0146/2025 - Avanços para a proteção do períneo e redução da episiotomia em uma maternidade-escola: série histórica de 2010 a 2022
Advances in protecting the perineum and reducing episiotomy in a maternity-school: historical series from 2010 to 2022
Autor:
• Luana Beatriz Lemes - Lemes, LB - <luana.lemes.pr@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4616-6746
Coautor(es):
• Jamile Claro de Castro Bussadori - Bussadori, JCC - <jamilebussadori@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3048-5593
• Bruna Dias Alonso - Alonso, BD - <bruna.dias.alonso@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8259-4807
• Denise Yoshie Niy - Niy, DY - <denise.niy@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0140-2063
• Heloisa de Oliveira Salgado - Salgado, HO - <hellosalgado@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8530-8925
• Caio Antonio de Campos Prado - Prado, CAC - <cacprado@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1767-4725
• Elaine Christine Dantas Moisés - Moisés, ECD - <elainemoises@fmrp.usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9099-4544
• Carmen Simone Grilo Diniz - Diniz, CSG - <sidiniz@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0069-2532
Resumo:
Introdução: uma experiência de parto positiva e segura ainda é um desafio para parturientes no mundo inteiro e também no Brasil. Objetivo: descrever e analisar as mudanças no cuidado perineal e nas taxas de episiotomia de uma maternidade-escola do estado de São Paulo, e as estratégias que facilitaram a incorporação de práticas baseadas em evidências. Métodos: estudo composto por métodos mistos, que analisou as mudanças no modelo de cuidado e nas taxas de episiotomia por meio de dados de prontuários (2010 a 2022), utilizando elementos da metodologia do Laboratório de Mudança e da análise histórica e cultural do sistema de atividade. Resultados: a taxa de episiotomia foi de 70% em primíparas e 35% na população geral em 2010, chegando, em 2022, a 0,7% e 0,5%, respectivamente, permitindo que 75% das parturientes (65% das primíparas) tivessem integridade perineal ou lesões leves de primeiro grau. Contribuíram para as mudanças: criação de protocolos, monitoramento de indicadores, obrigatoriedade de registro da realização da episiotomia, capacitações das equipes, redução do uso de fórceps e o fortalecimento de estratégias de comunicação com parturientes. Conclusão: a queda na taxa de episiotomia é possível mesmo em hospitais-escola, desde que a formação seja baseada em evidências e nos direitos humanos.Palavras-chave:
práticas baseadas em evidência, períneo, episiotomia, ciência da implementação, educação profissionalAbstract:
Introduction: a positive and safe childbirth experience is still a challenge for parturients around the world and also in Brazil. Objective: to describe and analyze changes in perineal care and episiotomy rates in a maternity school in the state of São Paulo, and the strategies that facilitated the incorporation of evidence-based practices. Methods: mixed-methods study that analyzed changes in the care model and episiotomy rates through data from medical records (2010 to 2022), using elements of the Change Laboratory methodology and the historical and cultural analysis of the activity system. Results: the episiotomy rate was 70% in primiparous women and 35% in the general population in 2010, reaching in 2022, 0,7% and 0,5%, respectively, allowing 75% of parturients (65% of primiparous women) to have perineal integrity or first-degree injuries. Contributed to change: the creation of protocols, the monitoring of indicators, mandatory registration of the episiotomy, team training, reduction in the use of forceps and strengthening of communication strategies with parturients. Conclusion: a drop in the episiotomy rate is possible even in teaching hospitals, as long as training is based on evidence and human rights.Keywords:
evidence-based practice, perineum, episiotomy, implementation science, professional educationConteúdo:
O acesso a uma assistência segura e respeitosa, e que possibilite uma experiência de parto positiva, ainda é um desafio para as parturientes no mundo inteiro e também no Brasil1,2. O modelo de atenção hospitalar brasileiro é frequentemente marcado por falhas no registro de indicadores, especialmente aqueles relacionados às intervenções prejudiciais e que ferem a integridade corporal e genital, como a episiotomia.
A prática da episiotomia (corte no canal vaginal durante o parto) é muitas vezes interpretada como parte da assistência padrão2,3, de tal modo que o seu registro é frequentemente incompleto nos prontuários hospitalares, e ausente no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC)4, o que dificulta o seu monitoramento no plano nacional. Infelizmente, este quadro contribui para a desvalorização dos monitoramentos locais, bem como de outras informações sobre a qualidade da assistência recebida por meninas, mulheres e pessoas trans masculinas no que se refere ao cuidado com o períneo.
Estudos conduzidos no Brasil e em outros países sugerem que a prática restritiva da episiotomia e talvez até mesmo a sua abolição da assistência obstétrica parecem não se associar ao aumento de taxas de lacerações perineais graves (lesões de terceiro e de quarto graus que comprometem o canal vaginal e o esfíncter anal), nem de desfechos maternos ou neonatais adversos, como asfixia neonatal5-7. Ainda assim, a episiotomia continua a ser praticada, de forma rotineira ou seletiva, inclusive em instituições públicas2,8.
Os dados mais recentes sobre o assunto indicam que as práticas prejudiciais reduziram-se entre os anos 2011 e 2017, porém, ainda é elevada a quantidade de mulheres submetidas a estas intervenções. De acordo com estudo sobre os avanços na assistência ao parto no Brasil, apesar da queda na taxa de episiotomia, aproximadamente 40% das mulheres atendidas no setor privado e 30% daquelas atendidas no setor público sofreram um corte na vulva e na vagina8.
Um estudo encontrou divergências entre os relatos das mulheres e os registros em prontuários, com evidência de que houve sub-registro. Em alguns casos, uma laceração perineal espontânea foi registrada no prontuário, ao passo que a mulher relatou ter sido cortada e suturada. Isto sugere um problema não apenas com a implementação do indicador, como também com a transparência, qualidade e confiabilidade do próprio registro9. Estudos mostraram que as mulheres internadas em serviços públicos podem sofrer episiotomias desnecessárias apenas para proporcionar oportunidade de treinamento, sendo frequente que as primeiras incisões cirúrgicas de estudantes de medicina ocorram nessas situações3,10.
O trauma perineal afeta o bem-estar físico, psicológico e social no período pós-parto, assim como pode causar complicações a longo prazo, afetando o convívio social, a vida familiar e as relações, incluindo as relações sexuais11. As complicações associadas à episiotomia podem incluir aumento da perda de sangue, dor e edema local, o que pode causar desconforto ao sentar, afetando a amamentação, além de dor durante as relações sexuais, infecção, fístulas e deiscência da cicatriz, e ainda cicatrização insatisfatória resultando em assimetrias ou até estreitamento do intróito vaginal2,6,12-14.
Além disso, a condição perineal pós-parto pode oferecer informações sobre a qualidade da assistência nos serviços de saúde durante a internação para o parto. Nesse sentido, a redução de intervenções como a episiotomia é expressão de melhora da qualidade da assistência, visando à promoção da autonomia, do protagonismo, da integridade e do bem-estar das parturientes, assim como um ensino mais condizente com os padrões científicos e éticos2,8,15.
O objetivo deste trabalho foi descrever e analisar as mudanças no cuidado perineal e nas taxas de episiotomia de uma maternidade-escola do estado de São Paulo, e as estratégias que facilitaram a incorporação de práticas baseadas em evidência.
MÉTODOS
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo utilizando métodos mistos, que buscou compreender as mudanças no modelo de atenção ao parto e cuidado com o períneo oferecido às meninas e mulheres ao longo de uma série histórica de registros de uma maternidade-escola, cujo interesse correspondeu ao período de 2010 a 2022. Adicionalmente, este estudo incluiu uma análise histórica e cultural da atividade de assistência e o mapeamento de mudanças no modelo de atenção ao parto, especialmente os facilitadores para a incorporação de boas práticas na assistência e redução de lesões perineais durante o parto vaginal.
Referencial teórico-metodológico para a análise histórica e cultural da atividade
O Laboratório de Mudança, em inglês Change Laboratory, é uma metodologia que permite avaliar e transformar um sistema de atividade durante o seu funcionamento, engajando profissionais, pesquisadores e a gestão em uma análise participativa e ação coletiva, possibilitando mudanças na direção de um desenvolvimento sustentável, por meio da aprendizagem expansiva16-18. São exemplos de sistemas de atividade: o sistema de assistência, por exemplo um centro de saúde ou uma maternidade; o sistema de ensino, por exemplo as faculdades de medicina e enfermagem e cursos de especializações; ou ambos os sistemas de ensino e de assistência funcionando simultaneamente, por exemplo hospitais universitários e hospitais-escola, como o caso estudado15,17, 18.
O Laboratório de Mudança (LM) proporciona aos seus participantes analisar e compreender problemas que afetam a sua atividade de trabalho, e permite criar e implementar um modelo que supere as contradições identificadas. Na prática, significa expandir um sistema de atividade, especialmente o seu objeto, o que Yrjö Engeström chamou de “aprendizagem expansiva”17,19,20. A aprendizagem expansiva pode ser compreendida como uma atividade coletiva constituída por ações de aprendizagem pessoal, por meio da qual as pessoas são impulsionadas a aprender e a desenvolver colaborativamente o seu trabalho17.
Os princípios da teoria histórico-cultural da atividade, também conhecida como teoria cultural e histórica da atividade, fundamental para o desenvolvimento do LM, são: o sistema de atividade (SA) como unidade de análise, a historicidade da atividade, as contradições como força para impulsionar mudanças e os ciclos de aprendizagem expansiva como possibilidades de transformação de uma atividade colaborativa21.
Na teoria da atividade, e no LM, a unidade básica de análise é constituída por um sistema de atividade (SA), que por sua vez faz parte de uma rede de outros sistemas, por exemplo, o sistema de saúde, que recebe influência das suas intersecções com o sistema de ensino. Um SA tem como elementos: instrumentos, regras, comunidade, divisão do trabalho, objeto e sujeito. Este último pode ser individual ou coletivo e, motivado pelo objeto, recorre a mediadores para atingir um resultado17,18.
Em um SA, por exemplo o trabalho em uma maternidade, é possível observar elementos fundamentais que interagem, moldando-se mutuamente, como: a) as ferramentas ou os instrumentos que podem ser conceituais ou materiais, por exemplo, protocolos e diretrizes; b) as regras, que são os regulamentos e normas, como os prazos; c) a divisão do trabalho, que representa a divisão horizontal de tarefas e a divisão vertical de poder (hierarquias); d) a comunidade, que representa o conjunto de indivíduos envolvidos com o objeto, como por exemplo a família15,17,18.
Durante a implementação do projeto “Estratégias para a incorporação de inovações na assistência ao parto e ao recém-nascido: intervenção piloto no Sistema Único de Saúde da Iniciativa Hospital Amigo da Mulher e da Criança (IHAMC)”, o modelo de atenção do Centro de Referência da Saúde da Mulher de Ribeirão Preto - MATER (CRSMRP-MATER), foi observado, avaliado e moldado coletivamente (facilitado pela aprendizagem expansiva), a fim de oferecer qualificação adicional ao atendimento oferecido, baseado em evidências científicas e nos direitos humanos15. Este projeto serviu de base para as análises do presente estudo.
A IHAMC utilizou princípios do LM, que foi um recurso útil para estudar o modelo de atenção atual deste hospital-escola, sua origem e o seu desenvolvimento ao longo do tempo, e realizar uma análise histórica e cultural da assistência oferecida, considerando também os aspectos relacionados ao ensino e treinamento em saúde. Durante a avaliação do CRSMRP-MATER, foi possível observar não apenas um, mas um duplo SA, composto pelo sistema de atividade de assistência e pelo sistema de ensino, que interage direta e indiretamente na qualidade do resultado em saúde. Dois sistemas de atividade que compartilham parcialmente o mesmo objeto e que buscam como resultados da sua atividade: mulheres e bebês saudáveis, com uma experiência de parto positiva, e a formação de futuros profissionais e especialistas15.
Detalhamentos sobre os sistemas de atividade no CRSMRP-MATER e a figura analítica desenvolvida conforme proposto por Engestöm19 podem ser consultados em outra publicação15.
Local do estudo
Este estudo foi realizado no CRSMRP-MATER, instituição que oferece atendimento público através do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de um hospital-escola. Oferece assistência à saúde das mulheres com gestações de risco habitual a partir de 36 semanas, assistência ao trabalho de parto e ao nascimento, além de tratamento ginecológico clínico e cirúrgico. O cuidado é liderado pela equipe médica, com assistência essencial das equipes de enfermagem, fisioterapia, serviço social, nutrição e psicologia.
O CRSMRP-MATER é certificado pela Iniciativa Hospital Amigo da Criança desde 2002 e, a partir de 2016 com o início das negociações para aplicação da metodologia do LM, teve a oportunidade de participar da implementação da IHAMC, que teve início em 2017.
Coleta de dados
Para análise da série histórica, a coleta de dados foi feita como parte da rotina gerencial, considerando que todos os prontuários da instituição passam por auditoria em diversas etapas, sendo uma delas sob responsabilidade de sua Diretoria de Atenção à Saúde.
Foi realizada uma análise qualitativa e quantitativa, gerando um conjunto de indicadores assistenciais, que auxiliaram a gestão no processo de tomada de decisão, a partir da identificação de pontos potenciais de melhoria. Estas informações são utilizadas como apoio à Educação Permanente, em um processo contínuo e estruturado. Parte destes dados é remetida à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo (SES/SP) para acompanhamento dos indicadores pactuados em contrato. Com isso, a instituição detém uma série histórica de dados relacionados à sua assistência. A partir dela foram selecionados os dados referentes aos partos vaginais ocorridos no CRSMRP-MATER entre janeiro de 2010 e dezembro de 2022, de maneira anonimizada, preservando a identidade de parturientes e profissionais.
Foram consideradas as seguintes informações: idade em anos completos, raça/cor da pele (autodeclarada), paridade (autorreferida) e escolaridade (anos completos de estudo). Além de: taxas de episiotomia, lacerações perineais de primeiro grau, de segundo grau, de terceiro e de quarto graus, e períneo íntegro.
Análise dos dados
Para estudar as mudanças no modelo de atenção, com foco nas estratégias que facilitaram a incorporação de práticas baseadas em evidências, foram selecionadas duas formas de análise, que foram utilizadas de maneira complementar.
Para a análise descritiva da série histórica foram considerados os indicadores de qualidade e segurança da assistência relacionados ao desfecho perineal das mulheres e meninas atendidas, cujos dados foram analisados considerando sua frequência no período de 2010 a 2022.
Para a análise histórica e cultural da atividade16,18, a rotina de assistência, assim como aspectos do ensino, foram acompanhados por meio de observação participante realizada pela equipe de pesquisa no período de 2017 a 2019, como parte da pesquisa IHAMC15. As informações mais relevantes a respeito das práticas assistenciais e de treinamento foram coletadas, selecionando-se as principais mudanças ocorridas com impacto no modelo de atenção.
Considerações éticas
Este estudo foi realizado em conformidade com a Declaração de Helsinque22 e seguindo as diretrizes e normas contidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde23. O banco de dados utilizado não se encontra disponível publicamente, não sendo possível acessar a identidade das mulheres. Estes dados ficam armazenados eletronicamente e sob responsabilidade da gestão do CRSMRP-MATER. Os dados utilizados são derivados dos indicadores monitorados periodicamente pela equipe do CRSMRP-MATER. O monitoramento é feito em conjunto pela Diretoria de Atenção à Saúde e o Escritório de Qualidade. A coleta de dados e as análises são realizadas em tempos distintos: os prontuários do mês anterior são analisados até o dia 15. Na quinzena seguinte, os indicadores são compilados e analisados. Alguns deles recebem tratamento de tomada de ações mensalmente e outros são feitos trimestralmente.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) sob o parecer número 5.351.939 e aprovado pela Comissão de Pesquisa do CRSMRP-MATER sob o parecer número 002/2022.
RESULTADOS
Breve análise histórica e cultural do CRSMRP-MATER
A história do CRSMRP-MATER teve início em 8 de março de 1998, quando a população de Ribeirão Preto foi contemplada com a inauguração de uma maternidade denominada “MATER – Maternidade do Complexo Aeroporto”.
Até março de 2009, a gestão administrativa era de responsabilidade da Fundação Sinhá Junqueira, uma instituição civil criada em 1950 e que atua em cidades do estado de São Paulo. A partir de então, firmou-se um convênio entre a SES/SP e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP/USP) para que, junto com a Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência (FAEPA), fosse feita a gestão do que se designou “Centro de Referência da Saúde da Mulher de Ribeirão Preto - MATER (CRSMRP-MATER)”. Com isso, ampliou-se a população assistida para os demais 25 municípios pertencentes ao Departamento Regional de Saúde XIII - Ribeirão Preto. Em 2011, o CRSMRP-MATER tornou-se uma Organização Social de Saúde (OSS), com contrato administrado pela FAEPA junto à SES/SP.
O CRSMRP-MATER possui convênio com a Universidade de São Paulo (USP), oferecendo cenário de ensino e treinamento a estudantes de graduação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), além dos programas de residência médica do HCFMRP/USP. No início, foi implementada residência de Enfermagem Obstétrica e Neonatal em parceria com a EERP, cujo programa foi encerrado em 2008.
Em 2022, foram recebidos 568 graduandos em disciplinas e estágios supervisionados, sendo 211 estudantes de enfermagem, 17 de fisioterapia, 40 de nutrição e 300 estudantes de medicina. No mesmo período, o CRSMRP-MATER também recebeu 127 profissionais da categoria médica residentes das especialidades: ginecologia e obstetrícia, vídeo-endoscopia ginecológica, uroginecologia, mastologia, puericultura e pediatria, medicina fetal, medicina de família e da comunidade, e medicina de emergências.
Início das mudanças no modelo de assistência
Os períodos mais importantes para as mudanças no modelo de atenção, e que promoveram a incorporação de boas práticas no cuidado com o períneo e a redução da episiotomia, foram verificadas a partir de uma linha do tempo, representada pela Figura 1.
Um marco importante ocorreu em 2012, quando foi promovida a “Jornada de Assistência Materno-Infantil e Cirurgia Ginecológica”. Tratou-se de um evento que buscou ampliar discussões acerca das boas práticas na assistência à saúde da mulher e do bebê, com foco na humanização da assistência. A jornada passou a acontecer anualmente, tornando-se um espaço para aprimoramento e atualização de profissionais e pesquisadores em saúde, por meio de palestras, reuniões científicas e oficinas de treinamento de habilidades, além de simulações de situações da prática clínica. Neste processo, foram discutidas a Política Estadual de Humanização como reforço às medidas adotadas institucionalmente. Outro evento catalisador foi a apresentação e debate do documentário “O Renascimento do Parto”, que foi realizado em duas sessões no CRSMRP-MATER. A equipe assistencial também foi estimulada a assistir nos cinemas.
O fato de o CRSMRP-MATER ter participado da implementação da IHAMC, favoreceu mudanças significativas, impactando na melhora da assistência oferecida e potencializando a preocupação com o protagonismo das parturientes no momento do parto. Esta parceria facilitou o fortalecimento de estratégias, incluindo aquelas de educação em saúde, como a elaboração e implementação do plano de parto15.
O plano de parto foi desenvolvido como um documento informativo que estimula as pessoas, especialmente as mulheres, a saberem o que a maternidade oferece em termos de modelo de assistência e a conhecerem os seus direitos, permitindo que elas tomem decisões informadas relacionadas ao seu parto, baseadas nas suas escolhas e no que a unidade oferece de recursos. Nesse documento, entre outros assuntos, as pessoas são informadas sobre o direito de escolha de acompanhante para o trabalho de parto e parto, posições de parto e também sobre a episiotomia e os seus riscos.
Outras estratégias contribuíram para as mudanças e a sustentabilidade de um novo modelo, garantindo taxas de episiotomia cada vez menores e o oferecimento de assistência mais alinhada às evidências científicas e às recomendações internacionais1. Entre elas, foram implementadas as capacitações periódicas (duas vezes por ano) com todas as equipes, incluindo a temática do diagnóstico e manejo das lacerações graves, estratégia que se mantém até a presente data. Além de aumento do uso das camas para pré-parto, parto e pós-parto e a redução dos partos em posição litotômica, a fim de reduzir intervenções, como a episiotomia, e permitir maior liberdade às mulheres quanto à escolha da posição de parto15.
Paralelamente, a instituição passou por uma reforma na sua estrutura física (2014 a 2018) que promoveu melhorias na ambiência, como climatização de todos os setores, redução do número de leitos no pré-parto de três para dois em cada quarto para promover mais privacidade, ampliação da área do banheiro disponível para banho de aspersão com banco de segurança e instalação de espaldares nos quartos de pré-parto e salas cirúrgicas. A retirada do parto do ambiente cirúrgico foi um processo facilitado pela reforma estrutural e uma estratégia que contribuiu para reduzir intervenções desnecessárias como a episiotomia.
Além disso, foi desenvolvido um projeto de comunicação visual com vídeos e cartazes sobre movimentação no trabalho de parto, escolha da posição de parto, métodos de alívio da dor e vias de parto. Como consequência, houve melhora na comunicação com as mulheres.
Registro e monitoramento de indicadores
A preocupação com a integridade corporal das parturientes durante os partos vaginais passou a ser mais efetiva com a coleta e o monitoramento de indicadores relacionados ao desfecho perineal e, especialmente, da episiotomia. Entre 2010 e 2013, foram monitoradas a episiotomia e também as lacerações graves (conhecidas pela sigla em inglês OASIS, Obstetric Anal Sphincter Injury, lesão obstétrica do esfíncter anal)24. A partir de 2014, o acompanhamento dos dados passou a ser mais detalhado, contando com revisão das fichas operatórias e evoluções clínicas de pós-parto. Além disso, foi incorporado o registro dos demais desfechos perineais: integridade perineal e laceração de primeiro e de segundo graus.
Além do objetivo de monitoramento de eventos sentinela e prestação de contas à SES/SP, os indicadores passaram a ser utilizados para oferecer feedbacks para as equipes com relação à segurança e qualidade da assistência oferecida. Os feedbacks às equipes passaram a ser realizados em conjunto pelas chefias imediatas (Gerência de Enfermagem, Diretoria Clínica e Diretoria de Atenção à Saúde).
Entre 2014 e 2017, as taxas de episiotomia praticadas por cada profissional da instituição foram fornecidas de maneira individual, junto com os principais indicadores definidos estrategicamente, como taxas de cesárea e de analgesia, para que cada um pudesse se comparar à média geral e às taxas de tolerância sugeridas pela administração15. Essa estratégia permitiu o compartilhamento semestral dos indicadores com toda a equipe, de forma que cada profissional de saúde recebia o total de partos assistidos, via de nascimento, desfecho perineal e as respectivas proporções.
As capacitações das equipes aliadas à estratégia de feedback dos indicadores favoreceram abordagens empáticas por parte de profissionais de saúde e uma postura proativa na redução da episiotomia. Estas capacitações foram organizadas pela Educação Permanente, atualmente incorporada ao setor de Gestão de Pessoas. A partir de 2018, a estratégia de feedback foi descontinuada, pois foi observada a consolidação das taxas de episiotomia abaixo de 3% por três semestres consecutivos.
A partir de 2019, outra estratégia utilizada foi a realização de treinamentos com profissionais, direcionados para a identificação e correção das lacerações graves, organizados pela Educação Permanente com apoio da equipe cirúrgica do CRSMRP-MATER. Tais treinamentos englobaram toda a equipe médica da obstetrícia (dois encontros), incluindo médicos residentes do terceiro ano (um encontro), o que melhorou a identificação e o registro desses traumas e a qualidade do cuidado oferecido às mulheres.
A Figura 1 resume as principais mudanças encontradas no modelo de atenção ao longo do desenvolvimento do CRSMRP-MATER e foi inspirada por publicação anterior, que estudou as contradições entre dois sistemas de atividade, uma faculdade e um centro de saúde17.
Considerando a série completa, que compreendeu o período de 2010 a 2022, foram atendidas 37.897 parturientes, sendo 27.519 partos vaginais (72,35%). Em 2022, o CRSMRP-MATER atendeu 2.562 parturientes, entre mulheres e meninas de 13 a 45 anos de idade, sendo registradas 17 parturientes abaixo dos 15 anos. Do total de parturientes atendidas neste período, cerca de 4% dos dados sobre as características sociodemográficas foram perdidos, evento observado por meio de auditoria que identificou pacientes que no sistema foram internadas com código de procedimento errado.
Entre aquelas que informaram os seus dados, aproximadamente 60% se autodeclararam brancas, 30% pardas e 9% se autodeclararam pretas. Cerca de 40% da população que corresponde ao Departamento Regional de Saúde XIII - Ribeirão Preto se declara preta ou parda (Censo 2022), então é uma distribuição por raça/cor semelhante à da população25. Aproximadamente 1% do indicador raça/cor da pele foi perdido devido à incompletude das fichas de admissão nas situações de urgência. Com relação à escolaridade, aproximadamente 51% das pessoas declararam ter o segundo grau completo e ou ensino superior. Quatro pessoas declararam que não foram alfabetizadas.
Não houve registro de atendimento obstétrico prestado a pessoas trans masculinas, somente para atendimento em cirurgia ginecológica. Desde que o CRSMRP-MATER passou a ser gerenciado pelo HCFMRP em conjunto com a FAEPA, em 2009, há no cadastro o campo, com destaque, para nome social. O procedimento operacional padrão (POP) de 13/12/2022 incluiu o campo específico para identidade de gênero no cadastro, além do nome social.
Durante o ano de 2022, foram assistidos 1.773 partos vaginais (69,20%), sendo 70 instrumentalizados (2 fórceps e 68 partos com uso de vácuo-extrator). Com relação aos partos com necessidade de instrumentalização, monitorados a partir de 2014, houve redução no uso de fórceps, de 38 partos com uso do instrumento (1,29%) para 2 (0,08%) em 2022, e aumento no uso de vácuo de 29 (0,98%) para 68 (2,65%) na população geral. Entre as primíparas a queda foi de 21 (1,60%) para 2 (0,31%) partos com uso de fórceps e aumento de 20 (1,52%) para 35 (5,40%) partos com uso de vácuo, no período de 2014 a 2022.
Em 2010, no início da série histórica, foram registradas 564 episiotomias (66,67%) em primíparas e 754 (34,54%) na população geral, chegando a 6 (0,96%) em primíparas e 13 (0,78%) na população geral no ano de 2021. Em 2022 foram registradas 3 episiotomias (0,73%) em primíparas e 8 (0,50%) na população geral. As taxas de episiotomia podem ser encontradas no Gráfico 1.
As lesões graves passaram a ser avaliadas separadamente em primíparas a partir de 2014. Nesse grupo, observou-se aumento dessas taxas até 2021, quando se registraram 25 mulheres (4,01%) com lesões perineais graves durante o parto. Na população geral, as lacerações graves cresceram do início da série histórica até 2020, quando se verificaram 37 mulheres (2,21%) com estas lesões. Mesmo com o aumento do registro dos traumas graves, o CRSMRP-MATER não registrou taxas maiores que 4,01% no período estudado.
A partir de 2020 para a população geral, e de 2021 para as primíparas, o registro destas lesões passou a se estabilizar, sendo registradas 34 mulheres (2,12%) e 11 mulheres primíparas (2,68%) com traumas perineais graves em 2022. Entende-se que as estratégias focadas na redução de traumas graves sensibilizaram as equipes para a adequada identificação e subsequente registro das lacerações de terceiro e quarto graus, resultando no aumento dos indicadores e sugerindo que havia um sub-registro desses traumas. Todo o monitoramento das lacerações de terceiro e quarto graus (OASIS) pode ser encontrado no Gráfico 2.
As lacerações de primeiro grau foram os desfechos mais frequentes nesta série histórica. Em 2022, foram registradas 608 mulheres (37,83%) e 186 (45,37%) mulheres primíparas com lesões de primeiro grau.
A integridade perineal começou a ser registrada a partir de 2014 e, em 2022, foram registradas 595 mulheres (37,03%) e 79 mulheres primíparas (19,27%) com integridade. Em 2019, a integridade do períneo foi o desfecho mais frequente na população geral, quando se registraram 743 (39,19%) parturientes com integridade do períneo. Em 2018, a integridade foi o segundo desfecho mais frequente entre as primíparas, período em que foram registradas 198 parturientes (24%) com integridade perineal, que foi mais frequente que as lacerações de segundo grau, que corresponderam a 176 (21,33%) neste mesmo ano. Os dados relacionados à integridade perineal e às lacerações de primeiro e de segundo graus estão disponíveis nos Gráficos 3 e 4.
DISCUSSÃO
No início da série histórica (2010), a taxa de episiotomia era de aproximadamente 70% em primíparas e 35% na população geral, havendo queda expressiva nos períodos seguintes. A partir de 2015, houve manutenção da taxa abaixo de 15% tanto na população geral quanto em primíparas e a partir de 2018, abaixo de 2%, chegando a 1% em primíparas e 0,5% na população geral no ano de 2020. Os anos de 2021 e 2022 mantiveram a perspectiva de sustentabilidade deste modelo de assistência.
Em números e proporções, foram 13 (0,78%) episiotomias em 2021 e 8 (0,50%) em 2022 na população geral, sendo 3 (0,73%) episiotomias em primíparas em 2022, demonstrando a possibilidade de se sustentarem taxas cada vez mais baixas, mesmo em cenários mais complexos. Este modelo se manteve sustentável mesmo no período de desafios adicionais impostos pela pandemia de COVID-19, cuja fase crítica se estendeu de 2020 a 2021 no Brasil, com sobrecarga do sistema de saúde, além das complicações para a saúde decorrentes da própria contaminação pelo coronavírus e aumento da mortalidade materna, especialmente entre as mulheres negras26-28.
Este estudo sugere ser possível e sustentável manter o uso restritivo da episiotomia, mesmo em maternidades-escola de referência e locais onde os partos são assistidos pela equipe médica durante o período expulsivo com apoio de cuidados em pré-parto por profissionais da enfermagem e fisioterapeutas. Além disso, é possível reduzir práticas desnecessárias e qualificar o cuidado por meio de estratégias específicas, e garantir que parturientes recebam assistência adequada e tenham a possibilidade de parir com integridade corporal. Ou seja, novos profissionais da medicina e residentes formados na instituição estão cada vez mais capacitados para assistir partos sem considerar a incisão no períneo como algo necessário.
Um estudo brasileiro avaliou a implementação de um protocolo de não realização da episiotomia em comparação com um protocolo de episiotomia seletiva. Neste ensaio clínico aleatorizado as autoras encontraram taxas de episiotomia de 1,7% em ambos os grupos, o que dificultou a comparação entre eles, mas não impossibilitou a discussão acerca de um protocolo de não realização da episiotomia ser possivelmente seguro. Este ensaio clínico corrobora os achados do presente estudo, sugerindo a segurança de protocolos com taxas de episiotomia cada vez mais restritivas e abaixo de 2% na assistência ao parto, possibilitando mais integridade corporal e perineal5.
Posteriormente, autores de uma revisão sistemática sobre o uso seletivo da episiotomia em comparação com um protocolo de não realização da intervenção não encontraram diferenças significativas em relação às lacerações graves entre os grupos estudados7. Esta revisão incluiu o estudo citado acima e um estudo israelense que também avaliou um protocolo de não realização da episiotomia, que, no entanto, encontrou altas taxas de episiotomia em ambos os grupos estudados, sugerindo a dificuldade dos profissionais na adesão a protocolos e recomendações29.
Com relação às lacerações graves, ocorreu um aumento do registro desses traumas a partir de 2014, decorrente de uma mudança importante na estratégia de auditoria, que passou a avaliar essas lesões de maneira objetiva. Enquanto previamente havia apenas registros de ocorrência em livros de parto, a partir de 2014 a rotina de indicadores de qualidade da assistência passou a contar com a busca ativa em prontuários, com revisão das descrições cirúrgicas e fichas de evolução clínica, minimizando o sub-registro observado no início da série histórica. Valores que são muito abaixo dos descritos na literatura no início desta série histórica e atualmente dentro do que a literatura apresenta como esperado corroboram a impressão de sub-registro7,30,31.
Estudos indicam que quando há capacitação da equipe para melhora da identificação das lesões, ocorre aumento do registro e da prevalência, devido ao aumento da capacidade de diagnóstico32. Foi o que ocorreu no CRSMRP-MATER em 2019, quando foram realizados treinamentos das equipes para busca estruturada de lesões graves.
Um cenário sem episiotomia, considerando a redução das taxas e a busca pela não realização, torna possível a observação de desfechos perineais com menor gravidade, em que as lacerações de primeiro grau foram as mais frequentes. Cenário este que possibilitou que aproximadamente 75% da população geral atendida no CRSMRP-MATER e 65% no caso de ser uma parturiente na sua primeira experiência de parto, tivessem integridade perineal ou lacerações leves, quase sempre sem necessidade de sutura, com menor risco de complicações e melhor recuperação no pós-parto.
Análise histórica e cultural da redução da taxa de episiotomia
No início da série histórica o modelo de atenção predominante era conhecido como manejo ativo do trabalho de parto, com o uso rotineiro da clássica combinação “Amniotomia, acesso venoso e ocitocina", além da prática da episiotomia de rotina. Um modelo de atenção distante do que a literatura preconizava e do que era almejado pela instituição. Modelo que já havia sido identificado previamente como gerador de problemas e contradições nas intersecções entre assistência e ensino, o que trazia prejuízos para a qualidade e segurança da assistência, assim como para a saúde das parturientes.
Identificava-se, por exemplo, uma predominância de profissionais que foram treinados em um modelo intervencionista e que demonstravam resistência a uma prática mais restritiva das intervenções. Era comum a verbalização de mitos como "Se fizer menos episiotomias, vai ter mais lesões graves", "Parto em posição vertical lacera mais" ou ainda "Com menos episiotomias, os residentes e alunos não aprenderão como fazer".
Estas práticas foram reavaliadas através de estratégias que visaram o fortalecimento dos direitos humanos, como o direito à privacidade e à integridade corporal, e o fornecimento contínuo de evidências científicas à equipe. Contribuíram para a mudança de modelo a criação de novos protocolos e o monitoramento das taxas por profissionais e por plantões15.
Desde o início da série histórica, o CRSMRP-MATER mostrou ser um serviço de saúde comprometido com a mudança e a melhora da qualidade da assistência oferecida, processo que começou antes do projeto IHAMC, e que continuou após a implementação. Iniciativas como as Jornadas e a IHAMC serviram como catalisadoras para as mudanças concretas que ocorreram. Por meio da implementação da IHAMC, o duplo SA foi avaliado, o que ofereceu informações importantes a respeito do modelo de atenção, possibilidades de mudanças e a sustentabilidade das melhorias adquiridas15.
Outro estudo que considerou a metodologia do LM em uma clínica pediátrica encontrou resultados similares, como o duplo SA, o sistema de assistência e o sistema de ensino da pós-graduação. Os autores encontraram contradições nesse duplo SA e descreveram como o LM foi um recurso útil para mudar práticas e apoiar profissionais a redesenhar o seu trabalho, propiciando um ambiente de aprendizado transformador33. Mais informações a respeito das quatro gerações de estudos sobre trabalho, aprendizagem e a teoria da atividade podem ser encontradas em publicações anteriores, além de exemplos concretos da aplicação desses conhecimentos em diversas áreas, como também na saúde18,33,34.
Uma estratégia central que facilitou a incorporação de práticas baseadas em evidências na assistência e no ensino acerca do cuidado perineal foi monitorar mensalmente os indicadores estabelecendo metas de qualidade. Assim como a implementação de estratégias efetivas para a proteção perineal, como trabalho com as equipes para uso de um protocolo de episiotomia restritiva (ao invés do seu uso de rotina) com obrigatoriedade de registro em prontuário do motivo da indicação, e um trabalho relacionado ao consentimento informado livre e esclarecido das gestantes para a realização da prática.
O CRSMRP-MATER, que já praticava auditoria de 100% dos prontuários para coleta de indicadores básicos, ampliou os dados coletados para se aprofundar na identificação das causas-raízes da manutenção das intervenções ainda acima do desejado. Além disso, durante o período mais intenso de mudanças, a episiotomia passou a ser monitorada não apenas por plantão, como também pelas taxas de cada profissional do CRSMRP-MATER.
Paralelamente, foram implementadas ações para ampliar o acesso da população à ouvidoria, com aumento da amostra de usuárias rotineiramente entrevistadas de maneira proativa, de profissionais entrevistadoras e dos cenários de entrevista (passaram a cobrir pronto-atendimento, ambulatório e enfermaria), e designação de uma sala específica e aberta ao público. Posteriormente, foi disponibilizado um canal de comunicação pelo site institucional e via redes sociais.
Um dos principais benefícios resultantes do uso restritivo da episiotomia, além de proporcionar maior chance de integridade para as parturientes atendidas, é propiciar a educação de uma nova geração de profissionais, especialmente ginecologistas e obstetras. Considerando que o CRSMRP-MATER é um importante cenário de ensino e treinamento para graduação e residências dessa categoria profissional, os profissionais se formam aprendendo que não há necessidade de episiotomia para partos difíceis, muito menos para partos de risco habitual35.
Além disso, uma política restritiva de episiotomia em serviços de saúde que oferecem atendimento público pode melhorar a experiência de parto, principalmente das pessoas menos favorecidas, com impacto positivo na equidade1. Considerando a manutenção de taxas de episiotomia abaixo de 1%, o impacto pode ser ainda mais significativo.
CONCLUSÕES
Este estudo mostra que o Laboratório de Mudança teve impacto positivo, sendo efetivo e eficiente na qualificação do modelo de atenção e do cuidado oferecido, favorecendo um modelo sustentável baseado em evidências, aplicável às instituições de saúde, assim como de ensino.
A literatura descreve amplas dificuldades quanto à negociação com a gestão para implementação do LM em pesquisas em diversos campos, inclusive na saúde16,34. No entanto, neste estudo não houve resistência expressiva pelo fato de a gestão ser comprometida com a qualificação da assistência e motivada na busca por superar problemas estruturais, o que propiciou um contexto fértil para a implementação da Iniciativa Hospital Amigo da Mulher e da Criança e a experiência com o LM.
Uma limitação deste estudo relaciona-se ao fato de a metodologia do LM ser uma abordagem relativamente nova no campo da assistência ao parto (especialmente no contexto brasileiro), limitação que foi mitigada, pois se tratava de um grupo de pesquisadoras interessadas na implementação do LM em maternidades brasileiras e com conhecimento prévio mínimo sobre a metodologia. Além disso, a equipe de pesquisa estabeleceu um diálogo bastante frutífero com pesquisadores com larga experiência na implementação do LM, favorecendo adaptações e análises pari passu ao campo.
Os dados apontam a restrição progressiva da prática da episiotomia, até o ponto que seu uso seja possivelmente abandonado e todas as pessoas possam parir com reais chances de um parto com integridade corporal e perineal, e uma experiência positiva.
Este estudo demonstra que a redução da taxa de episiotomia e a sua manutenção abaixo de 1% é possível e sustentável mesmo em hospitais-escola, por meio de estratégias específicas de redução da intervenção e de capacitação da equipe, resultando em profissionais mais sensíveis às evidências e aos direitos humanos. Nosso entendimento é que, na formação de todos os profissionais de saúde, a prioridade é que todas as pessoas tenham uma assistência digna, respeitosa e baseada nas melhores evidências científicas.
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INTRODUÇÃO
O acesso a uma assistência segura e respeitosa, e que possibilite uma experiência de parto positiva, ainda é um desafio para as parturientes no mundo inteiro e também no Brasil1,2. O modelo de atenção hospitalar brasileiro é frequentemente marcado por falhas no registro de indicadores, especialmente aqueles relacionados às intervenções prejudiciais e que ferem a integridade corporal e genital, como a episiotomia.
A prática da episiotomia (corte no canal vaginal durante o parto) é muitas vezes interpretada como parte da assistência padrão2,3, de tal modo que o seu registro é frequentemente incompleto nos prontuários hospitalares, e ausente no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC)4, o que dificulta o seu monitoramento no plano nacional. Infelizmente, este quadro contribui para a desvalorização dos monitoramentos locais, bem como de outras informações sobre a qualidade da assistência recebida por meninas, mulheres e pessoas trans masculinas no que se refere ao cuidado com o períneo.
Estudos conduzidos no Brasil e em outros países sugerem que a prática restritiva da episiotomia e talvez até mesmo a sua abolição da assistência obstétrica parecem não se associar ao aumento de taxas de lacerações perineais graves (lesões de terceiro e de quarto graus que comprometem o canal vaginal e o esfíncter anal), nem de desfechos maternos ou neonatais adversos, como asfixia neonatal5-7. Ainda assim, a episiotomia continua a ser praticada, de forma rotineira ou seletiva, inclusive em instituições públicas2,8.
Os dados mais recentes sobre o assunto indicam que as práticas prejudiciais reduziram-se entre os anos 2011 e 2017, porém, ainda é elevada a quantidade de mulheres submetidas a estas intervenções. De acordo com estudo sobre os avanços na assistência ao parto no Brasil, apesar da queda na taxa de episiotomia, aproximadamente 40% das mulheres atendidas no setor privado e 30% daquelas atendidas no setor público sofreram um corte na vulva e na vagina8.
Um estudo encontrou divergências entre os relatos das mulheres e os registros em prontuários, com evidência de que houve sub-registro. Em alguns casos, uma laceração perineal espontânea foi registrada no prontuário, ao passo que a mulher relatou ter sido cortada e suturada. Isto sugere um problema não apenas com a implementação do indicador, como também com a transparência, qualidade e confiabilidade do próprio registro9. Estudos mostraram que as mulheres internadas em serviços públicos podem sofrer episiotomias desnecessárias apenas para proporcionar oportunidade de treinamento, sendo frequente que as primeiras incisões cirúrgicas de estudantes de medicina ocorram nessas situações3,10.
O trauma perineal afeta o bem-estar físico, psicológico e social no período pós-parto, assim como pode causar complicações a longo prazo, afetando o convívio social, a vida familiar e as relações, incluindo as relações sexuais11. As complicações associadas à episiotomia podem incluir aumento da perda de sangue, dor e edema local, o que pode causar desconforto ao sentar, afetando a amamentação, além de dor durante as relações sexuais, infecção, fístulas e deiscência da cicatriz, e ainda cicatrização insatisfatória resultando em assimetrias ou até estreitamento do intróito vaginal2,6,12-14.
Além disso, a condição perineal pós-parto pode oferecer informações sobre a qualidade da assistência nos serviços de saúde durante a internação para o parto. Nesse sentido, a redução de intervenções como a episiotomia é expressão de melhora da qualidade da assistência, visando à promoção da autonomia, do protagonismo, da integridade e do bem-estar das parturientes, assim como um ensino mais condizente com os padrões científicos e éticos2,8,15.
O objetivo deste trabalho foi descrever e analisar as mudanças no cuidado perineal e nas taxas de episiotomia de uma maternidade-escola do estado de São Paulo, e as estratégias que facilitaram a incorporação de práticas baseadas em evidência.
MÉTODOS
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo utilizando métodos mistos, que buscou compreender as mudanças no modelo de atenção ao parto e cuidado com o períneo oferecido às meninas e mulheres ao longo de uma série histórica de registros de uma maternidade-escola, cujo interesse correspondeu ao período de 2010 a 2022. Adicionalmente, este estudo incluiu uma análise histórica e cultural da atividade de assistência e o mapeamento de mudanças no modelo de atenção ao parto, especialmente os facilitadores para a incorporação de boas práticas na assistência e redução de lesões perineais durante o parto vaginal.
Referencial teórico-metodológico para a análise histórica e cultural da atividade
O Laboratório de Mudança, em inglês Change Laboratory, é uma metodologia que permite avaliar e transformar um sistema de atividade durante o seu funcionamento, engajando profissionais, pesquisadores e a gestão em uma análise participativa e ação coletiva, possibilitando mudanças na direção de um desenvolvimento sustentável, por meio da aprendizagem expansiva16-18. São exemplos de sistemas de atividade: o sistema de assistência, por exemplo um centro de saúde ou uma maternidade; o sistema de ensino, por exemplo as faculdades de medicina e enfermagem e cursos de especializações; ou ambos os sistemas de ensino e de assistência funcionando simultaneamente, por exemplo hospitais universitários e hospitais-escola, como o caso estudado15,17, 18.
O Laboratório de Mudança (LM) proporciona aos seus participantes analisar e compreender problemas que afetam a sua atividade de trabalho, e permite criar e implementar um modelo que supere as contradições identificadas. Na prática, significa expandir um sistema de atividade, especialmente o seu objeto, o que Yrjö Engeström chamou de “aprendizagem expansiva”17,19,20. A aprendizagem expansiva pode ser compreendida como uma atividade coletiva constituída por ações de aprendizagem pessoal, por meio da qual as pessoas são impulsionadas a aprender e a desenvolver colaborativamente o seu trabalho17.
Os princípios da teoria histórico-cultural da atividade, também conhecida como teoria cultural e histórica da atividade, fundamental para o desenvolvimento do LM, são: o sistema de atividade (SA) como unidade de análise, a historicidade da atividade, as contradições como força para impulsionar mudanças e os ciclos de aprendizagem expansiva como possibilidades de transformação de uma atividade colaborativa21.
Na teoria da atividade, e no LM, a unidade básica de análise é constituída por um sistema de atividade (SA), que por sua vez faz parte de uma rede de outros sistemas, por exemplo, o sistema de saúde, que recebe influência das suas intersecções com o sistema de ensino. Um SA tem como elementos: instrumentos, regras, comunidade, divisão do trabalho, objeto e sujeito. Este último pode ser individual ou coletivo e, motivado pelo objeto, recorre a mediadores para atingir um resultado17,18.
Em um SA, por exemplo o trabalho em uma maternidade, é possível observar elementos fundamentais que interagem, moldando-se mutuamente, como: a) as ferramentas ou os instrumentos que podem ser conceituais ou materiais, por exemplo, protocolos e diretrizes; b) as regras, que são os regulamentos e normas, como os prazos; c) a divisão do trabalho, que representa a divisão horizontal de tarefas e a divisão vertical de poder (hierarquias); d) a comunidade, que representa o conjunto de indivíduos envolvidos com o objeto, como por exemplo a família15,17,18.
Durante a implementação do projeto “Estratégias para a incorporação de inovações na assistência ao parto e ao recém-nascido: intervenção piloto no Sistema Único de Saúde da Iniciativa Hospital Amigo da Mulher e da Criança (IHAMC)”, o modelo de atenção do Centro de Referência da Saúde da Mulher de Ribeirão Preto - MATER (CRSMRP-MATER), foi observado, avaliado e moldado coletivamente (facilitado pela aprendizagem expansiva), a fim de oferecer qualificação adicional ao atendimento oferecido, baseado em evidências científicas e nos direitos humanos15. Este projeto serviu de base para as análises do presente estudo.
A IHAMC utilizou princípios do LM, que foi um recurso útil para estudar o modelo de atenção atual deste hospital-escola, sua origem e o seu desenvolvimento ao longo do tempo, e realizar uma análise histórica e cultural da assistência oferecida, considerando também os aspectos relacionados ao ensino e treinamento em saúde. Durante a avaliação do CRSMRP-MATER, foi possível observar não apenas um, mas um duplo SA, composto pelo sistema de atividade de assistência e pelo sistema de ensino, que interage direta e indiretamente na qualidade do resultado em saúde. Dois sistemas de atividade que compartilham parcialmente o mesmo objeto e que buscam como resultados da sua atividade: mulheres e bebês saudáveis, com uma experiência de parto positiva, e a formação de futuros profissionais e especialistas15.
Detalhamentos sobre os sistemas de atividade no CRSMRP-MATER e a figura analítica desenvolvida conforme proposto por Engestöm19 podem ser consultados em outra publicação15.
Local do estudo
Este estudo foi realizado no CRSMRP-MATER, instituição que oferece atendimento público através do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de um hospital-escola. Oferece assistência à saúde das mulheres com gestações de risco habitual a partir de 36 semanas, assistência ao trabalho de parto e ao nascimento, além de tratamento ginecológico clínico e cirúrgico. O cuidado é liderado pela equipe médica, com assistência essencial das equipes de enfermagem, fisioterapia, serviço social, nutrição e psicologia.
O CRSMRP-MATER é certificado pela Iniciativa Hospital Amigo da Criança desde 2002 e, a partir de 2016 com o início das negociações para aplicação da metodologia do LM, teve a oportunidade de participar da implementação da IHAMC, que teve início em 2017.
Coleta de dados
Para análise da série histórica, a coleta de dados foi feita como parte da rotina gerencial, considerando que todos os prontuários da instituição passam por auditoria em diversas etapas, sendo uma delas sob responsabilidade de sua Diretoria de Atenção à Saúde.
Foi realizada uma análise qualitativa e quantitativa, gerando um conjunto de indicadores assistenciais, que auxiliaram a gestão no processo de tomada de decisão, a partir da identificação de pontos potenciais de melhoria. Estas informações são utilizadas como apoio à Educação Permanente, em um processo contínuo e estruturado. Parte destes dados é remetida à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo (SES/SP) para acompanhamento dos indicadores pactuados em contrato. Com isso, a instituição detém uma série histórica de dados relacionados à sua assistência. A partir dela foram selecionados os dados referentes aos partos vaginais ocorridos no CRSMRP-MATER entre janeiro de 2010 e dezembro de 2022, de maneira anonimizada, preservando a identidade de parturientes e profissionais.
Foram consideradas as seguintes informações: idade em anos completos, raça/cor da pele (autodeclarada), paridade (autorreferida) e escolaridade (anos completos de estudo). Além de: taxas de episiotomia, lacerações perineais de primeiro grau, de segundo grau, de terceiro e de quarto graus, e períneo íntegro.
Análise dos dados
Para estudar as mudanças no modelo de atenção, com foco nas estratégias que facilitaram a incorporação de práticas baseadas em evidências, foram selecionadas duas formas de análise, que foram utilizadas de maneira complementar.
Para a análise descritiva da série histórica foram considerados os indicadores de qualidade e segurança da assistência relacionados ao desfecho perineal das mulheres e meninas atendidas, cujos dados foram analisados considerando sua frequência no período de 2010 a 2022.
Para a análise histórica e cultural da atividade16,18, a rotina de assistência, assim como aspectos do ensino, foram acompanhados por meio de observação participante realizada pela equipe de pesquisa no período de 2017 a 2019, como parte da pesquisa IHAMC15. As informações mais relevantes a respeito das práticas assistenciais e de treinamento foram coletadas, selecionando-se as principais mudanças ocorridas com impacto no modelo de atenção.
Considerações éticas
Este estudo foi realizado em conformidade com a Declaração de Helsinque22 e seguindo as diretrizes e normas contidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde23. O banco de dados utilizado não se encontra disponível publicamente, não sendo possível acessar a identidade das mulheres. Estes dados ficam armazenados eletronicamente e sob responsabilidade da gestão do CRSMRP-MATER. Os dados utilizados são derivados dos indicadores monitorados periodicamente pela equipe do CRSMRP-MATER. O monitoramento é feito em conjunto pela Diretoria de Atenção à Saúde e o Escritório de Qualidade. A coleta de dados e as análises são realizadas em tempos distintos: os prontuários do mês anterior são analisados até o dia 15. Na quinzena seguinte, os indicadores são compilados e analisados. Alguns deles recebem tratamento de tomada de ações mensalmente e outros são feitos trimestralmente.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) sob o parecer número 5.351.939 e aprovado pela Comissão de Pesquisa do CRSMRP-MATER sob o parecer número 002/2022.
RESULTADOS
Breve análise histórica e cultural do CRSMRP-MATER
A história do CRSMRP-MATER teve início em 8 de março de 1998, quando a população de Ribeirão Preto foi contemplada com a inauguração de uma maternidade denominada “MATER – Maternidade do Complexo Aeroporto”.
Até março de 2009, a gestão administrativa era de responsabilidade da Fundação Sinhá Junqueira, uma instituição civil criada em 1950 e que atua em cidades do estado de São Paulo. A partir de então, firmou-se um convênio entre a SES/SP e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP/USP) para que, junto com a Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência (FAEPA), fosse feita a gestão do que se designou “Centro de Referência da Saúde da Mulher de Ribeirão Preto - MATER (CRSMRP-MATER)”. Com isso, ampliou-se a população assistida para os demais 25 municípios pertencentes ao Departamento Regional de Saúde XIII - Ribeirão Preto. Em 2011, o CRSMRP-MATER tornou-se uma Organização Social de Saúde (OSS), com contrato administrado pela FAEPA junto à SES/SP.
O CRSMRP-MATER possui convênio com a Universidade de São Paulo (USP), oferecendo cenário de ensino e treinamento a estudantes de graduação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), além dos programas de residência médica do HCFMRP/USP. No início, foi implementada residência de Enfermagem Obstétrica e Neonatal em parceria com a EERP, cujo programa foi encerrado em 2008.
Em 2022, foram recebidos 568 graduandos em disciplinas e estágios supervisionados, sendo 211 estudantes de enfermagem, 17 de fisioterapia, 40 de nutrição e 300 estudantes de medicina. No mesmo período, o CRSMRP-MATER também recebeu 127 profissionais da categoria médica residentes das especialidades: ginecologia e obstetrícia, vídeo-endoscopia ginecológica, uroginecologia, mastologia, puericultura e pediatria, medicina fetal, medicina de família e da comunidade, e medicina de emergências.
Início das mudanças no modelo de assistência
Os períodos mais importantes para as mudanças no modelo de atenção, e que promoveram a incorporação de boas práticas no cuidado com o períneo e a redução da episiotomia, foram verificadas a partir de uma linha do tempo, representada pela Figura 1.
Um marco importante ocorreu em 2012, quando foi promovida a “Jornada de Assistência Materno-Infantil e Cirurgia Ginecológica”. Tratou-se de um evento que buscou ampliar discussões acerca das boas práticas na assistência à saúde da mulher e do bebê, com foco na humanização da assistência. A jornada passou a acontecer anualmente, tornando-se um espaço para aprimoramento e atualização de profissionais e pesquisadores em saúde, por meio de palestras, reuniões científicas e oficinas de treinamento de habilidades, além de simulações de situações da prática clínica. Neste processo, foram discutidas a Política Estadual de Humanização como reforço às medidas adotadas institucionalmente. Outro evento catalisador foi a apresentação e debate do documentário “O Renascimento do Parto”, que foi realizado em duas sessões no CRSMRP-MATER. A equipe assistencial também foi estimulada a assistir nos cinemas.
O fato de o CRSMRP-MATER ter participado da implementação da IHAMC, favoreceu mudanças significativas, impactando na melhora da assistência oferecida e potencializando a preocupação com o protagonismo das parturientes no momento do parto. Esta parceria facilitou o fortalecimento de estratégias, incluindo aquelas de educação em saúde, como a elaboração e implementação do plano de parto15.
O plano de parto foi desenvolvido como um documento informativo que estimula as pessoas, especialmente as mulheres, a saberem o que a maternidade oferece em termos de modelo de assistência e a conhecerem os seus direitos, permitindo que elas tomem decisões informadas relacionadas ao seu parto, baseadas nas suas escolhas e no que a unidade oferece de recursos. Nesse documento, entre outros assuntos, as pessoas são informadas sobre o direito de escolha de acompanhante para o trabalho de parto e parto, posições de parto e também sobre a episiotomia e os seus riscos.
Outras estratégias contribuíram para as mudanças e a sustentabilidade de um novo modelo, garantindo taxas de episiotomia cada vez menores e o oferecimento de assistência mais alinhada às evidências científicas e às recomendações internacionais1. Entre elas, foram implementadas as capacitações periódicas (duas vezes por ano) com todas as equipes, incluindo a temática do diagnóstico e manejo das lacerações graves, estratégia que se mantém até a presente data. Além de aumento do uso das camas para pré-parto, parto e pós-parto e a redução dos partos em posição litotômica, a fim de reduzir intervenções, como a episiotomia, e permitir maior liberdade às mulheres quanto à escolha da posição de parto15.
Paralelamente, a instituição passou por uma reforma na sua estrutura física (2014 a 2018) que promoveu melhorias na ambiência, como climatização de todos os setores, redução do número de leitos no pré-parto de três para dois em cada quarto para promover mais privacidade, ampliação da área do banheiro disponível para banho de aspersão com banco de segurança e instalação de espaldares nos quartos de pré-parto e salas cirúrgicas. A retirada do parto do ambiente cirúrgico foi um processo facilitado pela reforma estrutural e uma estratégia que contribuiu para reduzir intervenções desnecessárias como a episiotomia.
Além disso, foi desenvolvido um projeto de comunicação visual com vídeos e cartazes sobre movimentação no trabalho de parto, escolha da posição de parto, métodos de alívio da dor e vias de parto. Como consequência, houve melhora na comunicação com as mulheres.
Registro e monitoramento de indicadores
A preocupação com a integridade corporal das parturientes durante os partos vaginais passou a ser mais efetiva com a coleta e o monitoramento de indicadores relacionados ao desfecho perineal e, especialmente, da episiotomia. Entre 2010 e 2013, foram monitoradas a episiotomia e também as lacerações graves (conhecidas pela sigla em inglês OASIS, Obstetric Anal Sphincter Injury, lesão obstétrica do esfíncter anal)24. A partir de 2014, o acompanhamento dos dados passou a ser mais detalhado, contando com revisão das fichas operatórias e evoluções clínicas de pós-parto. Além disso, foi incorporado o registro dos demais desfechos perineais: integridade perineal e laceração de primeiro e de segundo graus.
Além do objetivo de monitoramento de eventos sentinela e prestação de contas à SES/SP, os indicadores passaram a ser utilizados para oferecer feedbacks para as equipes com relação à segurança e qualidade da assistência oferecida. Os feedbacks às equipes passaram a ser realizados em conjunto pelas chefias imediatas (Gerência de Enfermagem, Diretoria Clínica e Diretoria de Atenção à Saúde).
Entre 2014 e 2017, as taxas de episiotomia praticadas por cada profissional da instituição foram fornecidas de maneira individual, junto com os principais indicadores definidos estrategicamente, como taxas de cesárea e de analgesia, para que cada um pudesse se comparar à média geral e às taxas de tolerância sugeridas pela administração15. Essa estratégia permitiu o compartilhamento semestral dos indicadores com toda a equipe, de forma que cada profissional de saúde recebia o total de partos assistidos, via de nascimento, desfecho perineal e as respectivas proporções.
As capacitações das equipes aliadas à estratégia de feedback dos indicadores favoreceram abordagens empáticas por parte de profissionais de saúde e uma postura proativa na redução da episiotomia. Estas capacitações foram organizadas pela Educação Permanente, atualmente incorporada ao setor de Gestão de Pessoas. A partir de 2018, a estratégia de feedback foi descontinuada, pois foi observada a consolidação das taxas de episiotomia abaixo de 3% por três semestres consecutivos.
A partir de 2019, outra estratégia utilizada foi a realização de treinamentos com profissionais, direcionados para a identificação e correção das lacerações graves, organizados pela Educação Permanente com apoio da equipe cirúrgica do CRSMRP-MATER. Tais treinamentos englobaram toda a equipe médica da obstetrícia (dois encontros), incluindo médicos residentes do terceiro ano (um encontro), o que melhorou a identificação e o registro desses traumas e a qualidade do cuidado oferecido às mulheres.
A Figura 1 resume as principais mudanças encontradas no modelo de atenção ao longo do desenvolvimento do CRSMRP-MATER e foi inspirada por publicação anterior, que estudou as contradições entre dois sistemas de atividade, uma faculdade e um centro de saúde17.
Considerando a série completa, que compreendeu o período de 2010 a 2022, foram atendidas 37.897 parturientes, sendo 27.519 partos vaginais (72,35%). Em 2022, o CRSMRP-MATER atendeu 2.562 parturientes, entre mulheres e meninas de 13 a 45 anos de idade, sendo registradas 17 parturientes abaixo dos 15 anos. Do total de parturientes atendidas neste período, cerca de 4% dos dados sobre as características sociodemográficas foram perdidos, evento observado por meio de auditoria que identificou pacientes que no sistema foram internadas com código de procedimento errado.
Entre aquelas que informaram os seus dados, aproximadamente 60% se autodeclararam brancas, 30% pardas e 9% se autodeclararam pretas. Cerca de 40% da população que corresponde ao Departamento Regional de Saúde XIII - Ribeirão Preto se declara preta ou parda (Censo 2022), então é uma distribuição por raça/cor semelhante à da população25. Aproximadamente 1% do indicador raça/cor da pele foi perdido devido à incompletude das fichas de admissão nas situações de urgência. Com relação à escolaridade, aproximadamente 51% das pessoas declararam ter o segundo grau completo e ou ensino superior. Quatro pessoas declararam que não foram alfabetizadas.
Não houve registro de atendimento obstétrico prestado a pessoas trans masculinas, somente para atendimento em cirurgia ginecológica. Desde que o CRSMRP-MATER passou a ser gerenciado pelo HCFMRP em conjunto com a FAEPA, em 2009, há no cadastro o campo, com destaque, para nome social. O procedimento operacional padrão (POP) de 13/12/2022 incluiu o campo específico para identidade de gênero no cadastro, além do nome social.
Durante o ano de 2022, foram assistidos 1.773 partos vaginais (69,20%), sendo 70 instrumentalizados (2 fórceps e 68 partos com uso de vácuo-extrator). Com relação aos partos com necessidade de instrumentalização, monitorados a partir de 2014, houve redução no uso de fórceps, de 38 partos com uso do instrumento (1,29%) para 2 (0,08%) em 2022, e aumento no uso de vácuo de 29 (0,98%) para 68 (2,65%) na população geral. Entre as primíparas a queda foi de 21 (1,60%) para 2 (0,31%) partos com uso de fórceps e aumento de 20 (1,52%) para 35 (5,40%) partos com uso de vácuo, no período de 2014 a 2022.
Em 2010, no início da série histórica, foram registradas 564 episiotomias (66,67%) em primíparas e 754 (34,54%) na população geral, chegando a 6 (0,96%) em primíparas e 13 (0,78%) na população geral no ano de 2021. Em 2022 foram registradas 3 episiotomias (0,73%) em primíparas e 8 (0,50%) na população geral. As taxas de episiotomia podem ser encontradas no Gráfico 1.
As lesões graves passaram a ser avaliadas separadamente em primíparas a partir de 2014. Nesse grupo, observou-se aumento dessas taxas até 2021, quando se registraram 25 mulheres (4,01%) com lesões perineais graves durante o parto. Na população geral, as lacerações graves cresceram do início da série histórica até 2020, quando se verificaram 37 mulheres (2,21%) com estas lesões. Mesmo com o aumento do registro dos traumas graves, o CRSMRP-MATER não registrou taxas maiores que 4,01% no período estudado.
A partir de 2020 para a população geral, e de 2021 para as primíparas, o registro destas lesões passou a se estabilizar, sendo registradas 34 mulheres (2,12%) e 11 mulheres primíparas (2,68%) com traumas perineais graves em 2022. Entende-se que as estratégias focadas na redução de traumas graves sensibilizaram as equipes para a adequada identificação e subsequente registro das lacerações de terceiro e quarto graus, resultando no aumento dos indicadores e sugerindo que havia um sub-registro desses traumas. Todo o monitoramento das lacerações de terceiro e quarto graus (OASIS) pode ser encontrado no Gráfico 2.
As lacerações de primeiro grau foram os desfechos mais frequentes nesta série histórica. Em 2022, foram registradas 608 mulheres (37,83%) e 186 (45,37%) mulheres primíparas com lesões de primeiro grau.
A integridade perineal começou a ser registrada a partir de 2014 e, em 2022, foram registradas 595 mulheres (37,03%) e 79 mulheres primíparas (19,27%) com integridade. Em 2019, a integridade do períneo foi o desfecho mais frequente na população geral, quando se registraram 743 (39,19%) parturientes com integridade do períneo. Em 2018, a integridade foi o segundo desfecho mais frequente entre as primíparas, período em que foram registradas 198 parturientes (24%) com integridade perineal, que foi mais frequente que as lacerações de segundo grau, que corresponderam a 176 (21,33%) neste mesmo ano. Os dados relacionados à integridade perineal e às lacerações de primeiro e de segundo graus estão disponíveis nos Gráficos 3 e 4.
DISCUSSÃO
No início da série histórica (2010), a taxa de episiotomia era de aproximadamente 70% em primíparas e 35% na população geral, havendo queda expressiva nos períodos seguintes. A partir de 2015, houve manutenção da taxa abaixo de 15% tanto na população geral quanto em primíparas e a partir de 2018, abaixo de 2%, chegando a 1% em primíparas e 0,5% na população geral no ano de 2020. Os anos de 2021 e 2022 mantiveram a perspectiva de sustentabilidade deste modelo de assistência.
Em números e proporções, foram 13 (0,78%) episiotomias em 2021 e 8 (0,50%) em 2022 na população geral, sendo 3 (0,73%) episiotomias em primíparas em 2022, demonstrando a possibilidade de se sustentarem taxas cada vez mais baixas, mesmo em cenários mais complexos. Este modelo se manteve sustentável mesmo no período de desafios adicionais impostos pela pandemia de COVID-19, cuja fase crítica se estendeu de 2020 a 2021 no Brasil, com sobrecarga do sistema de saúde, além das complicações para a saúde decorrentes da própria contaminação pelo coronavírus e aumento da mortalidade materna, especialmente entre as mulheres negras26-28.
Este estudo sugere ser possível e sustentável manter o uso restritivo da episiotomia, mesmo em maternidades-escola de referência e locais onde os partos são assistidos pela equipe médica durante o período expulsivo com apoio de cuidados em pré-parto por profissionais da enfermagem e fisioterapeutas. Além disso, é possível reduzir práticas desnecessárias e qualificar o cuidado por meio de estratégias específicas, e garantir que parturientes recebam assistência adequada e tenham a possibilidade de parir com integridade corporal. Ou seja, novos profissionais da medicina e residentes formados na instituição estão cada vez mais capacitados para assistir partos sem considerar a incisão no períneo como algo necessário.
Um estudo brasileiro avaliou a implementação de um protocolo de não realização da episiotomia em comparação com um protocolo de episiotomia seletiva. Neste ensaio clínico aleatorizado as autoras encontraram taxas de episiotomia de 1,7% em ambos os grupos, o que dificultou a comparação entre eles, mas não impossibilitou a discussão acerca de um protocolo de não realização da episiotomia ser possivelmente seguro. Este ensaio clínico corrobora os achados do presente estudo, sugerindo a segurança de protocolos com taxas de episiotomia cada vez mais restritivas e abaixo de 2% na assistência ao parto, possibilitando mais integridade corporal e perineal5.
Posteriormente, autores de uma revisão sistemática sobre o uso seletivo da episiotomia em comparação com um protocolo de não realização da intervenção não encontraram diferenças significativas em relação às lacerações graves entre os grupos estudados7. Esta revisão incluiu o estudo citado acima e um estudo israelense que também avaliou um protocolo de não realização da episiotomia, que, no entanto, encontrou altas taxas de episiotomia em ambos os grupos estudados, sugerindo a dificuldade dos profissionais na adesão a protocolos e recomendações29.
Com relação às lacerações graves, ocorreu um aumento do registro desses traumas a partir de 2014, decorrente de uma mudança importante na estratégia de auditoria, que passou a avaliar essas lesões de maneira objetiva. Enquanto previamente havia apenas registros de ocorrência em livros de parto, a partir de 2014 a rotina de indicadores de qualidade da assistência passou a contar com a busca ativa em prontuários, com revisão das descrições cirúrgicas e fichas de evolução clínica, minimizando o sub-registro observado no início da série histórica. Valores que são muito abaixo dos descritos na literatura no início desta série histórica e atualmente dentro do que a literatura apresenta como esperado corroboram a impressão de sub-registro7,30,31.
Estudos indicam que quando há capacitação da equipe para melhora da identificação das lesões, ocorre aumento do registro e da prevalência, devido ao aumento da capacidade de diagnóstico32. Foi o que ocorreu no CRSMRP-MATER em 2019, quando foram realizados treinamentos das equipes para busca estruturada de lesões graves.
Um cenário sem episiotomia, considerando a redução das taxas e a busca pela não realização, torna possível a observação de desfechos perineais com menor gravidade, em que as lacerações de primeiro grau foram as mais frequentes. Cenário este que possibilitou que aproximadamente 75% da população geral atendida no CRSMRP-MATER e 65% no caso de ser uma parturiente na sua primeira experiência de parto, tivessem integridade perineal ou lacerações leves, quase sempre sem necessidade de sutura, com menor risco de complicações e melhor recuperação no pós-parto.
Análise histórica e cultural da redução da taxa de episiotomia
No início da série histórica o modelo de atenção predominante era conhecido como manejo ativo do trabalho de parto, com o uso rotineiro da clássica combinação “Amniotomia, acesso venoso e ocitocina", além da prática da episiotomia de rotina. Um modelo de atenção distante do que a literatura preconizava e do que era almejado pela instituição. Modelo que já havia sido identificado previamente como gerador de problemas e contradições nas intersecções entre assistência e ensino, o que trazia prejuízos para a qualidade e segurança da assistência, assim como para a saúde das parturientes.
Identificava-se, por exemplo, uma predominância de profissionais que foram treinados em um modelo intervencionista e que demonstravam resistência a uma prática mais restritiva das intervenções. Era comum a verbalização de mitos como "Se fizer menos episiotomias, vai ter mais lesões graves", "Parto em posição vertical lacera mais" ou ainda "Com menos episiotomias, os residentes e alunos não aprenderão como fazer".
Estas práticas foram reavaliadas através de estratégias que visaram o fortalecimento dos direitos humanos, como o direito à privacidade e à integridade corporal, e o fornecimento contínuo de evidências científicas à equipe. Contribuíram para a mudança de modelo a criação de novos protocolos e o monitoramento das taxas por profissionais e por plantões15.
Desde o início da série histórica, o CRSMRP-MATER mostrou ser um serviço de saúde comprometido com a mudança e a melhora da qualidade da assistência oferecida, processo que começou antes do projeto IHAMC, e que continuou após a implementação. Iniciativas como as Jornadas e a IHAMC serviram como catalisadoras para as mudanças concretas que ocorreram. Por meio da implementação da IHAMC, o duplo SA foi avaliado, o que ofereceu informações importantes a respeito do modelo de atenção, possibilidades de mudanças e a sustentabilidade das melhorias adquiridas15.
Outro estudo que considerou a metodologia do LM em uma clínica pediátrica encontrou resultados similares, como o duplo SA, o sistema de assistência e o sistema de ensino da pós-graduação. Os autores encontraram contradições nesse duplo SA e descreveram como o LM foi um recurso útil para mudar práticas e apoiar profissionais a redesenhar o seu trabalho, propiciando um ambiente de aprendizado transformador33. Mais informações a respeito das quatro gerações de estudos sobre trabalho, aprendizagem e a teoria da atividade podem ser encontradas em publicações anteriores, além de exemplos concretos da aplicação desses conhecimentos em diversas áreas, como também na saúde18,33,34.
Uma estratégia central que facilitou a incorporação de práticas baseadas em evidências na assistência e no ensino acerca do cuidado perineal foi monitorar mensalmente os indicadores estabelecendo metas de qualidade. Assim como a implementação de estratégias efetivas para a proteção perineal, como trabalho com as equipes para uso de um protocolo de episiotomia restritiva (ao invés do seu uso de rotina) com obrigatoriedade de registro em prontuário do motivo da indicação, e um trabalho relacionado ao consentimento informado livre e esclarecido das gestantes para a realização da prática.
O CRSMRP-MATER, que já praticava auditoria de 100% dos prontuários para coleta de indicadores básicos, ampliou os dados coletados para se aprofundar na identificação das causas-raízes da manutenção das intervenções ainda acima do desejado. Além disso, durante o período mais intenso de mudanças, a episiotomia passou a ser monitorada não apenas por plantão, como também pelas taxas de cada profissional do CRSMRP-MATER.
Paralelamente, foram implementadas ações para ampliar o acesso da população à ouvidoria, com aumento da amostra de usuárias rotineiramente entrevistadas de maneira proativa, de profissionais entrevistadoras e dos cenários de entrevista (passaram a cobrir pronto-atendimento, ambulatório e enfermaria), e designação de uma sala específica e aberta ao público. Posteriormente, foi disponibilizado um canal de comunicação pelo site institucional e via redes sociais.
Um dos principais benefícios resultantes do uso restritivo da episiotomia, além de proporcionar maior chance de integridade para as parturientes atendidas, é propiciar a educação de uma nova geração de profissionais, especialmente ginecologistas e obstetras. Considerando que o CRSMRP-MATER é um importante cenário de ensino e treinamento para graduação e residências dessa categoria profissional, os profissionais se formam aprendendo que não há necessidade de episiotomia para partos difíceis, muito menos para partos de risco habitual35.
Além disso, uma política restritiva de episiotomia em serviços de saúde que oferecem atendimento público pode melhorar a experiência de parto, principalmente das pessoas menos favorecidas, com impacto positivo na equidade1. Considerando a manutenção de taxas de episiotomia abaixo de 1%, o impacto pode ser ainda mais significativo.
CONCLUSÕES
Este estudo mostra que o Laboratório de Mudança teve impacto positivo, sendo efetivo e eficiente na qualificação do modelo de atenção e do cuidado oferecido, favorecendo um modelo sustentável baseado em evidências, aplicável às instituições de saúde, assim como de ensino.
A literatura descreve amplas dificuldades quanto à negociação com a gestão para implementação do LM em pesquisas em diversos campos, inclusive na saúde16,34. No entanto, neste estudo não houve resistência expressiva pelo fato de a gestão ser comprometida com a qualificação da assistência e motivada na busca por superar problemas estruturais, o que propiciou um contexto fértil para a implementação da Iniciativa Hospital Amigo da Mulher e da Criança e a experiência com o LM.
Uma limitação deste estudo relaciona-se ao fato de a metodologia do LM ser uma abordagem relativamente nova no campo da assistência ao parto (especialmente no contexto brasileiro), limitação que foi mitigada, pois se tratava de um grupo de pesquisadoras interessadas na implementação do LM em maternidades brasileiras e com conhecimento prévio mínimo sobre a metodologia. Além disso, a equipe de pesquisa estabeleceu um diálogo bastante frutífero com pesquisadores com larga experiência na implementação do LM, favorecendo adaptações e análises pari passu ao campo.
Os dados apontam a restrição progressiva da prática da episiotomia, até o ponto que seu uso seja possivelmente abandonado e todas as pessoas possam parir com reais chances de um parto com integridade corporal e perineal, e uma experiência positiva.
Este estudo demonstra que a redução da taxa de episiotomia e a sua manutenção abaixo de 1% é possível e sustentável mesmo em hospitais-escola, por meio de estratégias específicas de redução da intervenção e de capacitação da equipe, resultando em profissionais mais sensíveis às evidências e aos direitos humanos. Nosso entendimento é que, na formação de todos os profissionais de saúde, a prioridade é que todas as pessoas tenham uma assistência digna, respeitosa e baseada nas melhores evidências científicas.
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