para a OMS, caso as Nações não se unam para combater a doença, a Aids vai destruir a esperança de vida de outras dezenas de milhões de pessoas, principalmente as que vivem em países pobres. Na África, por exemplo, a Organização estima que um em cada doze habitantes porte o vírus. A doença já é a principal causa de morte entre pessoas dos 15 aos 59 anos naquele continente e está inviabilizando os esforços para se atingir as metas do milênio, como a erradicação total, até 2015, da pobreza extrema, da fome, a redução da mortalidade infantil e materna e a expansão da educação primária. O relatório da OMS revela, ainda, que existem de trinta e quatro milhões a quarenta e seis milhões de pessoas infectadas com o vírus da Aids em todo o mundo e que a cada ano outras cinco milhões tornam-se soropositivas. E mais: das 6 milhões de pessoas que já necessitam de tratamento, apenas 400 mil tiveram acesso a ele em 20034.
Nosso ponto de partida para analisar o impacto da assimetria das relações internacionais e da aplicação dos tratados sobre propriedade industrial no acesso a medicamentos é o pedido formal - apresentado pelo Governo dos Estados Unidos da América (EUA) em 2001, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) -, para que fosse instalado um tribunal sobre a atual Lei de Patentes do Brasil. A queixa do Governo americano se concentrava no fato do sistema brasileiro de garantia de patentes assegurar a possibilidade de se utilizar “licenças compulsórias”, ou seja, o direito do Governo brasileiro não reconhecer as patentes em algumas circunstâncias, com o objetivo de atender a interesses nacionais.
A motivação que sustenta a queixa americana está centrada nos interesses de sua indústria farmacêutica, detentora da maioria das patentes já registradas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) brasileiro. Para os interesses norte-americanos, seria um risco se o Brasil viesse a utilizar a “licença compulsória” como instrumento para baixar os altos preços dos medicamentos para Aids, hoje oferecidos aos cidadãos pelo Programa Brasileiro de Dst e Aids (PN/DST/AIDS) por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Há, ainda, outra questão associada a esta. Se, de fato, o Brasil usar a “licença compulsória” e produzir os medicamentos anti-retrovirais (ARV), o país pode, em tese, no futuro, oferecer estes produtos a preços mais acessíveis aos demais países em desenvolvimento, que hoje não conseguem assegurar o acesso a estas drogas às suas populações devido ao alto preço cobrado pelas multinacionais farmacêuticas. O conflito de interesses pode ser demonstrado pelos preços de medicamentos para Aids em países que respeitam patentes, que giram em torno de dez mil dólares por paciente/ano. Os mesmos medicamentos em países que produzem suas próprias versões destas drogas chegam, no máximo, a trezentos dólares por paciente/ano5.
Vale frisar que a Lei de Patentes brasileira, de 1996 (portanto, há dez anos em vigor), exige que o detentor da patente produza o medicamento no País, o que não é feito até hoje no caso dos medicamentos ARV. Caso isso não aconteça, o governo pode emitir a “licença compulsória” para outro produtor, a menos que o detentor da patente possa provar que a produção local não é viável. Detentor de uma rede de dezoito laboratórios públicos produtores de medicamentos, o Brasil já produzia, antes da Lei de Patentes, medicamentos anti-Aids a preços muito inferiores aos praticados pelas multinacionais farmacêuticas.
Em 22 de maio de 2004, o Brasil foi um dos propositores da emenda, aprovada na Assembléia Mundial de Saúde, que determinou aos estados membros da OMS a incorporação, nos acordos bilaterais de comércio, da flexibilização do Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS)6. Isto significa que questões como a produção local de medicamentos, a importação e a exportação de genéricos, a quebra de patentes em caso de emergência nacional, o abuso de preços ou a formação de cartel, devem fazer parte dos acordos bilaterais sobre comércio que estão sendo estabelecidos. A incorporação da “flexibilização do TRIPS” vinha se tornando praticamente inviável diante das pressões dos países mais ricos sobre os mais pobres, que sem possibilidade de negociação, estavam direta ou indiretamente forçados a abrir mão dos seus direitos da chamada “licença compulsória”.
Para se medir a gravidade da questão relativa ao acesso aos medicamentos ARV, o abuso de preços faz com que, segundo a OMS, apenas 10% das pessoas que na África e na Ásia necessitam de medicamentos anti-Aids tenham acesso a estas drogas4. Este dado é confirmado por outros estudos, que afirmam que as populações dos países mais ricos têm mais acesso aos diferentes medicamentos existentes, sejam estes essenciais ou não7.
HISTÓRIA E CONTEXTO:
As patentes são criadas, ainda no século XIX, como instrumento de desenvolvimento tecnológico e industrial dos países signatários de tratados internacionais. Neste momento, elas visam beneficiar tanto o proprietário da descoberta como as sociedades que desejavam utilizá-la. Em troca do pagamento de direitos de propriedade para uso de uma invenção, cada Estado passava a ter o direito de exigir a descrição completa do invento (de forma a acumular conhecimento naquele campo) e sua produção local (para fortalecer sua base industrial).
Em 1883, o Brasil é um dos onze signatários originais da Convenção de Paris, que regulamenta pela primeira vez o tema. Em 1886, o Brasil também é co-autor da Convenção de Berna sobre Propriedade Intelectual, Direito Autoral e Copyright. Ao longo de quase um século, o Brasil respeita a legislação internacional sobre patentes, apesar de nunca ser considerado país prioritário para seu depósito, ficando privado da descrição de inventos e da produção local de produtos. Só quando estas patentes caem em domínio público em todo o mundo é que o Brasil e outros países passam a utilizar os inventos, sem qualquer acusação de “pirataria”.
No fim do século XIX, os EUA decidem reconhecer apenas as patentes de seus próprios cidadãos e reconhecem patentes de estrangeiros, desde que residentes há mais de dois anos em seu território. Em 1883, os EUA se negam a assinar a Convenção de Paris, por considerá-la “restritiva a seu desenvolvimento” e em 1886, pelo mesmo motivo, não assinam a Convenção de Berna. Assim, de 1891 a 1988, a legislação americana reconhece apenas o copyright para obras manufaturadas em território americano.
Durante trinta anos (de 1919 a 1949), a Inglaterra abandona o Sistema Internacional de Patentes, só voltando a reconhecê-lo após considerar que sua indústria estava pronta para competir internacionalmente. Já a França, só em 1959, após mais de meio século da Convenção de Paris de 1883, passa a reconhecer as patentes farmacêuticas, desde que em regime especial, o que lhe dá a possibilidade de suspendê-las dependendo da quantidade, qualidade e dos preços praticados pelos detentores de seus direitos.
A partir dos anos 70, os conceitos que regem o reconhecimento das patentes (acordos entre países que visam a garantia da divulgação da informação tecnológica, a difusão da indústria e o desenvolvimento das nações signatárias) foram sendo paulatinamente abandonados em prol de uma nova concepção, voltada para assegurar maior controle de mercados, garantia de segredo das invenções e a remuneração da empresa proprietária da inovação.
A transferência da tecnologia em troca do respeito à invenção e a remuneração do inventor por determinado período de tempo é substituída pela pura e simples licença de uso do produto, sem que o país recebedor do invento tenha qualquer acesso a novos conhecimentos.
Vários países de desenvolvimento tecnológico mais incipiente, que ainda planejam o fortalecimento de sua indústria local, resistem à mudança do conceito e da lógica do reconhecimento das patentes através dos fóruns internacionais (basicamente ONU, OMC e OMS). Frente a esta “resistência”, o sistema mundial e seus aliados no interior de cada País (a mídia entre eles) patrocinam uma avassaladora campanha mundial “denunciando a pirataria”, que estaria sendo praticada pelos países que produzem versões de suas invenções. Estas “denúncias” são feitas como se os países centrais do sistema mundial não tivessem, por mais de um século, usufruído do direito de produzir suas versões, a título de “assegurar o desenvolvimento tecnológico” de suas nações.
A partir dos anos 70, os países hegemônicos abrem negociações sobre esta nova lógica de reconhecimento da propriedade industrial na OMC. Assim, o Japão só reconhece patentes de fármacos após se transformar no segundo produtor mundial (1976), obtendo em troca livre acesso de seus produtos à Europa e EUA. A Suíça (terceiro produtor mundial de fármacos), só reconhece patentes em 1978, junto com a Itália. A Áustria (1987) e a Espanha (1986) o fazem para, em troca, serem admitidas na Comunidade Econômica Européia, mas exigem prazo até 1992 para terem tempo para investir e absorver tecnologia, diminuindo sua dependência8.
Em 1996, o Governo Federal utiliza sua maioria parlamentar e aprova uma nova Lei de Patentes para o Brasil, sob protesto de parte da comunidade científica e de dirigentes das instituições ligadas à Ciência e Tecnologia. Esses segmentos exigiam mais tempo para o debate e maior proteção aos interesses nacionais, a exemplo de outros países.
AIDS E MEDICAMENTOS: PROBLEMA DE SAÚDE DE NATUREZA GLOBAL
Dos anos 90 aos dias atuais, um acelerado processo de concentração de capital e tecnologia faz com que apenas nove empresas multinacionais controlem 80% do mercado mundial de produtos farmacêuticos. São elas: Pfizer, Abott, Glaxo Smith Kline, Aventis, Astra Zeneca, Nycomed Amerssham, Novartis, Hoescht Marion Roussel e a Janssen Cilag.
A enorme concentração de tecnologia e capital no setor não leva, apenas, à criação de um oligopólio internacional. Produz, também, um aumento da rentabilidade média destas nove gigantes da indústria farmacêutica, que no ano 2000 chega a 45,3%. Para se ter uma idéia da magnitude deste número, no mesmo ano a rentabilidade média mundial dos bancos é de 16,7%; da indústria química 15,9%; da indústria automobilística 15,6% e das empresas de telecomunicações 10,9%9.
A elevação dos preços de medicamentos em termos mundiais impacta diretamente os sistemas de saúde e a saúde dos povos. Isso ocorre com mais intensidade nos países que não detêm tecnologia para produzi-los e agora estão impedidos por suas próprias leis de patentes de manufaturar versões nacionais destas drogas.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), desde o surgimento da epidemia de Aids, no final da década de 70, mais de vinte milhões de pessoas morreram da doença e quatro milhões de crianças foram contaminadas. Desde meados da década de 90, a epidemia avança velozmente nos continentes asiático e africano. Hoje, 2/3 da população afetada vive na África e 1/5 na Ásia. Só em 2003, três milhões de pessoas morrem em conseqüência das complicações de saúde por causa da síndrome. Das cerca de quarenta milhões de pessoas soropositivas estimadas, a maior parte se encontra no intervalo etário economicamente produtivo, compreendido entre os 25 e os 49 anos4.
Se nos anos 80 a epidemia é entendida e enfrentada como um problema de saúde pública, na década seguinte sua proliferação e recrudescimento - associado ao empobrecimento das nações - a torna um dos problemas centrais para a política internacional de desenvolvimento. Neste novo cenário, a Aids se constitui como questão central para o desenvolvimento socioeconômico das nações, pois quanto maior sua incidência e/ou prevalência, mais elevado é o índice de empobrecimento geral, menor o poder de consumo, maior o absenteísmo ao trabalho, maiores os gastos com o financiamento e a provisão pública e/ou privada dos serviços previdenciários, securitários, de saúde, entre outros10.
Assim, para além da questão humanitária, também por razões econômicas é mais vantajoso ofertar políticas sociais (prevenção, assistência e tratamento) para o enfrentamento desse problema global, pois mesmo em países com baixa incidência de casos é menos oneroso assumir um contrato social mais inclusivo “do que tratar as pessoas doentes ou assumir os efeitos da perda de capital humano e social”4.
No passado, os efeitos da epidemia para os países em desenvolvimento eram considerados como equivalentes a eventos isolados de um processo econômico que as economias nacionais poderiam absorver, escapando do controle dos planejadores. Acreditava-se que a prevalência da epidemia em 10% da população de um país em desenvolvimento significaria 0,5% de redução no crescimento econômico/ano. Pensava-se, então, que o Produto Interno Bruto (PIB) per capita aumentaria se a diminuição do PIB fosse menor que a diminuição da população4.
Esse reconhecimento dos custos sociais e financeiros da epidemia a médio e longo prazo e a existência de modelos de resposta bem sucedidos, como o aplicado no Brasil, têm auxiliado a discussão e a defesa da ampliação do acesso aos medicamentos ARV pelos sistemas de saúde nacionais.
Apesar da evidente relevância da análise dos custos sociais da Aids para escolha de políticas mais adequadas, no processo decisório brasileiro há algo mais a ser considerado. No Brasil, este discurso pode ter auxiliado, mas não foi determinante para o processo de tomada de decisão no qual as especificidades do momento sociopolítico e da mobilização social foram decisivas.
No país, os primeiros casos de Aids surgem na classe social dotada de potencial vocalizador das suas demandas e no mesmo momento em que há uma intensa mobilização pela retomada da democracia e pela reconstrução de um sistema de proteção social mais inclusivo, que resultou na nova Carta Constitucional de 1988, que universaliza o acesso à saúde e à assistência social. Tal universalização, tardia se comparada ao mundo desenvolvido, adota iniciativas dos modelos de proteção social fundados nas bases do Welfare State. Para os brasileiros que viviam com HIV e/ou Aids, esta conquista foi primordial. O Sistema Único de Saúde (SUS), já integrado ao texto constitucional, recebe amparo jurídico, imprimindo aos bens e aos serviços de saúde o caráter de direito inalienável de cidadania e configurando seu não acesso como uma ilegalidade10.
De acordo com o texto constitucional aprovado em 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro passa a ter quatro características principais. A primeira delas é a universalização da assistência, garantida a todo cidadão e não mais restrita aos trabalhadores com contrato formal de trabalho e contribuintes do sistema – e seus dependentes. A segunda é a descentralização da gestão com direção única nas esferas federal (exercida pelo Ministério da Saúde), estadual (comandada pelas Secretarias Estaduais de Saúde) e municipal (exercida pelas Secretarias Municipais de Saúde). A terceira é a integralidade da atenção (efetivada por meio de todas as ações necessárias à promoção, prevenção cura e reabilitação). Finalmente, a quarta característica é a participação da comunidade na gestão do sistema (por meio das Conferências e Conselhos de Saúde, também instituídos nas três esferas de governo).
Os princípios constitucionais do SUS são complementados pelas leis 8080 e 8.142, aprovadas em 1990, que fixam os parâmetros de funcionamento do sistema, configurado por uma rede de serviços públicos e privados descentralizada, regionalizada e hierarquizada, onde o setor privado deve ter uma participação complementar, através de convênios e contratos firmados com a esfera pública, com prioridade de participação para as instituições filantrópicas e sem fins lucrativos. A fonte de financiamento do SUS passa a ser o Orçamento da Seguridade Social, um dos três principais elementos do orçamento nacional. Este orçamento financia, além da saúde, a Previdência e a Assistência Social.
A quarta característica do SUS (participação e controle social), a previsão constitucional da integralidade da atenção em saúde e a universalidade do acesso ao sistema são fundamentais para o fornecimento dos anti-retrovirais. Em decorrência da demanda e da pressão social, em 1991 começa o fornecimento de medicamentos para infecções oportunistas. Em 1994, é oferecida a terapia anti-retroviral, com a distribuição gratuita apenas da zidovudina (AZT) e da didanosina (DDI). A partir de 1996, após ampla divulgação na mídia mundial da existência de novas drogas, a terapia tripla passou a ser oferecida aos cidadãos brasileiros portadores de Aids. A política brasileira demonstra que ações combinadas de prevenção, de assistência e de tratamento com acesso aos medicamentos específicos, apresentam uma relação custo - benefício vantajosa.
Em 2003, Teixeira, Vitória e Barcarolo estimaram que 160.000 pessoas usassem a terapia anti-retroviral (TARV) e para estes autores isto espelhava a cobertura “com alguma forma de tratamento” de quase todas as pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA) no país11. Hoje, o número médio de pvha em uso de TARV é de 171.40912. Entre 1996 e 2002, a política (combinada) implantada fez a velocidade de crescimento da epidemia diminuir e a incidência da doença caiu 46% de 1998 para 2002. Apesar do número de internações por Aids no SUS não haver reduzido ao longo do tempo, o número de internações das pvha em uso de TARV diminuiu. Em 1998, a taxa de hospitalizações por Aids por paciente em terapia uso de ARV, no Brasil, era de 63% em 2004, passou para 26%.
Estas constatações têm, em conjunto, demonstrado a virtuosidade desta política “assistencial [que] perdeu a tradicional denominação de gasto público para assumir a missão de investimento público, utilizando-se dos conhecimentos e dos recursos técnicos, epidemiológicos, estatísticos e financeiros como justificativa”10.
Quando o Brasil inicia a distribuição universal e gratuita do primeiro ARV, a Zidovudina, o custo da manutenção da terapia em cada paciente é elevado porque o medicamento precisa ser importado. Para viabilizar a sustentabilidade financeira do programa, o Estado incentiva a produção nacional do AZT por um laboratório privado13. Em seguida, ações combinadas de pressão para a redução dos preços, a ameaça constante de quebra das leis de proteção às patentes - por meio da “licença compulsória” -, a produção local dos fármacos (com o princípio ativo importado) e, ainda, a instituição dos medicamentos genéricos no país, resulta na redução dos custos de fornecimento e no estabelecimento de melhores patamares de negociação com o complexo industrial farmacêutico13.
A política brasileira, além do aspecto financeiro, também possui aspectos logísticos e estratégicos que em um país com a dimensão do Brasil não podem ser minimizados. Vale destacar que o fato do país dispor de um Sistema Único de Saúde, de uma rede de serviços e profissionais treinados em diagnóstico, prevenção e tratamento de HIV/Aids foram elementos fundamentais para a implantação da distribuição de medicamentos anti-HIV.
Além dessa particularidade da conjuntura política nacional no Brasil, Cassier e Correa16 destacam três fatores centrais na experiência brasileira que são: primeiro, o fato dos direitos de propriedade industrial no país permitirem, até 1996, a cópia legal das invenções; segundo, a pressão exercida pelo movimento social sobre o Ministério da Saúde, que o levou a adotar a política de acesso universal aos anti-retrovirais; e por último, o fato desta experiência estar baseada num processo de aquisição de conhecimento sobre drogas copiadas.
Assim, não é ao acaso que o Brasil se torna doador de tecnologia junto ao Fundo Global e tampouco é casual que, hoje, a maior parte dos países do mundo procure estratégias para se aproximar do que é oferecido (e do que se conquistou), por meio da parceria estabelecida entre a sociedade e o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids.
A política brasileira mais uma vez é reconhecida como acertada após o estudo multicêntrico finalizado, no primeiro semestre de 2004, pela Universidade do Estado de São Paulo (USP) sobre adesão e tratamento. Neste estudo, é analisado o custo do tratamento de mais de 37 mil pacientes em unidades de saúde diferenciadas, em cinco grandes capitais brasileiras. Constata-se falha no tratamento em menos de 30% dos casos. Em um país da extensão do Brasil, com uma diversidade cultural de mesma proporção, os baixos índices de escolaridade das pessoas que vivem com HIV/AIDS, a dificuldade de ingerir por vezes mais de 30 comprimidos/dia, a necessidade de realizar exames com freqüência e todas as possíveis falhas na gestão e/ou na operacionalidade do SUS, isto pode ser considerado um sucesso.
Em 2000, o país contabiliza a prevalência de 0,6%, contra uma estimativa do Banco Mundial de 1,2%12. E em agosto de 2002, o Congresso Mundial de AIDS de Barcelona13 fecha seu relatório final sobre os trabalhos submetidos ao congresso com dez chamadas para as idéias centrais debatidas, dentre as quais estava a informação a seguir: “há dois anos atrás foi informado que um total de 158.168 pessoas haviam recebido ou estavam recebendo a terapia anti-retroviral nos países de baixo e médio desenvolvimento. Destas, 100 mil pessoas são do Brasil, 506 pessoas vivem em outros países latino americanos; 13.533 pessoas na África e 12.121 pessoas na Ásia. A terapia profilática em mulheres grávidas foi disponibilizada para 7.324 mulheres na África, 558 na América Latina e apenas 140 na Ásia”. A despeito do reconhecimento internacional14 e dos resultados positivos do programa brasileiro, outras medidas podem ser implantadas nos países de médio ou baixo desenvolvimento, mas não o são devido à proteção do Acordo TRIPS. Por exemplo, a combinação de diferentes drogas num mesmo medicamento significaria barateamento dos custos do tratamento, bem como facilitaria a adesão à terapia e garantiria maior qualidade de vida aos pacientes. Diferentes drogas pertencem a corporações distintas e estão protegidas por suas respectivas patentes. Além disto, o controle e multiplicidade de licenças de propriedade intelectual e de patentes inviabilizam a produção de medicamentos genéricos a preços mais acessíveis.
DISCUSSÃO:
Dourado et al estudaram a evolução epidemiológica temporal da Aids se utilizando das bases de dados do Ministério da Saúde de 1990 a 200315. Estes autores concluíram que “as mudanças observadas no perfil de morbi-mortalidade da epidemia de Aids no Brasil poderiam ser explicadas pelo amplo acesso a terapia anti-retroviral”16. Porém, “o acesso universal a TARV, cujo impacto sobre a mortalidade é inquestionável, não é suficiente para explicar a desaceleração do crescimento da epidemia”. Para entender este processo, medidas e campanhas de prevenção; implantação de novos centros de testagem e aconselhamento e do teste rápido para diagnóstico sorológico do HIV; a disseminação do conhecimento da população sobre o HIV/Aids; o grau de escolaridade e outros fatores socioeconômicos devem ser observados17.
O conflito entre direitos humanos e interesses do mercado nesses vinte anos, nunca deixou de ser enfrentado. Em 4 de maio de 2007, o Governo brasileiro decretou o licenciamento compulsório da patente do medicamento Efavirenz por meio do Decreto No 6.108, viabilizado pela Portaria No 886 de 24 de abril do mesmo ano, que considerou o produto de interesse público.
Este anti-retroviral é o medicamento importado mais utilizado no tratamento da Aids. Atualmente, 38% dos doentes utilizam o remédio nos seus esquemas terapêuticos. Estima-se que até o final de 2007, 75 mil das 170.409 pessoas que vivem com HIV/Aids em tratamento com terapia anti-retroviral farão uso deste medicamento. O Efavirenz é fabricado pela indústria farmacêutica Merk Sharp & Dohme, que não cedeu aos argumentos do Ministério da Saúde com vistas à redução do preço do produto. As negociações com a empresa transcorreram por mais de cinco meses, iniciando-se em novembro de 200618.
O decreto com o licenciamento compulsório viabiliza a compra, pelo Ministério da Saúde, de versões genéricas do Efavirenz em três laboratórios indianos pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Esta decisão foi apoiada por instituições e Organizações governamentais e não governamentais nacionais e internacionais tais como a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Grupo Pela Vidda, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), UNICEF, Médicos sem Fronteiras e a Fundação Bill Clinton.
A queixa americana apresentada contra o Brasil na OMC, ainda em 2001, é apenas a ponta do imenso iceberg que revela a significativa desigualdade existentes entre os povos e a multiplicidade de questões que orbitam em torno da estratégica questão do acesso a medicamentos. O conflito entre direitos humanos e interesses do mercado está expresso também na não implantação efetiva do “Acordo de Doha”, importante conquista diplomática e comercial obtida pelos países em desenvolvimento durante a IV Conferência Ministerial da OMC, realizada em 2001 em Doha, no Qatar. Este acordo estabelece que o TRIPS não deve se sobrepor às questões de saúde pública, ou seja, a função social da produção de medicamentos e equipamentos deve estar acima dos interesses comerciais. Essa declaração é um forte instrumento de inclusão social, pois busca garantir o acesso a medicamentos como uma responsabilidade universal e um compromisso com a solidariedade e os direitos humanos. Seu cumprimento ampliaria o acesso aos medicamentos para milhões de portadores de doenças como Hanseníase, Tuberculose, Diabetes, Câncer, Alzheimer, Mal de Parkinson ou Hepatite. Entretanto, devido às resistências interpostas pelos países que hoje são detentores de patentes, a lógica solidária da Declaração não consegue sair do papel desde 2001.
Tanto os detentores de capacidade interna de produção quanto os desprovidos dela poderiam, de acordo com a Declaração, importar genéricos, se isto elevar o acesso aos medicamentos, sejam os comprados nas farmácias ou os distribuídos gratuitamente pelos programas públicos de saúde. Países como o Brasil, que têm estrutura produtiva, poderiam também exportar esses genéricos para atender às necessidades de outras populações. Além disso, a Declaração de Doha cria mecanismos de negociação com os laboratórios detentores de patentes, legitima a concessão de licenças compulsórias de patentes a laboratórios locais e abre espaço para outras medidas que garantam o acesso da população à saúde e a medicamentos.
Os países detentores de patentes exigem que se pactue uma lista mínima de doenças a serem contempladas no âmbito da Declaração, iniciativa rejeitada pela OMS e pelos países pobres, que exigem o direito de aplicar o disposto em Doha de acordo com as necessidades de cada Nação. Para assegurar seu direito às patentes, os Estados Unidos, por exemplo, estão inserindo mecanismos reguladores na linha inversa ao aprovado em Doha nos acordos bilaterais que têm firmado com cada Estado separadamente19.
A experiência brasileira mostra que a existência de um conjunto de fatores (mobilização social, legislação, financiamento público, descentralização do sistema de assistência à saúde com centralização da decisão e o cálculo da economia de recursos com a implantação de políticas de prevenção e tratamento) cria as condições necessárias à garantia de acesso aos medicamentos anti-Aids, promovendo um fortalecimento do Estado frente a outros grupos de interesse. Com base neste exemplo, pode-se concluir que outros países também podem construir um grau de autonomia interna que permita enfrentar a assimetria existente neste campo.