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0355/2007 - Atenção em Saúde Mental em municípios de pequeno e médio portes: ressonâncias da reforma psiquiátrica
The attention in Mental Health in small and medium-sized towns: resonances of the psychiatric reform

Autor:

• Cristina Amélia Luzio - luzio, CA - Assis, SP - Unesp- Faculdade de Ciências e Letras de Assis- Assis - <caluzio@assis.unesp.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Esse estudo busca conhecer as ressonâncias da Reforma Psiquiátrica em municípios de pequeno e médio portes situados na região oeste do Estado de São Paulo. A partir da análise da Política Nacional de Saúde Mental formulada nos últimos anos e das experiências desenvolvidas após 1987, em São Paulo (capital), Santos e Campinas, procura-se: 1. compreender como o Sistema Único de Saúde tem contribuído para o avanço da Reforma Psiquiátrica nos municípios; 2. verificar como a assistência oferecida nesses municípios está viabilizando os princípios da Reforma Psiquiátrica e a melhora das condições de vida dos usuários, bem como 3. pesquisar o papel dos trabalhadores e dos gestores na construção de novas práticas de cuidado em Saúde Mental. A análise das práticas discursivas encontradas nos textos, documentos, bem como de entrevistas semi-estruturadas com gestores, trabalhadores, usuários dos serviços de saúde mental apontam que os vários segmentos sociais envolvidos na Saúde Mental conhecem os princípios e as propostas da Reforma Psiquiátrica. No entanto, as gestões municipais não assumem integralmente as propostas do Ministério da Saúde para a área, sob a alegação de falta de recursos financeiros para a contrapartida exigida. No município menor, o serviço de Saúde Mental se organiza no Centro de Saúde, oferecendo uma assistência mais integral aos usuários, com pouca incidência de encaminhamentos desencontrados. No município maior, realizam-se mais ações de reinserção psicossocial, tendo um Centro de Atenção Psicossocial em funcionamento. Os usuários e seus familiares têm gradativamente assumido as novas propostas de intervenção, mas os mecanismos de participação e organização popular ainda são incipientes na Saúde Mental. Finalmente, deve-se destacar que, para uma efetiva consolidação das propostas atuais da Reforma Psiquiátrica, é necessário, entre outras ações, um maior compromisso dos gestores com a atenção em Saúde Mental, um maior investimento nas equipes multiprofissionais, o estímulo à organização e à participação dos usuários e familiares e a integralidade dos dispositivos de saúde, de assistência social e de cultura existentes nas cidades, com o objetivo de construir uma rede de cuidado e reinserção social.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, saúde mental, saúde pública, saúde coletiva.

Abstract:

This study aims to learn about the resonances of the Psychiatric Reform in small and medium-sized towns, located in the western region of the State of São Paulo. From the analysis of the national Mental Health policy, formulated in the past years, and from the experiences developed in São Paulo (capital), Santos and Campinas after 1987, it is sought to: understand how SUS has contributed to the development of the Psychiatric Reform in towns; verify how the assistance offered in those towns is making the Psychiatric Reform principles feasible as well as improving the conditions of living of the users; and research the role of the workers and managers in the construction of new care practices in Mental Health. The analysis of the discursive practices found in the texts, documents, as well as in semi-structured interviews with managers, workers and mental health services users point out that the various social segments involved in Mental Health have acquaintance with the principles and proposals of the Psychiatric Reform. However, the municipal administrations do not thoroughly take on the proposals of the Health Ministry to this field, under the allegation of lack of financial funds to meet the demands. In the smaller town, the Mental Health service takes place in a Health Centre, offering a more complete assistance to the users, with little incidence of misled sendings. In the larger town, more psychosocial reREPLACEion actions are carried out, and there is a working Attention Centre. The users and their family members have gradually assumed the new intervention proposals, but the mechanisms of participation and popular organisation are still incipient in the Mental Health field. Lastly, it is important to emphasize that for an effective consolidation of the current Psychiatric Reform proposals, there must be, among other actions, more commitment by the managers as far as Mental Health is concerned, more investments in multi-professional teams, stimulus to the organisation and participation of the users and family members and integration of health devices, social assistance and the culture existing in towns, with the objective of building a care and social reREPLACEion net.
Key-words: psychiatric reform, psychosocial attention, mental health, public health, collective health.

Conteúdo:

Considerações iniciais: a inserção da saúde mental no SUS
A partir da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), os municípios buscaram viabilizar, em todos os setores da saúde, os direitos constitucionais de seus usuários. Muitos passaram a desenvolver ações substitutivas na Saúde Mental. Em artigo recentemente publicado1 analisaram-se algumas experiências exitosas no campo da Saúde Mental no Estado de São Paulo. No entanto, pouco se conhece acerca das ressonâncias da política nacional de Saúde Mental na maioria dos municípios, em especial nos de pequeno e médio portes, cujos governos não se destacam enquanto gestores comprometidos com a melhoria das condições de vida da população e com a redução das desigualdades sociais.
Embora a maioria da população (51%) resida nos 4% dos municípios com população acima de 100.000 habitantes, 96% possuem população inferior a 100.000 habitantes, sendo que 63% dos municípios brasileiros possuem população de até 20.000 habitantes. Portanto, o cotidiano das instituições de saúde nos pequenos territórios caracteriza a quase totalidade dos municípios brasileiros2.
No que se refere à atenção em Saúde Mental, os municípios de pequeno e médio portes em geral, a partir da criação do SUS, incluíram equipes de Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Esse fato não significou que os municípios assumiam um projeto de Saúde Mental, pautado pelos princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Na maioria das vezes, tais municípios procuraram dar conta de sua nova responsabilidade de cuidar de seus usuários essencialmente via internação psiquiátrica e medicação, reproduzindo apenas o modelo psiquiátrico hegemônico3.
Na década de 1990, o Ministério de Saúde (MS) passou a propor uma política de Saúde Mental a partir das experiências municipais inovadoras, associadas às reflexões e às propostas operadas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, possibilitando aos gestores, aos profissionais, aos usuários e à sociedade civil o conhecimento e o acesso a um novo projeto de atenção em Saúde Mental.
Nesse sentido, este estudo, que compõe a tese de doutorado da primeira autora, propôs-se a conhecer as ressonâncias das propostas do Movimento da Reforma Psiquiátrica no que se refere às transformações nos campos teórico-conceitual, técnico-assistencial, político-jurídico e sociocultural, em municípios de pequeno e médio portes, tomando como realidade empírica as cidades de Cândido Mota e Assis, no interior do Estado de São Paulo. Ou seja, buscou identificar como a assistência em Saúde Mental, oferecida por municípios de pequeno e médio portes, está viabilizando, de um lado, os princípios da Reforma Psiquiátrica e, de outro, a melhora das condições de vida dos usuários.
Percurso metodológico
O estudo situa-se no campo das metodologias qualitativas, sendo que a escolha dos municípios de Cândido Mota e Assis, considerados, respectivamente, de pequeno e médio portes e localizados na região oeste do Estado de São Paulo, não foi orientada por nenhum critério clássico de amostragem probabilística, mas por terem serviços de saúde mental estruturados e inseridos no sistema de saúde local.
Para conhecer a maneira como estão ocorrendo os avanços, as dificuldades e os entraves existentes na transformação das práticas manicomiais dos municípios estudados, foram utilizadas técnicas para a captação das informações, tais como: análise de textos e documentos, bem como realização de entrevistas semi-estruturadas com participantes dos diversos segmentos sociais implicados com a Saúde Mental.
A partir dos aportes teóricos desenvolvidos por vários autores4,5,6,7,8, cujas produções são orientadas pelo método dialético, buscou-se captar os movimentos contraditórios e mutantes no processo de construção de novos modos e novas práticas de cuidado em Saúde Mental nos municípios estudados, notadamente no que se refere aos intercruzamentos das práticas discursivas relacionadas aos temas estudados.
A expressão “Atenção Psicossocial”, aqui utilizada, define o conjunto de ações nos campos teóricos, éticos, técnicos, políticos e sociais, aptos a constituírem um novo paradigma para as práticas em Saúde Mental. Enfim, ele compartilha da premissa de que a Atenção Psicossocial não é apenas mudança da assistência, mas um processo de transição paradigmática9.
Os temas investigados foram agrupados em categorias construídas a partir de uma articulação entre a produção dos autores acima citados e as extraídas dos textos, documentos e entrevistas, conforme apresenta o quadro abaixo:
(quadro 1)
Quanto aos entrevistados, todos possuíam mais de 6 meses de envolvimento nos serviços de Saúde Mental pesquisados e, portanto, podem ser considerados atores sociais relevantes, capazes de contribuir para o enfrentamento dos desafios colocados a cada momento. Para facilitar a citação dos discursos dos participantes e proteger suas identidades, estes foram nomeados de acordo com o quadro abaixo.
(quadro 2)
A (re) construção de duas situações singulares:
Os municípios estudados
Os municípios de Cândido Mota e Assis localizam-se no oeste do Estado de São Paulo, na região do médio Vale do Paranapanema. O primeiro, fundado em 1923, tinha uma população, segundo o Censo de 2000, de 29.280 habitantes, sendo 91% residentes na zona urbana. Assis, por sua vez, fundada em 1905, possuía, segundo o mesmo documento, uma população de 87.251 habitantes, dos quais 95,6% vivem na zona urbana10.
Os primórdios da assistência em saúde mental nos municípios estudados
Na área da Saúde Mental pode-se afirmar que na região de Assis, sede da antiga DIR VIII, o único atendimento público em Saúde Mental disponível à maioria da população até a década de 1980 era o da internação psiquiátrica. No entanto, os dois municípios nunca conviveram com a presença concreta de hospitais psiquiátricos. As internações dos usuários residentes nessas cidades sempre ocorreram em instituições localizadas em municípios de outras regiões, a uma distância de, no mínimo, 70 quilômetros.
No município de Cândido Mota, a assistência em Saúde Mental iniciou-se no começo da década de 1990, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), e com a criação, no Centro de Saúde I, de uma equipe mínima de Saúde Mental (um psicólogo e um médico-clínico), a qual realizava apenas psicodiagnóstico, medicação e internação psiquiátrica. Após 1995, a equipe foi ampliada para dois psicólogos, um assistente social e um médico psiquiatra, e começou a desenvolver ações com o objetivo de implantar ações assistenciais substitutivas à internação psiquiátrica.
Em Assis, a assistência pública em Saúde Mental acompanha, à distância, as políticas nacional e estadual para o setor, em especial aquelas construídas após 1964. Assim, em 1971, o Lions Club, estimulado pelo crescimento da rede de hospitais particulares e conveniados com o poder público, decidiu construir um macro Hospital Psiquiátrico na cidade, com 5 mil metros quadrados de área construída. No final daquele ano, a obra foi paralisada por falta de recursos financeiros e o prédio ficou abandonado, exposto à deterioração e à depredação11.
No início da década de 1980, iniciou-se, na Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp, a discussão sobre a assistência em Saúde Mental na cidade, motivada pela intenção do Lions Clube de doar o prédio inacabado do Hospital Psiquiátrico. Nesse contexto, foi elaborado, por uma comissão formada por representantes do Lions, da universidade e das entidades de profissionais da área, um projeto de Ambulatório de Saúde Mental para funcionar em uma parte daquele prédio. Tal projeto era inspirado no modelo da psiquiatria comunitária americana e, em especial, na experiência realizada no Estado de São Paulo por Luiz Cerqueira na década de 1970.
O Ambulatório de Saúde Mental foi inaugurado em 1984, com a administração de uma outra comissão, nomeada pela entidade filantrópica, sendo que suas atividades centravam-se na consulta psiquiátrica e na psicoterapia individual.
A partir de 1984, outros movimentos empenharam-se em construir um Projeto de Saúde Mental público para o município e a região que contemplasse a criação de um ambulatório de saúde mental integrado num sistema hierarquizado. Dentre eles, destacou-se a criação do núcleo de estágio curricular do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras de Assis-Unesp, junto ao Centro de Saúde I.
Ao final de 1987, a Prefeitura Municipal, sem nenhuma discussão prévia com os segmentos envolvidos com a Saúde Mental, encampou o ambulatório do hospital psiquiátrico, sendo que o atendimento em Saúde Mental do Centro de Saúde I deslocou-se para o ambulatório de Saúde Mental, com a transferência desordenada dos usuários.
A partir daquele momento, a atenção em Saúde Mental em Assis sofreu um refluxo e, apenas na gestão municipal de 1993-96, quando houve um efetivo esforço de se consolidar o Sistema Único de Saúde, a assistência em Saúde Mental passou a integrar o sistema.
Consolidação do SUS e as ressonâncias da Reforma Psiquiátrica
Campo teórico-conceitual
Nas entrevistas analisadas foram constatadas, basicamente, duas concepções de sofrimento mental.
Uma primeira, ainda predominante e em consonância com o modelo manicomial, pode ser observada neste depoimento: [...] Por incrível que pareça tem profissionais da equipe que priorizam a internação ainda. Mesmo os psicólogos priorizam a internação [...] (G2-Assis).
Nesta perspectiva, os objetivos do tratamento estavam centrados na remissão dos sintomas e na diminuição da internação, sendo a medicação, a terapêutica central do tratamento e as outras ações apenas complementares: Quando o paciente está em crise, ele não está bem, o primeiro passo é medicar, esperar eliminar o sintoma da crise e só então propor as atividades. [...] (G2-Cândido Mota).
Portanto, o trabalho da equipe seria ainda médico-centrado, apesar do compromisso de propiciar um tratamento mais humano e digno ao usuário e produzir a ressocialização: Trabalho insistentemente pela ressocialização do paciente (T4-Cândido Mota).
Na segunda concepção, o sofrimento psíquico foi compreendido como fenômeno histórico-social e peculiar: [...] Eu acho que ela é uma doença social, cultural e não é só física e emocional (G3-Assis).
Associada a essa visão, alguns trabalhadores explicitavam a importância de se entrar com contato com o sofrimento psíquico do sujeito:
[...] eu já venho estudando alguns autores que se propõem a pensar de uma outra maneira... [...] E isso diferencia a escuta da subjetividade do usuário. Você imaginar que ele é alguém que pode conviver melhor, com menos sofrimento. [...] (G2-Cândido Mota).
Os profissionais apontaram, como finalidade do tratamento, a promoção de uma reinserção social capaz de garantir o direito ao trabalho, à cidadania e ao reposicionamento singular do usuário na sociedade: [...] Criar uma nova singularidade, de uma nova subjetividade social, isso ainda não...(G2-Cândido Mota).
Seguramente, esta última era uma concepção que revelava uma abertura para uma abordagem mais abrangente e conseqüente para o sofrimento psíquico humano.
Campo técnico-assistencial
Nesse campo constatou-se uma mudança mais ampla. A política nacional de Saúde Mental, assumida pelo MS principalmente a partir de 2000, tem contribuído para essa mudança, na medida em que os gestores municipais passaram a ter acesso a uma legislação comprometida com a atenção psicossocial e a vários incentivos financeiros para implantá-la e implementá-la.
Os municípios estudados procuraram transformar as propostas da Reforma Psiquiátrica em atos, mesmo que de maneira lenta, gradativa e à custa de esforços da equipe, pelo menos no que se referia à diminuição da internação psiquiátrica.
Em Cândido Mota, a equipe, responsável por toda a demanda da cidade em Saúde Mental, era composta de um coordenador (psicólogo), um psiquiatra, cinco psicólogos, uma técnica de enfermagem e uma assistente social.
Em Assis era mais evidente a organização da atenção na saúde e na Saúde Mental em uma rede regionalizada e hierarquizada em níveis primário, secundário e terciário. Os serviços funcionavam em vários locais e eram articulados em um sistema de referência e contra-referência. No setor de Saúde Mental, havia um psicólogo em 7 Unidades de Saúde (UBS) com a atribuição de atuar nos seguintes setores: [...] seria um investindo em prevenção, em orientação, até em psicoterapia. [...] Poderíamos [...] ampliar as ações junto à comunidade. [...] dentro das escolas, ou em instituições que estão ao redor.[...] (G3-Assis).
O ambulatório era responsável pelos atendimentos em terapêutica medicamentosa e em psicoterapia individual e grupal, encaminhados pelas UBSs. O CAPS II, que se caracterizava como um serviço intermediário entre o ambulatório e o hospital psiquiátrico, atendia os usuários com sofrimento mental grave. Essa forma de organização dos serviços produzia problemas no sistema de referência e contra-referência e, conseqüentemente, havia muitas reclamações de usuários, profissionais e gestores.
Em Assis, em 1997, a SMS elaborou um projeto de NAPS/CAPS com vistas a estabelecer convênio com o MS, mas ele não foi cadastrado naquele momento, mas apenas em 2002. Mesmo assim o município implantou, naquele ano, o Projeto de Atenção Intensiva (PAI), cujas atividades eram desenvolvidas no ambulatório de saúde mental: Quando eu entrei aqui não existia o CAPS. [...] montamos o grupo de música e eu montei o da escolinha. [...]. Mais tarde vieram os estagiários da Unesp para ajudar [...] (T2-Assis). E a criação do CAPS ampliou as ações intensivas e de inserção social iniciados pelo PAI, conforme será abordado posteriormente.
Enfim, os dois municípios, ainda reproduziam, nos seus serviços de saúde mental, as propostas contidas no documento da Secretaria Estadual sobre o trabalho para equipes em UBS, em Ambulatório de Saúde Mental12. Nessa perspectiva, o CAPS continha um serviço intermediário, o ambulatório e o hospital psiquiátrico, e não substitutivo.
Nenhum dos municípios estudados possuía, em funcionamento, serviços de urgência e emergência. Em Cândido Mota, o psiquiatra era responsável pelas intercorrências psiquiátricas. Às vezes, na sua ausência, algum médico da unidade de saúde atendia determinada situação e fazia o encaminhamento, geralmente para internação psiquiátrica. Outra possibilidade para urgência e emergência em saúde mental era o PS da Santa Casa, a partir das 18 hs. Por isso, o Programa de Saúde Mental fazia algumas tentativas para que o PS acolhesse as urgências da Saúde Mental: [...] a gente tem buscado um contato mais freqüente junto à Santa Casa, que é a nossa única referência de emergência. [...] Hoje, a gente tem um contato com um novo enfermeiro [...]. É um enfermeiro que está lá há, mais ou menos, 6 meses... [...] (G2-Cândido Mota).
Em Assis, o CAPS e o ambulatório não tinham a atribuição de acolher as situações de emergência, incumbindo-se apenas de algumas intercorrências de seus usuários. As situações de urgência e emergência da Saúde Mental eram encaminhadas para internação nos hospitais de referência ou atendidas no PS municipal. Fiel à lógica do próprio modelo de sistema integrado e hierarquizado, às vezes, o PS resistia ou reclamava de receber muitas das situações da demanda espontânea da assistência, notadamente no horário diurno.
A PM constituía um recurso muito utilizado no atendimento das situações de urgência e emergência em Saúde Mental do município de Assis. Os policiais já compunham o cenário da assistência em Saúde Mental local, uma vez que sempre eram acionados pelos familiares ou mesmo pelos serviços de atenção primária e secundária: [...] É por isso que, quando se tem um paciente agitado, a gente chama a polícia militar pra levar no PS. [...] (G4-Assis).
Os atendimentos realizados no PS recebiam muitas reclamações, principalmente pela ausência de retaguarda da equipe de psiquiatria do Hospital Regional para o PS, a exemplo do que ocorria no caso de outras especialidades médicas: Deveria existir no hospital geral e no PS um profissional preparado para essa situação [...] (U3-Assis).
Os profissionais dos serviços de Saúde Mental dos dois municípios consideravam que o trabalho em equipe era importante para se construir as ações e organizar os serviços comprometidos com a atenção psicossocial. As equipes contavam com a participação de estagiários de psicologia da Unesp e de profissionais recém-formados do Programa de Aprimoramento Profissional (equivalente à especialização), em Saúde Mental e Saúde Pública da DIR VIII, vinculado ao Programa de Bolsas para Médicos e Outros Profissionais de Nível Superior que atuam na Área da Saúde, criado pelo Governo do Estado de São Paulo e gerido pela Fundação de Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP), cujo objetivo era a formação e o aprimoramento de recursos humanos para a área da saúde mental em consonância com o modelo de atenção psicossocial.
No entanto, havia diferenças na maneira de cada equipe perceber a presença desses atores sociais. Em Cândido Mota, os aprimorandos e os estagiários definiam suas atividades no serviço a partir de seus interesses pessoais e dos objetivos acadêmicos, articuladas que eram com a demanda do serviço. De maneira geral, a equipe não tinha problemas de integração com esses ‘atores estrangeiros e de passagem’: Eu acho que tem uma aceitação interessante, pois há uma expectativa em relação ao aprimorando. [...] Há esse vínculo com a universidade e eles resgatam isso em vários momentos.[...] (T3- Cândido Mota)
Em Assis, a situação se apresentou diferente. Havia mais divergências e constantes conflitos entre a equipe e os estagiários. No início do PAI, as oficinas eram realizadas em conjunto pelos profissionais e, principalmente, os estagiários: [...] com essa mudança de coordenação, [...]a equipe se afastou da pior maneira [...]. E eu já falei [...], que para ela ver essa equipe envolvida do jeito que era antes, ela vai ter que pedir mesmo, porque ninguém mais vai voltar espontaneamente. (T3-Assis).
Mas, de maneira geral, as atividades do estágio curricular e do curso de aprimoramento desenvolvidas nesses municípios revelam uma rica e relevante experiência de inserção da universidade na comunidade local e regional. Tais atividades acadêmico-assistenciais contribuem para uma maior aproximação entre as diferentes esferas da sociedade, tanto no âmbito da universidade como fora dela, e fortalecem a articulação entre o saber transmitido na universidade e a construção de novos saberes, bem como a formação de alunos críticos e preparados para intervir nas diferentes realidades que encontrarem no seu exercício profissional futuro. Esta parceria entre a universidade e as instituições de saúde também contribui para implantação das políticas públicas para saúde mental consoantes com a Atenção Psicossocial e o SUS e, conseqüentemente, para a melhoria da qualidade da atenção prestada aos usuários pelos serviços de saúde municipais.
Nos dois municípios, as equipes organizavam o trabalho por intermédio de reuniões. Em Cândido Mota, elas eram semanais, com a participação mensal dos estagiários e do supervisor de estágio. A equipe de apoio participava apenas em situações pontuais e esporádicas e os usuários não tinham nenhuma participação.
Em Assis, no ambulatório de saúde mental e no CAPS, havia duas reuniões semanais: uma com os estagiários e a equipe técnica, menos os médicos; outra com a equipe técnica, incluindo os médicos e a equipe de apoio. Também era realizada uma reunião mensal com a participação dos psicólogos das UBS, da coordenação do ambulatório/CAPS e da coordenação de Saúde Mental do município [...] a gente tenta discutir em cima dos casos concretos, dos encaminhamentos e dos problemas trazidos. (G3-Assis).
As dificuldades e as divergências identificadas nas reuniões foram ressaltadas como obstáculos para o desenvolvimento da equipe e o andamento do trabalho: [...] eu acho que a equipe de [...] tem um medo de se responsabilizar pelas novas, por novas coisas...[...] (T3-Cândido Mota).
Enfim, era constante a percepção de que, nas reuniões de equipe, a discussão dos problemas de algum usuário e de seu cuidado era uma maneira de questionar e criticar indiretamente a conduta de algum membro da equipe. Tais momentos produziam ruídos cuja repercussão se estendia para fora da reunião e chegavam à sala da equipe, como se fossem problemas apenas pessoais:
[...] Se as diferenças teóricas e práticas começam a ser vivenciadas como pessoais, transformam-se num ataque à pessoa... (G2-Cândido Mota).
Parece que quando você avalia que algum paciente não tem condições pra participar de uma determinada oficina [...] tudo vira discussão, tudo vira briga e acaba virando uma coisa pessoal. (T3-Assis).

De maneira geral, os conflitos das equipes dos dois municípios apareciam localizados no âmbito das relações pessoais-afetivas e, freqüentemente, deslocavam-se para a reivindicação de supervisão de novas técnicas de tratamento, isto é, de especializações: Eu penso que eu preciso me aperfeiçoar no atendimento familiar para que eu possa trabalhar e orientar as famílias (T2-Cândido Mota).
Os profissionais das equipes, seja em Assis, seja em Cândido Mota, funcionavam como uma mera junção de pessoas, segundo a lógica de “linha de montagem”, centrada no modelo taylorista. Nesse sentido, os profissionais pareciam ter dificuldades de problematizar seu modo de atuar como produto da alienação produzida pela própria divisão do processo de trabalho, de modo que as equipes dos serviços de Saúde Mental pudessem construir o fazer coletivo e a descoberta de novas entradas para recompor o seu projeto de atenção psicossocial, embora os conflitos apareçam como divergências pessoais7, 8, 13.
O processo de elaboração do projeto de trabalho da equipe exige que esta desenvolva inicialmente o seu reconhecimento como grupo. Depois, é necessário conhecer os seus recursos técnico-políticos, analisar os saberes em disputa e compor um referencial para agir. Finalmente, o grupo identifica os recursos (saberes, poder, legitimidade, tempo, ousadia, paixão, entre outros) que possui para realizar seu projeto14.
Enfim, as análises sobre o funcionamento da equipe, suas dificuldades e seus conflitos parecem apontar para uma crise da coordenação nos serviços dos dois municípios. As equipes e as coordenações dos serviços, embora reconhecessem essa situação, não conseguiam construir, nos serviços, um espaço coletivo, com uma maior horizontalização nas relações intra-institucionais capazes de propiciar a responsabilização real do serviço pelo cuidado do usuário, de modo a considerá-lo em sua singularidade.
As ações de saúde mental desenvolvidas nos dois municípios eram predominantemente as já consagradas no campo, tais como: recepção, consulta psiquiátrica e medicação, psicoterapia grupal e individual; porém, a consulta psiquiátrica e a medicação constituíam os eixos centrais dos serviços: [...] Nós buscamos aumentar o número de horas [do psiquiatra] para que se pudesse dar um respaldo às psicólogas, às assistentes sociais que trabalham no serviço. (G1-Cândido Mota).
A utilização da medicação em grande escala reafirmaria a idéia de que o objetivo central do tratamento é a supressão dos sintomas do usuário e o restabelecimento de um suposto equilíbrio mental: [...] Ele tem que tomar remédio durante a vida inteira. E tomar remédio faz muito bem a ele. E ele está comportado, mas a doutora achou que ele está meio confuso ao conversar (U2-Assis).
Uma outra forma de intervenção realizada nos serviços dos municípios era a oficina terapêutica. No entanto, a inserção das oficinas nos serviços e sua articulação com as demais ações de cuidado eram diferentes. Em Cândido Mota, em 1998, foi contratada uma psicóloga para desenvolver oficinas terapêuticas com os usuários adultos no ambulatório de saúde mental. Tal experiência foi considerada importante para os usuários: Na oficina eu gosto de estar com os meus colegas. Eu participo, eu sorrio, eu converso, eu canto, eu brinco, conto piada, conto verso e eu me sinto muito bem indo lá: aquela é a minha família (U1-Cândido Mota).
Mesmo assim, a equipe teve dificuldades para integrar essa atividade no seu cotidiano: [...] eu percebo que ainda não se tem muita clareza o para quê dessa oficina como dispositivo, além de atendimento em grupo e individual. [...] (T3-Cândido Mota).
No município de Assis, as oficinas terapêuticas estavam mais consolidadas, mas eram coordenadas por estagiários de psicologia e tinham como objetivo propiciar ao usuário o exercício de sua singularidade e de cidadania: [...] e a oficina entra neste espaço com a perspectiva ética de criação de mundos, onde o desejo se coloca como os pés que a vida tem para caminhar. [...], melhorando assim a qualidade de vida e exercendo a cidadania15. E a intervenção nas famílias dos usuários também foi sublinhada como muito importante nos dois municípios: [...] Uma das críticas mais comuns é dos familiares, porque deve haver um trabalho intensivo com eles que a gente ainda não tem feito. [...] (G3- Assis).
Porém, as equipes dos municípios realizavam tais ações ainda de modo pontual, esporádico e, muitas vezes, relacionado à administração da medicação: Trabalho familiar. E se for necessário, também ajudar no manuseio da medicação [...]. Em uns a gente consegue fazer, mas não em todos (G2-Cândido Mota).
Em 2002, foi criada, no município de Assis, a Associação de Usuários, Familiares, Trabalhadores e Amigos da Saúde Mental – PIRASSIS a partir da iniciativa dos estagiários de do curso de psicologia da Unesp: era uma coisa antiga a idéia de fazer a associação. Os estagiários colocavam nas nossas cabeças que tinham que montar uma associação ou talvez uma cooperativa, pois faltava muito material para as oficinas. [...] (U1-Assis). Mas a referida Associação ainda precisava constituir-se de fato num espaço de mediação entre os usuários, suas famílias e a sociedade. Ou seja, em 2002 ainda eram pontuais e pouco numerosas as ações nos espaços públicos das cidades e, portanto, não contribuíam para a construção de uma rede de dispositivos articulada em propostas comuns e coletivas, produtora de cidadania e de transformação social.
Foi possível observar que a tentativa dos municípios de construir uma “rede de serviços” ou “rede de assistência” de Saúde Mental, hierarquizada e em um sistema de referência-contra-referência, tem impedido a responsabilização do serviço pelas ações de saúde mental em uma determinada área e a articulação das ações de cuidado realizadas pelos diversos dispositivos: pronto-socorros, hospitais gerais e psiquiátricos, escolas, conselhos tutelares, promotoria pública, creches, associações de bairro, entidades filantrópicas. Em conseqüência disso, os diversos serviços nos diferentes níveis de atenção não reconhecem a existência de várias lógicas de funcionamento, de múltiplos atravessamentos provocados por diversos fluxos dos usuários.
As ações no território devem ativar os recursos do habitat de origem ou de referência do usuário, necessários para a construção de projetos terapêuticos emancipadores e transformadores do imaginário social. Nessa perspectiva, o termo “território” aqui adotado não se refere apenas ao espaço geográfico, mas também aos espaços demográfico, epidemiológico, tecnológico, econômico, social, cultural, político, produto de um processo permanente em que se articulam diferentes sujeitos políticos com suas necessidades, interesses, desejos e sonhos16,17.
A responsabilização pelo tratamento do usuário presume a invenção, o planejamento, a
avaliação e a gestão dos novos saberes e fazeres no coletivo, garantindo a participação de todos os atores envolvidos. Essa produção coletiva não é natural: ela é construída no cotidiano do serviço. A equipe, a coordenação e a clientela precisam desenvolver sua capacidade de análise da realidade de seu trabalho e de seu “entorno” para construir seu projeto, conhecer e problematizar seus referenciais teórico-técnico-políticos, criar mediações, equacionar seus conflitos, reorganizar o trabalho.
Em síntese, uma efetiva consolidação das propostas atuais da Reforma Psiquiátrica requer, entre outras ações, um maior compromisso dos gestores com a atenção em Saúde Mental, um maior investimento no suporte para as equipes de saúde mental das UBS, CAPS e a articulação com o Programa Saúde da Família-PSF. Também deve estimular a organização e a participação dos usuários e familiares, bem como a integralidade e a intersetorialidade das ações desenvolvidas nas cidades para construir uma rede de cuidado e inclusão social.
Campo político-jurídico
Os vários segmentos sociais dos municípios conheciam os princípios e propostas da Reforma Psiquiátrica, embora esse conhecimento apresentasse diferenças entre os gestores, trabalhadores e usuários. Os gestores, naturalmente, e até por necessidade do seu cargo, demonstraram ter maiores informações sobre a legislação (portarias, normas e projetos do MS e SES-SP): [...] Existia uma luta antimanicomial que eu acho que veio bem antes dessa política [...]. Então, para mim, já está mais claro que a gente precisava ter um outro tipo de trabalho [...] (G1-Assis). Os trabalhadores pareciam desconhecer a legislação: Eles dizem que nunca receberam uma portaria, [...]. A gente manda, mas eles não sabem ou não se lembram... [...] (G2 de Assis) ou evidenciaram pouco envolvimento com o tema: [...], mas eu tenho sentido um pouco de dificuldade dos gestores também estarem entendendo e implementando isso, e dos profissionais para promover outras práticas e repensar essa orientação (T3-Cândido Mota). Os usuários evidenciaram interesse na política de distribuição de medicamentos, de benefícios sociais como, por exemplo, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS): [...] A família passou a entender a necessidade da medicação, [...] E que uma internação faz mal para o paciente [...] O benefício [LOAS] ajudou esse paciente a ser respeitado, porque ele participa de orçamento da casa. [...] (T2-Assis).
Os municípios, pressionados pela política econômica, buscam novos recursos financeiros para poder governar, sendo que qualquer possibilidade de captar recursos é sempre bem-vinda. Entretanto, os investimentos propostos pelo MS para a Saúde Mental nem sempre foram considerados boas fontes de captação de recursos. As críticas referiam-se à necessidade da contrapartida do município, à existência de verbas vinculadas a projetos. Tal situação, acrescida das exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal, principalmente no tocante às limitações com despesas com recursos humanos, apareceram como justificativas do pouco interesse dos municípios pelos recursos disponibilizados pelo MS para a Saúde Mental: [...] Quando o MS divulga e incentiva a criação do CAPS nos municípios, há sempre a promessa de que os recursos para esse serviço vão aumentar [...] Mas isso é muito perigo! [...] pois a contrapartida municipal é maior (G1-Assis).
A alternância de poder na esfera do executivo municipal foi apontada como um outro obstáculo no processo de construção da Atenção Psicossocial, pois os serviços se organizavam de maneira precária e frágil, o que os tornava vulneráveis no início de cada nova gestão administrativa: Então, o problema é. [...] O que você tinha numa certa administração, a outra não vai usar [...], porque não foi ela quem criou. [...] sempre há mudanças de equipe. [...] e isso é muito ruim. [...] (G1-Assis).
São inquestionáveis os benefícios resultantes da gestão local da atenção em saúde para a população, a partir da implementação do SUS, após 1989. Naquele momento, eram grandes as expectativas decorrentes da Promulgação da Constituição de 1988, principalmente no que se referia à ampliação do papel do município como composição federativa. As perspectivas de maior autonomia, de novas responsabilidades e de mais recursos para os municípios, aliadas à esperança de mudança no panorama político do país (a proximidade da primeira eleição direta para Presidente da República, desde 1960) e a ampliação e a consolidação dos movimentos sociais contribuíram para a eficácia de muitas administrações municipais na gestão das políticas públicas.
Tal cenário continha a promessa de renovação da vida política. E apontava para um novo momento político em que o Estado é concebido como arena de lutas políticas, com uma nova correlação de forças entre as classes dominantes e as classes dominadas, havendo, portanto, o fortalecimento da autonomia da sociedade civil.
Esse contexto político não se manteve na década de 1990. A redução do papel do Estado na gestão das políticas públicas tem impedido a sustentação do pacto social construído pela sociedade civil. Nesse processo, as regras do mercado são consideradas suficientes para produzir o bem-estar do homem, podendo ser complementadas com algumas ações políticas compensatórias. Do Estado espera-se que seja capaz, de um lado, de propiciar a mobilidade externa do capital, do consumo e do sistema financeiro e, de outro, de controlar o poder dos movimentos sociais.
Nesse sentido, a descentralização da gestão das políticas públicas continua se consolidando, mas não necessariamente comprometida com a qualidade de vida da população. O objetivo da gestão desloca-se para o controle e o equilíbrio do déficit público. Assim, a maioria dos municípios estaria gerenciando a pulverização das políticas públicas e a precarização dos direitos constitucionais da população. O desafio nessa primeira década do século XXI é de fazer avançar o SUS e a construção da rede de atenção psicossocial e, essencialmente, criar uma rede de resistência para a manutenção de seus pressupostos básicos.
Mas se, de um lado, os municípios têm encontrado dificuldades para cumprir as suas atribuições, de outro, os gestores municipais nem sempre estão compromissados suficientemente com a política nacional de saúde, de modo a implantar as propostas do MS para consolidar o SUS, e mesmo para solicitar recursos disponíveis. Enfim, [...] Não há nenhuma garantia intrínseca à autonomia dos governos locais que os torne responsáveis, comprometidos com as necessidades dos cidadãos e determinados a administrar com eficiência18.
Nos municípios estudados a atenção em Saúde Mental não é prioridade para os gestores: Eu não vejo a SM como uma prioridade para o gestor. Eu vejo que ele está satisfeito do jeito que ela está funcionando. Mas uma prioridade de olhar para o setor... (G2-Cândido Mota).
Também existe a falta de maior empenho e comprometimento com as propostas do SUS e da Reforma Psiquiátrica, no tocante à necessidade de mudança do modelo assistencial: Temos caminhado muito lentamente. [...] Fica muito distante o que é proposto do que é realizado (G2-Cândido Mota).
É necessário que haja mecanismos mais efetivos de orientação para a mudança do modelo assistencial e de acompanhamento da aplicação dos recursos financeiros, não somente em nível local, mas estadual e federal. Para isso, faz-se necessária a retomada das ações realizadas pelos diversos segmentos sociais, e dentre eles os conselhos profissionais comprometidos com essa mudança. As Comissões de Reforma Psiquiátrica (nacional e estaduais) e os movimentos sociais (o da Luta Antimanicomial) devem retomar e ampliar as ações de acompanhamento, orientação e fiscalização da implantação das diretrizes e propostas de ações e serviços nos municípios, em especial, os de pequeno e médio portes, além de contribuírem para o fortalecimento da participação popular e do controle social.
É importante ainda destacar que não existe nenhuma legislação municipal que contemple a mudança do modelo assistencial nos municípios estudados. Há apenas algumas diretrizes contidas em conferências de saúde e na I Conferência Regional de Saúde, já analisadas anteriormente. As conferências de saúde dessas cidades vêm sendo espaços importantes de participação popular e para deliberações, visando à construção de uma política local para os vários setores da saúde. No entanto, elas ainda não conseguem desempenhar seu papel de co-participante de fato no processo de construção da política local de saúde e da atenção psicossocial.
Campo sociocultural
Os municípios pouco desenvolviam ações para transformarem a percepção da população acerca da doença mental e das pessoas consideradas como tal. Em geral, os serviços dos dois municípios avaliaram que o estigma social para com a pessoa considerada “doente mental” ainda era muito grande: [...] a própria família criou um estigma dessas pessoas. [...]. Eles tentam até dizer que não tem ninguém com esse problema na família, mas não é bem assim. Hoje, caiu o conceito de louco, agitado e eles são tratados como psicóticos, neuróticos...[...] (G1-Cândido Mota).
No entanto, na medida em que aumentavam as ações desenvolvidas nos espaços públicos da cidade, com a população passando a interagir mais com os usuários da rede de Saúde Mental, observou-se uma maior aceitação ou uma maior tolerância e condescendência para com tais pacientes, notadamente quando eles não estavam em crise: [...] eu ouvi relatos na Conferência Municipal de Saúde,[...] As pessoas acharam incrível a participação de alguns usuários da Saúde Mental contribuindo para o processo.[...] (U3-Assis).
Finalizando, é possível perceber que a realização de ações no território do serviço e nos espaços públicos pode permitir uma maior compreensão da sociedade sobre o sofrimento psíquico e, conseqüentemente, uma maior tolerância e aceitação do usuário para com os serviços de saúde Mental (na realidade, essa mudança de percepção deveria ser tema de outra investigação, por sinal muito interessante).
Os municípios estudados realizavam também poucas ações intersetoriais, mesmo entre os diversos setores da administração pública, embora em seus documentos destacassem sua importância. Entre as justificativas, era recorrente o preconceito para com o usuário da Saúde Mental: A gente é muito excluída ainda. Fica parecendo que a SM não tem nada a ver com as pessoas e com o resto das coisas.[...] (G3-Assis), a falta de projetos de inclusão social: É difícil porque a Secretaria da Assistência não tem projeto nenhum. E de Educação também não. [...] (G2-Cândido Mota) e os entraves burocráticos das secretarias de governos: [...] Porque a gente a recebe (alimentação) de uma parceria com a Secretaria da Educação que tem a cozinha-piloto. Quando a Educação entra em férias, não tem comida, não tem refeição para os pacientes e [...] (G4-Assis).
O município maior tem mais recursos para desenvolver ações intersetoriais, em especial com a Secretaria de Assistência Social: [...] teve um avanço nessa parceria [...] no sentido de conseguir encaixar 7 usuários em atividades lá (monitores de projetos como oficina de pintura e horta). [...] (G3-Assis).
Contudo, essa situação não garante a construção de uma rede de dispositivos articulada em propostas comuns e coletivas; enfim, de uma rede produtora de transformação social e cidadania. Para constituir uma rede de resistência e disparadora de mudanças, deve haver nos municípios um maior estímulo para a organização e para a participação dos usuários e familiares, a integralidade dos dispositivos de saúde, de assistência social e de cultura neles existentes, com o objetivo de construir uma rede de cuidado e reinserção social emancipadora. Também é indispensável construir uma interlocução com o Poder Judiciário para propiciar a mudança na cultura jurídica das concepções acerca da doença mental e das formas de tratamentos que envolvem a exclusão, a segregação e o confinamento dos usuários da Saúde Mental e, conseqüentemente, a compreensão e a aceitação dos novos serviços de atenção psicossocial, inclusive para os dependentes químicos e outras drogas.
No que se refere à relação da população e dos serviços de saúde mental, observou-se que, nos dois municípios, os gestores e trabalhadores avaliaram que a população mantinha uma boa
relação com os serviços de Saúde Mental:
[...] Nosso serviço é, para a nossa alegria, visto de uma forma muito boa. Basta ver o número de pessoas que são atendidas e se dirigem para cá, por ouvir falar bem do serviço. [...] (G1-Cândido Mota).
[...] Mas não tenho reclamação sobre a Saúde Mental. [...] Eu acho que o pessoal que está trabalhando com Saúde Mental é diferenciado [...] O pessoal que trabalha no CAPS é comprometido e se dedicam. [...] (G1-Assis).

Também, entre os usuários, encontrou-se uma visão positiva do serviço: O programa [SM] tem dado resultado para os usuários, porque, eu acho que eles estão sendo bem assistidos[...] (U3-Cândido Mota).
No município de Assis ocorreram mais reclamações. Estas se centravam nos atrasos dos médicos: [...] E, às vezes, o médico chega aqui com duas horas e meia de atraso. Então, os pacientes ficam agitados. [...] (T1-Assis), e na falta de medicação: [...] Você recebe uma reclamação de que faltou um medicamento ou que ele chegou atrasado; mas a gente procura não deixar faltar [...] (G1-Assis).
Também foi identificada uma outra reclamação relacionada à não aceitação inicial dos familiares da proposta de tratamento substitutiva à internação psiquiátrica. Porém, a própria equipe admite a falta de trabalho mais efetivo com os familiares, com o objetivo de produzir demanda para um outro tipo de tratamento: Uma das críticas mais comuns é dos familiares, [...] Eles esperam poder deixar o usuário lá, para que eles possam ir trabalhar... [...] às vezes, quando a família briga porque ela quer internar o usuário [...] (G3-Assis).
Em relação aos mecanismos de participação e controle social, constatou-se que no município menor, estes ainda não são efetivos:
Quando foram montados esses conselhos procurava obedecer às leis. Então os prefeitos fizeram uma loucura, pegaram o pessoal a laço [...] Eu acho que cinqüenta por cento deles, hoje, desconhecem os programas e os projetos dentro da área de Saúde (U3-Cândido Mota).
No município de médio porte, as instâncias de participação popular e controle social estavam mais consolidadas, principalmente quando comparadas às existentes nos demais municípios da região. Entretanto, a atuação do CMS e a participação ativa de seus conselheiros não podem ser consideradas como indicadores da existência de mobilização e organização da sociedade civil em torno das questões da saúde: É um Conselho ativo, atuante. [...] Mas precisa-se urgentemente de um treinamento para conselheiro [...]. O conselheiro é leigo e ele não sabe no que ele está votando... [...] (G2-Assis)
Porém, a atenção em Saúde Mental não parece ter espaço no CMS de saúde. As discussões acerca desse tema e do serviço são apenas pontuais e esporádicas: [...]. Só aparece quando eu
levo. [...] Então eu uso esse espaço para informar, pois não tem muita solicitação sobre como
funciona a Saúde Mental...[...] Nem recebe-se queixa! (G2-Cândido Mota).
Essas dificuldades se reproduzem também na organização e no funcionamento dos Conselhos Gestores existentes nas unidades de saúde: [...]a população não sabe direito o que é aquilo e as pessoas que às vezes têm mais recursos, não querem participar. [...] (G3-Assis).
Em síntese, a existência de poucos espaços políticos de negociação entre os diversos atores sociais interfere na produção de conhecimento coletivo acerca do sofrimento psíquico e na diminuição do estigma social da loucura.
Deve-se ressaltar, ainda, que a implantação e a consolidação das diretrizes e das propostas da Reforma Psiquiátrica supõem uma construção coletiva que exige envolvimento dos atores dos diversos segmentos da sociedade. O empenho e a organização dos trabalhadores, dos usuários, dos familiares e das demais entidades da sociedade civil são fundamentais. Mas, sem dúvida alguma, é imprescindível que os governos municipais rompam com um modelo de administração pública centrado na conservação e nas pequenas intervenções no espaço urbano, na construção de grandes obras, no fisiologismo político, assumindo um projeto de governo autônomo, centrado em políticas sociais e voltado para a melhoria de vida de toda a população.


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luzio, CA. Atenção em Saúde Mental em municípios de pequeno e médio portes: ressonâncias da reforma psiquiátrica. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/jul). [Citado em 08/08/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/atencao-em-saude-mental-em-municipios-de-pequeno-e-medio-portes-ressonancias-da-reforma-psiquiatrica/855?id=855

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