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0226/2024 - Contribuição da Vigilância Alimentar e Nutricional para a Segurança Alimentar e Nutricional: um estudo qualiquantitativo
Contribution of the Food and Nutritional Surveillance to Food and Nutritional Security: a qualitative and quantitative study

Autor:

• Beatriz Gouveia Moura - Moura, B. G. - <beatrizgouvs@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5931-1570

Coautor(es):

• Clara Cecília Ribeiro de Sá - Sá, C. C. R. - <cceciliasa@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7263-799X

• Jucelir dos Santos - Santos, J. - <jucelir.lili@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7263-799X

• Eduardo Augusto Fernandes Nilson - Nilson, E. A. F - <edunilson@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2650-4878

• Luciene Burlandy - Burlandy , L - <burlandy@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0875-6374

• Inês Rugani Ribeiro de Castro - de Castro, I. R. R - <inesrrc@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7479-4400

• Andhressa Fagundes - Fagundes, A. - <andhressa@academico.ufs.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4085-3270

• Silvia Maria Voci - Voci, S. M. - <smvoci@uol.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7087-7233



Resumo:

O objetivo deste estudo foi conhecer a percepção dos atores envolvidos sobre as contribuições da Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN) para as políticas e ações públicas da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), tendo a Soberania Alimentar dos povos como um princípio. A pesquisa foi transversal exploratória sendo aplicados questionários para gestores, pesquisadores e membros de organizações da sociedade civil atuantes na VAN e/ou na SAN. As respostas foram sistematizadas via Microsoft Excel® e Statistical Package for the Social Sciences sendo analisadas descritivamente e por análise de conteúdo temática proposta por Bardin. Participaram 142 atores, em maioria mulheres atuantes na nutrição e no nível local. Como resultados, foi destacado o potencial da VAN de visibilizar os diferentes territórios brasileiros. Enquanto desafios, foram mencionadas a inércia política, a falta de articulação e de sensibilização dos trabalhadores atuantes nas agendas. O fortalecimento da participação da sociedade civil e a ampla divulgação das informações foram estratégias sugeridas. É reconhecida a contribuição da VAN para as políticas da SAN e os percalços relatados fornecem elementos para avançar na integração entre a saúde e a SAN.

Palavras-chave:

Sistema Único de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Política Pública; Programas e Políticas de Alimentação e Nutrição

Abstract:

The objective of this study was to know the perception of the actors involved about the contributions of the Food and Nutritional Surveillance (VAN in portuguese) for the policies and public actions of Food and Nutritional Security (SAN in portuguese), having the Food Sovereignty of the peoples as a principle. The research was cross-cutting exploratory, with questionnaires being applied to managers, researchers and members of civil society organizations operating at the VAN and/or SAN. The responses were systematized via Microsoft Excel® and Statistical Package for the Social Sciences and analyzed descriptively and using thematic content analysis proposed by Bardin. 142 actors participated, mostly women active in nutrition and at the local level. As a result, the potential of the VAN to provide visibility to different Brazilian territories was highlighted. As challenges, political inertia and a lack of articulation and awareness among professionals working on the agendas were mentioned. Strengthening the participation of civil society and the broad dissemination of information were suggested strategies. VAN\'s contribution to SAN policies is recognized and the reported setbacks provide a basis for implementing measures to advance the integration between health and SAN.

Keywords:

Unified Health System; Primary Health Care; Public Policy; Nutrition Programs and Policies.

Conteúdo:

Introdução
Os princípios da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) orientam políticas e programas que buscam a efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e a superação de todas as formas de má-nutrição1,2. Estabelecem uma relação direta com a Soberania Alimentar dos povos, que se refere ao direito destes de decidir sobre o próprio sistema alimentar, por meio de políticas soberanas, que sejam definidas com a participação da sociedade visando a interesses públicos3,4.
Desde 2006, o Brasil instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) e a Política Nacional de SAN (PNSAN), fundamentados nos princípios do DHAA e da Soberania Alimentar, que organizam e articulam programas e políticas públicas situados em diferentes Ministérios com vistas à garantia da SAN5,6. Dentre elas, destaca-se aqui a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), do Ministério da Saúde, que tem, entre suas diretrizes, a realização da Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN) e a cooperação e a articulação com a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) e a realização da Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN), constituindo-se como um potencial campo de interação com o Sisan7–10.
A VAN contribui para a organização dos serviços de saúde e o planejamento de políticas, estratégias e programas ao produzir, sistematizar e publicizar informações sobre a situação alimentar e nutricional da população. Para tal, baseia-se, por um lado, em indicadores do estado nutricional e do consumo alimentar, registrados nos serviços da Atenção Primária à Saúde (APS), por meio do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), que permite um monitoramento mais cotidiano de informações dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Por outro, fundamenta-se também em dados de pesquisas de base populacional que possibilitam um diagnóstico representativo da população brasileira, com intervalos de tempo mais espaçados quando comparados aos dados produzidos pelo Sisvan8,10.
A constância no registro e na utilização dos dados do Sisvan possibilita o reconhecimento de um panorama da alimentação e nutrição dos diversos territórios brasileiros, acessível para gestores, profissionais e população em geral8,11,12. Este panorama territorial, principalmente do consumo alimentar, pode favorecer o conhecimento das dinâmicas locais dos sistemas alimentares e oferecer informações que venham a ser mobilizadas pelos atores sociais engajados em diferentes estratégias de ação política para garantia da SAN, do DHAA e da Soberania Alimentar dos povos em diferentes territórios13.
Apesar de sua relevância, há dificuldades na contínua utilização de dados da VAN no planejamento territorial em saúde e, mais ainda, em um planejamento integrado com as políticas e programas de SAN. Os principais desafios envolvem a formação profissional, a operacionalização e capilaridade da VAN, a implementação de ações intersetoriais, além de questões “estruturantes” como as condições de trabalho dos profissionais, o financiamento do SUS e as iniquidades em saúde da população. Estas se relacionam não apenas com o aumento da Insegurança Alimentar (IA) no Brasil nos últimos 10 anos, mas também com a ocorrência do sobrepeso, da obesidade e de outras formas de má-nutrição, contribuindo para o cenário da sindemia global da obesidade, desnutrição e mudanças climática14–17.
Ainda é longo o caminho a ser percorrido para estabelecer a perspectiva da Soberania Alimentar, apresentada por Nyéléni4, enquanto um princípio também norteador das ações da VAN, e operacionalizar as implicações relacionadas com o direito de os povos definirem as políticas e estratégias vinculadas aos seus sistemas alimentares e à sua situação alimentar e nutricional, incluindo o próprio acesso à informação4. No entanto, considera-se que essa temática é relevante para impulsionar a otimização e a utilização de dados de rotina da VAN para a avaliação e o alcance da SAN dos diferentes territórios.
Portanto, o estudo teve como objetivo conhecer a percepção de atores envolvidos com a VAN e SSAN sobre as contribuições da VAN para as políticas e ações públicas da SAN, tendo a Soberania Alimentar dos povos como um dos seus princípios.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal exploratório que se pautou em métodos quantitativos e qualitativos de análise de dados, obtidos a partir da aplicação de um questionário autopreenchido estruturado com a finalidade de identificar a percepção de atores envolvidos com a VAN e/ou com a SAN em junho e julho de 2022. O estudo foi disponibilizado no formato on-line no Google Forms®, com link divulgado em redes sociais (Instagram® e Facebook®) e enviado por e-mail para gestores do campo da Alimentação e Nutrição das três esferas de governo, pesquisadores e membros de organizações da sociedade civil que atuavam com a VAN e/ou com a SAN. Foi divulgado no convite o perfil de participantes desejado para a pesquisa e, adicionalmente, foi utilizada a técnica “bola de neve”18, solicitando que os participantes enviassem o formulário da pesquisa para os seus pares. O formato remoto foi escolhido considerando o alcance de respondentes de diferentes regiões e estados do Brasil.
O formulário era composto por três blocos: a. Caracterização dos participantes; b. Conhecimento sobre VAN e SSAN e c. Interfaces entre VAN e SSAN. Os blocos A e B tiveram, majoritariamente, questões fechadas que foram elaboradas com base em questionários anteriores19,20. O bloco C foi composto, majoritariamente, por questões abertas e foi elaborado com base em três elementos centrais: 1) a utilização dos dados da VAN; 2) a articulação entre os diversos setores e áreas que envolvem a Alimentação e Nutrição; e 3) potencialidades e desafios nas relações entre a Saúde e SSAN. O questionário passou por uma fase de pré-teste para seu aprimoramento.
As respostas para as perguntas abertas foram sistematizadas e revisadas por quatro autoras em planilha do Microsoft Excel® e passaram pela análise de conteúdo do tipo temática21. A primeira autora revisou todas as análises e, em casos de dúvidas sobre alguma categorização, ela foi sanada em conjunto com as outras três autoras. As etapas da análise21,23 foram: 1. Pré-análise; 2. Exploração do material; 3. Leitura flutuante a partir das abstrações dos sujeitos; 4. Tratamento dos resultados; 4. Inferências e interpretações; 6. Elaboração dos núcleos de sentidos (categorias) a partir dos objetivos e da realidade dos sujeitos; 7. Análise quantitativa das categorias (frequências relativas e absolutas); 8. Síntese interpretativa23. Esta análise foi escolhida tendo em vista o propósito de se identificarem os núcleos de sentidos21 atribuídos pelos participantes ao objeto de estudo.
A percepção dos respondentes foi identificada e categorizada em três dimensões: 1. Relatos encontrados; 2. Referencial teórico; 3. Análise de conjuntura e dos determinantes que a envolvem24. As demais variáveis passaram pela análise descritiva utilizando-se o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 26.0, por meio de frequências relativas e absolutas (variáveis categóricas). Algumas variáveis (como idade e tempo de atuação) foram respondidas em questões abertas, sendo categorizadas e apresentadas por intervalos. Destaca-se que a análise qualitativa dos dados em conjunto com a análise quantitativa potencializa a compreensão de vivências que complementam ou se contrapõem ao que os números indicam25.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de Sergipe, sob Parecer nº 4.786.176, e seguiu todas as normas éticas inseridas na Resolução nº 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Apenas participaram os indivíduos que assinaram eletronicamente os Termos de Esclarecimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados
Participaram do estudo 142 atores, em sua maioria mulheres (88%), o que justifica a utilização das palavras no feminino na redação dos resultados. A atuação das participantes se dava, principalmente, no nível municipal. A cor/raça (dados não apresentados na tabela) foi predominantemente branca para a maioria dos segmentos entrevistados, com exceção da sociedade civil organizada, na qual foi mais recorrente a cor/raça parda e/ou preta.
A principal formação foi nutrição, seguida por enfermagem, direito e serviço social, com destaque para uma maior diversidade no perfil da sociedade civil. Quase metade delas atuava em suas áreas por um tempo menor ou igual a cinco anos e operavam no campo da Saúde. Uma limitação encontrada foi a indefinição de atuação de algumas profissionais que não inseriram a informação nas suas respostas. As pessoas membros da sociedade civil organizada eram majoritariamente da área de SAN (Tabela 1).
Ao responderem sobre a percepção de conhecimento teórico e/ou prático sobre a VAN, a Soberania Alimentar e a SAN, a maioria afirmou ter um conhecimento alto ou muito alto sobre as temáticas. Esse valor foi maior para a SAN (59,9%) e menor para a Soberania Alimentar (50%). A respeito da VAN, 57,7% avaliaram ter um conhecimento alto ou muito alto, sendo maior para pesquisadoras (72,7%) e gestoras (68,4%). Nesta temática, 50% informaram um conhecimento alto ou muito alto a respeito da coleta e avaliação do consumo alimentar e do estado nutricional.
A contribuição da VAN para a Soberania Alimentar e SAN foi considerada relevante ou muito relevante para 81,7% das respondentes. Quando questionadas sobre a relevância da utilização dos dados da VAN para outros setores, além da saúde, a maioria considerou relevante ou muito relevante (88%).
As principais temáticas comentadas foram: 1) a possibilidade de planejar, fortalecer e avaliar programas, políticas e estratégias a partir da situação alimentar e nutricional promovendo a saúde e o DHAA; e 2) desafios de operacionalização, valorização e utilização dos dados. Os comentários traziam uma perspectiva teórica da relevância e da contribuição, mas apontavam também dificuldades em sua realização prática.
Além disso, algumas respondentes também abordaram a necessidade de investir em educação, formação e divulgação dos dados e outras indicaram questões econômicas e políticas como elementos que ampliavam e/ou criavam obstáculos. Destaca-se a relação feita pelas respondentes entre os desmontes nas políticas públicas, no SUS e no Sisan vivenciados entre os anos de 2017 e 2022 que também impactaram negativamente a VAN. Ao comentarem sobre a utilização de dados por diversos setores, o fortalecimento da articulação como um elemento necessário no planejamento da gestão foi um ponto marcante, sendo pontuada a importância de existirem instâncias intersetoriais no âmbito da gestão, como a Câmara Intersecretarial (ou interministerial) de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan).
Sobre as potencialidades da utilização dos dados da VAN no contexto dos diversos territórios e sistemas alimentares brasileiros, 5,6% das respondentes destacaram a potencialidade de conhecer o território e realizar um planejamento considerando as diferenças locais. Neste âmbito, a operacionalização completa da VAN em todas as esferas de governo – municipal, estadual, distrital e federal – foi um ponto colocado principalmente pela sociedade civil.
Ao responderem sobre os fazeres e estratégias intersetoriais para ampliar a contribuição prática da VAN no contexto da Soberania e da SAN, destacaram: a implementação e/ou fortalecimento de programas e estratégias multissetoriais com vistas a potencializar a intersetorialidade; e o fortalecimento da articulação e da participação social. O investimento na formação e sensibilização dos profissionais e gestores e o fortalecimento da VAN e da SSAN na esfera política, potencializando as políticas de alimentação e nutrição, foram outras questões abordadas (Tabela 3).
Por fim, com o intuito de ilustrar os resultados sistematizados na Tabela 3, o Quadro 1 apresenta os principais relatos das participantes.

Discussão
O fornecimento de bases para realização de todas as etapas das políticas e demais atividades públicas a partir das particularidades regionais foi a principal potencialidade da utilização dos dados da VAN relatada pela maioria das respondentes. A realização da VAN nos diferentes territórios, que considere a formação e sensibilização sobre a estratégia e a divulgação dos seus dados, foi uma potencialidade e um fazer para ampliar a contribuição da VAN no contexto da SSAN. Dentre estes fazeres, foram destacados o fortalecimento da intersetorialidade, da formação e da sensibilização sobre as temáticas para os profissionais atuantes nas agendas da saúde e da SSAN. Ao serem propostas estratégias intersetoriais para ampliar a relação entre a SSAN e a VAN, destacou-se o fortalecimento da articulação e da participação social.
As dificuldades de operacionalização da VAN, de articulação entre diferentes setores e de formação e sensibilização dos profissionais e gestores atuantes nas agendas permearam, transversalmente, os relatos das respondentes. A relevância e a contribuição da VAN para a SSAN foram percebidas e foi ressaltado o desafio da sua concretização na prática. A vontade política é um fator determinante dos processos decisórios, especialmente em contextos marcados por fortes assimetrias de poder, em que a possibilidade de intervenção é limitada a depender do lugar que se ocupa17. Se há limitações em relação a quanto se pode atuar, o fazer integrado pode ser um caminho necessário, pois pode potencializar uma incidência política em diversos espaços institucionais e arenas decisórias.
A análise de diferentes perfis trouxe uma complementariedade entre os relatos de pessoas de diferentes segmentos. Profissionais e gestoras apresentaram relatos mais incisivos sobre a formação e a sensibilização dos atores atuantes com a VAN e SSAN, enquanto pesquisadoras abordaram sobre a operacionalização dos sistemas de informação à saúde e a divulgação dos dados. As representantes da sociedade civil trouxeram elementos da conjuntura política e econômica e seus impactos na realização e articulação entre a VAN e a SSAN. Assim, a integração destes relatos contribuiu para o conhecimento de perspectivas que poderiam não ser identificadas se tivessem sido realizadas com apenas um único perfil de respondentes.
As estruturas de gestão das políticas de alimentação e nutrição, incluindo a PNAN, precisam colocar em prática os mecanismos que garantam a SAN. Estes devem envolver uma forte participação da sociedade civil em todas as etapas de construção, implementação, monitoramento e avaliação das políticas, atualmente estando relacionada a uma dimensão da SAN (agency)2, e que precisa ser realizada de forma transparente e livre de conflitos de interesse. Quando o olhar é direcionado para gestão das políticas que se relacionam com a SAN, é compreendida a complexidade que envolve gerenciar as diversas políticas, por vezes de setores diferentes no âmbito do governo, sendo questionados quais os arranjos ideais para que se possa avançar. Além disso, defender políticas que são elaboradas com o povo e que protejam princípios e direitos públicos é um exercício intrínseco à Soberania Alimentar2,17,26.
As mulheres, sendo maioria não apenas neste estudo, mas também nas áreas de formação da saúde e nutrição, são historicamente excluídas, subalternizadas e/ou invisibilizadas, em seus discursos e nos trabalhos que realizam27. Assim, é importante considerar as questões de gênero que podem estar associadas com a execução e as relações de trabalho destas mulheres28. Além dessa perspectiva, destaca-se a participação da sociedade civil organizada, único grupo neste estudo com maioria da população parda ou preta, sendo o estrato racial mais atingido pela IA e outras formas de má-nutrição29. Isto posto, a participação deste grupo nas decisões políticas precisa ser valorizada e incentivada.
A atitude de vigilância está associada ao completo desenvolvimento do Ciclo de Gestão e Produção do Cuidado da VAN, que prevê a realização de todas as etapas da vigilância, desde a coleta individual dos dados antropométricos e de consumo alimentar, até estratégias coletivas. A representação gráfica de um ciclo pressupõe a realização contínua, de forma que a ação exigirá uma avaliação, e essa necessitará de uma nova coleta. Para a concretização desse círculo, a atitude de vigilância é necessária, entretanto a existência dessa postura requer qualificação, sensibilização e formação8,10,30. As respondentes destacaram, neste ponto, a necessidade de que essa atitude de vigilância seja construída desde a formação, e não apenas na atuação no âmbito da APS.
A formação profissional no campo da saúde precisa ser coerente com o enfrentamento das iniquidades sociais, sendo essas questões determinantes intrínsecos à condição de SAN da população. Destaca-se que essa perspectiva não deve apenas acompanhar a formação do nutricionista, mas considerar a integralidade e a articulação necessárias para a Promoção da Saúde e que, portanto, requer a articulação dos diferentes conhecimentos dos demais profissionais da saúde. Guerra e colaboradores31 observaram que profissionais atuantes na APS relatam um sentimento de impotência e frustração, por não alcançar “bons” resultados. Neste contexto e considerando a expressividade de relatos dos participantes do presente estudo sobre a necessidade de pensar a formação e a sensibilização, surge a reflexão sobre qual tipo de formação tem sido praticada e se ela atende às complexidades sociais atuais vividas pela população brasileira31–33.
Nesse sentido, além da existência de diferentes estratégias de treinamentos e cursos destinados a profissionais atuantes no SUS, é necessária a formação destes profissionais – a partir do nível técnico e indo além da nutrição – guiada por elementos que se encontrem com um trabalho pautado na atitude de vigilância. Ademais, é crucial considerar a formação a partir dos princípios da SAN e da Soberania Alimentar, que aborde a sua indissociabilidade com a agenda da saúde numa compreensão sistêmica que conceba a integração das múltiplas dimensões da alimentação como aspectos sociais, econômicos, culturais, climáticos, tecnológicos e referentes à sustentabilidade34.
A formação e a importância da educação permanente são um ponto central no âmbito da atuação, sendo identificadas também em outros estudos sobre a VAN12,19,30,35,36. A realização completa da VAN requer não apenas a coleta e o registro dos dados nos Sistema de Informação à Saúde, mas a sua utilização no planejamento de ações nos diversos territórios. Apesar da tendência de crescimento15, e sendo relacionada à coleta e registro dos dados, a cobertura do Sisvan – principalmente em relação ao consumo alimentar – e a utilização das informações têm sido inferiores ao esperado na percepção das respondentes, sendo este um resultado encontrado também na literatura recente37–41.
Por outro lado, é importante mencionar a potencialidade para o planejamento de ações no âmbito da APS, visto que contribui com a organização da gestão e da atenção nutricional e em saúde no nível local. Ainda que tenhamos desafios persistentes, há uma tendência de aumento da cobertura do sistema, principalmente para crianças, adolescentes e gestantes42,43. Apesar da literatura apontar esta tendência que, em geral, estão associadas ao público com maior frequência às UBS e de outras atividades realizadas no SUS, as participantes relataram a necessidade de ampliar a cobertura.
O uso dos dados para planejar, monitorar e avaliar as ações em congruência com o aumento da cobertura é necessário. Isto deve ser feito em articulação com a divulgação e a discussão da informação para e com a sociedade civil, que irá incidir a partir da realidade em que vive e do que é compreendido com base nos dados. Entretanto, os desmontes das políticas públicas ocorridos entre 2017 e 2022, com fortes retrocessos nas instâncias de participação social, a exemplo da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), são acontecimentos que intensificaram as barreiras nesta pauta11,44.
No tocante à divulgação, é vital romper com o tecnicismo e promover uma comunicação acessível, dialógica e popular, que aproxime a sociedade – ao invés de afastar – e que contribua para o (re)conhecimento da sua realidade. O diálogo contínuo com a população sobre conjunturas que envolvem a saúde, o DHAA, a SSAN e outros direitos sociais é historicamente recomendado, sendo um mecanismo de mobilização da sociedade45. A contribuição da sociedade civil organizada pode ser fortalecida com o acesso a informações que irão nortear ações que potencializam estratégias de promoção da Soberania Alimentar e da SAN46.
O fortalecimento da articulação na gestão da VAN, envolvendo gestores de diversos setores e a sociedade civil organizada, e a existência de espaços para que a sociedade atue no nível decisório local surgiram como destaque sobre os fazeres e estratégias para ampliar a contribuição da VAN na perspectiva da SSAN. A articulação com as instituições acadêmicas na construção do Guia Alimentar para a População Brasileira e do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos47,48, potentes indutores de políticas públicas no Brasil, é um exemplo exitoso deste processo que contou com a participação da sociedade civil.
É primordial a existência de espaços de articulação do nível nacional ao local que garantam a participação da sociedade civil e que fortaleçam a governança democrática, a exemplo do Consea, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Comissão Intersetorial de Alimentação e Nutrição (Cian) e seus conselhos estaduais e municipais. Estes espaços possibilitam o controle da sociedade em todas as etapas das políticas públicas e fornecem um espaço de diálogo com a população sobre as demandas e possíveis soluções relativas à saúde e à SSAN.
Além disso, as respondentes identificam que a VAN possibilita um olhar para o nível local e favorece a visibilização dos diversos territórios e públicos. Este olhar, segundo os relatos, pode contribuir com o (re)conhecimento das diferentes vulnerabilidades destes locais e fortalecer a perspectiva de uma saúde equitativa. O território é o lugar em que se vive, as vivências locais são o que move insurgências, são o que toca e impacta as pessoas que vivem neste lugar46. Logo, considerando-se a premissa de que as políticas públicas de SAN devem ser acessíveis a todos, a territorialização de estratégias como a VAN é uma necessidade. A completude que envolve o olhar para o local e para o panorâmico – que irão abranger questões em nível nacional e até mesmo global –, é basilar para lidar com a complexidade dos diferentes sistemas alimentares brasileiros2,49.
Com a territorialização, a Soberania Alimentar dos povos pode ser fortalecida por meio do planejamento de ações que considerem os aspectos locais e que sejam feitas junto com os usuários de cada território. A interlocução de diferentes atores dos sistemas alimentares e a valorização daqueles que produzem, distribuem e comercializam a comida local se constitui enquanto um princípio para orientar a utilização dos dados da VAN. A utilização das informações provenientes do Sisvan e sua comunhão com estratégias de conhecimento territorial, que valorizem os saberes já existentes, ampliam as possibilidades de avanço em nível nacional e local10,50.
A partir de uma concepção de Saúde Única, que considera a essencialidade da biodiversidade para a existência de ambientes saudáveis, a integração da VAN e do setor Saúde com demais setores associados à alimentação e nutrição é primordial51. Compreender as amplas dimensões que envolvem o ambiente alimentar e os determinantes associados à saúde que se encontram com as dimensões da SAN exige movimentos articulados na esfera política52. O fomento às políticas de alimentação e nutrição demanda pelo reconhecimento da diversidade de agendas que vão desde o abastecimento alimentar, que reflete e é determinado pelo consumo alimentar da população, até pela constituição de políticas de saúde e seguridade social.
A prática não acompanha a teoria: apesar do reconhecimento da importância da intersetorialidade e da articulação com inserção da sociedade civil para o fortalecimento das políticas, programas e estratégias de alimentação e nutrição, a dificuldade de articulação entre os setores foi uma questão apontada nos relatos, sendo também presente na literatura53. As participantes apontam fazeres: fortalecer o que já existe, valorizar a VAN, a Soberania Alimentar e a SAN, formar e sensibilizar. Dentre os relatos, emerge a afirmação: “Não existe um contexto político que se interesse pela Soberania Alimentar”.
Compreender a implementação da PNAN nos diversos territórios, valorizando os esforços existentes e os impactos dos enfraquecimentos ocorridos a partir da desestabilização da PNSAN e do Sisan, é um ponto de partida para se pensar nos processos articuladores no âmbito político. A ausência de financiamento adequado para capilarizar as ações no âmbito do SUS, o desmantelamento de políticas sociais através de medidas como a aprovação do teto de gastos e as mudanças na legislação trabalhista e de programas essenciais, como o Programa Bolsa Família (PBF), são alguns exemplos29,54,55. Em 2023, o PBF foi retomado, assim como outros programas e espaços importantes para as políticas públicas, com o Consea e a Caisan nacionais56–58. Entretanto, o teto de gastos foi substituído por um arcabouço fiscal que ainda gera insegurança e pode limitar os investimentos do Estado em gastos públicos, incluindo o piso para a saúde59.
Ademais, não é suficiente apenas apontar os retrocessos orquestrados pela lógica neoliberal e compreender as suas conexões com o aumento da IA vivenciada no Brasil entre os anos de 2018 e 202216, mas pensar nos atores que estão na linha de frente dessas ações. Considerando os limites de atuação dos profissionais que lidam com a gestão da VAN e de programas no âmbito político, é importante considerar a atuação, formação e sensibilização dos gestores que atuam em escalões mais altos enquanto estratégia para superar as barreiras e interferências que podem existir. A inércia, relatada como “preguiça política” por uma respondente, requer uma reflexão a respeito do que – ou quem – pode ser indutor ou catalisador dessa provável postura paralisante dos atores-chave na condução das políticas e estratégias, como a VAN. Logo, para além da sensibilização também é preciso perceber os conflitos e práticas existentes na esfera política.
Considera-se que este estudo trouxe o exercício de um olhar integrado, a partir das percepções de atores distintos e que buscou ampliar as conexões entre a Saúde e a SSAN tendo a VAN, presente no SUS, como a estratégia escolhida para as inquietações e reflexões que acompanharam todo o percurso do trabalho realizado. O fato de os relatos terem sido disponibilizados via formulário online pode ter sido um limitante para achados com maior profundidade e, por isso, sugere-se que estudos futuros adotem outras metodologias qualitativas, como grupos focais e entrevistas semiestruturadas, para aprofundar a temática aqui discutida.

Conclusão
Este estudo traz as contribuições da VAN no âmbito do SUS para a SAN e a Soberania Alimentar dos povos, principalmente com o potencial de visibilizar os diferentes territórios brasileiros e seus moradores. No entanto, as limitações da atuação de profissionais e gestores locais, a falta de articulação, de sensibilização, de apoio e a inércia política foram barreiras relatadas para a concretizar as potencialidades apontadas. Assim, compreender e resolver questões operacionais da VAN, buscar soluções participativas com a sociedade civil e fortalecer a sua participação do nível local ao nacional, divulgar amplamente as informações e efetivar a articulação entre os diferentes setores, gestores e profissionais são possíveis estratégias para a superação dessas limitações.
Por fim, por meio dos relatos, as possíveis contribuições da VAN na efetivação das políticas e ações públicas de SAN guiadas pelo princípio da Soberania Alimentar demonstra uma realidade factível. Do mesmo modo, (re)conhecer os percalços existentes pode fornecer as bases para executar as medidas necessárias para avançar nesta agenda e na notória – e fundamental – integração entre Saúde e SSAN.

Financiamento

Este estudo foi financiado a partir de uma carta-acordo (identificação SCON2020-00232) entre o Laboratório de Educação Alimentar e Nutricional (LEAN/DNUT/UFS) e a Coordenação-geral de Alimentação e Nutricional (CGAN/MS) por meio da Fundação de Apoio à Pesquisa e a Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC-SE) e a Organização Pan-Americana da Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS).

Referências

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Moura, B. G., Sá, C. C. R., Santos, J., Nilson, E. A. F, Burlandy , L, de Castro, I. R. R, Fagundes, A., Voci, S. M.. Contribuição da Vigilância Alimentar e Nutricional para a Segurança Alimentar e Nutricional: um estudo qualiquantitativo. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/mai). [Citado em 23/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/contribuicao-da-vigilancia-alimentar-e-nutricional-para-a-seguranca-alimentar-e-nutricional-um-estudo-qualiquantitativo/19274?id=19274&id=19274

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