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Artigos

0390/2024 - Comportamento sexual e fatores associados em idosos brasileiros: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2019
Sexual behavior and related variables in elderly Brazilians: National Health Survey data, 2019

Autor:

• Heloísa Nunes Zardeto - Zardeto, H.N - <helozardeto@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1852-7225

Coautor(es):

• Ione Jayce Ceola Schneider - Schneider, I.J.C - <ione.schneider@ufsc.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6339-7832

• João Vitor Rodrigues - Rodrigues, J.V - <med.joaorodrigues@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9451-3648

• Maruí Weber Corseuil Giehl - Giehl, M.W.C - <mwcorseuil@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4460-3116



Resumo:

Objetivou-se investigar o comportamento sexual e o uso de preservativos e sua associação com as características socioeconômicas, demográficas e de saúde em idosos brasileiros. Trata-se de um estudo transversal, com dados provenientes da Pesquisa Nacional Saúde, 2019. O desfecho considerado foi a prática de relação sexual desprotegida. As associações foram analisadas por meio de regressão de Poisson. A prevalência de relações sexuais desprotegidas foi de 88%. Idosos de 70-79 anos e com percepção negativa de sua própria saúde apresentaram maiores prevalências de prática de relação sexual desprotegida (RP:1,04 IC95%:1,01–1,06; RP:1,04 IC95%:1,01–1,07, respectivamente). Em contraste, houve uma associação inversa entre estado civil e o desfecho referido: idosos divorciados/solteiros e viúvos apresentaram menores prevalências de relações sexuais desprotegidas (RP:0,80 IC95%:0,76–0,83; RP:0,78 IC95%: 0,73-0,84, respectivamente), assim como aqueles com maior renda (RP:0,97 IC95%:0,95–0,99; RP:0,95 IC95%: 0,91-0,99, respectivamente). A sexualidade e afetividade estão intimamente relacionadas à qualidade de vida, o que torna essencial expandir o cuidado com o idoso para incluir também práticas de prevenção de doenças e promoção da saúde relacionadas a hábitos sexuais.

Palavras-chave:

Idoso. Comportamento sexual de risco. Inquéritos Epidemiológicos. Integralidade em saúde.

Abstract:

The aim of this study was to investigate the relationship between sexual behavior, condom use, and socioeconomic, demographic, and health characteristics in elderly Brazilians. This is a cross-sectional study, utilizing datathe National Health Survey (2019). The outcome of interest was unprotected sexual intercourse. The associations were analyzed using Poisson regression. The prevalence of unprotected sexual intercourse was 88%. The prevalence of unprotected sexual intercourse was higher among elderly individuals aged 70-79 and those with a negative perception of their own health (PR: 1.04, 95% CI: 1.01-1.06 and PR: 1.04, 95% CI: 1.01-1.07, respectively). In contrast, an inverse association was observed between marital status and the reported outcome. Individuals who were divorced, single, or widowed exhibited a lower prevalence of unprotected sexual intercourse (PR: 0.80, 95% CI: 0.76-0.83; PR: 0.78, 95% CI: These findings were also observed among those with a higher income (PR: 0.97, 95% CI: 0.95-0.99; PR: 0.95, 95% CI: 0.91-0.99, respectively). The relationship between sexuality and affectivity and quality of life is such that it is essential to expand care for the elderly to include disease prevention and health promotion practices related to sexual habits.

Keywords:

Aged. Unsafe sex. Health Surveys. Integrality in Health.

Conteúdo:

Introdução
O processo de envelhecimento envolve diversas mudanças fisiológicas, anatômicas e psicológicas que podem ser analisadas como ganhos ou perdas, a depender da individualidade da pessoa que envelhece1,2. Porém, trata-se de um processo natural, universal e irreversível, o qual caracteriza o último estágio do ciclo da vida. Logo, nota-se que muitas das problemáticas vivenciadas por esse grupo se relacionam com despersonalização e esquecimento do ser, outrora ativo e útil à sociedade, visto então como velho, inútil, debilitado1,2,3.
A despersonalização acarreta possíveis implicações negativas, especialmente para a vida sexual saudável na população idosa. A sexualidade se manifesta por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos e relacionamentos, embora nem todos sejam sempre expressos ou vivenciadas. Além disso, uma complexa interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, e espirituais molda a sexualidade humana4.
Assim, apesar de a sexualidade estar intrínseca ao ser humano, durante todo seu crescimento, desenvolvimento e envelhecimento, costuma-se veicular a qualidade de vida na terceira idade, restritamente, à boa saúde física e mental3. Esqueçendo-se das experiências afetivas e vínculos sociais que também são importantes para a manutenção da individualidade, autonomia e melhora da autoestima desse indivíduo5. Assim, a desvalorização social da sexualidade do idoso, bem como a estigmatização dos seus relacionamentos afetivos e sexuais podem acarretar em grande perda de sua qualidade de vida6,7.
Tal dessexualização da pessoa idosa repercute, não somente, em piora da autoestima, nas relações interpessoais, na autoimagem do próprio idoso e em sua saúde mental, como também descaracteriza o ser humano em sua integralidade6. Surge assim um ciclo vicioso de tabu e estigma em torno da sexualidade dos idosos, um fenômeno complexo que reflete normas sociais arraigadas e percepções sobre envelhecimento e intimidade. A persistência desse tabu decorre de valores culturais tradicionais que associam a sexualidade à juventude e à reprodução, juntamente com crenças pessoais sobre o papel e as expectativas das pessoas idosas na sociedade. Os constrangimentos surgem da tendência da sociedade em julgar comportamentos que desafiam normas convencionais, criando um ambiente onde a expressão aberta da sexualidade no envelhecimento é frequentemente desencorajada ou considerada inapropriada. Isso resulta na subvalorização da importância de uma expressão saudável da sexualidade na terceira idade, com falta de ações voltadas para promover uma vida sexual saudável e prevenir doenças relacionadas à atividade sexual2,5–10.
Ademais, a negligência frente ao comportamento sexual em pessoas mais velhas também se reflete nas políticas públicas de saúde. Ao passo que são raras as campanhas ou pesquisas nacionais que investiguem a atividade sexual, incentivem o uso de preservativos ou estimem a prevalência de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) na população acima de 60 anos 8,11.
Como resultado, há um aumento nos casos registrados de vírus da imunodeficiência humana (em inglês, HIV), bem como da sífilis12, ambas ISTs de notificação compulsória no país, entre a população acima de 60 anos13,14. No entanto, existem poucos estudos epidemiológicos que investigam esta temática na população idosa, em especial registros epidemiológicos de outras IST sem notificação, a exemplo da gonorreia, clamídia e herpes. Considerando que o não uso do preservativo é um importante fator de risco para essas infecções15,16, é possível supor que os números de várias ISTs estejam aumentando junto ao aumento da incidência de HIV e sífilis, de maneira silenciosa e desamparada.
Diante do exposto, compreende-se que o preconceito e a negligência que permeiam a sexualidade da pessoa idosa repercutem em grande vulnerabilidade e maior risco de exposição às ISTs. Assim, em virtude da necessidade de se ampliar o conhecimento acerca do comportamento sexual do idoso, o presente estudo tem como objetivo investigar a prática de relações sexuais e o uso de preservativos e sua associação com as características socioeconômicas, demográficas e de saúde em idosos brasileiros.

Metodologia
Delineamento do estudo e fonte de dados
Tratou-se de um estudo observacional do tipo transversal, conforme recomendações do protocolo STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology). Foram utilizados dados da segunda edição da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. A PNS 2019 foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), de acordo com o Parecer no 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019.
A PNS 2019 trata-se de um inquérito de base populacional com indivíduos com 15 anos ou mais de idade, residentes em domicílios particulares permanentes no Brasil17,18. Foram excluídos da amostra da pesquisa, a população localizada nos setores censitários especiais, tais quais: aglomerados subnormais; quartéis, bases militares etc.; alojamento, acampamentos etc.; embarcações, barcos, navios etc.; aldeia indígena; penitenciárias, colônias penais, presídios, cadeias etc.; asilos, orfanatos, conventos, hospitais etc.; e assentamentos rurais17,18.
Para o presente estudo utilizou-se os dados da população com 60 anos ou mais no momento da entrevista, de ambos os sexos, que responderam aos questionários individuais, bem como aos módulos correspondentes às Doenças Transmissíveis e Atividade Sexual.

Procedimento de amostragem e coleta de dados
A amostra da PNS 2019 foi constituída por conglomerados em três estágios de seleção: (1) seleção das unidades primárias de amostras (UPA) constituídas pelos setores censitários ou conjuntos de setores; (2) seleção dos domicílios em cada setor censitário sorteado; (3) e por fim, no terceiro estágio, em cada domicílio foi sorteado, por amostragem aleatória simples, um morador com idade igual ou superior a 15 anos de idade17,18.
O total amostrado de UPAs foi 8.036; o de domicílios foi 108.525, sendo a amostra final de 94.114 com entrevistas realizadas, a taxa de não resposta foi de 6,4%18. No presente estudo, foram utilizadas apenas as informações dos indivíduos de 60 anos ou mais, e que responderam ao questionário individual para o morador selecionado, assim, a amostra final deste estudo foi de 22.728 indivíduos17,18. Mais informações sobre a metodologia da PNS 2019 podem ser acessadas em publicação prévia18.

Variáveis do estudo
O desfecho considerado no presente estudo foi a prática de relação sexual desprotegida. O desfecho foi mensurado por meio da seguinte pergunta: “Nos últimos doze meses teve relações sexuais?” Para tanto, foram consideradas as repostas “sim” e “não”. Para aqueles que responderam sim, prosseguiu-se com a pergunta “Nos últimos doze meses, nas relações sexuais que teve, com que frequência usou camisinha?”. Somente para aqueles que responderam a alternativa “sempre” foi utilizada a categoria prática de relação sexual protegida; já para aqueles que reponderam “às vezes” e “nenhuma vez” classificou-se como prática de relação sexual desprotegida.
As variáveis exploratórias incluídas foram: sexo (masculino e feminino); faixa etária (60 a 69 anos, 70 a 79 anos, 80 anos ou mais); cor ou raça (branca, preta/parda), na categorização dessa variável, foram excluídas as categorias amarelo e indígena, pois representaram menos que 1,5% da amostra; escolaridade (sem instrução/ensino fundamental incompleto, fundamental completo/médio incompleto, médio completo/superior incompleto, superior completo); renda per capita (até um salário mínimo, entre um e três salários mínimos, acima de três salários mínimos); estado civil (casado, divorciado/solteiro, viúvo).
Além disso, foram incluídas duas variáveis tangentes à saúde do entrevistado: percepção de saúde (muito boa/boa, regular/ruim/muito ruim) e multimorbidade (uma ou nenhuma doença crônica não transmissível, duas ou mais doenças). Quanto ao motivo do não uso do preservativo nas relações sexuais, foram utilizadas as seguintes categorias de respostas: confia no parceiro; não gosta de ter relações com camisinha/recusa do parceiro em usar; não deu tempo.

Análises estatísticas
As análises foram realizadas no programa estatístico Stata SE versão 14.0, utilizando- se o módulo survey para a análise de dados de amostra complexa. Foi realizada uma descrição da amostra por meio de frequências absolutas e relativas. Também foram estimadas as prevalências e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) da prática de relação sexual protegida e desprotegida segundo as variáveis de exposição (teste qui-quadrado). Por fim, as Razões de Prevalência (RP) brutas e ajustadas e seus respectivos Intervalos de Confiança de 95% foram calculados por meio de regressão de Poisson19,20. Para as análises ajustadas, as variáveis foram incluídas por níveis, considerando um modelo hierárquico21 com sexo, faixa-etária e cor da pele no primeiro nível, estado civil, escolaridade e renda no segundo nível; e percepção de saúde e multimorbidade no terceiro nível. Foi considerado um nível de significância estatística de 5%. Todas as variáveis foram consideradas no mesmo nível de determinação, sendo a seleção realizada pelo método backward elimination. Assim, todas as variáveis foram incluídas no modelo, sendo excluídas aquelas com maior valor de p, este ajuste foi realizado ate? que nenhuma variável com valor de p > 0,20 permanecesse no modelo. As variáveis com valor de p > 0,20 foram descritas na Tabela 4 com informação de medidas de efeitos, IC95% e valor de p do modelo contendo a variável, antes de ela ser excluída. Todas as análises levaram em consideração o efeito do desenho do estudo e os pesos amostrais.

Resultados
A amostra analítica do presente estudo foi composta por 22.728 indivíduos com 60 anos ou mais no momento da entrevista. A amostra foi composta em sua maioria (56,68%) por mulheres, e mais da metade dos idosos se encontravam na faixa etária entre 60 e 69 anos (56,30%), eram brancos (51,45%), casados (50,65%) e com nível de escolaridade fundamental incompleto ou sem instrução (63,27%). Além disso, cerca de 43% dos idosos relataram renda per capita entre 1 e 3 salários mínimos. Quanto às características de saúde, mais da metade dos idosos (52,92%) reportaram percepção de saúde regular/ruim/muito ruim, bem como, mais de 57% relatou a presença de ao menos duas comorbidades. Tais características amostrais estão detalhadas na Tabela 1.
Quanto às características relacionadas à relação sexual nos últimos doze meses, constatou-se que 20.876 idosos responderam à esta pergunta, sendo que aproximadamente 60% dos entrevistados alegaram não ter tido relações. Dentre aqueles que responderam sim para a pergunta anterior, cerca de 88% disseram não utilizar preservativo, seja na totalidade das relações, seja de maneira esporádica. Tangente aos motivos encontrados para o uso irregular da camisinha, majoritariamente (85,00%) das respostas se concentraram na confiança para com o parceiro (Tabela 2).
Quanto às prevalências do desfecho, observou-se que 88,30% (IC95%: 87,11% - 89,40%) dos idosos encontravam-se na categoria de prática de relação sexual desprotegida. Na Tabela 3 são apresentadas as prevalências de prática de relação sexual desprotegida de acordo com as categorias das variáveis sociodemográficas e condições de saúde. Observou-se maior prevalência desse desfecho, com diferença significativa entre as categorias, naqueles idosos que eram casados (93,39%), com pior percepção de saúde (90,42%) e que apresentaram quadro de multimorbidade (89,98%).
Em relação às análises brutas e ajustadas entre a prática de relação sexual desprotegida com as características sociodemográficas e de saúde, nas análises brutas associaram-se a este desfecho, a faixa etária, estado civil, renda per capita, percepção de saúde e multimorbidade. Após análise ajustada, observou-se que que idosos com idade de 70 a 79 anos apresentaram prevalência 4% maior (RP: 1,04; IC95% 1,01 – 1,07) de prática de relação sexual desprotegida quando comparados aos idosos mais jovens. Além disso, o desfecho também foi mais prevalente em idosos com pior percepção de saúde (RP: 1,04; IC95% 1,00 – 1,07) (Tabela 4).
Por outro lado, idosos que eram solteiros ou divorciados e aqueles que eram viúvos apresentaram uma prevalência menor deste desfecho quando comparados aos idosos casados (RP: 0,80; IC95% 0,76 - 0,83 e RP: 0,78; IC95% 0,73 – 0,84, respectivamente). Ainda, idosos classificados nos maiores tercis de renda tiveram uma menor probabilidade de não uso de preservativo durante a relação sexual (RP: 0,97; IC95% 0,95 – 0,99 e RP: 0,95; IC95% 0,91 – 0,99, respectivamente) (Tabela 4).

Discussão
Os resultados encontrados demostraram que 2 a cada 5 idosos brasileiros são sexualmente ativos, e mais de 80% desses idosos relataram a prática de relações sexuais desprotegidas. Em relação aos fatores associados a esse desfecho, observou-se que a faixa etária 70 a 79 anos e uma percepção negativa da própria saúde foram associadas a uma maior prevalência de relações sexuais desprotegidas. Por outro lado, idosos solteiros, divorciados, viúvos, e aqueles de maior renda apresentaram menores prevalências do desfecho.
Em torno de 41% dos idosos do presente estudo relataram ter praticado relação sexual nos últimos 12 meses, entendida como ato sexual/penetração. Tal prevalência mostrou-se inferior ao encontrado por outras pesquisas22,23. Na pesquisa conduzida por Skalacka23 com idosos poloneses, os autores verificaram que 69% da amostra investigada reportou comportamento sexual ativo, sendo que o conceito de atividade sexual abrangeu, também, abraços e beijos. Contudo, quando os autores consideraram a atividade sexual com penetração e masturbação, verificaram que 42% dos idosos foram classificados ativos sexualmente, dado semelhante ao encontrado no presente estudo. Já na revisão realizada por Morton22 com estudos do sistema de saúde nos Estados Unidos, a atividade sexual esteve presente em 53% dos idosos entre 65 e 74 anos. As divergências evidenciadas nas prevalências encontradas neste estudo quando comparadas com as pesquisas acimas citadas podem ser atribuídas às diferenças de critérios metodológicos para o desfecho em questão, bem como ao comportamento decrescente de atividade sexual com o aumento da idade – também constatado na literatura22.
Salienta-se que a literatura sobre a temática da presente pesquisa é escassa, em especial no contexto brasileiro, o que torna evidente que a esfera da sexualidade da pessoa idosa é ignorada e/ou ainda tratada com certo tabu2,8,24,25. Tal visão preconceituosa que atrela a vida sexual ativa às pessoas jovens, pode ser observada tanto na saúde pública através da Política Nacional do Idoso26 (PNI 1994), Estatuto do Idoso27 (2003) e Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa28 (PNSPI 2006), quanto na própria população independente de distinção etária. Todos os documentos oficiais citados carecem de temáticas ou disposições que envolvam a sexualidade da pessoa idosa, bem como sua abordagem e manejo por meio da equipe de saúde. Logo, percebe-se uma consagração histórica e perpetuação do ideal errático, o qual condiciona o idoso à assexualidade e à ausência de libido, atrelados ao processo “natural” de envelhecimento.
Nessa pesquisa, quando se investigou a prática de relações sexuais, bem como o uso de preservativo nas relações sexuais entre as pessoas idosas, observou-se que tal hábito não é comum nesta população, sendo que menos de 12% dos indivíduos relataram utilizar sempre este método preventivo. Dado semelhante foi reportado na Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas da População Brasileira29 (PCAP 2013), a qual demonstrou que somente 10,7% das pessoas sexualmente ativas com idade entre 50 a 64 anos confirmaram o uso de preservativo8. Sabe-se que o sexo desprotegido é o principal fator de risco para IST, e a partir da literatura demonstra-se tendência de redução da frequência de uso de preservativos com o aumento da idade. Tal condição corrobora com demais pesquisas que abordam o quanto o comportamento sexual em idosos ainda é um tabu2,22, e consequentemente, condicionam o idoso a um estado de vulnerabilidade.
Quanto aos fatores associados a prática de relação sexual desprotegida, constatou-se que idosos de 70 a 79 anos apresentaram uma maior prevalência desta prática em comparação aos mais jovens. Isso pode ser atribuído à inexistência de políticas especificas de saúde na terceira idade com temática relacionada ao comportamento sexual. A ausência de políticas integrativas está ligada ao desconhecimento do perfil epidemiológico real frente as ISTs nessa população, seja devido à limitação etária nos inquéritos populacionais, seja em decorrência da subnotificação e subdiagnóstico dos casos.
É importante discutir que a prática de relação sexual desprotegida por parte da população idosa pode ser explicada, em parte, em virtude do direcionamento de políticas de saúde pública relacionadas a temática de “sexo seguro e protegido” somente ao público jovem. Esse fato se comprova ao identificar o público alvo dos questionários nacionais realizados pelo Ministério da Saúde, tal qual a PCAP 201329, que visou investigar a cobertura de testagem para HIV, bem como o uso e a frequência de uso de preservativos onde a idade da população alvo dos questionários é limitada até 64 anos29. Essa limitação generalizada nas pesquisas populacionais corrobora à marginalização das práticas sexuais ainda ativas na população idosa, deflagra maior desinformação entre o grupo e mascara a sua abordagem integral no atendimento à saúde.
Além do exposto, há a perpetuação do estigma social/tabu, que pressupõe que os indivíduos idosos não possuem uma vida sexual ativa, logo, não estão em risco de contrair quaisquer ISTs. Essa percepção foi confirmada por uma pesquisa que objetivou avaliar a reação de jovens diante da hipótese de sexualidade em diferentes faixas etárias. Foi observada uma maior repulsa/aversão diante à sugestão de atividade sexual entre pessoas com 70-75 anos, quando comparado à 30-35 anos. Além disso, demonstrou-se maior desconforto e dificuldade de aceitação e normalização do comportamento sexual entre indivíduos nos grupos etários após o final da idade adulta30.
Neste estudo, indivíduos que relataram uma percepção negativa de sua própria saúde apresentaram uma prevalência 3% maior de prática de relação sexual desprotegida. Apesar da escassa literatura sobre dessa associação, infere-se que fatores relacionados a pior percepção de saúde, tais como alterações fisiológicas decorrentes do envelhecimento, disfunções eréteis e repercussões neuronais/sensitivas de doenças crônicas (como no caso do Diabetes Melitus) podem influenciar na escolha pelo não uso do preservativo, devido à redução na sensibilidade que esse método já acarreta. Portanto, a combinação de fatores que afetam a sensação de prazer pelo idoso tenderia a incentivar a prática de atividade sexual desprotegida31.
Por outro lado, idosos que eram solteiros, divorciados ou viúvos apresentaram menor prevalência do desfecho. Esse cenário pode ser atribuído ao ideal popular conservador, que associa o uso de preservativos à infidelidade ou promiscuidade9,32,33. Portanto, há receio da reação do parceiro fixo diante da sugestão de uso do preservativo. Além disso, outras justificativas apresentadas pela população idosa para o não uso de preservativo com parceiros fixos é o fato de que mulheres na menopausa não correm risco de gravidez indesejada9,32,33.
Essa ideia reforça a maior vulnerabilidade desses indivíduos às doenças atreladas ao comportamento sexual de risco, em virtude do desconhecimento do método preventivo como fator de proteção às IST. Estudos indicam que o idoso geralmente tem baixo conhecimento e percepção de risco em relação às ISTs, com muitos subestimando seu próprio risco, adotando comportamentos sexuais de risco e evitando buscar informações de saúde devido a estereótipos e preocupações com conflito ou rejeição34,35.
Devido a essas questões, a literatura demonstra um aumento da incidência de ISTs em indivíduos de 50 anos ou mais, sendo a relação sexual o modo mais comum de transmissão. Isso indica que este grupo apresenta maior frequência de comportamentos sexuais de risco, como relações sexuais sem o uso de preservativos9,36.
Em relação à renda, observou-se que idosos com maior renda apresentaram menor prevalência de prática de relação sexual desprotegida, resultado este que está em consonância com a literatura36. É consenso que um maior poder aquisitivo está relacionado a melhores condições de vida, influenciando os comportamentos de saúde e o acesso a serviços de saúde. Portanto, é plausível que idosos com melhores condições econômicas adotem comportamentos mais saudáveis, incluindo a prática de relações sexuais protegidas37.
Quando foram investigados os motivos mencionados pelos idosos da presente pesquisa relacionados ao não uso do preservativo, observou-se que o motivo majoritário relatado envolveu a confiança no parceiro. Fato esse que interpõe-se às maiores prevalências de atividade sexual nos idosos casados. Isso vai de encontro aos motivos elencados pela PCAP 201329 para o não uso do preservativo: despreocupação com gravidez indesejada; dificuldades relacionadas ao manuseio da camisinha; manutenção da ereção entre a colocação e a continuidade do ato sexual8,24; fidelidade conjugal e confiança no parceiro8,32,38.
Os principais pontos fortes deste estudo incluem uma amostra de base populacional, representativa dos idosos brasileiros. As perguntas utilizadas para investigar o comportamento sexual estão alinhadas com as outras pesquisas nesta temática, utilizando um período de referência dos últimos 12 meses. No entanto, algumas limitações devem ser consideradas na interpretação dos resultados. Primeiramente, o desenho de estudo utilizado limita a identificação de um nexo de causalidade entre as variáveis exploratórias e o desfecho investigado, mas indica a magnitude das associações, abrindo espaço para novas abordagens na temática de estudo. Além disso, o uso de medidas autorreferidas para o comportamento sexual e das condições de saúde pode ocasionar uma superestimação da prevalência de tais variáveis.

Conclusão
Os resultados deste estudo demonstraram que uns percentuais significativos dos idosos (40,76%) eram sexualmente ativos, mas a grande maioria relatou a prática de relações sexuais desprotegidas. Tal fato ressalta a importância de pesquisas que abordem a sexualidade no envelhecimento, visto que permitem inaugurar espaços para essa discussão. Essa abordagem pode ser incorporada às políticas públicas de saúde com foco específico nessa população, e que tenham o objetivo de promover a educação sobre práticas adequadas de prevenção de doenças e promoção da saúde sexual e afetiva entre os idosos por profissionais de saúde. Uma vez que, com o prolongamento da atividade sexual em pessoas longevas, também aumenta a vulnerabilidade destas à ISTs e a comportamentos de risco. Além disso, é reconhecido que relacionamentos interpessoais, sejam eles sexuais ou afetivos, estão intimamente relacionados a uma melhor qualidade de vida, aumento da autoestima e manutenção da dignidade do ser humano. Portanto, evidencia-se a importância de ampliar o cuidado com os idosos, a fim de que sejam caracterizadas as nuances de comportamento sexual em uma visão, de fato, integrada desse indivíduo.

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Zardeto, H.N, Schneider, I.J.C, Rodrigues, J.V, Giehl, M.W.C. Comportamento sexual e fatores associados em idosos brasileiros: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2019. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em 15/01/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/comportamento-sexual-e-fatores-associados-em-idosos-brasileiros-resultados-da-pesquisa-nacional-de-saude-2019/19438?id=19438&id=19438

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