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0546/2007 - Da legitimação a (re)significação: o itinerário terapêutico de trabalhadores com LER/DORT
From legitimation to (re-)signification: the therapeutic itinerary of workers with RSIs/WMSDs

Autor:

• ROBSON DA FONSECA NEVES - ROBSON DA FONSECA NEVES - Salvador, Bahia - UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR - <robsonfisio@pop.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

No Brasil as LER/DORT representam um importante problema de saúde pública. Seu modo de adoecimento, a multideterminação de sua origem e a conturbada assistência prestada aos lesionados parecem expor as próprias contradições do modo de produção capitalista. Neste artigo buscou-se compreender os processos macrossociais identificados nos percursos de cura feito por trabalhadores com LER/DORT, atentando para os processos de negociação e (re)significação operados nessas trajetórias. Entrevistas em profundidade com trabalhadores sob regime de benefício pela previdência social brasileira passaram por “análise temática” sob a luz dos “modelos explanatórios” e da noção de “itinerário terapêutico” para abarcar o domínio sócio-econômico e político. Sobressaiu o excesso e a culpabilização, ligados à etiologia; dor, cansaço e estresse iniciando os sintomas e, no curso da doença, somam-se a perícia médica, as reabilitações e o prognóstico tal como (re)significado pelos trabalhadores na tentativa de forjar um “tipo ideal” de trabalhador, que, apesar da lesão se mantém produtivo. Recomenda-se pensar políticas de saúde que sejam também responsivas aos processos mais amplos das organizações e das relações de poder e classe envolvidos na assistência às LER/DORT.

Palavras-Chave: LER/DORT, itinerário terapêutico, modelos explanatórios

Abstract:

Repetitive Strain Injuries (RSIs)/Work-Related Musculoskeletal Disorders (WMSDs) are a major issue in Brazilian public health. The way such sickness is produced, its multidetermined origin and the troubled care provided to sufferers point to the very contradictions of the capitalist production system. This work aims at understanding the macrosocial processes surfaced in the workers’ search for cure of RSIs/WMSDs, paying close attention to the negotiation and (re-)signification processes present in those trajectories. By drawing on “explanatory models” and the concept of “therapeutic itinerary”, “thematic analysis” of in-depth interviews with Brazilian workers receiving Social Security compensation was used to approach the socioeconomic and political realms.
Culpability and excess were reported in connection with etiology whereas pain, tiredness and stress were shown to be related to symptom initiation. Legal medical assessment, rehabilitation programs and prognosis were all along (re-)signified by the interviewees in an attempt to create an “ideal type” of productive worker despite the injury. It is then urged that public health policies responsive to the wider organization and processes of power and class related to the care of RSIs/WMSDs are devised.

Key Words: RSIs/WMSDs, therapeutic itinerary, explanatory models

Conteúdo:

Tecer uma discussão sobre trabalho, doença, processo de cura e (re)significação do adoecimento, requer minimamente um entendimento sobre o lugar do trabalho na vida e, em particular, entender a atual conformação que esse adquiriu frente às históricas transformações que experimentou. Antunes1 sintetiza de forma esclarecedora a segunda proposição afirmando que as metamorfoses do mundo do trabalho nas últimas décadas, por um lado, evidenciam a despolarização do trabalho fabril nos países avançados e, por outro, expõe a heterogenização, complexificção e fragmentação do trabalho nos países do Terceiro Mundo.
Complementando o exposto acima, é fato que, desde os relatos de Ramazzini2, trabalho, saúde e doença formam uma tríade que vem merecendo esforços no sentido de estudar suas relações sob os diversos ângulos, bem como no sentido de organizar estratégias para lidar com os problemas que resultam da interface do homem com seu local e relações de trabalho3,4.
No Brasil, as relações entre trabalho e saúde do trabalhador conformam um mosaico, coexistindo múltiplas situações de trabalho, caracterizadas por diferentes estágios de incorporação tecnológica, diferentes formas de organização e gestão, relações e formas de contrato de trabalho, as quais, de forma mais específica, se refletem sobre a morbi-mortalidade dos trabalhadores5,6.
Nesse cenário, surge então o interesse em esculpir o objeto “busca por cura entre os trabalhadores com LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos / Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho)”, isto requereu um foco maior sobre a complexidade da enfermidade, sobre a pluralidade das ofertas de cuidados e sobre as relações sociais infiltradas nessas questões. Enfatiza-se ainda o fato de que os sistemas de assistência à saúde não devem ser estudados isoladamente de outros aspectos sociais, especialmente de sua organização social, de suas estruturas de poder e de suas representações simbólicas mais amplas sobre doença e cura 5,7.
A LER/DORT não corresponde a uma unidade nosológica, por isso torna-se uma tarefa difícil e insensata descrever sua fisiopatologia, segundo o modelo biomédico, devido à variedade de origens etiológicas atribuídas a essa síndrome. A literatura clássica sobre o assunto aponta para causas biológicas, psicológicas e sociais8.
Não se pretende aqui trazer uma revisão sobre as bases etiológicas das LER/DORT, visto que se trata de uma abordagem densa e complexa que mereceria certamente um esforço maior de pesquisa, já elaborado por outros autores8,9,10. Enseja-se, no entanto, apresentar a perspectiva fenomenológica sobre essa questão, a partir do relato dos informantes dessa pesquisa e, com isso, deflagrar um debate de maior alcance sobre a enfermidade, com vistas aos projetos de cura adotados por esses trabalhadores no curso diacrônico da doença, recuperando assim a importância dos conteúdos experenciais sobre a causação da mesma negligenciado pelos modelos explicativos correntes.
Nesse sentido, parece útil a adoção do conceito de itinerário terapêutico, pois o mesmo tem ajudado a tornar mais claras questões de saúde diversas que vão desde situações mais amplas, que envolvem o uso de serviços de cuidado à saúde11,12,13, até situações mais específicas de grupos de doentes que guardam um mesmo diagnóstico clínico, ou enfrentam uma determinada situação comum de saúde14,15.
Com efeito, a identificação de itinerários terapêuticos por uma perspectiva que vá além do reconhecimento de uma pluralidade de possibilidades e de ofertas de cura pode auxiliar na organização da rede de cuidados integrais para trabalhadores com LER/DORT. Para isso, busca-se nesse artigo compreender os processos macrossociais identificados no percurso de obtenção de cura feito por trabalhadores com incapacidade por LER/DORT, atentando para os processos de negociação e (re)significação operados nessas trajetórias de adoecimento.

TRILHA TEÓRICO-METODOLÓGICA

Aspectos teóricos

Para alcançar a pretensão de construir um entendimento sobre os itinerários terapêuticos de trabalhadores com diagnóstico de LER/DORT, buscou-se, na perspectiva fenomenológica, identificar os significados intersubjetivamente construídos e atribuídos pelos atores à sua experiência de adoecimento a partir de uma análise de discurso que leva em consideração o modo de incorporação (embodyment) da doença, as emoções/afetos evocados pela vivência da doença e a construção de uma identidade a partir das narrativas produzidas.
Para isso, as compreensões de alguns autores da antropologia médica sobre a doença foi bastante útil. Young16, Kleinman17, Good18, Huhn19 preocuparam-se com a diferenciação dos termos illness, disease e sickness, estabelecendo, com poucas variações, que disease designa uma anormalidade no funcionamento, ou na estrutura, de órgãos ou sistemas corporais. É a “doença”, tal como concebida pelo paradigma científico da medicina moderna e reduzida a um distúrbio dos processos biológicos ou psicológicos.
Já a enfermidade, illness, por sua vez, é construída em um processo interativo representado pela doença vivida, percebida e significada pelo paciente enquanto experiência subjetiva de um estado de descontinuidade no desempenho de papéis sociais e na sua forma de “estar no mundo”. A doença, sickness, reflete o entendimento de um distúrbio pelo seu senso genérico dado pela população e fala das forças macrossociais (econômica, política, institucionais e organizacionais), que dão o caráter de determinação social da doença.
Essas diferenciações são importantes para o presente estudo, o mesmo tratou dos itinerários terapêuticos do trabalhador com a doença, a partir da passagem da enfermidade experenciada pelo sujeito como incapacitante, para uma forma legalmente aceita pelo sistema médico oficial de referência nesse país, traduzida como LER/DORT20.
O conceito de modelos explanatório definido por Kleinman et al21 como “a noção que os pacientes, as famílias e os profissionais têm sobre episódios de enfermidade específica” (p.121), serviu como estrado onde se pôde acompanhar, através das histórias narradas desses lesionados, os itinerários terapêuticos desenvolvidos, buscando, nessas trajetórias, as escolhas, as adesões e, mais que isso, as estruturas de referência que permitam entender melhor o adoecimento através do prisma das implicações sociais mais amplas envolvidas na trama entre trabalho, doença e projetos de cura.
Visto que, a ênfase no domínio clínico da experiência do adoecimento fornece pouca porosidade, para que aspectos de natureza sócio-econômica e política possam ser compreendidos a partir dos relatos dos trabalhadores doentes. Nesse sentido, o uso do conceito do itinerário terapêutico oferece elementos teóricos capazes de fazer dialogar melhor, a clínica médica e a biografia dos indivíduos, com vistas a atos interpretativos que levem em conta estes e outros aspectos da história pessoal, social e da doença.
Alves et al22 tratando dos aspectos teórico-metodológicos do itinerário terapêutico, afirmam que, é importante aprofundar o nível dos procedimentos usados pelos atores sociais na interpretação de suas experiências e no delineamento de suas ações, sem perder o domínio dos macroprocessos socioculturais. Por isso, os itinerários terapêuticos podem ser entendidos como ações humanas que se constituem pela junção de atos distintos que compõem uma unidade articulada, capaz de gerar significações no curso de suas ações22.
Luz23 considera ainda importante a ser levado em conta o papel de (re)significação da saúde, do adoecimento e da cura. Essa construção de novos significados requer o entendimento do processo histórico que envolve os projetos de cura dos doentes, numa abrangência de espectro maior que as centradas nas condições psicobiológicas da doença.
Neste trabalho, o mapeamento do campo de possibilidades terapêuticas utilizadas pelos informantes do estudo seria uma tarefa difícil de ser realizada, visto que, nas “sociedades complexas modernas” vive-se uma pluralidade de ofertas e escolhas, configurando um mosaico de opções o que inviabilizaria essa categorização7. Por isso, optou-se por não identificar a priori as possibilidades terapêuticas, mas sim, compreender as escolhas e adesões, sobretudo pela lente dos contextos sócio-econômicos e políticos, na medida em que elas aparecem nas narrativas dos lesionados.

O trabalho de campo

O estudo contou com a participação de oito trabalhadores com diagnóstico de LER/DORT há mais de um ano, sob regime de beneficio da Previdência Social do Brasil por “auxilio-acidente”, “auxílio-doença” ou “aposentadoria por invalidez”24,25. Esses informantes são de ambos os sexos, a escolaridade variou do primeiro grau ao nível superior completo, a renda variou de um a dez salários mínimos, são pertencentes a inserções religiosas diferentes, com níveis de gravidade da lesão e causa do adoecimento diversificado e regimes diferenciados de trabalho. Apenas um dos entrevistados não estava afastado das atividades laborativas no período da entrevista.
A coleta foi realizada no período de julho a outubro de 2005. Para a construção do corpus da pesquisa utilizou-se a entrevista aberta e o diário de campo. Neste último foram registradas as interpelações, pedidos de observação e exame de anomalias presentes no corpo dos informantes, solicitações de apreciação de exames de imagem e relatórios de especialistas. Todos esses eventos ocorridos no transcurso das entrevistas.
Durante as entrevistas e a partir do seguinte tópico central: “Conte detalhadamente como e quando você começou a trabalhar e como essa doença entrou na sua vida, destacando as repercussões provocadas por ela”. Exploraram-se vários temas: a etiologia da doença, a fisiopatologia, o início dos sintomas, o curso da doença e o tratamento, os quais foram utilizados como categorias a priori. Kleinman17 afirma que as narrativas de doença servem para dar coerência a eventos distintos e ao curso da doença e, mais que isso, essas narrativas podem até mesmo funcionar como um comentário político, apontando para a indignação e injustiça percebidas nesse processo.
A análise temática proposta por Jovchelovitch et al26 foi considerada pertinente para a presente pesquisa, visto que, constitui uma interpretação das entrevistas, juntando estruturas de relevância dos informantes com as do entrevistador. Do material empírico obtido, emergiram a percepções etiológicas, sinais e sintomas iniciais, curso da doença, prognóstico e (re)significação que se conformaram como categorias estruturantes para a análise.
Foram adotados os procedimentos éticos na pesquisa com seres humanos segundo a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares e o estudo foi aprovada pelo comitê de ética do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA).



Resultados & Discussão

Percepções etiológicas

As subcategorias “nervo”, “excesso” e “culpa” configuraram-se como dotadas de sentidos no imaginário dos trabalhadores entrevistados, no que se refere à origem das lesões. Os significados extraídos permitiram a análise mais ampla sobre o processo de causação do adoecimento, bem como as principais implicações disto para a posterior trajetória na busca de cura.
As percepções da origem do adoecimento atribuída ao “nervo” giraram em torno do “psicológico abalado”, da depressão, da convulsão, do sofrimento excessivo, do esforço, da descontinuidade, da fragilidade e da perda de comando.
...E, na minha época, assim, eu acho que o que mais pesou em mim foi o psicológico mesmo, assim, me abalou demais. E, eu não sei, eu ouvi dizer que ele ataca muito o sistema nervoso, né? Ataca o sistema nervoso... (Digitadora).
A perspectiva dos “nervos” ou do “nervoso”, apresentado por trabalhadores nesse estudo, trilha sentidos que vão do individual ao social. No plano individual, “nervos” faz referência à experiência vivida no plano corporificado, nas sensações e desconfortos apresentados que remetem, sobretudo, a uma descompensação, ou mesmo falha, do sistema nervoso tal como concebido pela visão biomédica. Kleinman17 avança nessa questão ao afirmar que “nervo”, no nível pessoal, representa um conjunto de manifestações decorrentes de fenômenos psicobiológicos e que tais manifestações sofrem a influência cultural, pois é nesse campo que são percebidos, rotulados, explicados e avaliados os agentes estressantes.
Já no plano social, os sentidos dos “nervos” parecem reeditar algumas máximas sobre a discussão que envolve a falta de controle por parte do trabalhador em relação a seu processo de trabalho e as exigências impostas pelos processos produtivos como fonte de sofrimento coletivo. Souza27 discorreu sobre a doença dos nervos, em trabalhadores que estavam em processo de reabilitação profissional, como uma estratégia de sobrevivência à exploração e à opressão das classes trabalhadoras, visto que as demandas do mercado de trabalho geram sentimentos de fracasso e de exploração, que inviabilizam o processo de readequação profissional, favorecendo assim o aparecimento de sintomas nervosos.
A autora destaca ainda que esses sintomas também se vinculam ao desenvolvimento industrial, à crescente urbanização e às diferenças sociais e culturais geradas por tais processos. Portanto, acredita-se que seja necessária uma investigação mais específica sobre a temática dos nervos na perspectiva do lesionado com LER/DORT, a fim de que se possa compreender melhor essas facetas no plano individual e social referente ao adoecimento.
Os sentidos do termo “excesso” variaram entre os trabalhadores como percepções deste ligadas a fatores biomecânicos tais como postura, movimento, força, agilidade além de outros de cunho ergonômico; e de outras percepções ligadas à organização do trabalho, tais como repetitividade, acúmulo de funções e monotonia.
...você na tesouraria como tesoureiro você tinha que descer 16-18 baús daqueles de ferro. Então, era um peso impressionante. (...) as gavetas de talão de cheque eram um peso pra você ta abrindo aquelas gavetas o dia todo e arrumando, guardando talão... (Bancária).
O ponto de partida para tentar compreender o significado do excesso como fator etiológico, talvez esteja no fato de que ele se adequou bem à proposição descrita no modelo biologizante da doença, que encontra na fadiga muscular decorrente da atividade produtiva, na nocividade de fatores biomecânicos produtores de atrito nos tendões e na noção de traumas cumulativos, os principais fatores desencadeantes da enfermidade. Essas concepções remetem a um contexto privado de vulnerabilidade, que elimina a eventualidade de causalidade de natureza externa ou exógena e formam os principais pilares de legitimação de qualquer etiologia ocupacional, segundo os critérios objetivos requeridos pelo paradigma biomédico9,10.
Para além disso, a biologização da doença opera no sentido de atomizar os fatores de maneira arbitrária e reducionista, de modo que, o conceito de doença se subordine ao fato biológico, conformando “corpos sem experiência”. Essas concepções sobre a causalidade promovem uma hipervalorização das características individuais e tem como conseqüência o obscurecimento das condições de produção social da enfermidade10.
O fator “culpa”, também presente nos relatos dos informantes, encontra bases em uma visão psicologizante sobre o adoecimento, que alega serem as LER/DORT decorrentes de processos psíquicos, na sua maioria desvinculados das condições e da organização do trabalho. Ao admitir características essencialmente subjetivas do processo de adoecimento, esta concepção sobre a etiologia da doença descaracteriza a relação com o trabalho, focalizando o portador do distúrbio como predisposto para a mesma. Dessa forma, transfere para o sujeito a responsabilidade por ter adoecido. Daí, o processo de culpa por ter se descuidado da postura, por não ter parado a tempo, por não observar as regras, encerrando, assim, um processo de individualização da culpa por ter adoecido28,29. Eu acho que eu forcei também muito, talvez se eu tivesse parado mesmo: “eu vou me cuidar”, né? Não tivesse se agravado tanto como foi... (Digitadora).
Alves28 ratifica dizendo que: “a interpretação biologizante e psicologizante de um fenômeno essencialmente social acaba por culpabilizar o cidadão pelo adoecimento” (p.41). Os argumentos dos defensores dessa visão de individualização da culpa parecem confluir para uma mesma linha ideológica, que leva o trabalhador a uma alienação quanto à capacidade do processo produtivo de criar mazelas para a vida humana e social.
Portanto, entender a origem do adoecimento pelos prismas totalizantes de alguns modelos causais, que servem a uma determinada ordem social, parece submeter à doença a padrões predeterminados, que são assimilados e reproduzidos pelas consciências coletivas que estão sob a égide dessa ideologia. Certamente, os significados surgidos dessas interpretações não representam o conjunto de todas as possibilidades de entendimento sobre o tema, mas levantam um importante questionamento que deve ser levado em conta ao se pensar sobre o curso dos doentes na busca por cura de suas enfermidades. Qual o papel dos contextos sociais mais amplos sobre essa questão?

Sinais e sintomas iniciais

Os sintomas iniciais do adoecimento apresentados aqui não se estabelecem como um modelo representativo estandardizado para o início da doença em todos os casos de LER/DORT. Nesse estudo, é o conjunto das percepções dos informantes sobre o estabelecimento das etapas iniciais da doença e suas implicações num cenário mais amplo, que informa esse aspecto.
As mais variadas formas de apresentação da dor, quais sejam, a sensação de peso, o formigamento e o cansaço, assim como as outras formas de manifestação de início dos sintomas, tais como o estresse, o déficit de força e de sensibilidade, a dificuldade de movimento dos segmentos corporais, os distúrbios do sono, a tensão muscular e as dificuldades para realizar as atividades da vida diária, estão fortemente presentes nos discursos dos sujeitos acometidos por LER/DORT. Esses achados já foram largamente estudados pela literatura médica especializada, com o objetivo de classificar os quadros inespecíficos dessa síndrome, a fim de fornecer informações úteis para o planejamento terapêutico, para a avaliação da incapacidade laborativa e para o prognóstico dessa doença8,30.
Três desses aspectos merecem uma discussão mais aprofundada pela influência que apresentam perante os itinerários terapêuticos dos entrevistados desse estudo. O primeiro deles é a dor, que é abordada nessa etapa do desenvolvimento da doença como um sintoma que precisa ser obscurecido, no sentido de uma dor que precisa ser “calada”. Os outros aspectos são o estresse e o cansaço, cujo destaque nesse estudo se dá por serem sentidos fortemente presentes nos discursos diagnósticos dos profissionais médicos.
Como uma entidade multidimensional, a dor carrega alguns significados inerentes ao mundo do trabalho. Nessa direção, a dor que precisa ser “calada” reflete a necessidade da pessoa de manter-se sempre apta para o trabalho, íntegra na sua totalidade, produtiva aos olhos das exigências do trabalho. Calar a dor é mimetizar um “tipo ideal” de trabalhador, constituído para servir a este sistema de produção capitalista.
...Mas é uma dor assim que no dia-a-dia você não tem (...) Você sente na hora que vai saindo e depois você... (voz embargada e silêncio) quando entra na agência, não sente porque fica naquele... (voz embargada e silêncio) você está sentindo a dor, mas aquela adrenalina, aquela coisa, já que você não tem tempo pra nada, aí você vai passando... (Gerente de Banco)
A dor traz a reboque, a prática da automedicação como um importante elemento utilizado no sentido de minimizar “calar” a dor dos lesionados desse estudo. Porém, outros usos como a massagem realizada por profissional ou por leigo e as técnicas de manipulação corporal figuram como importantes recursos nessa empreitada e parece funcionar como um suporte, como uma maneira de conferir ao corpo a possibilidade real, ainda que subvertendo uma ordem médica, de mascarar seu sofrimento em prol da manutenção do posto de trabalho. Para Matos13, “a rede informal de indicações de serviços de saúde”, formada a partir de sugestões de amigos, vizinhos e colegas, é um condicionante na formação desse itinerário terapêutico e é operado de forma fragmentada .
Também não há, nas narrativas, indícios do uso de forma sistemática e organizada de uma medicina complementar; a natureza do uso de terapêuticas complementares é fragmentada e espúria23.
...Como doía muito e eu não podia falar, (...) Então, o que é que eu fazia? Eu comprava as minhas injeções e levava pra o serviço médico da empresa. (...) eu pagava particular uma pessoa pra fazer massagens quando eu chegava em casa, (...) pra eu não precisar me afastar do meu trabalho... (Secretária).
O segundo e terceiro aspectos estão relacionados ao discurso médico de estresse e cansaço, como diagnósticos iniciais para a demanda trazida pelo trabalhador lesionado. Em primeira instância, observa-se que o médico usa o “estresse” como taxonomia diagnóstica, pois esse termo tornou-se uma das metáforas mais comuns para o sofrimento individual e coletivo no final do século XX31.
Uma visita ao conceito de estresse, descrito em 1936 como: “resposta genérica do organismo frente às exigências do ambiente”31 (p.262), fica subentendido que, para que haja uma coerência mínima nesse diagnóstico, é necessário que as condições de vida e trabalho sejam devidamente avaliadas.
No entanto, nas consultas médicas iniciais, relatadas nesse estudo, ocorreu uma preocupação maior por parte dos médicos com os sintomas físicos e exames diagnósticos do que com outras questões que poderiam estar levando ao suposto estresse. Além disso, as propostas terapêuticas para o estresse diagnosticado nos trabalhadores entrevistados parecem incoerentes, ou no mínimo reducionistas, pois foram conduzidas à base do uso de medicação analgésica ou antiinflamatória apenas.
Em algumas narrativas estudadas, até foi recomendado o afastamento temporário do trabalho para descanso, para relaxar, porém sem nenhuma abordagem mais incisiva e específica sobre os determinantes do estresse. Essas condutas traduzem o estresse vislumbrado pelo médico como uma expressão máxima do significado de “cansaço”, remetendo mais uma vez ao modelo biologizante, que encontra na fadiga um forte fator de origem e no uso dos recursos terapêuticos a possibilidade de maximizar a exploração do corpo no trabalho no momento em que a doença se instala. Aí fui a uma médica, aí ela achou que eu estava com estresse, cansaço, aí me afastou por uma semana. Aí eu até que senti que dei uma melhoradinha... (Bancária)

O curso da doença

Voltando-se o olhar sobre as narrativas dos lesionados acerca dos atos periciais e sobre os processos de reabilitação física e profissional, percebe-se que a perícia médica sofre grandes críticas dos trabalhadores desse estudo, por dois motivos: primeiro, porque suas ações não parecem coerentes, uma vez que se esperava do ato pericial uma atitude investigativa com tendências totalizantes, ou seja, uma busca que envolvesse os determinantes que geram adoecimento no trabalho e também um olhar médico de fato sobre a doença e sobre o doente. O segundo motivo é o fato do trabalhador não participar ativamente do processo decisório, sendo colocado numa postura passiva pela coerção e pelo medo20. (...) durante esses 2 anos eu fiz o quê, 4 perícias porque eles me davam 6 meses, então eles não me dizem nada porque muitas pessoas, quer dizer a gente já vai com aquela coisa né... (Operadora Solda).
A reabilitação profissional, também, é alvo de críticas por parte dos trabalhadores, sobretudo, porque, supostamente, não se realiza uma reabilitação profissional no sentido estrito do termo, ou seja, com objetivo de buscar alternativas de trabalho compatíveis com a funcionalidade do lesionado e com a utilização de critérios de execução e avaliação dessas ações, de forma partilhada com os envolvidos nesse processo.
Observa-se ainda o descrédito e a desvalorização profissional por que passa o trabalhador que se submete ao processo de reabilitação profissional, pois são rechaçados, mal vistos, recusados e colocados em postos de trabalho que não refletem o potencial profissional que acumularam nos anos de trabalho.
...me colocaram pra atendimentos somente na secretaria sem mexer com datilografia, né? Mas aí foi um tempo light, foi mais ou menos uns 8 meses a um ano, mas eu me sentia assim muito incomodada, porque era uma produção inibida, porque fazer atendimento de telefone é processo de telefonista e eu não estava ali pra ser telefonista depois de ter todo um histórico de trabalho. (Secretária).
A reabilitação física é dimensionada, no imaginário popular, principalmente como ações de saúde destinadas a devolver a capacidade motora aos lesionados. Nos modelos de história natural da doença, freqüentemente, ela é tida como ações adotadas na fase de “incapacidade residual”32. Neste estudo, os entrevistados focalizaram suas visões de reabilitação física nas intervenções fisioterapêuticas, atribuindo a elas a capacidade de lidar positivamente com situações de sofrimento físico extremos, com disfunções incapacitantes e com o restabelecimento físico para o retorno ao trabalho.
A avaliação do trabalhador doente sobre o tratamento fisioterapêutico, parece seguir em duas direções. Na primeira, estão explícitos os parcos benefícios produzidos pela fisioterapia administrada de forma segmentada e com o objetivo único de minimizar os sintomas apresentados pela doença. Na segunda, está o agravante da abordagem fisioterapêutica não dialogar com outras necessidades do processo de reabilitação desses trabalhadores.
...A Fisioterapeuta falou: vixe, vixe minha filha você não pode ficar aqui mais não, por que já tem 97 sessões de fisioterapia. Não pode passou do limite. (...) A doutora me disse aqui olha, tudo que nós tínhamos para oferecer para a senhora já oferecemos... (Cabeleireira).
O pano de fundo para discutir as percepções acima passa pelo entendimento da reestruturação dos paradigmas para a reabilitação física e profissional na rede pública de saúde e previdência brasileira, que precisa ser repensado e superado.
As LER/DORT no Brasil são vistas como uma condição grave que leva à invalidez29, ou seja, uma visão negativa sobre os indivíduos afetados, pois se centraliza naquilo que o trabalhador não é capaz de fazer e no que ele perdeu de sua funcionalidade devido à doença. Por esse caminho, só se imagina uma possibilidade remota de cura e uma reabilitação que se restringe a manter a vida com o que resta de funções32.
A reabilitação física e profissional precisa ser revista sob uma perspectiva onde se possa enxergar o corpo doente de forma integral, a fim de evocar capacidades latentes e ampliar a possibilidade de participação desses indivíduos nos contextos sociais onde vivem. Nesse sentido, a postura dialógica entre os atores sociais envolvidos nessa questão, pode traduzir-se em modelo de atuação que vise integrar a reabilitação física e profissional, com ações afirmativas no chão de fábrica, que primem por: respeito aos limites impostos pela doença, garantia da empregabilidade, valorização da história laborativa e por outros aspectos implicados no curso da vida e da doença.

O Prognóstico

O prognóstico, aqui entendido como uma imagem, um cenário de futuro, apresenta-se para os trabalhadores estudados como sombrio, pois descortina piora irreversível e ascendente do quadro instalado, tendo como signos a atrofia progressiva de músculos, nervos e tendões e a culpa por não ter se cuidado antes. Mesmo assim, esses lesionados não se encorajaram a parar, utilizam-se da fisioterapia, da mesma forma que se utilizam da medicação no início dos sintomas, como uma forma de mascarar a gravidade do problema e continuar trabalhando até que o imponderável se estabelecesse.
O prognóstico, por outro lado, também revela o discurso padronizado dos profissionais da rede oficial de que o quadro é irreversível, de que o trabalhador se excedeu demais, de que agora não tem mais jeito e de que só lhe resta cuidar do ficou de capacidade. Dessa forma, maximiza a lógica da incapacidade que sepulta outras possibilidades.
O prognóstico demarca ainda as dificuldades do sistema previdenciário e do próprio sistema produtivo em lidar com mazelas geradas nos casos de LER/DORT, imputando ao trabalhador o ônus de estar sempre precisando reafirmar a sua condição de doente através da busca angustiante por um relatório fisioterapêutico, por um atestado médico, por um exame diagnóstico específico, pelo tratamento com o terapeuta ocupacional e com o psicólogo como formas de legitimar a manutenção do seu beneficio.
...A própria assistente social, a própria psicóloga do SUS lhe discriminam. Então, acham que você está inventando, porque você não quer trabalhar, porque você quer ficar encostada e ganhar dinheiro às custas do INSS, (...) Eu sofri muito, foi assim um ano indo ao SUS, ao PAM-ROMA, levando a documentação, todo dia me pediam uma coisa... (Digitadora).
Expõe, ainda, os frágeis limites do sistema de saúde e da previdência em lidar com a cronicidade, com a incapacidade, com a disfunção, com a culpa, com o nervosismo, com o medo de perder o emprego e com a possibilidade de volta ao trabalho4,10,20,33. Nesse sentido, utilizam-se do despejo, ao invés do acolhimento, expondo o trabalhador com dor e lesionado muitas vezes a sua própria sorte33.
Essa recorrência a várias agências e agentes revela a face compulsória do itinerário terapêutico desses trabalhadores. Kleinman17 critica duramente o modelo biomédico, dizendo que: “... a burocracia médica moderna e as profissões adjacentes que trabalham dentro dela,(...) estão orientados a tratar o sofrimento como um problema de colapso mecânico que requer um conserto técnico(...) em lugar de dar uma resposta espiritual ou moral significativas para os problemas da illness” (p.27,28).


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Citar

ROBSON DA FONSECA NEVES. Da legitimação a (re)significação: o itinerário terapêutico de trabalhadores com LER/DORT. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/ago). [Citado em 08/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/da-legitimacao-a-resignificacao-o-itinerario-terapeutico-de-trabalhadores-com-lerdort/1089

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