0277/2025 - Critérios utilizados em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para gestão da Assistência Farmacêutica
Criteria Used in Clinical Practice Guidelines for the Management of Pharmaceutical Services
Autor:
• Mariana Rosa Gomes - Gomes, MR - <mariana_rosag@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0009-0008-1314-1108
Coautor(es):
• Paula Rossignoli - Rossignoli, P - <paula.rossignoli@sesa.pr.gov.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8691-7359
• Fernando Fernandez-Llimos - Fernandez-Llimos, F - <fllimos@ff.up.pt>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8529-9595
• Helena Hiemisch Lobo Borba - Borba, HHL - <helena.borba@ufpr.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9723-584X
Resumo:
Pouco se sabe sobre a percepção dos profissionais de saúde que atuam na gestão do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) quanto à clareza dos critérios dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) relativos à inclusão e à exclusão de pacientes e à interrupção de medicamentos. Assim, este estudo adotou método misto, com etapa quantitativa para avaliar a objetividade dos critérios estabelecidos nos PCDT publicados de 2012 a 2022, e etapa qualitativa, por meio de grupo focal com profissionais de saúde atuantes na gestão do CEAF. Os 36 PCDT analisados abrangeram 1.972 critérios, dos quais 57,1% eram objetivos. A partir da análise temática dos discursos dos participantes do grupo focal foi apontado que os critérios, por ambiguidade e falta de clareza, têm interpretações diferentes, o que gera desigualdade de acesso e compromete os princípios do SUS, em especial a equidade. Foram sugeridas melhorias como versões resumidas dos PCDT, versão para a Gestão da Assistência Farmacêutica, documento adicional expondo os critérios de forma clara e objetiva, exames e informações necessárias para a comprovação dos critérios.Palavras-chave:
Medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; Guias de Prática Clínica; Pesquisa Qualitativa.Abstract:
Little is known about the perception of healthcare professionals working in the management of the Specialized Component of Pharmaceutical Services (CEAF) regarding the clearness of the Clinical Practice Guidelines (PCDT) related to inclusion and exclusion of patients and discontinuation of medications. Thus, the present study used a mixed-methods approach, with a quantitative phase to assess the objectivity of the criteria established in the PCDT published from 2012 to 2022, and a qualitative phase through a focus group with healthcare professionals working in CEAF management. The 36 PCDT analyzed covered 1,972 criteria, of which 57.1% were objective. The thematic analysis of the focus group discourse indicated that the criteria, due to ambiguity and lack of clearness, have different interpretations, leading to inequality of access and compromising the principles of the SUS, especially equity. Improvements were suggested, such as summarized versions of PCDT, a version for Pharmaceutical Services Management, an additional document presenting the criteria clearly and objectively, tests and information to verify the criteria.Keywords:
Drugs from the Specialized Component of Pharmaceutical Care; Practice Guideline; Qualitative Research.Conteúdo:
As diretrizes para prática clínica são documentos que incluem recomendações destinadas a otimizar o cuidado dos pacientes e são fundamentadas por revisões sistemáticas de evidências, contendo uma avaliação crítica dos benefícios e danos das diferentes opções de cuidado. Dessa forma, servem como apoio à tomada de decisões pelos profissionais e pacientes 1. São instrumentos destinados a reduzir a lacuna entre pesquisa e prática e devem ser baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis para aprimorar a qualidade do cuidado ao paciente 2.
No Brasil, apesar de instituídos em lei apenas em 2011, os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) vêm sendo elaborados pelo Ministério da Saúde desde 2000 e são definidos como documentos que estabelecem 3: critérios para o diagnóstico de uma doença ou agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos a serem seguidos pelos profissionais de saúde e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). O acesso a um medicamento do elenco do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) está condicionado ao cumprimento de critérios e condutas preconizados no PCDT da condição clínica, o que é avaliado por profissionais de saúde designados pelo gestor estadual 4, 5.
Estudos vêm sendo desenvolvidos para fornecer um dimensionamento da qualidade dos PCDT no Brasil 6-9 e para avaliar a capacidade de gestão do CEAF sob os aspectos organizacional, operacional e de sustentabilidade 10, 11. No entanto, pouco se sabe sobre a percepção dos profissionais de saúde que realizam avaliação dos processos de solicitação de medicamentos do CEAF sobre os PCDT elaborados pelo Ministério da Saúde 12, 13. Ainda, a forma de interpretação dos critérios de inclusão, exclusão e interrupção presentes nos PCDT pelo avaliador durante a avaliação dos processos de solicitação de medicamentos não é conhecida. Nesse contexto, o presente estudo teve como objetivo analisar se os critérios descritos em PCDT são inequívocos para guiar a gestão do CEAF quanto à inclusão ou à exclusão de pacientes e à interrupção de medicamentos.
MÉTODOS
O estudo adota uma abordagem de método misto, combinando uma etapa quantitativa e uma etapa qualitativa para avaliar os critérios de inclusão, exclusão e interrupção estabelecidos nos PCDT e investigar a percepção de profissionais de saúde sobre esses critérios.
Pesquisa quantitativa
Na primeira etapa, foi realizada uma análise quantitativa dos PCDT. Foram mapeados os protocolos disponíveis no site da Conitec (https://www.gov.br/conitec/pt-br) em novembro de 2022 e que continham medicamentos do CEAF. Foram incluídos no estudo somente os PCDT publicados após o ano de 2012, ou seja, após o estabelecimento da Conitec, por representar um período de uniformidade dos padrões de elaboração destes documentos.
Uma planilha padronizada foi desenvolvida e utilizada para extrair dados contendo: título do PCDT; medicamentos recomendados; critérios de inclusão e exclusão de pacientes; e critérios de interrupção do tratamento. Os critérios foram classificados como objetivos ou não objetivos, sendo considerados objetivos os passíveis de mensuração por meio de escalas ou atributos definidos (i.e., testes laboratoriais com delimitação da faixa de alteração do parâmetro, exames de imagem, doença cujo diagnóstico ou monitoramento é realizado através de instrumento validado). Já medidas não objetivas incluíram doenças com diagnóstico clínico/subjetivo, doenças que apresentam parâmetros físicos cuja presença depende de avaliação médica e suspeitas de doença.
A análise quantitativa dos critérios foi realizada em planilha eletrônica do Excel (Microsoft, Redmond, WA), verificando a quantidade total de PCDT e a prevalência de critérios objetivos e não objetivos em cada documento e relativa a toda a amostra de PCDT incluída no estudo.
As etapas de extração e análise dos dados dos PCDT incluídos foram realizadas por um pesquisador e checadas por outro. As divergências, quando presentes, foram resolvidas com auxílio de um terceiro pesquisador.
Pesquisa qualitativa
A percepção de profissionais de saúde envolvidos na gestão do CEAF sobre os critérios de inclusão, interrupção e exclusão foi explorada por meio da realização de grupo focal. O grupo foi composto por seis participantes, todos com experiência mínima de seis meses como avaliadores de processos de solicitação de medicamentos do componente. Foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada para direcionar os questionamentos ao grupo e o encontro ocorreu remotamente via videochamada utilizando a plataforma Teams (Microsoft, Redmond, WA).
As falas dos participantes do grupo focal foram transcritas e os dados foram submetidos à análise temática em seis fases, conforme a metodologia estabelecida por Braun e Clarke 14: 1. familiarização com os dados; 2. geração de códigos iniciais; 3. busca por temas; 4. revisão dos temas; 5. definição e nomeação dos temas; e 6. produção do relatório. Os participantes foram identificados por siglas para preservar o anonimato, como por exemplo, Farm-3-R, que significa que o participante é farmacêutico, possui três anos de experiência na avaliação de processos de solicitação de medicamentos do CEAF e atua em farmácia localizada na Regional de Saúde.
O estudo seguiu as diretrizes éticas para pesquisas em seres humanos, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da SESA-PR (CAAE: 74352523.6.0000.5225). Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da entrevista, e suas identidades foram preservadas durante a análise dos dados.
RESULTADOS
Análise dos critérios dos PCDT
Foram localizados 111 PCDT vigentes até 8 de novembro de 2022, com 96 contendo medicamentos do CEAF e 36 publicados desde 2012, os quais foram incluídos no estudo. Dos 36 PCDT analisados, 16 foram atualizados, e todos apresentaram critérios de inclusão e exclusão. Notavelmente, oito protocolos não detalharam critérios de interrupção.
Foram identificados 1.972 critérios, incluindo 606 (30,7%) de inclusão, 1.003 (50,9%) de exclusão e 363 (18,4%) de interrupção (Tabela 1). Os detalhes dos PCDT e suas portarias de publicação estão disponíveis por meio do seguinte identificador: DOI 10.17605/OSF.IO/SGQYX.
Com relação à objetividade dos 1.972 critérios, 57,1% (n=1.126) foram classificados como objetivos e 42,9% (n=846) como não objetivos. Entre os critérios de inclusão, exclusão e interrupção, 65,4% (n=396), 46,7% (n=468) e 72,2% (n=262) foram classificados como objetivos, respectivamente.
Grupo focal
Seis profissionais de saúde participaram do estudo, sendo a maioria mulheres (n=4). O tempo de experiência em avaliação do CEAF variou de três a 12 anos (média 6,83; desvio padrão 4,17 anos). A maioria tinha graduação em Farmácia e trabalhava em Farmácias nas Regionais de Saúde, conforme a Tabela 2.
A análise temática permitiu a construção de quatro temas centrais: (1) descrição e identificação dos critérios, (2) aplicabilidade dos critérios para a tomada de decisão do avaliador, (3) procedimentos adotados quando da incerteza da avaliação e (4) proposta de melhorias dos critérios em PCDT. A partir dos temas centrais foram criados subtemas, conforme descrito na sequência. A árvore de temas desenvolvida a partir do grupo focal com os profissionais de saúde está apresentada na Tabela 3.
Tema 1 - Descrição e identificação dos critérios
O tema engloba a percepção dos participantes sobre a forma de descrição dos critérios na elaboração do PCDT e organização do documento.
Em relação à localização da informação no PCDT, os participantes expressaram dificuldade ao localizar critérios específicos para o uso de medicamentos, dispersos em diferentes partes do documento, o que prejudicou sua compreensão e acessibilidade.
“Então às vezes o medicamento tem um critério específico pra ele, mas ele não está no tópico critérios de inclusão; ele está em outro local do texto. Lá pro final, lá no meio, …” (FARM-5-C)
Quanto à clareza da descrição do critério, os participantes compartilharam suas percepções sobre a falta de clareza na descrição dos critérios para a utilização de medicamentos nos PCDT.
“São muitos protocolos que não trazem de forma clara os critérios de inclusão para o uso dos medicamentos.” (FARM-5-C)
“Mas nem sempre está muito claro, gera dúvida.” (Farm-12-R (a))
No que concerne ao impacto na gestão do CEAF, os profissionais ressaltaram como a descrição dos critérios nos PCDT afeta a gestão do CEAF. A falta de objetividade nos critérios leva os prescritores a encaminharem muitos pacientes, resultando em retrabalho na avaliação das solicitações, pois estes podem ou não se enquadrar nos critérios de inclusão.
“A falta de objetividade [dos critérios de inclusão] faz com que os prescritores mandem muitos pacientes que não estão dentro do critério ou podem estar ou não para uma tentativa. Então nessa tentativa geram trabalho, retrabalho e retrabalho.” (Farm-12-R (b))
Os profissionais destacaram a falta de critérios objetivos para interromper o tratamento de pacientes fora da meta, o que resulta em um consumo contínuo de insumos e medicamentos, gerando custos financeiros significativos.
“A partir do momento que esse paciente está fora da meta, mas nós não temos um critério objetivo para interromper esse paciente, esse paciente continua consumindo insumos e produtos. Isso gera um custo financeiro também.” (FARM-3-R)
Tema 2 - Aplicabilidade dos critérios para a tomada de decisão do avaliador
O tema engloba a percepção dos participantes sobre a utilização dos critérios no processo de avaliação dos medicamentos do CEAF.
No que se refere à interpretação do avaliador, os participantes destacaram a importância da apresentação dos critérios e da identificação de medidas como critério de inclusão no processo avaliativo. Eles apontaram as nuances da linguagem, como o uso de termos como "pode" e "deve", que geram dúvidas e permitem diferentes interpretações.
“E essa interpretação muitas vezes é por conta do próprio português mesmo. Às vezes, o protocolo traz a palavra “pode”. Que, que é “Pode”? E às vezes ele traz como “deve” e a gente tem que isso é diferente. Será que está tão claro para eles? Isso do “pode” e do “deve”, … palavrinhas podem mudar a interpretação. “(FARM-5-C)
Quanto à objetividade nos critérios de inclusão, exclusão e interrupção, os participantes apontaram sua percepção sobre a falta de objetividade nos critérios de inclusão, exclusão e interrupção nos protocolos de saúde.
“Geralmente tem um item que é “tratamento” e às vezes ali dentro, ele traz alguma coisa e às vezes não é objetivo. Às vezes é sutil” (FARM-5-C)
A falta de objetividade nos critérios de interrupção foi ressaltada, particularmente em doenças cujos desfechos não se traduzem em resultados matematicamente tangíveis. Observa-se que, muitas vezes, tais desfechos são avaliados com base em sintomas clínicos, os quais são inerentemente subjetivos.
“Agora, critérios de interrupção é muito difícil também, especialmente nas doenças que a gente não tem um resultado matemático...” (FARM-5-C)
“Muitas vezes são resultados é que são avaliados com sintomas clínicos, que são subjetivos” (FARM-5-C)
Quanto à segurança na tomada de decisão, os participantes demonstraram preocupação com os critérios de interrupção, temendo indeferir solicitações. Enfatizaram a necessidade de critérios claros para decisões seguras e consideraram que a subjetividade pode gerar incerteza sobre quem deve decidir, gerando uma camada adicional de complexidade ao processo.
“É critérios de interrupção. Assim a gente tem muito receio de indeferir.” (FARM-6-R)
“Então se está posto e fácil entendimento, a gente consegue indeferir com segurança. Agora, quando é subjetivo, vai sobrar para quem?” (Farm-12-R (b))
Tema 3 - Procedimentos adotados quando da incerteza da avaliação
O tema descreve as percepções dos participantes sobre os resultados da avaliação dos processos de novas solicitações ou renovação de solicitações de medicamentos.
No que concerne à conduta adotada frente às dificuldades na avaliação, os participantes discutiram suas estratégias frente às dificuldades na avaliação de novas solicitações ou renovações de medicamentos, preferindo solicitar informações adicionais ao invés de rejeitar o processo. Isso implica devolver a documentação ao paciente e indicar as informações necessárias para complementação pelo médico.
“Então o que nós temos como hábito é realmente devolver esse processo. Não indeferi-lo. Mantendo e devolvendo o laudo para o médico preencher e reavaliar o exame.” (FARM-6-R)
Tema 4 - Proposta de melhorias dos critérios em PCDT
O tema descreve as sugestões de melhorias que foram elencadas pelos participantes.
Quanto à estrutura do PCDT, os participantes apontaram a necessidade de alterações na formatação do PCDT, com unificação do tópico que reúne os critérios que devem ser utilizados nas avaliações, destacando a importância de centralizar as informações em locais específicos e de fácil acesso. Houve também menções sobre a dificuldade de interpretação gerada por tópicos intitulados "monitorização", que muitas vezes tratam de temas distintos, como a renovação de solicitação de medicamentos.
“Muitas vezes tem um tópico lá no PCDT que chama “monitorização”, mas ele, ele é sobre a renovação ou não é?” (FARM-3-R)
“...dentro do documento [PCDT] que você tem informações em várias partes, elas precisam estar concentradas no local correto.” (FARM-3-R)
No que se refere à inclusão de documento complementar ao PCDT, os participantes discutiram as vantagens do "Relatório Médico Específico", um documento adicional aos PCDT criado pelo Estado do Paraná. Este relatório contém perguntas direcionadas ao médico prescritor, ajudando a confirmar os critérios de inclusão, exclusão e interrupção.
“...existe um relatório médico.../... Para falar, qual é o tipo, e descrever os sintomas. Isso, acho que é uma coisa que facilitaria muito o andamento no momento da inclusão da nova solicitação” (TO-3-R)
Os relatórios específicos foram propostos para simplificar a avaliação, auxiliando médicos solicitantes não familiarizados com os detalhes dos PCDT.
“Relatórios específicos não facilitam só na hora de avaliar, mas pro médico que solicita também, porque muitas vezes ele também não tem o conhecimento do PCDT.” (FARM-6-R)
Um dos participantes ressaltou a possibilidade de os médicos não estarem cientes das informações essenciais para a inclusão do paciente no tratamento, o que poderia ocasionar uma falta de alinhamento entre os critérios de inclusão e as informações fornecidas nos processos de solicitação de medicamentos.
“Ele [o médico] não sabe o que ele precisa escrever para [o paciente] ser incluído. Às vezes, o paciente tem um critério, mas ele não escreveu exatamente aquilo.” (FARM-6-R)
Quanto à descrição dos critérios de inclusão e interrupção proporcionando maior clareza, os participantes enfatizaram a necessidade de clareza nos critérios de inclusão, buscando uma abordagem mais precisa.
“... porque eu também concordo que se estivesse mais claro... Que critérios são esses para incluir novos pacientes?” (FARM-3-R)
Além disso, os entrevistados reforçaram a demanda por transparência nos critérios para inclusão de novos pacientes e renovação das solicitações de medicamentos, tendo em vista os critérios que devem ser adotados para interrupção do tratamento.
“E quais critérios seriam utilizados para manter esses pacientes dentro do CEAF, que são os critérios para renovação?” (FARM-3-R)
DISCUSSÃO
No presente estudo, foi encontrado um importante componente subjetivo nos critérios de inclusão, exclusão e interrupção de medicamentos no CEAF, o que foi corroborado pela opinião dos profissionais envolvidos na avaliação de medicamentos do componente. A análise aprofundada dos critérios de inclusão, exclusão e interrupção presentes nos PCDT, considerando a subjetividade inerente a esses critérios e a percepção dos profissionais de saúde responsáveis pela avaliação no CEAF, é fundamental para a formulação de estratégias que visem otimizar a tomada de decisão dos avaliadores. Ao minimizar as discrepâncias nas interpretações dos critérios, promove-se a equidade no processo de avaliação e, consequentemente, aumenta-se a eficiência do trabalho dos profissionais que realizam a avaliação dos processos do CEAF. Dessa forma, as ações propostas neste estudo têm o potencial de contribuir para a melhoria da qualidade da assistência prestada aos usuários, garantindo o acesso equânime às tecnologias disponíveis e promovendo a integralidade do cuidado.
Para ampliar o acesso e promover o uso racional de medicamentos, o Brasil implementou diversas políticas públicas 15. O CEAF é uma dessas estratégias no âmbito do SUS, buscando garantir a integralidade do tratamento medicamentoso em nível ambulatorial, seguindo os PCDT 16. O CEAF concentra o maior número de medicamentos incorporados no SUS, visto que, entre 2017 e 2020, mais de 80% dos 83 medicamentos com parecer favorável de incorporação foram alocados neste componente 17, que também representa o maior impacto orçamentário para o Ministério da Saúde nos gastos com medicamentos 18, 19.
Os PCDT delineiam tratamento, diagnóstico e acompanhamento clínico, além de estabelecer critérios de exclusão, como contraindicações absolutas ou situações clínicas específicas 20. Nesse sentido, faz-se importante destacar que o processo de construção dos PCDT passou por mudanças substanciais desde o ano 2000, de modo que as etapas de elaboração desses documentos foram sendo aprimoradas, tendo sido estabelecidas, para fins de padronização, as seções que devem constituir um PCDT e o teor que necessita ser abordado dentro delas 20. Como consequência, estas mudanças permitiram que os novos PCDT fossem concebidos sob a perspectiva de uma abordagem abrangente do tratamento medicamentoso 15. Adicionalmente, mudanças estruturais recentes da CONITEC também foram importantes para o aprimoramento dos PCDT. Mediante o Decreto nº 11.161/2022 21, foram criados três comitês distintos, abrangendo Medicamentos, Produtos e Procedimentos, e PCDT. A partir da publicação desse decreto, fica determinado que o MS consolidará e publicará as atualizações de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, quando da incorporação, alteração ou exclusão de tecnologias em saúde no SUS e da existência de novos estudos e evidências científicas identificadas a partir de revisões periódicas da literatura relacionadas aos seus objetos. Contudo, como este novo decreto não especifica a periodicidade da atualização dos PCDT, permanece a incerteza quanto às atualizações nos próximos anos dos protocolos já publicados.
As Diretrizes Metodológicas para Elaboração de Diretrizes Clínicas 22 destacam a importância de critérios claros e objetivos para a interrupção do tratamento. No entanto, mais de um quarto dos critérios dos PCDT da amostra estudada foram considerados subjetivos. Isso apresenta desafios para a gestão na distinção entre pacientes que precisam continuar o tratamento e aqueles para os quais a interrupção é necessária, considerando aspectos de segurança e eficácia. Essa ambiguidade pode afetar a tomada de decisões clínicas e a equidade e qualidade do cuidado fornecido aos pacientes. A falta de clareza das diretrizes é um problema debatido na literatura. O estudo de Correa et al. 23 aponta que as barreiras para implementação de diretrizes na prática clínica estão relacionadas à falta de clareza das recomendações da diretriz. Para Gagliardi et al. 24, formato e clareza das Diretrizes de Prática Clínica podem influenciar a implementação bem-sucedida das recomendações incluídas. No âmbito de sistemas de saúde de outros países, também se observam problemas relacionados à adesão a protocolos clínicos de diferentes condições de saúde e variados níveis assistenciais, a exemplo de diretrizes direcionadas a cuidados clínicos a pacientes com câncer na Austrália, diretriz de cuidados paliativos na Noruega, para além de outras inconsistências com diretrizes observadas no contexto de saúde da Suíça. Mesmo no cenário internacional, são apontados entre os fatores que podem influenciar o uso das diretrizes a falta de clareza ou ambiguidade das recomendações 25.
O estudo de Almeida-Brasil et al. 26 revelou que a maior parte do tempo no trâmite administrativo de solicitações de medicamentos é gasta entre as etapas de cadastro e avaliação. Silva et al. 27 destacaram que a etapa estadual, do pedido à autorização do tratamento, foi a que mais influenciou o tempo total. Rover et al. 28 apontaram o longo tempo de avaliação como uma fragilidade do CEAF. Estratégias para otimizar a avaliação, como critérios claros nos PCDT, podem facilitar o acesso reduzindo a espera pelo medicamento.
Foi citado pelos participantes do grupo focal que os critérios de inclusão, interrupção e exclusão dos PCDT têm interpretações diferentes pelos avaliadores, em decorrência da ambiguidade e falta de clareza e ao desconhecimento destes critérios pelos médicos prescritores. Isso culmina em um número expressivo de indeferimentos e devoluções de solicitações de medicamentos, resultando em sobrecarga de consultas médicas e atrasos no acesso aos medicamentos pelo SUS, o que retarda o início do tratamento ou até mesmo leva à sua interrupção. Tal situação gera preocupação haja vista que provoca diferenças em quem tem acesso ao medicamento, comprometendo os princípios do SUS, em especial a equidade. O estudo de Almeida-Brasil et al. 26 revelou que a não conformidade com o PCDT para Alzheimer resultou em 38% de processos não deferidos, com devolução devido a preenchimento incorreto de documentos. Em contraste, Rigo 12 constatou que apenas 5,33% das solicitações iniciais para Parkinson estavam corretamente preenchidas. Por outro lado, em avaliação de processos para Artrite Psoriática, Silva et al. 27 relataram que 89% dos casos foram aceitos devido à apresentação completa de documentação, incluindo exames obrigatórios.
Os participantes do estudo destacaram as dificuldades dos pacientes para obter consultas com especialistas e exames necessários para renovar solicitações de medicamentos, corroborando achados anteriores de Rover et al. 13, 28 sobre deficiências na disponibilidade desses serviços especializados. Apesar do aumento no acesso aos cuidados de saúde pela população brasileira, especialmente na atenção primária, o atendimento especializado ainda é problemático 29, principalmente em municípios de médio e pequeno porte 27. Tais dificuldades permanecem mesmo com a definição de que a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde deve ser baseada nas normas, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS. As dificuldades de acesso ao tratamento podem levar pacientes a custear o medicamento, afetando a equidade do programa, ou a buscar solução por meio de ações judiciais. Estudos mostram que uma parcela significativa dos medicamentos solicitados judicialmente estava disponível no CEAF, indicando problemas potenciais de uso apropriado e custos adicionais para o sistema de saúde 30-32.
Durante o grupo focal, foram discutidas melhorias nos PCDT para aprimorar o processo de avaliação. Os participantes destacaram a necessidade de reestruturar o documento para agrupar todos os critérios de forma clara, reduzindo omissões. Uma estratégia mencionada foi o desenvolvimento de versões resumidas dos PCDT pelo Ministério da Saúde desde 2020. Isso visa padronizar a implementação nacional e melhorar o acesso à informação para profissionais de saúde, garantindo cuidados padronizados 33. Além disso, os profissionais de saúde do grupo focal ressaltaram a importância de uma versão do PCDT para a Gestão da Assistência Farmacêutica ou um documento adicional com critérios claros e objetivos, simplificando o processo de avaliação e atendendo aos requisitos do CEAF.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, o presente estudo revelou alto volume de critérios não objetivos nos PCDT, o que, de acordo com profissionais de saúde atuantes no CEAF, gera dificuldades no processo de decisão em saúde e na gestão do Componente, com o risco acrescido de tomada discrepante de decisões, o que vai originar inequidades na assistência farmacêutica. Destarte, propomos um checklist a ser considerado na elaboração de um PCDT, visando otimizar os processos de decisão pela gestão do CEAF.
1. Agrupar os critérios de forma clara em seções específicas no PCDT;
2. Priorizar a utilização de critérios objetivos através de medidas de desfecho mensuráveis para a inclusão, exclusão de pacientes no PCDT ou interrupção dos tratamentos;
3. Utilizar linguagem clara e sem ambiguidades, indicando a decisão a tomar caso se cumpra o critério descrito;
4. Descrever a forma de comprovação dos critérios estabelecidos nos PCDT.
Entre as possíveis limitações deste estudo, inclui-se o período da avaliação dos PCDT, que contemplou os publicados entre 2012 e 2022, representando apenas uma amostra dos PCDT vigentes. Ainda, é importante ressaltar que os participantes da pesquisa possuíam formação na área da saúde; contudo, não foi possível incluir profissionais médicos no estudo.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
Helena Hiemisch Lobo Borba e Fernando Fernandez-Llimos desenvolveram o projeto e supervisionaram o estudo. Mariana Rosa Gomes e Paula Rossignoli mapearam e extraíram os dados dos PCDT, elaboraram o roteiro e participaram da condução do grupo focal. Helena Hiemisch Lobo Borba e Fernando Fernandez-Llimos realizaram as análises dos PCDT e do grupo focal. Todos os autores participaram da escrita do artigo e revisaram o manuscrito para a sua versão final.










