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0336/2006 - Conexões entre o federalismo fiscal e financiamento da política de saúde no Brasil
Conections between the fiscal federalism and the financing of the Brazilian health policy

Autor:

• Luciana Dias de Lima - Lima, L.D - Rio de Janeiro - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz - <luciana@ensp.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0640-8387


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

As expressivas desigualdades da sociedade brasileira e o contexto de escassez de recursos financeiros para o setor da saúde, associados às características estruturais do federalismo fiscal e ao modelo predominante das transferências do SUS, influenciam a negociação política e implantação de alternativas de financiamento federal não atreladas diretamente à oferta e produção de ações e serviços de saúde nos estados e municípios. Observa-se que a política de saúde, a partir da segunda metade da década de 1990, vem desenvolvendo mecanismos próprios que, neste contexto específico, tendem a acomodar interesses diversos e conflitos federativos gerados por fatores estruturais e pelas regras institucionais. Porém, a falta de um planejamento integrado entre os critérios que regem a redistribuição dos recursos para o financiamento do Sistema Único de Saúde e o sistema de partilha tributário da federação brasileira acaba por reforçar determinados padrões de assimetria encontrados e gerar novos desequilíbrios, dificultando a compensação das desigualdades na capacidade de gasto público em saúde das esferas subnacionais.
Palavras-chave: federalismo fiscal; financiamento da saúde; política de saúde

Abstract:

Abstract: Important inequalities of the Brazilian society in a context of scarce financial resources for the health sector, associated with the structural characteristics of the fiscal federalism and to the prevailing model of the Unified Health System (SUS) transfers, influence the political negotiation and the implementation of federal financing alternatives which are not directly linked to the supply and production of health actions and services by states and municipalities. We observe that the health policy, as of the second half of the nineties, has developed its own mechanisms that, in the above mentioned context, tend to accommodate different interests and federative conflicts generated by structural factors and by institutional rules. Nonetheless, the lack of an integrated planning scheme that bring together the criteria that rule resource redistribution for the financing of the Unified Health System and the fiscal sharing system of the Brazilian federation reinforces certain asymmetry patterns and generates new imbalances, making it difficult to compensate inequalities in public health spending capabilities of the subnational spheres.
Key words: fiscal federalism; health financing; health policy

Conteúdo:

Introdução
O tema federalismo, relações intergovernamentais e políticas públicas vêm se tornando objeto de interesse crescente da produção científica brasileira e internacional. Em que pese a ampliação das publicações sobre o tema, em grande parte, os trabalhos apoiam-se em diferentes enfoques, que tratam de maneira diversa o papel das instituições na vida política e tendem a separar as variáveis econômico-financeiras das variáveis políticas. Não há, ainda, uma produção nacional consistente que busque relacionar determinados arranjos institucionais do Estado com políticas específicas. Reconhecendo as lacunas existentes, este artigo visa contribuir para a discussão das conexões entre o federalismo e a política de saúde no Brasil, a partir do referencial teórico-metodológico proposto por Gagnon e Souza C. .
Gagnon 1 considera que o sucesso dos sistemas federativos deve ser medido por sua capacidade de regular conflitos, já que suas instituições, por serem sensíveis à diversidade, atuam no sentido de amenizar as tensões da sociedade. Para este autor, é necessário refletir sobre as relações entre as regras institucionais e os conflitos intergovernamentais, a forma pela qual as esferas de governo se articulam e negociam suas divergências e quais os resultados deste processo de negociação.
Na mesma linha, Souza C. 2 adverte que as investigações sobre o comportamento dos atores federativos não podem prescindir da tarefa de desvendar as “regras do jogo”, que intervém no comportamento político dos atores. Ou seja, descobrir os constrangimentos impostos aos atores em suas escolhas. Os aspectos institucionais são importantes porque determinam a capacidade de atuação dos agentes políticos, condicionam sua percepção acerca das alternativas realistas da política e incidem em suas opções estratégicas e preferências.
Sob este enfoque, propõe-se identificar alguns limites e constrangimentos institucionais impostos ao financiamento público da saúde no Brasil. Uma primeira ordem de fatores diz respeito à forma como se estrutura a divisão das competências tributárias (que nível de governo administra e arrecada cada tributo) e os dispositivos que determinam a partilha intergovernamental de recursos no federalismo fiscal brasileiro. A segunda refere-se ao modus operandi das transferências federais para o financiamento das ações serviços descentralizados do Sistema Único de Saúde (SUS), que respeitam, na sua maioria, a capacidade instalada e a produção de ações e serviços de saúde nos estados e, principalmente, nos municípios.
Estes dois fatores, em um Estado marcado por acentuadas desigualdades sócio-econômicas e um contexto de escassez de recursos para a saúde, têm moldado o posicionamento dos atores federativos e relações de cooperação e conflito, estimulando a criação de novos critérios e mecanismos de redistribuição de recursos federais a partir da segunda metade da década de 1990. Dessa forma, acredita-se que a política de saúde vem desenvolvendo mecanismos próprios que interagem, num contexto específico, com variáveis estruturais e institucionais de difícil modificação pelos atores que atuam no setor da saúde.
Neste trabalho, através do levantamento da produção bibliográfica recente e da análise de dados secundários, discute-se sobre os temas federalismo fiscal e financiamento federal da política de saúde no Brasil, identificando-se suas principais características, as alterações operadas ao longo dos anos 90 e início dos anos 2000, as relações existentes e seus desdobramentos.
Federalismo fiscal à brasileira: características das mudanças implantadas a partir dos anos 80
Para entendemos a realidade brasileira, é preciso refletir sobre as bases do modelo de federalismo fiscal implantado. É consenso entre os estudiosos sobre o tema, que o modelo atual repousa nos fundamentos da reforma de 1967 e que os conflitos hoje vividos no terreno tributário se dão pelas modificações incompletas do mesmo, em uma conjuntura política e econômica completamente diversa.
A reforma de 1967 caracterizava-se por: 1- forte centralização da arrecadação tributária no governo federal, principal responsável pelo estímulo ao desenvolvimento da economia; 2- reforço da capacidade tributária própria de estados e municípios, com a criação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) na competência dos estados e do Imposto sobre Serviços (ISS) na competência dos municípios; 3- implantação de mecanismo de repartição regular de receitas federais com fins redistributivos e não-condicionados a gastos específicos - os Fundos de Participação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM); 4- implantação de mecanismo alocação de receitas federais para investimentos, caracterizado por forte vinculação setorial e funcional (despesas de capital) - as devoluções tributárias dos impostos sobre combustíveis, energia elétrica, minerais e comunicação que se destinavam às empresas públicas federais, estaduais e municipais; 5- criação de mecanismo de devolução tributária do ICM para os municípios (Rezende ; Prado ).
Se concebido com uma orientação descentralizadora, o sistema tributário brasileiro foi gradualmente modificado ao longo dos anos da ditadura, de modo a concentrar o controle sobre a receita e a alocação do gasto no âmbito federal. Novas condicionalidades e vinculações vão sendo atreladas aos Fundos de Participação, reduzindo a liberdade orçamentária das unidades subnacionais e direcionando os recursos para programas ou funções específicas.
A centralização associada à perda de autonomia dos governos subnacionais do período de 1968 até o final dos anos 70, desencadeou uma forte reação contrária no processo de abertura política dos anos 80, onde os municípios e estados ganham gradativamente espaço para atendimento de suas demandas e revisão do sistema tributário brasileiro. Dain enfatiza que, nesta época, a dimensão federativa se impôs aos demais aspectos relativos à reformulação do sistema tributário brasileiro.
Em relação às competências tributárias, amplia-se o papel das esferas subnacionais na arrecadação tributária e sua autonomia na gestão dos impostos. Esta ampliação se deu por diversos mecanismos na década de 1980. Um, relacionado ao aumento de abrangência do ICM com a criação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Este passou a incluir os impostos únicos federais (combustíveis, energia elétrica, minerais, comunicação e transporte). Além disso, o controle central observado sobre o imposto é retirado e os governos estaduais passam a ter maior responsabilidade pela sua gestão.
O dispositivo que definia a partilha neutra do antigo ICM também é alterado: 25% da Cota-parte do ICM e, posteriormente, do ICMS são objeto de livre disposição por lei estadual. Os 75% restantes da Cota-parte permanecem regidos pelo mecanismo de devolução tributária. Isso representou um aumento do poder do estado na alocação municipal deste tributo que passa a incorporar um componente redistributivo à fórmula do repasse.
Por outro lado, a Constituição de 88 estabelece como atribuição dos estados a composição e definição dos valores das alíquotas do ICMS. Os governos estaduais passam a utilizá-lo como instrumento de política econômica para atração de novos investimentos em prejuízo do objetivo arrecadatório, fenômeno esse denominado de “guerra fiscal” dos estados nos anos 90.
No plano municipal, o reforço das receitas diretamente arrecadadas também se verifica. Mesmo tendo sido frustradas as tentativas de incorporação do ISS ao ICMS, são mantidas na Constituição os mecanismos de compensação para os municípios (Dain 5). Entre eles, a criação do Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis (IVVC), que foi extinto posteriormente, o aumento de 20% para 25% do percentual de partilha do ICMS para as esferas locais e o compartilhamento com o estado da arrecadação do antigo imposto sobre a transmissão de bens imóveis. O governo estadual passa a arrecadar o imposto de heranças e doações e os governos municipais o imposto de transmissão “inter vivos” de bens imóveis.
Dain 5 também aponta para outros mecanismos de compensação implementados em função de reformas não levadas à cabo pelos constituintes em 1988. Havia na época uma proposta de adoção de um princípio único de destino na aplicação do ICMS, com desoneração das exportações internas e externas. Com esta proposta perderiam os estados exportadores líquidos. Mesmo mantendo-se a tributação do imposto na origem e destino, foi inevitável estabelecer compensações visando reduzir os impactos perversos do sistema tributário sobre a competitividade do setor produtivo brasileiro e a falta de investimento. Daí resultam o Fundo de Compensação pela Exportação de Produtos Industrializados (FPEX) – que redistribui 10% da arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) da União em função do volume de exportações das UFs - e, posteriormente, a Lei Complementar (LC) 87/96 (Lei Kandir) que complementa a desoneração das exportações para outros produtos. Estas medidas acabaram por incidir também nas receitas dos municípios, pois a legislação prevê que 25% dos recursos das transferências compensatórias dos estados sejam repassados aos seus municípios (Prado 4).
Um segundo componente importante das mudanças operadas a partir dos anos 80 diz respeito ao sistema de partilha tributária. Como afirma Rezende 3, a “bandeira da descentralização” estampava a reivindicação do aumento das transferências federais sem qualquer condicionalidade quanto ao seu uso. No modelo de partilha da reforma de 1967, estas transferências se constituíam através do FPE e do FPM que possuíam capacidade livre de gasto pelas instâncias subnacionais. A segunda perna do sistema – os mecanismos de devolução dos impostos únicos arrecadados pela União -, que cuidava da cooperação intergovernamental no tocante à implementação das políticas prioritárias para o desenvolvimento, não atendia ao preceito de maior autonomia, pois direcionava os recursos para determinados setores da economia e restringia-se a despesas de capital.
Em decorrência, cresce a parcela da receita federal do Imposto de Renda (IR) e do IPI que compõem os Fundos de Participação. O crescimento é de tal monta que passa a absorver, a partir de 1993, quase a metade da arrecadação dos principais tributos de competência da União: 21,5% da receita líquida do IR e do IPI constituem o FPE e 22,5% o FPM (Secretaria do Tesouro Nacional ). A “amputação da perna” da cooperação, atrelada à hipertrofia das transferências redistributivas e à atrofia de outros incentivos fiscais ao desenvolvimento regional, comprometeram o equilíbrio do modelo de partilhas previsto em 1967 (Rezende 3).
Por outro lado, os critérios utilizados como base para redistribuição dos recursos do FPE e FPM permanecem basicamente os mesmos de 1967. Em relação ao FPE, vigoram o tamanho da população e o inverso da renda per capita. Para o FPM, o mecanismo de repartição dá direito a 10% dos recursos às capitais e, para os demais municípios, leva em consideração o porte populacional, privilegiando os menores com dotações que se reduzem à medida que cresce o tamanho da população.
Em 1981, os critérios de distribuição do FPM são parcialmente remodelados. Do valor líquido do FPM, 10% são distribuídos entre as capitais, 86,4% entre os demais municípios do interior e o restante de forma adicional para os municípios do interior com mais de 156.216 habitantes. Segundo Prado 4, esta mudança representa uma tímida tentativa de lidar com o viés criado pelas regras originais que favoreciam os pequenos municípios e colocavam em desvantagem localidades com problemas metropolitanos.
Outras modificações são estabelecidas pela Lei Complementar (LC) 62/89 que define que 85% dos recursos do FPE devem ir para os estados das regiões Norte (25,37%), Nordeste (52,46%) e Centro-Oeste (7,17%) e 15% para os demais estados das regiões Sul (6,52%) e Sudeste (8,48%). No que se refere ao FPM, este passa a ser distribuído para os municípios do interior por um coeficiente fixo diferenciado por estado. Para as capitais, um coeficiente individual orienta a distribuição dos 10% do FPM independente de sua localização.
O efeito esperado com a medida, de restrição à multiplicação municipal devido às regras de rateio do FPM, se contrapõe à importante atuação destes fundos enquanto mecanismo para redistribuição de recursos que reflita a evolução no tempo das necessidades sociais e demandas por políticas e serviços públicos. Como os critérios passam a ser estáticos, o mecanismo de correção dos desequilíbrios horizontais a favor de patamares mais homogêneos de receitas e capacidades de gasto entre estados e regiões fica comprometido. Apenas no que se refere à distribuição de recursos nos municípios do interior do estado o sistema mantém alguma dinamicidade.
Efeitos do modelo de federalismo fiscal sobre o financiamento do Sistema Único de Saúde na década de 1990
Muitas são as críticas formuladas pelos especialistas do federalismo fiscal sobre o sistema tributário vigente no Brasil. Enfatizaremos aqui as que julgamos fundamentais para compreensão das repercussões sobre o financiamento da política de saúde até o início dos anos 2000.
A primeira delas diz respeito aos conflitos gerados entre o poder central e as instâncias subnacionais de governo pela forma como se conduziu o processo de descentralização do sistema tributário. Podemos afirmar que o sistema tributário brasileiro, pelas regras atuais, está entre um dos mais descentralizados do mundo, tanto no que se refere ao poder de tributação como de gasto auferidos às instâncias subnacionais. Segundo dados produzidos em estudo sobre a partilha de recursos tributários no Brasil, o governo federal arrecadava em 2000 cerca de 67% do total das receitas tributárias (gráfico 1), transferindo cerca de 35% de suas receitas para estados e, principalmente para os municípios, na forma de transferências redistributivas livres ou setorialmente orientadas (Prado et al. ).

Inserir gráfico 1

Embora a função de redistribuição de recursos seja um importante mecanismo para correção dos desequilíbrios fiscais pelo poder central em países heterogêneos como o Brasil, ressalta-se que o processo de descentralização operado a partir dos anos 80 não contou com uma descentralização planejada de encargos. Por sua vez, o modelo de Seguridade Social preconizado para o Brasil exige a coordenação do nível federal na implementação de políticas que promovam o desenvolvimento econômico e compensem as carências e dificuldades institucionais próprias das esferas subnacionais.
A perda de recursos da União provocou uma reação duplamente prejudicial para a política social. Por um lado, fez com que o governo federal se desinteressasse pelas modificações do IR, já que grande parte dos recursos provenientes do imposto são transferidos a estados e municípios. Isto faz com que uma fonte importante de receita para a implantação de políticas no âmbito local permaneça com sérios problemas em relação à estreiteza de sua base de arrecadação, aos benefícios que diminuem o seu valor nominal e sua progressividade. Por outro ângulo, a esfera nacional acabou por investir na ampliação das contribuições sociais para o financiamento da Seguridade Social.
Dain et al. demonstram que, na atual estrutura tributária brasileira, o alto peso das contribuições sociais em relação aos impostos sobre o valor adicionado e aos impostos diretos sobre renda e propriedade causam um desequilíbrio na composição da carga tributária. Em 1998, as contribuições sociais para o financiamento da Seguridade Social representavam cerca de 10% do PIB, sendo responsáveis pelo maior montante de recursos arrecadados e atuando como principal fonte de receita disponível para cobrir os gastos da União.
Ante ao decréscimo da receita de impostos e à não apropriação dos recursos das contribuições sobre os salários vinculados à Previdência Social em 1993, o governo acabou lançando mão de outros dispositivos para ampliar sua receita disponível. Entre eles, o aumento das alíquotas e a imposição de impostos cumulativos e superpostos, como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), a Contribuição sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL) e o Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), além da implantação de novos tributos, como é o caso da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF) em 1997. Apesar de não sofrerem perda inflacionária significativa, as contribuições sociais geram danos à competitividade sistêmica, onerando desigualmente produtos, setores e empresas e causando grandes questionamentos jurídicos e evasão da arrecadação esperada.
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Lima, L.D. Conexões entre o federalismo fiscal e financiamento da política de saúde no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2006/out). [Citado em 10/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/conexoes-entre-o-federalismo-fiscal-e-financiamento-da-politica-de-saude-no-brasil/307?id=307

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