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0239/2007 - CASTIGO, PENALIDADE OU OBRA DO ACASO? a morbidade por Causas Externas na atenção básica de Porto Alegre
Punishment, penalty or by chance event?Morbidity by External Causes in basic health assistance in Porto Alegre city

Autor:

• GERCI SALETE RODRIGUES - GERCI SALETE RODRIGUES - Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Prefeitura Municipal de Porto Alegre - <gercirodrigues@gmail.com>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

RESUMO
O presente estudo, baseado na tipologia da pesquisa e desenvolvimento, parte da construção do trabalho do grupo de Observadores de Causas Externas nos serviços de saúde municipais da Gerência Distrital de Saúde Partenon e Lomba do Pinheiro de Porto Alegre. Objetiva-se refletir sobre as ações e o papel dos serviços de saúde frente aos agravos ocasionados por Causas Externas, na perspectiva de estratégia promocional em saúde e qualidade de vida. O alto índice de eventos de Causas Externas gerou inconformidade a alguns profissionais de saúde dos serviços da região, conscientes do grave problema de Saúde Pública que eles representam. As estratégias de enfrentamento visaram primeiramente a implementar os registros dos Agravos por Causas Externas na região, com envolvimento de toda a equipe de cada serviço. A seguir partiu-se para qualificar o atendimento às vítimas de acidentes e violências, com envolvimento de toda a equipe dos serviços de saúde. A divulgação dos resultados do trabalho do grupo deu-se em eventos temáticos e em reuniões comunitárias, além de atividades direcionadas especificamente aos trabalhadores de saúde. Espera-se que a sensibilização e a qualificação gerem o compromisso de trabalhar em rede na implementação de iniciativas de proteção, sobretudo aos mais vulneráveis.

Palavras-chave: causas externas, morbidade, vulnerabilidade, atenção básica de saúde.

Abstract:

This study was based upon research and development tipology, and started with creation of External Causes Vigilance group in public health services of District Management in Partenon and Lomba do Pinheiro, Porto Alegre City. The purpose is to reflect on the actions and roles of health services facing damages by External Causes in order to establish promoting strategies in health and life quality. The high amount of deaths by External Causes in Porto Alegre has caused much disagreement among some health workers, who are conscious of these events as serious problems in Public Health. Firstly, the coping strategies were meant for creating recordings of damages by External Causes in Porto Alegre, aiming at local vigilance and involving the whole team in every local health service. Later on, we tried to qualify the assistance to accident and violence victims, by involving all members of health services. Another strategic point was the inclusion of local communities, increasing the number of watchers. The results were published in thematic events and community meetings, and also in specific activities for health workers. We hope that sensitive and qualified workers can be more engaged to networking for establishing actions for protecting the most vulnerable people overall.

Key-words: external causes, morbidity, vulnerability, health basic attention

Conteúdo:

O presente artigo é resultado de uma abordagem de pesquisa qualitativa e visa a descrever e analisar ações de um grupo de trabalho autodenominado “Observadores de Causas Externas” desenvolvido nos serviços de atenção básica de saúde municipais pertencentes à Gerência Distrital de Saúde Partenon e Lomba do Pinheiro do município de Porto Alegre. Propõe-se a contribuir com a reflexão sobre as possíveis ações e o papel dos serviços de saúde no enfrentamento aos agravos ocasionados por Causas Externas (CEs), na perspectiva de estratégia promocional em saúde e qualidade de vida. Partiu-se, portanto, da convicção de que as Causas Externas de morbidade e mortalidade são “ocorrências anunciadas”, isto é, são previsíveis, com base nas condições de vida das coletividades e em trajetórias individuais, não podendo ser consideradas pelos serviços de saúde como “castigo, penalidade ou obra do acaso”.
Particularmente a morbidade por essas causas tem sido invisibilizada pelos registros inadequados, insuficientes ou pela ausência deles nos serviços de atenção básica e nas estatísticas de saúde, de modo geral. Agrega-se, ainda, outro fator que se poderia chamar de atitude defensiva conivente dos profissionais dos serviços, que oscila entre a banalização e o atendimento restrito aos danos físicos.
O trabalho desenvolvido nos serviços em questão é uma resposta à problemática da morbidade por Causas Externas que, segundo a OMS e o CID-101, subdividem-se em duas grandes categorias, a saber: lesões não-intencionais ou acidentais (acidentes de trânsito, de trabalho e outros tipos de acidentes); lesões Intencionais (violência interpessoal, violência comunitária, violência auto-infligida).
Quanto à natureza da violência, ela pode ser física, sexual, psicológica, envolvendo privação ou negligência. Para essa última classificação acrescentam-se o que autoras como Minayo e Souza2 denominam omissões e negligências com crianças e idosos. Outras classificações de diferentes autores são freqüentes na bibliografia; neste caso optou-se pela classificação acima citada por seu detalhamento e completude. Entende-se que a mesma é necessária para a criação de uma linguagem comum já que, dentre os objetivos deste projeto, estão o aperfeiçoamento e a consolidação de um sistema de registro com informações para vigilância da morbidade, a partir dos atendimentos à demanda, nos serviços de atenção básica.
Essa diversidade e, ao mesmo tempo, indefinição, do que se considera e do que se registra nessa perspectiva de morbidade, é justificada também pela inexistência de experiências locais e mesmo referidas na literatura internacional. Nesse sentido, alguns trabalhos têm sido desenvolvidos a partir do Instituto Karolinska da Suécia. A tônica desses estudos está focada em mostrar o decréscimo nos registros de lesões tratadas nos serviços de saúde. Poucos se preocupam com a avaliação e a promoção da segurança. Essas constatações remetem ao programa “Safe Community” que conforme seu propósito estão baseados em dados epidemiológicos que devem documentar o tamanho e a natureza dos problemas de segurança, incluindo acidentes, lesões, violência e suicídio em todos os ambientes incluindo casa, transporte, trabalho e laser. Em conseqüência, as prioridades para ação e decisão, sugerem, devem ser baseadas no que a comunidade considera importante. As soluções devem ser alcançadas pela comunidade e sugestões externas só podem ser adotadas se vistas como apropriadas pela comunidade. A cidade de Porto Alegre está incluída na rede de cidades protetoras, sendo que os serviços de atenção básica em questão nesta proposta estão alinhados nesses propósitos. A idéia, portanto, é de promover a segurança, reorientando, de certa forma, a perspectiva da ação sobre as causas dos eventos que culminam em morbidade3.
Os dados epidemiológicos, disponíveis no momento de desencadeamento do trabalho, apontavam que, em 2002, foram vitimados, em Porto Alegre, 1.022 indivíduos por Causas Externas, aproximadamente 10% do total de óbitos4.
Entre a população residente na região de adscrição da Gerência de Saúde Partenon e Lomba do Pinheiro, locais de execução deste projeto, ocorreram 122 óbitos por Causas Externas (mais de 14 %) do total dos óbitos de 2002. Na região do bairro Partenon, especificamente, no ano de 2001, as Causas Externas foram o principal motivo isolado de óbito na faixa etária de zero a 49 anos. No entanto, a morbidade nesse grupo de causas permanece invisível ou mascarada pelas dificuldades de identificação e registro adequado, nos serviços.
Nessa perspectiva, dentre as justificativas que se adotou para o desenvolvimento de ferramentas de registro e informação e de um observatório para esses agravos, está a inexistência de vigilância sobre a morbidade por Causas Externas, tanto na Região como na Cidade, de um modo geral. Considerando essa situação de invisibilidade da morbidade, utilizaram-se, como fonte de sensibilização local, os estudos de Blank e Eckert5:79, os quais afirmam que: “calcula-se que cada óbito de criança por injúria física corresponda a 50 casos com severidade suficiente para causar hospitalização, 1.000 casos que requeiram somente atendimento ambulatorial e mais de 2.000 casos atendidos fora do ambiente hospitalar, o que leva à estimativa de cerca de 2 milhões de eventos traumáticos anuais em crianças gaúchas”.
Utilizando-se o raciocínio para a mortalidade em geral, para CE(s) em Porto Alegre, ressalvadas as especificidades da faixa etária em questão, no ano de 2002 ocorreram 1.022 vítimas fatais, o que representaria aproximadamente 50.000 hospitalizações, 1 milhão de atendimentos ambulatoriais e 2 milhões de eventos traumáticos, nesse ano. Seguindo nesse raciocínio, na região da Gerência Distrital em questão, os 122 óbitos, em 2002, representariam mais de 6.000 internações, 122.000 atendimentos ambulatoriais, totalizando, no ano, 244.000 eventos traumáticos de diversas gravidades. Feitas as devidas relativizações, observou-se que essa situação “catastrófica” gerou inconformidade entre alguns profissionais de saúde dos serviços da Região. Diante da sua magnitude, esses eventos passam a ser considerados pelo grupo como grave problema de Saúde Pública a ser progressivamente enfrentado e, como meta, erradicado.
Nesse território, atuam 14 serviços de saúde municipais, sendo 7 Unidades Básicas de Saúde (UBS) com equipes de Saúde da Família; 6 unidades básicas de saúde e 1 pronto atendimento 24 horas.
Considerando que se trata de uma região de grande espaço geográfico situada na Zona Leste do Município, com aproximadamente 180 mil habitantes6, que inclui mais de sessenta vilas e sete bairros, com diferentes níveis de urbanização e infra-estrutura e cuja população apresenta-se, em grande parte, em condição de pobreza ou indigência, constata-se a necessidade de congregar esforços interdisciplinares e interinstitucionais para adequar possibilidades de enfrentamento das questões de saúde.
A demanda de ações diárias à população mais vulnerável torna-se prioritária. Em alguns locais, o único Serviço Público Municipal presente na comunidade é o de saúde. Constatou-se, então, a necessidade de conhecer e avaliar, tanto as estratégias locais dos sujeitos, o savoir-faire coletivo, quanto a ação dos profissionais e serviços a fim de auxiliá-los na superação de fragilidades. Essa iniciativa foi significativa para a região da Gerência de Saúde Partenon e Lomba do Pinheiro, já que se configura em uma das mais atingidas por esses agravos e cujo impacto é mais devastador face ao conjunto de vulnerabilidades a que está exposta sua população.
Os referenciais para a sustentação conceitual de vulnerabilidade ao adoecimento, adotada neste caso, repousam em aproximações quantitativas populacionais e qualitativas, no sentido de considerar indivíduos e contextos na constituição desses eventos, que, por sua vez, são necessariamente pensados no contexto de uma situação, num dado momento e dentro de uma dada sociedade7. Assim sendo, as “situações de risco” que foram utilizadas para compor essa noção, constituem-se a partir do conjunto de fatores que, sob o ponto de vista da Saúde Pública, configuram os fatos e as relações sociais predisponentes à morbi-mortalidade8. Nessa perspectiva, considera-se a situação predisponente à morbidade por Causas Externas, nesse contexto local. Adota-se, também, para essas reflexões, a vulnerabilidade como risco social para o adoecimento e morte por essas causas.
Assim sendo esta narrativa baseia-se no processo de construção do que foi chamado Grupo de Observadores de Causas Externas na região da Lomba do Pinheiro e Partenon do município de Porto Alegre e passa-se a descrever as etapas de sistematização, partindo do objetivo que segue.

OBJETIVO

Sistematizar e analisar as etapas de construção de um Grupo de Observadores de Morbidade por Causas a Externas, na região Lomba do Pinheiro e Partenon, Zona Leste do município de Porto Alegre, considerando a perspectiva da pesquisa e desenvolvimento.

METODOLOGIA

Trata-se de uma fase descritiva e de uma abordagem qualitativa da temática inserida no projeto-mãe intitulado: Observatório de Causas Externas, na Atenção Básica de Saúde, no município de Porto Alegre. Fundamenta-se em dados epidemiológicos locais de morbidade nessa região, no período de 2002 a 2005 que, entre outros objetivos, visa a traçar o perfil desses eventos, a partir dos registros de atendimentos nas 13 Unidades de Saúde municipais e de informações colhidas nos domicílios e na comunidade.
Dufumier9 e Gonnet10 sustentaram o tipo de abordagem adotado nesta narrativa. Para os autores, tais modalidades de pesquisa e desenvolvimento buscam o “conhecimento de causa” para intervir sobre o campo. Já a transposição do conceito de diagnóstico, neste caso situacional, das Ciências Biomédicas para o domínio das Ciências Humanas e Sociais, permite analisar o contexto e os sistemas sociais organizados11. Dessa forma o fomento para sensibilização, estruturação e qualificação do grupo é originário do local de desenvolvimento e estudo.
Foram utilizados para análise os dados documentais colhidos em encontros de trabalho (aproximadamente 60 encontros) e documentos locais preliminares de atendimentos nas Unidades de Saúde. Foram considerados os registros assistenciais produzidos nas unidades, no ano de 2002, e as dinâmicas de mobilização dos setores envolvidos nesse processo de construção.
A dinâmica de funcionamento baseou-se na modalidade de discussão de grupo, a qual favoreceu a construção-problematização coletiva das temáticas em pauta. O momento de discussão propicia o aparecimento de uma situação singular que é especifica do grupo de discussão, diz Minayo12, onde aparecem as opiniões, relevâncias e valores dos indivíduos. A presença do animador se dá por meio de intervenções que visam a focalizar e aprofundar os temas surgidos.
A análise documental privilegiou os relatos do grupo de discussão, produzidos nos encontros quinzenais (aproximadamente 60), com duração média de 3 horas. Essa estratégia foi, portanto, necessária, não só para complementar os conhecimentos peculiares ao grupo, relativos às suas crenças, atitudes e percepções da morbidade por Causas Externas, mas também na dimensão da pesquisa, permitindo desenvolver hipóteses e questões mais precisas, além da proposição de estudos complementares.
A leitura do material produzido no grupo permitiu que surgissem categorias/ síntese, baseadas nos “tempos” do grupo, ou seja, na caminhada em direção à transformação das discussões em estratégias de ação. As categorias adotadas para análise temática13 foram; o processo de construção de um grupo; a adesão dos sujeitos; a operacionalização das ações; atividades preventivas e de promoção da saúde; apresentação dos resultados à comunidade.
O processo de pesquisa e desenvolvimento foi desencadeado considerando as normas de pesquisa em saúde, sendo a proposta submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e aprovada sob o registro ACCP N. 068/2004.

VELEJAR É PRECISO - O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM GRUPO DE OBSERVADORES DA MORBIDADE POR CAUSAS EXTERNAS

O início de um trabalho dessa natureza impõe desafios às partes envolvidas. Uma das inspirações do grupo, desencadeadora, diga-se assim, do processo, foi a idéia do “velejar”, onde não se pode desconsiderar os saberes fundantes, sob pena de não começar. Paulo Freire, ao se referir a essa prática, desafia à reflexão. Diz ele “a prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o domínio do barco, das partes que o compõem e da função de cada uma delas, como o conhecimento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes”14.
Considerando a força motivadora dos ventos da sensibilização para a desnaturalização da morbidade por Causas Externas, passa-se a relatar e analisar as fases do processo desenvolvido, suas diferentes modalidades de apelo e motivação aos serviços e sujeitos envolvidos; na seqüência apresentam-se alguns resultados visíveis por meio de condutas individuais e coletivas nos serviços e comunidade e, por fim, o andamento atual da proposta.
Em dezembro de 2001, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, preocupada com os índices crescentes de mortalidade por Causas Externas no Município, promoveu uma oficina, onde compareceram profissionais de saúde e representantes comunitários, inclusive da Região de estudo15. Os facilitadores foram pessoas familiarizadas com experiências desenvolvidas em outras cidades. Contou, inclusive, com a presença do professor sueco Leif Sundström, do Instituto Karolinska, coordenador do Programa das Cidades Protetoras, no mundo. Os relatos das experiências exitosas em cidades da Suécia - “safe cities” e “safe communities” - sobretudo da experiência de Falköping, onde foi atingida uma redução de alguns agravos em até 25%, em curto espaço de tempo, entusiasmou os presentes3. Nessa oportunidade, aprofundaram-se os conhecimentos sobre os fundamentos desse método e a análise das possibilidades de implementá-los na realidade local. Após essa oficina, considerada o momento inaugural desse processo, outros encontros se sucederam até amadurecerem propostas para se colocar mãos a obra no enfrentamento local a esses eventos.
Considerando as escassas possibilidades de destinação de recursos específicos para desenvolver essa iniciativa avaliada pelo grupo dirigente, na Região em estudo, optou-se por imprimir uma lógica de mobilização dos recursos já existentes, seguindo rigorosamente um dos pilares do método proposto que é o da sustentabilidade. Diante disso, “nada novo foi criado” e, sim, redirecionado, qualificando-se as ações. Isso, no cotidiano, representou “acrescentar” a escuta singularizada e o olhar perscrutador do protetor da vida. Significa que todas as ações “tradicionais” dos serviços introduzem temas, elementos, iniciativas relativas à identificação e ao enfrentamento dos agravos e de suas causas. Essa estratégia aumentaria, em tese, a possibilidade de sobrevivência da iniciativa, resistindo às mudanças de direcionamentos políticos, já que a mesma estava inserida em uma estrutura de Serviço Público e impregnada nos fazeres dos seus operadores.
Ponderou-se também que os recursos humanos disponíveis para engajar no processo seriam os já atuantes na Rede Pública de Saúde, em sua maioria de longa data e cujas práticas estavam já profundamente arraigadas, o que representaria pontos positivos e negativos ao andamento da proposta. Dentre os pontos positivos, a longa experiência em Saúde Pública, a proximidade e a familiaridade com o problema e as informações detalhadas sobre as comunidades locais, como testemunhas diárias das histórias humanas, seriam favoráveis. Já as práticas sedimentadas, muitas vezes inadequadas do ponto de vista ideológico e ou metodológico, precisariam ser motivo de ampla reflexão. Arriscava-se dizer que a fórmula “treinamento e capacitação” não seria suficiente, a menos que houvesse, como diz Deslandes16, “um debate corajoso sobre temas como a racionalidade médica, seus limites, o modelo de atendimento e a cidadania (a que se impõe hoje e a que queremos)”. A prática se foi, então, processando.

A adesão dos sujeitos: sensibilização e compromisso.

A morbidade por Causas Externas, como real problema de Saúde Pública e, em particular, o fenômeno da violência, bem como o seu enfrentamento pelos profissionais e serviços de saúde são relativamente recentes, não estando, portanto, incorporados às práticas cotidianas nessa Área. Causam sofrimento e medo nos profissionais da linha de frente e, ao mesmo tempo, os paralisa, tornando-os muitas vezes impotentes para abordá-los em sua complexidade.
As formas tradicionais de enfrentamento das Causas Externas remetem as responsabilidades para as autoridades sanitárias e, sobretudo, para as de Segurança Pública e as campanhas têm efeitos limitados no tempo. Essa avaliação aquilata-se na convicção das influências sociais da morbi-mortalidade por Causas Externas e na necessidade de reforçar o caráter integrado de políticas sociais e econômicas para seu enfrentamento.
Optou-se, então, por concretizar o grupo local, com a idéia de que a responsabilidade por esses eventos é coletiva, da compreensão do papel especial dos serviços de saúde que precisam trabalhar na perspectiva de estratégias promocionais em saúde e qualidade de vida e seu potencial para adotar papel pro ativo na prevenção e da necessidade da ação integrada de diferentes segmentos da sociedade, tanto indivíduos como instituições. Entende-se qualidade de vida como um tema complexo, composto por indicadores objetivos e subjetivos, que dependem da percepção do indivíduo em relação ao meio em que vive e sua vida cotidiana 17. O termo Promoção da Saúde refere-se ao envolvimento entre os diversos setores da sociedade, os quais devem realizar parcerias entre o estado, a comunidade, os indivíduos e os serviços de saúde na tentativa de buscar soluções para os problemas de saúde da comunidade18.
De outra parte, detectou-se a necessidade de desencadear um processo de aprendizado e, conseqüentemente, de mudança de comportamento e que essa condição, no caso de adultos, precede a uma decisão. Partindo dessa premissa, o apelo para adesão dos profissionais e agentes comunitários de saúde, foi a partir de um convite a um, dois ou mais servidores, conforme as dimensões do serviço, feito em reuniões pelas coordenações da equipe. O único pré-requisito foi o desejo e a disponibilidade de participar do desafio da constituição de um grupo, cujo papel estava por ser construído. A continuidade de participação era uma condição fundamental, pois não se tratava de “grupo de representação” e sim de trabalho que, necessariamente, deveria construir um caminho coletivo de aprendizado, compromissos e mudanças de comportamento.
Paralelamente, organizou-se uma base operacional para o início das atividades do grupo. Alguns documentos como a Portaria Ministerial nº 1.968 de 25 de outubro de 200119, que trata da notificação compulsória pelos serviços de saúde, de maus tratos contra crianças e adolescentes, foi afixada em local visível para amparar a necessidade do registro e subsidiar a identificação dos casos


A Operacionalização das ações e a formatação dos registros

Esse processo evoluiu para o primeiro encontro do grupo, que ocorreu em 1º de Outubro de 2002, sendo iniciado com a apresentação de dados estatísticos de mortalidade por Causas Externas no Município e, especificamente, na Região de interesse. Foram apresentados os dados com as características dos grupos populacionais mais atingidos e discutidas as possibilidades concretas de evitar os agravos, basicamente retomando os conteúdos da oficina de 2001, citada no início desta narrativa. Em um segundo momento, foram estabelecidos e validados os objetivos do Grupo de Observadores. Por fim, foram explicitadas as expectativas, os desejos, feita avaliação do encontro e estabelecido um cronograma das reuniões/discussões subseqüentes do grupo, com datas, local, horário e tarefas a serem cumpridas.
Essa metodologia de registro teve duplo objetivo: por um lado o profissional ou agente comunitário de saúde poderia expressar genuinamente o grau de sua compreensão/interpretação do evento, e de outro, tratar-se-ia de um diagnóstico situacional, norteador para os condutores do processo, no sentido de se constituir em valioso insumo para a problematização, desconstrução e reconstrução dos saberes de cada um sobre esses agravos, o que ocorre, desde então, nas discussões quinzenais.
Considerando a necessidade de agrupar os dados levantados nos serviços, para melhor visualizar as realidades, a partir do registro/relato narrativo-aberto, surgiram os primeiros dados estatísticos formais construídos pelas equipes. Predominou uma enorme diversidade de variáveis e expressões que dificultou as comparações e a análise dos dados obtidos. Esse resultado despertou no próprio grupo a necessidade de uma padronização para efetivar uma linguagem comum que possibilitasse comparações entre os registros e, conseqüentemente, entre as populações da Região e da Cidade. Definiu-se então, num primeiro momento, quais seriam as informações imprescindíveis em todos os registros para que, posteriormente, pudessem ser agrupados. Embora se dispusesse de alguns modelos de formulários para registros, que foram fontes de inspiração como o do Ministério da Saúde, do Observatório das Emergências Hospitalares, Relatório Individual de Notificação de Acidentes e Violências (RINAV), entre outros, optou-se por construir um instrumento que atendesse às necessidades, fosse pensado e entendido pela e na realidade local, aumentando, com isso, o compromisso e adesão ao processo. O produto foi uma primeira versão de Ficha de Notificação Local na qual constava, além da identificação da vítima, o local do ocorrido, o tipo de agravo, seu desfecho e os profissionais envolvidos no atendimento. A singeleza do instrumento retratava o exato momento do grupo, tanto no sentido do seu nível de compreensão, como de sua capacidade de intervenção. Dessa forma um formulário de registro evoluiu, acompanhando o processo de maturação da compreensão do grupo. Atualmente, encontra-se na quinta versão.
Paralelamente, iniciou-se a construção de um banco de registros que forneceria uma base de dados informatizada, utilizando-se, para tal um software pelo qual se pudesse dialogar com os demais bancos existentes na Cidade. Como não se dispunha de um programador, buscou-se os recursos humanos disponíveis no próprio grupo. Um agente comunitário de um dos serviços de saúde da Região encarregou-se da tarefa, a partir de seus próprios conhecimentos e buscando apoio de outros colegas da Instituição.
Percorrer esse longo e detalhado caminho foi uma opção metodológica. O intuito não foi o de “inventar a roda”, mas sim de envolver o grupo na reflexão de suas próprias necessidades, limites e potencialidades e, dessa forma, empoderá-lo, na medida em que fosse sujeito de seu próprio processo. A autonomia seria um atributo fundamental dos sujeitos no enfrentamento local, e muitas vezes solitários, das situações. Nesse caso, novamente Freire foi inspiração, “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém [...] a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”14.
Por meio deste trabalho foi possível identificar ambientes de alto risco e grupos humanos mais vulneráveis, considerando a vulnerabilidade na perspectiva do risco social para adoecimento e morte. O grande ganho foi o rápido e fácil acesso às informações (descentralizadas nos serviços). Assim, o grupo passa a se sentir protagonista, na medida em que o conhecimento adquirido localmente pode ser utilizado no desencadeamento de ações. Observa-se que, do ponto de vista individual, situa-se como compromisso com a mudança, não só identificação, crítica à situação ou delegação de responsabilidades. Esse processo passa a ser entendido em sua complexidade, incluindo esforços que se constituem da necessidade de modificação de estruturas, ambientes (físico, social, tecnológico, político, econômico e organizacional), bem como atitudes e comportamentos relativos à morbidade e à promoção da saúde, no sentido de transformar a realidade desses eventos na comunidade. É preciso, portanto, mudar o olhar, transformar o agir dos indivíduos e grupos envolvidos, profissionais, serviços e comunidade.
Um segundo objetivo visou a qualificar o atendimento às vítimas de Causas Externas (acidentes e violências) na Região, com envolvimento progressivo de toda a equipe dos serviços de saúde. Na perspectiva do trabalho proposto no e pelo grupo tornou-se inconcebível a idéia de um levantamento estatístico desses agravos, pura e simplesmente. Consolidou-se, nesse sentido, uma visão intrínseca ao grupo de comprometimento, partindo-se do princípio de que por trás de cada informação gerada há uma vítima real ou em potencial. Esse princípio exigiu o desencadeamento de ações, seja de saúde, nos aspectos técnicos, ou, resultantes da articulação com atores de uma rede social de apoio.
O grupo passou por diversas etapas de compreensão e de vivências. Muitos momentos foram sofridos, especialmente no amparo a vítimas de violência, dada a complexidade das situações que se geraram tanto nas respostas das instituições parceiras, frustrando as expectativas do grupo, quanto nas decisões inusitadas que as vítimas tomavam durante o processo. Os “tempos” que as vitimas levavam para tomar determinadas decisões ou, até mesmo, o conteúdo das mesmas, foram motivo de grande sofrimento e decepções.
Do mesmo modo, por ser constituído somente por mulheres, o grupo, em vários momentos, identificou suas próprias dores ou tomou para si as dores das vítimas, dificultando a tomada de decisões objetivas para emergir das situações. Identificou-se como um dos momentos mais agudos e intensos a vivência, por parte de alguns membros, em se reconhecerem como vítimas ou algozes. Nesses momentos que, felizmente, se intercalavam entre os membros, de solidariedade entre os pares, a firmeza na condução do processo e a intensa parceria foram fundamentais para a superação, sem maiores seqüelas.
Sempre que se fez necessário, buscou-se aporte teórico temático, troca de experiências e apropriação de relatos de vivências e de outras experiências, convidando profissionais ou membros da comunidade para que se constituíssem em contribuição ativa ao momento do grupo.

Atividades preventivas e de promoção da saúde: mobilização e motivação

Atingidos esses dois primeiros objetivos, partiu-se para o planejamento e implementação de ações preventivas. A idéia foi a de propor a incorporação das temáticas relativas às Causas Externas às iniciativas já existentes, estimulando o compromisso cidadão com a proteção da vida, sem transtornar as atividades cotidianas dos serviços. Tratou-se, portanto, de uma proposta de não criar agendas específicas do Grupo de Observadores nas comunidades, o que se pensou, incrementar o fracionamento e, conseqüentemente, a fragilização das ações. Essa mesma estratégia deveria ser trabalhada junto às equipes, isto é, procurou-se agendar esse tema nas reuniões ordinárias, introduzir nos grupos de pacientes, já em funcionamento, nas programações de datas comemorativas e assim por diante. A criatividade nessa fase foi surpreendente. Exemplificando, um grupo de mães de crianças pequenas (Prá-nenê, Prá-crescer) teria pautado os acidentes infantis mais freqüentes naquele território. Ou no grupo do Pré-natal (nessa Região temos grande numero de gestantes adolescentes), além dos assuntos tradicionais, seria introduzido o tema do vínculo, da proteção, preparando a família para a nova realidade. Nos grupos de pais e mães, introduziu-se o tema da segurança das crianças no caminho da escola, ou dos idosos, sobre os abusos específicos, e assim por diante. Utilizaram-se como base para discussão os dados epidemiológicos locais e, sobretudo, as narrativas construídas pelos componentes do grupo. Essa abordagem propiciava maior sensibilização, pois se tratava de evidenciar e analisar situações conhecidas e corriqueiras na comunidade, desnaturalizando-as e desafiando os cuidadores a um olhar mais comprometido com a proteção. Em contrapartida, com as discussões e contribuições dos usuários, ampliava-se a compreensão das formas de expressões dos eventos nas comunidades, por parte dos profissionais de saúde, retroalimentado-os. Detectou-se, por exemplo, a expressão específica da vulnerabilidade das mulheres frente às violências e a sua relação com sua autonomia econômica. Diante dessa situação pontual, os serviços de saúde desencadearam uma intensa participação nas iniciativas que visassem à geração de renda entre as mulheres, com vistas a empoderá-las, aumentando sua autonomia. O resultado, em alguns casos, foi surpreendente.
Assim investiu-se no envolvimento das comunidades locais, numa tentativa de multiplicar o que se denominou de “Observadores Comunitários”. Esse objetivo considerou a participação da comunidade como fundamental na construção de ambientes seguros e protetores, a partir do conhecimento, ação e compromisso em fazer a sua parte e denunciar as situações concretas e as vulnerabilidades locais. Apostou-se na possibilidade de estimular o desenvolvimento da capacidade de solidariedade, de indignação, de vigilância, de mudança, de pressão por políticas públicas defensoras e não usurpadoras da vida. A comunidade, desta forma, assumiria seu papel na reprodução de idéias e condutas e, por fim, na conquista de corações e mentes para a transformação, o que se constituiria em outras possibilidades não excludentes de enfrentamento.
Nesse sentido, a identificação de parceiros na comunidade, os chamados “Protetores da Vida”, fez parte dos objetivos operacionais. Os protetores foram definidos como locais, instituições, iniciativas coletivas ou pessoais, governamentais ou não, que realizassem ações como: identificação de casos, suspeitos ou confirmados, de agravos por Causas Externas; acolhessem indivíduos em situações desses agravos; atendessem e/ou encaminhassem vítimas desses agravos; promovessem atividades de Proteção à Vida; promovessem a intersetorialidade nessas ações. Esse objetivo teve evolução bastante limitada, evidenciando a cultura da delegação do dever de proteção às autoridades e o papel imobilizante da queixa.

“Monumento às vidas perdidas”: a apresentação dos resultados à comunidade

Os resultados obtidos com esse trabalho foram apresentados em eventos temáticos e em reuniões comunitárias, em escolas, além de atividades direcionadas especificamente aos trabalhadores de saúde.
Quanto à metodologia de exposição dos dados, elegeram-se diferentes técnicas, dependendo do público a que se direcionavam. Nos eventos comunitários o desafio foi maior. Tratou-se da necessidade de transformar dados técnicos e estatísticos em linguagem acessível e atrativa às diferentes faixas etárias, inclusive. A criatividade do grupo e o conhecimento da cultura local foi fator determinante para o êxito alcançado nessas ocasiões. Desenvolveram-se peças de teatro; representação por meio de recortes em papelão, constituindo um “monumento às vidas perdidas”; cartazes, letras de musica de hip-hop com interpretação de bandas locais; bancas em feiras comunitárias; confecção de “kits” contendo materiais de divulgação de dados e dicas de proteção; camisetas para os componentes do grupo, entre outros. Esse material foi integralmente elaborado pelo grupo, pela comunidade e ou pelas vítimas que foram atendidas e que se engajaram no processo. Não houve destinação de recursos para a realização dessas atividades, o que evidencia o engajamento de ambas as partes no processo.
Considera-se que as iniciativas desses eventos sugerem a aquisição de autonomia do grupo em criar alternativas próprias e desenvolver esforços de articulação para iniciativas coletivas.
Por fim, consolidou-se a idéia de que um grupo dessa natureza não se configura em um “programa” com começo, meio e fim. Trata-se de uma caminhada coletiva que produz efeitos em cada uma das pessoas envolvidas, questionando valores, refazendo conceitos e, no coletivo, por meio de iniciativas organizadas. Não existe desfecho, trata-se de um processo cuja finalidade é a própria construção das relações interpessoais e profissionais mais qualificadas a partir de convivências mais ricas e solidárias visando à proteção, sobretudo dos mais vulneráveis.
Atualmente o grupo segue trabalhando coletivamente, estabelecendo atividades e metas. Avaliou-se que, os serviços da região incorporaram em suas ações de saúde o registro, os encaminhamentos e um conjunto de atividades preventivas, ainda que de forma heterogênea e parcial. Ou seja, nem todos trabalham no mesmo ritmo e com as mesmas prioridades.
Acredita-se que, entre as conquistas do grupo, uma das mais significativas foi a desnaturalização dos Agravos por Causas Externas, os quais passaram a ser considerados pelos profissionais de saúde e membros da comunidade como eventos previsíveis e não obras do acaso. Portanto, nessa perspectiva, se introduzem possibilidades de prevenção ou mesmo de erradicação dos mesmos, na comunidade. Além disso, colocam-se esses agravos na perspectiva para além das lesões físicas necessitando, portanto, de uma intervenção diferenciada e que dê conta de interferir nas causas, na raiz do problema.
Essa situação desnuda a insuficiência das ações específicas de saúde, colocando, claramente, para os profissionais, o imperativo de participar ou protagonizar ações interdisciplinares e transetoriais, sob pena de amargar fracassos. A ausência de dados anteriores que nos possibilitem comparações acerca da morbidade por Causas Externas nessa Região não permite uma análise comparativa. Existe, no entanto, uma avaliação a partir das observações/impressões dos trabalhadores e trabalhadoras que referem que em algumas comunidades, observa-se diminuição de alguns eventos e uma maior sensibilização das equipes na identificação e no atendimento qualificado das vítimas.
Outro aspecto relevante é que novos membros foram se agregando ao grupo, ao longo do tempo, e grande parte dos profissionais que realizam visitas domiciliares incorporaram, progressivamente, um novo olhar sobre o ambiente doméstico, peridoméstico, escolar ou comunitário, seja no aspecto estrito da prevenção de acidentes, seja nas relações familiares, possibilitando uma leitura precoce que induza uma intervenção preventiva. Outro ganho foi a progressiva identificação dos atores e da rede de proteção formal e informal da Região e da Cidade e a intensa interação com as mesmas na construção de alternativas. Chegou-se ao estágio em que algumas comunidades mantêm, hoje, as “micro-redes” em pleno funcionamento.
Particularmente na região da Lomba do Pinheiro, existe um Grupo de Planejamento Local (GPL) ou “Lomba do Futuro”, coordenado pela Secretaria Municipal de Planejamento, onde foi possível, com a participação direta de componentes do grupo, agregar, nas discussões, elementos da estratégia promocional em saúde e qualidade de vida. Essa condição gerou um fórum multidisciplinar e comunitário que elabora propostas de intervenção no meio antrópico e natural da referida macrorregião.


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GERCI SALETE RODRIGUES. CASTIGO, PENALIDADE OU OBRA DO ACASO? a morbidade por Causas Externas na atenção básica de Porto Alegre. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/mai). [Citado em 20/07/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/castigo-penalidade-ou-obra-do-acaso-a-morbidade-por-causas-externas-na-atencao-basica-de-porto-alegre/711?id=711

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