EN PT

Artigos

0278/2025 - Promoção da saúde e o dispositivo da racialidade
Health promotion and the raciality device

Autor:

• Ivison Luan Ferreira Araújo - Araújo, ILF - <ivson_maiakovskis@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-8900-2166



Resumo:

Não se aplica.

Palavras-chave:

Não se aplica.

Abstract:

Não se aplica.

Keywords:

Não se aplica.

Conteúdo:

Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser é o mais recente livro¹ de Sueli Carneiro, filósofa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), cofundadora do Geledés- Instituto da Mulher e, desde 2022, doutora honoris causa pela Universidade de Brasília (UNB). O livro tem início com uma introdução e uma breve apresentação, por meio das quais a autora faz um convite para o diálogo, mesmo que esse diálogo desvele o olhar branco sobre os corpos negros, contribuindo para que seja possível compreender as dinâmicas das relações raciais no Brasil, a partir do conceito de dispositivo, elaborado por Michel Foucault. Ou seja, o objetivo da obra é evidenciar o dispositivo de racialidade na sociedade brasileira, que instaura uma divisão ontológica, uma vez que a afirmação do ser das pessoas brancas se dá pela negação do ser das pessoas negras.
Ancorada em uma argumentação consistente, baseada na potencialidade de sua análise e no vasto e profundo conhecimento sobre o tema, Sueli Carneiro divide a obra em três partes, sendo elas: Poder, Saber e Subjetivação; Resistências; e Educação e o cuidado de si. Na primeira parte do livro, existe uma costura intensa de saberes e articulações teóricas, trazendo o debate metodológico do dispositivo da racialidade, que tem como base a ideia de que o racismo opera como disciplinador, ordenador e estruturador das relações raciais e sociais, promovendo uma dinâmica com efeito paralisante sobre o grupo dominado. Nesse sentido, a autora cita alguns exemplos, como a exploração da mão de obra escrava e a ideia do negro como um objeto da ciência.
Segundo Gonçalves2, no século XVIII, houve a intensificação de sequestros de pessoas negras, fomentando um grande comércio e o acúmulo de riquezas para comerciantes e colonos. Entre os anos de 1700 e 1800, a população escravizada passou de 330 mil para mais de 3 milhões na América3. Naquela época, havia um grande interesse econômico no que foi chamado de civilização das “raças inferiores”, com o intuito de transformar essas pessoas em propriedades privadas, produtos do trabalho social, sustentando, assim, o racismo, que permeia um modo de ser e de existir até os dias atuais4.
Ainda na primeira parte da obra, Sueli Carneiro evidencia as tecnologias do biopoder, como o controle sobre as mulheres negras, seja na capacidade reprodutiva ou no “deixar morrer”. Entretanto, o alvo também são os homens negros a partir da produção constitutiva da violência. Para discutir a questão com base nos argumentos da autora, é importante recorrer a um estudo recente sobre a assistência para mulheres negras no período de gestação. O estudo de Lessa et al.4 afirma que as mulheres negras possuem desvantagens em relação ao acesso a um pré-natal considerado adequado, revelando que existe uma associação negativa, estatisticamente significante, entre a cor da pele e o início do pré-natal, com dados relacionados a quantidade de consultas, realização de testes, exame de mama, orientações referentes ao trabalho de parto, riscos e aleitamento materno4.
Já o estudo de Sinhoretto e Morais5 descreve, a partir da análise dos dados construídos, que o fenômeno da morte violenta racializada da juventude negra evidencia a desumanização dos sujeitos, tornando sua morte algo plausível e inconsequente. O estudo também evidencia duas questões: a relação entre violência e racismo e o impacto da desigualdade racial na garantia dos direitos fundamentais dessa população e de seus familiares5. Segundo Castro6, os assassinatos dos jovens refletem uma trajetória de sofrimento e adoecimento de seus familiares, com efeitos na saúde, levando a diversas enfermidades, como diabetes emocional, insônia crônica, hipertensão, depressão e problemas de memória, que acabam se desenvolvendo severamente ou sendo agravados, podendo levar à morte6.
Na segunda parte da obra, Carneiro apresenta os processos de resistência. Segundo a autora, a resistência parte do reconhecimento da própria autonomia, da força da autoestima, da conquista da memória e da ação coletiva, estabelecendo um processo em que o cuidado de si e o cuidado do outro se fundem na busca de emancipação. Nesse sentido, a resistência se caracteriza como uma estratégia de sobrevivência física, pois, vivos, é possível enfrentar os desafios de manutenção da saúde física e cognitiva, ameaçada por fatores como, por exemplo, a falta de acesso à saúde da população negra no Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo Gonçalvez7, a desigualdade no acesso e a disponibilidade impactam as possibilidades de exercício da cidadania, demonstrando que a democracia no Brasil é racializada. Sendo assim, se o acesso e a dignidade não são universais, a cidadania não é plena na sociedade brasileira para a população negra7. Com eloquência, no capítulo em questão, Carneiro compartilha vivências de personalidades e lideranças negras na construção de resistências, como o Edson Cardoso, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier.
Na última parte do livro, a autora focaliza a educação e o cuidado de si, ressaltando que o dispositivo encontra, na educação, uma realização explícita, uma vez as experiências nos espaços institucionais escolares são reconhecidas por serem repressivas e corretivas, configurando-se como estratégia de controle e anulação do sujeito político. A partir de uma ótica disciplinar e normalizadora, o dispositivo de racialidade define onde é e onde não é o lugar do negro. Carneiro também destaca um contraponto em relação à educação, pois a população negra disputa pela verdade histórica, sendo essa estratégia inegociável de ruptura com os processos de dominação. Segundo Gomes8, a educação é um direito que, paulatinamente, vem sendo conquistado pela população negra, tendo sido encarado como uma possibilidade de ascensão social. Somente por meio da educação é possível formar cidadãos que se posicionem contra toda forma de discriminação e que lutem por uma democracia8.
Ainda no último capítulo, a autora ressalta o quanto existem processos de produção da inferioridade intelectual da população negra, bem como uma desvalorização da dor e do sofrimento. Nesse contexto, a população negra procura possibilidades de futuro, principalmente por meio dos livros, do teatro, do cinema e dos jornais, entre outros meios que desenham resistências e promovem a consciência em relação ao dispositivo de racialidade. Sendo assim, quando falamos em saúde da população negra, o acesso e a promoção da saúde, devemos considerar e compreender aspectos complexos de interações, perfazendo manifestações clínicas e sociais que incluem o dispositivo da racialidade, a perspectiva da determinação social da saúde e a epidemiologia social crítica. Segundo Sevalho9, é necessário construir discursos solidários e de promover uma ciência crítica e socialmente emancipatória para um outro mundo possível.
Em seu livro, Carneiro expõe as marcas do racismo no Brasil, bem como os processos que se articulam com o dispositivo da racialidade e a emancipação da população negra, trazendo para os leitores uma valiosa reflexão e recuperando uma pluralidade de sentidos possíveis, como a consciência crítica-racial e ação política emancipatória. Carneiro defende que, por meio do cuidado de si e do cuidado dos seus, é possível promover o desmantelamento das relações de poder. Nesse sentido, a obra corrobora a luta por liberdade e igualdade de forma permanente, para conquistar, preservar e ampliar a promoção da saúde e o acesso da população negra.

Referências
1. Carneiro S. Dispositivo da racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar; 2023.

2. Gonçalves PC. Entre o escravo e o trabalhador livre: o tráfico de mão-de-obra no Atlântico-sul e Caribe em meados do Oitocentos. Simpósio Nacional de História. 2011; 26:01-17, 2011

3. Souza, CLS. Racismo e luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec; 2020.

4. Lessa MS de A, Nascimento ER, Coelho E de AC, Soares I de J, Rodrigues QP, Santos CA de ST, et al. Pré-natal da mulher brasileira: desigualdades raciais e suas implicações para o cuidado. Ciência & Saúde Coletiva. 2022; 27(10):3881-90.


5. Sinhoretto J, Morais D de S. Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada. Revista de Estudios Sociales. 2018; 64:15-26.


6. Castro R. Necropolíticas e adoecimento: genocídio negro, gênero e sofrimento. Cadernos de Saúde Pública. 2019; 35(6): e00075319.


7. Gonçalves MM. Raça e saúde: concepções, antíteses e antinomia na atenção básica. São Paulo. Dissertação [Mestrado em Saúde Pública] - Universidade de São Paulo; 2017.

8. Gomes NL. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação e Sociedade. 2012; 33(120): 727-44.

9. Sevalho G. A colonização do saber epidemiológico: uma leitura decolonial da contemporaneidade da pandemia de COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva. 2021; 26(11):5629-38.


Outros idiomas:







Realização



Patrocínio