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0171/2024 - Desigualdade em saúde bucal: caracterização do povo indígena Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil
Inequality in oral health: characterization of the indigenous people Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brazil

Autor:

• Herika de Arruda Mauricio - Mauricio, H. A. - <herika.mauricio@upe.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6645-457X

Coautor(es):

• Thatiana Regina Fávaro - Fávaro, T. R. - <thatiana.favaro@fanut.ufal.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7275-3245

• Rafael da Silveira Moreira - Moreira, R. S. - <moreirars@cpqam.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0079-2901



Resumo:

O objetivo deste artigo é caracterizar indígenas de 18 a 23 anos de idade da etnia Xukuru do Ororubá, PE/Brasil, quanto à utilização de serviços odontológicos, autopercepção da saúde bucal, práticas de higiene bucal e experiência de cárie, aspectos socioeconômicos e demográficos. Trata-se de um estudo de corte transversal de base populacional, aninhado a um estudo de coorte iniciado em 2010, desenvolvido na Terra Indígena em 2018. Exames bucais e questionários foram conduzidos com 131 indígenas. Os dados foram coletados por meio do software Epi-Info® e o programa estatístico SPSS 20.0® foi aplicado na estatística descritiva. Para comparar os resultados de experiência de cárie obtidos com a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil 2010) utilizou-se o software R®. A experiência de cárie verificada pelo Índice CPO-D obteve média 7,4 (DP=5,1), com a média dos componentes do Índice correspondentes a 22,8 para elementos dentários hígidos, 2,4 para cariados, 0,2 para obturados/cariados, 3,5 para obturados e 1,4 para perdidos. A condição de saúde bucal dos indígenas caracteriza-se por expressiva desigualdade quando comparada aos resultados de levantamento epidemiológico realizado no País envolvendo outros grupos populacionais.

Palavras-chave:

Índios sul-americanos, Saúde de populações indígenas, Disparidades nos níveis de saúde, Saúde bucal, Índice CPO

Abstract:

The aim of this article is to characterize indigenous people aged 18 to 23 of the Xukuru do Ororubá ethnic group, PE/Brazil, in terms of the use of dental services, self-perception of oral health, oral hygiene practices and caries experience, socioeconomic and demographic aspects. This is a population-based cross-sectional study, nested within a cohort study that began in 2010 and was carried out in the Indigenous Territory in 2018. Oral examinations and questionnaires were conducted with 131 indigenous people. The data was collected using Epi-Info® software and the SPSS 20.0® statistical program was used for descriptive statistics. R® software was used to compare the caries experience results obtained with the National Oral Health Survey (SB Brasil 2010). The average caries experience verified by the DMFT Index was 7,4 (SD=5,1), with the average of the Index components corresponding to 22,8 for healthy teeth, 2,4 for decayed teeth, 0,2 for filled/carious teeth, 3,5 for filled teeth and 1,4 for missing teeth. The oral health condition of indigenous people is characterized by significant inequality when compared to the results of epidemiological surveys carried out in the country involving other population groups.

Keywords:

Indians, south american, Health of indigenous peoples, Health status disparities, Oral health, DMF Index

Conteúdo:


Introdução
Saúde, bem-estar e qualidade de vida podem ser significativamente afetados pelas doenças bucais, especialmente quando os recursos para prevenção, diagnóstico e tratamento são limitados1.
Desde 1971, a Organização Mundial de Saúde (OMS) padroniza a realização de levantamentos epidemiológicos em saúde bucal e a mensuração da experiência de cárie por meio do Índice CPO-D. Medido por exames bucais, o Índice expressa a contagem de dentes permanentes Cariados, Perdidos ou Obturados, possuindo amplitude de zero (ausência de cárie) a 32 (número de dentes cariados, perdidos e obturados), sendo seu resultado capaz de expressar o grau de severidade da doença2.
Resultados provenientes da aplicação do método têm sido capazes de comprovar a presença de cárie e sua severidade associadas a impacto negativo na qualidade de vida. Atividades diárias como mastigação/alimentação e sono são impactadas pela presença de lesões cariosas não tratadas3,4.
No processo de caracterização da saúde bucal entre povos indígenas, seguir os critérios estabelecidos pela OMS representa garantir um padrão internacional de comparabilidade dos resultados, de modo a não só fundamentar o conhecimento do perfil de saúde desses povos, mas também evidenciar a magnitude das desigualdades entre indígenas e não-indígenas.
A cárie permanece como um importante problema de saúde pública entre povos indígenas da América do Sul. As populações indígenas do Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela apresentaram, em todas as faixas etárias investigadas, médias do Índice CPO-D mais elevadas que a população geral do respectivo País. No grupo de indígenas entre 15 e 19 anos, os resultados apontam para grande heterogeneidade nos valores, com média de 5,53 (2,97?8,09) para o Índice CPO-D. No Brasil, foi realizado em 2010 o quarto levantamento epidemiológico de âmbito nacional na área de saúde bucal, intitulado SB Brasil 2010. Examinando a população brasileira de forma geral, sem representatividade por critério raça/cor, o levantamento verificou média do Índice CPO-D equivalente a 4,25 (3,86?4,65) nessa mesma faixa etária5.
O povo Xukuru do Ororubá, um dos maiores contingentes populacionais indígenas no Nordeste do Brasil e o maior no Estado de Pernambuco6, teve sua condição de saúde bucal verificada pela primeira vez por meio de um levantamento epidemiológico realizado no ano de 2010. Na faixa etária de 10 a 14 anos, o Índice CPO-D médio verificado foi de 2,38 (2,04–2,72), com cerca de 27% de seus integrantes livres da experiência de cárie, ausência esta associada a aspectos contextuais e individuais do grupo7.
Na perspectiva de atender à recomendação da OMS de condução regular de levantamentos epidemiológicos a cada cinco ou seis anos na mesma comunidade2 e medir as desigualdades em saúde bucal, este estudo objetivou desenvolver um novo levantamento epidemiológico com a etnia Xukuru do Ororubá, a fim de caracterizar indígenas da faixa etária de 18 a 23 anos de idade quanto à utilização de serviços odontológicos, autopercepção da saúde bucal, práticas de higiene bucal e experiência de cárie, além de aspectos socioeconômicos e demográficos.

Métodos

Delineamento do estudo
Trata-se de um estudo observacional de corte transversal e base populacional, aninhado a uma coorte iniciada em 20107, realizado na Terra Indígena Xukuru do Ororubá, localizada no Município de Pesqueira, Pernambuco, Brasil. A etnia Xukuru do Ororubá era composta no ano de 2018 por 7.857 pessoas8 distribuídas em um Território Indígena de 27.550 hectares, organizado em 3 regiões socioambientais (Serra, Ribeira e Agreste) e 24 aldeias9.
O estudo teve como população-alvo indígenas residentes no Território integrantes da amostra do estudo baseline realizado no ano de 20107, quando os participantes pertenciam à faixa etária de 10 a 14 anos. Na ocasião, o grupo etário foi selecionado a partir da compatibilização da distribuição populacional com a faixa índice de 12 anos que a Organização Mundial de Saúde - OMS estabelece para monitoramento da cárie2. O cálculo da amostra buscou representar 871 indivíduos entre 10 e 14 anos, assumindo-se a prevalência de 20% para cárie, precisão de 5% e intervalo de confiança de 95% (IC95%), com o acréscimo de 20% para amenizar perdas e recusas. A amostra obtida para o estudo de 2010 foi de 233 participantes.
Na presente investigação, intencionou-se recrutar os mesmos participantes, que nesse momento compunham a faixa etária de 18 a 23 anos de idade, utilizando a permanência no Território Indígena como critério de inclusão.
Coleta de dados
A partir de uma estratégia de busca no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), a equipe profissional do Polo Base Xukuru do Ororubá identificou a atual localização dos participantes do estudo de 2010, repassando essas informações para a equipe de pesquisa. Com os dados de localização e o apoio dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), a equipe de pesquisa iniciou a coleta de dados em dezembro de 2018, envolvendo a aplicação de questionários e a realização de exames bucais.
O questionário digital do tipo fechado construído na plataforma Epi Info® versão 3.4 (2007) possibilitou a coleta de dados por meio do uso de tablets (Samsung Galaxy Tab3®). Para o desenvolvimento da coleta de dados, fez-se necessária a realização de treinamento com a equipe de campo, seguido de aplicação do estudo piloto no Território Indígena envolvendo 11 participantes que não compunham a amostra. A partir do estudo piloto, instrumentos de coleta e o processo de trabalho foram ajustados.
A equipe de trabalho de campo foi constituída por dois alunos de graduação em odontologia e dois cirurgiões-dentistas, os quais atuaram em duplas de trabalho, sendo cada dupla composta por examinador e anotador. Os exames bucais seguiram as orientações da OMS2. Para cumprimento das normas de biossegurança, a pesquisa contou com o apoio da central de esterilização da Universidade de Pernambuco campus Arcoverde, onde foi realizada a lavagem e esterilização dos instrumentais.
Para que os exames bucais possuíssem parâmetros aceitáveis de consistência interna e externa aos examinadores, previamente ao início do trabalho de campo foi realizado o treinamento de calibração. Trata-se de um método de capacitação teórica e prática utilizado para conhecer o grau de concordância alcançado (intra/inter)examinadores durante a coleta dos dados2.
A concordância dos resultados obtidos foi verificada a partir do Coeficiente Kappa (k)10. Na calibração inter-examinador, obteve-se média=0,84, com valores variando de 0,80 a 0,89, permitindo a classificação de concordância ótima entre os examinadores. Para a calibração intra-examinador, obteve-se média=0,92, com valores variando de 0,85 a 1,00 e concordância também classificada como ótima, permitindo o desenvolvimento do levantamento epidemiológico.
Pelo fato dos indígenas da etnia Xukuru do Ororubá fazerem uso da língua portuguesa em sua rotina diária, não se fez necessária a adaptação do questionário e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para um dialeto próprio, mas estes foram adequados às peculiaridades culturais, fazendo uso de linguagem clara e objetiva. Para minimizar o risco de constrangimento do participante, a equipe de trabalho de campo atuou de maneira cuidadosa e respeitosa, realizando exame e entrevista em local reservado no domicílio.
Previamente à realização dos exames bucais, os participantes receberam um kit de higiene bucal associado à aplicação de flúor e orientações quanto à higiene bucal e alimentação. O trabalho de campo ocorreu de maneira articulada com os serviços de saúde ofertados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI no Território Indígena. Diante da identificação de situações de urgência, os participantes receberam encaminhamento para o serviço de saúde mais próximo.
Variáveis de estudo
O desfecho primário do estudo foi investigado a partir do Índice CPO-D. Este foi calculado a partir da realização do exame bucal, com o preenchimento dos critérios e códigos padronizados para o Índice. Na análise dos dados, foi considerada a média do Índice CPO-D.
A demais variáveis investigadas foram organizadas em três categorias: individuais, domiciliares e de saúde bucal. As variáveis individuais investigadas foram idade, sexo, raça/cor, estado civil, saber ler/escrever, curso mais elevado concluído, ocupação principal, disponibilidade de trabalhadores/funcionários, renda familiar, benefício do Programa Bolsa Família e estilo de vida (consumo de fumo, bebida alcoólica e açúcar). Entre as variáveis domiciliares, investigou-se região sócio-ambiental, aldeia, condições de moradia (material do piso, telhado e paredes externas), número de cômodos no domicílio, número de cômodos utilizados como dormitório, número de moradores por domicílio, distribuição de moradores por cômodo, forma de obtenção de água, tratamento aplicado à água de beber, disponibilidade de banheiro no domicílio, destino dos dejetos do banheiro, destino do lixo, disponibilidade de iluminação elétrica e forma de cozinhar. Sobre a saúde bucal, as variáveis buscaram identificar a utilização de serviços odontológicos (realização de consulta odontológica e características da última consulta como período, local, motivo, forma de marcação, tempo de espera entre marcação e atendimento, prescrição e acesso a medicamentos e exames, avaliação da consulta e localização de cirurgião-dentista no Território Indígena), além da autopercepção de saúde e higiene bucal (necessidade de tratamento odontológico, presença de dor de dente nos 6 meses anteriores à entrevista, intensidade da dor, necessidade de uso de prótese, realização e frequência da higiene bucal com escova, pasta fluoretada e fio dental).
Análise dos dados
Os dados foram criticados de modo a corrigir falhas cometidas no preenchimento dos instrumentos de coleta. Na análise dos dados, realizou-se a estatística descritiva por meio do programa estatístico IBM Statiscal Package for the Social Sciences (IBM SPSS 20.0®), com a distribuição de frequências e descrição das medidas de tendência central e de dispersão. As análises foram apresentadas por meio de gráficos e tabelas.
Com a utilização do software R®, as desigualdades existentes entre a condição de saúde bucal verificada e resultados disponibilizados pelo SB Brasil 201011 referentes ao Brasil, às regiões Nordeste e Interior do Nordeste, além do município de Recife (capital do Estado de Pernambuco), foram medidas a partir dos gráficos construídos.
Aspectos éticos
O estudo obteve anuência da etnia Xukuru do Ororubá por meio de seu Conselho Indígena de Saúde Xukuru do Ororubá - CISXO e do Conselho Distrital de Saúde Indígena – CONDISI, sendo aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa - CEP do IAM/FIOCRUZ pelo parecer nº 2.839.310/2018 e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP parecer nº 3.050.331/2018.

Resultados

Entre os 233 participantes do estudo baseline realizado em 2010, 174 permaneciam no Território em 2018, sendo obtida uma amostra composta por 131 indígenas, correspondendo a 24,7% de perda em relação ao quantitativo de indígenas que permaneciam vivendo na Terra Indígena. Os resultados obtidos a partir desses participantes estão apresentados em três tópicos, a saber: Caracterização dos indivíduos; Caracterização dos domicílios; Caracterização da saúde bucal.
Caracterização dos indivíduos
A pesquisa envolveu uma amostra constituída por 131 participantes distribuídos nas três regiões socioambientais que compõem o Território Indígena. O maior percentual de indivíduos da amostra foi de moradores da região socioambiental da Serra (39,7%), a mais populosa do Território, seguida pela região do Agreste (38,9%) e pela região da Ribeira (21,4%).
Todos os participantes se autodeclararam indígenas da etnia Xukuru do Ororubá, possuindo entre 18 e 23 anos de idade e distribuição semelhante entre os sexos, com composição de 50,4% do sexo feminino. O estado civil predominante foi solteiro (55,7%), com afirmação de todos sobre saber ler e escrever e 80,2% informando não mais estudar. O curso mais elevado concluído pelos que não mais estudam foi o 3º Ano do Ensino Médio (45,8%). Em relação às condições de trabalho, a maioria dos participantes atuava na agricultura e na criação de animais (36,6%) e todos afirmaram não possuir trabalhadores ou funcionários. A renda familiar média verificada no mês anterior à entrevista foi de R$821,12 (DP=651,5), com 73,3% dos participantes possuindo no domicílio algum integrante da família como beneficiário do Programa Bolsa Família.
Verificando o estilo de vida dos indígenas, a maior parte não fuma (93,9%), não consome bebida alcoólica (54,2%) e refere consumir uma quantidade regular de açúcar (45%).
Caracterização dos domicílios
O número total de moradores por domicílio corresponde a uma média de 4,5 habitantes (DP=2,0), com domicílios caracterizados por 5,7 cômodos em média (DP=1,7), sendo 2,3 cômodos em média utilizados como dormitórios (DP=0,9). A distribuição de moradores por cômodos do domicílio obteve média equivalente a 0,8 (DP=0,4).
A estrutura física predominante entre os domicílios é formada por paredes externas de alvenaria (88,5%), piso de cimento (74,0%) e telhado de barro (93,9%). A maioria dos participantes não tem acesso à água por meio de torneiras no domicílio (59,5%), precisando recorrer, em sua maioria, à água proveniente de poços, com ou sem bomba (29,0%), aplicando principalmente o tratamento com hipoclorito de sódio (87,0%) na água de beber. A maioria dos domicílios possui banheiro (77,9%), localizado dentro de casa (64,1%), com fossa séptica para destino dos dejetos (59,5%). Os que não possuem banheiro no domicílio utilizam predominantemente o mato (19,1%). A coleta de lixo ainda não é uma realidade para a maioria, sendo a queimada o destino da maior parte do lixo (65,6%). A quase totalidade da população possui energia elétrica (99,2%) e a principal forma de cozinhar é por meio da combinação de gás, carvão ou lenha (51,9%).
Caracterização da saúde bucal
A caracterização da saúde bucal foi desenvolvida a partir de quatro eixos: “utilização de serviços odontológicos”, “autopercepção da saúde bucal”, “práticas de higiene bucal” e “experiência de cárie”. Os resultados dos três primeiros eixos estão apresentados nas Tabelas 1 e 2, construídas a partir dos questionários aplicados, enquanto o último eixo refere-se aos resultados obtidos nos exames bucais realizados.
Os exames bucais entre os Xukurus mediram a experiência de cárie por meio do Índice CPO-D, obtendo média de 7,4 (DP=5,1), com valor mínimo de 0 e máximo de 27. Já no Gráfico 1, a distribuição do Índice está apresentada de forma bem semelhante em relação ao sexo, a partir da mediana e dos quartis, com três casos de valores discrepantes.
A média de elementos dentários permanentes superiores foi de 14,5 e de elementos dentários permanentes inferiores 14,4. Quanto ao uso de prótese, três participantes (2,3%) afirmaram ser usuários de prótese superior, enquanto ninguém informou ser usuário de prótese inferior.
O Gráfico 2 apresenta a distribuição da média dos componentes do Índice CPO-D (cariados, perdidos e obturados), dos elementos hígidos e cariados/obturados do presente levantamento epidemiológico indígena, juntamente com os resultados referentes à faixa etária de 15 a 19 anos examinada pelo SB Brasil 2010. Por local de residência, evidencia-se que Recife apresenta a melhor situação de saúde bucal, com a menor média do Índice CPO-D (3,9) e de elementos cariados (1,3) e a média mais alta de dentes hígidos (25,0). Os elementos cariados/obturados, que em algum momento receberam tratamento, mas precisam ser retratados, expressaram o mesmo valor de 0,2 em todas as localidades investigadas.

Discussão

“Iniquidades em saúde são diferenças sistemáticas, evitáveis e injustas nos resultados de saúde, que podem ser observadas entre populações, grupos sociais dentro da mesma população ou como gradiente em uma população classificada por posição social”12. Sendo as iniquidades em saúde consideradas a partir de um juízo de valor, é de responsabilidade inicial dos pesquisadores produzir conhecimento capaz de evidenciar as desigualdades existentes entre os subgrupos populacionais13.
Sabe-se que as doenças bucais afetam de maneira desigual os grupos mais pobres e marginalizados da sociedade, apresentando-se associadas ao status socioeconômico e aos determinantes sociais da saúde14. Contudo, sendo a desigualdade uma característica central e constituinte das sociedades, ainda se faz necessário estudá-la, de maneira a promover entendimento e superação dessa realidade15.
Esse trabalho estabeleceu como foco medir as desigualdades em saúde bucal a partir de dois aspectos: experiência de cárie e etnicidade. Apesar da redução das desigualdades em saúde bucal apresentar-se estabelecida como objetivo global16, a caracterização da experiência de cárie entre os Xukurus do Ororubá na faixa etária de 18 a 23 anos classifica a severidade da doença como muito alta a partir do resultado médio obtido para o Índice CPO-D17.
Na aplicação de métodos de mensuração das desigualdades, um aspecto relevante é a disponibilidade de dados, bem como a comparabilidade entre diferentes estudos13. Nesse sentido, foram utilizados como referência dados provenientes do SB Brasil 2010. Para comparação com a faixa etária aqui estudada, o grupo mais semelhante é o de adolescentes de 15 a 19 anos examinados em 2010. Entre os resultados comparados por locais de residência, a média do Índice CPO-D verificada no Interior da Região Nordeste foi a mais próxima dos indígenas, correspondendo a 6,2211. Mesmo assim, os indígenas ainda apresentam piores resultados.
Uma questão também relevante nesse processo é a análise do Índice CPO-D a partir de seus componentes. A desigualdade verificada na distribuição do componente cariado, com a existência de quase o dobro de dentes cariados por indígena em relação à população de Recife é um provável reflexo da dificuldade de acesso aos serviços de saúde por parte dos indígenas.
Entre os povos indígenas no Nordeste do Brasil, os Potiguaras foram estudados por Sampaio et al.18, apresentando resultados semelhantes ao Xukurus. Entre os 1.461 exames bucais realizados, 507 couberam à faixa etária de 15 a 19 anos, apresentando Índice CPO-D médio de 7,13, com 6,11% dos indivíduos possuindo Índice CPO-D igual a zero. A média verificada de dentes hígidos foi 21,83, cariados 3,47, perdidos 1,44 e obturados 1,94.
O adoecimento bucal entre os indígenas apresenta-se complexo e diverso19. A pluralidade de línguas, costumes e culturas se expressa também na relação com a saúde bucal. Entre os Guaranis moradores do Sul do Brasil, o Índice CPO-D médio verificado no grupo de 15 a 19 anos foi de 3,420. Condição bem mais favorável que a identificada entre os Xukurus pode ser explicada pelo bom acesso dos Guaranis à água tratada, seja por meio de sua própria rede de abastecimento (poços artesianos) ou por abastecimento público, ao uso e disponibilidade de escova e pasta de dentes fluoretada, pela permanência de hábitos alimentares saudáveis, além do fornecimento de assistência especializada à saúde.
Os Xukurus do Ororubá autopercebem sua condição de saúde bucal com necessidade de realização de tratamento odontológico. É muito provável que essa percepção seja decorrente da presença de sinais e sintomas de adoecimento bucal. Aday e Forthofer21 verificaram que a busca por serviços de saúde entre grupos sociais distintos possui diferentes motivos: enquanto minorias étnico-raciais e grupos populacionais com menores níveis de escolaridade visitam o dentista em resposta a problemas bucais autopercebidos, indivíduos de cor branca e com maiores níveis de escolaridade o fazem para consultas preventivas ou de acompanhamento.
Entre as práticas de higiene bucal, o uso do fio dental não se apresenta como um hábito consolidado entre os indígenas. Em estudo desenvolvido por Smith et al.22, buscando identificar percepções, barreiras, educação em saúde bucal do paciente e efeito sobre a motivação para o controle do biofilme interdental, os participantes relataram incerteza sobre a técnica correta do uso do fio dental, crença sobre o mesmo causar problemas estéticos ou de saúde, além de dor e desconforto no seu uso. Essa caracterização revela a necessidade das Equipes de Saúde Bucal reforçarem suas ações voltadas à educação em saúde, de forma a incorporar demonstrações sobre o uso do fio dental às práticas tradicionais de higiene bucal, além de abordagens motivacionais e de fácil compreensão para os indígenas.
Já a majoritária utilização de serviços odontológicos se deu no âmbito público, agendado pelo Agente Indígena de Saúde e com disponibilidade de medicamentos e exames, denotando a importância da Atenção Primária à Saúde prestada pela SESAI. Incorpora-se a esse panorama a avaliação positiva emitida para a consulta odontológica realizada, configurando uma percepção de qualidade no atendimento recebido. Os resultados revelam ser nesta rede de serviços, formada por profissionais que conhecem o Território e as especificidades culturais desse povo, que os indígenas se sentem confortáveis para o cuidado da saúde.
O comportamento de saúde é um fenômeno híbrido construído em função de um quadro social e cultural específico, que precisa ser compreendido pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), para que essas possam então influenciar positivamente o acesso dos indígenas aos serviços de saúde23. A discriminação por prestadores de serviços de saúde contra as minorias étnicas apresenta-se como uma barreira primária ao acesso da atenção à saúde de qualidade na América Latina. Práticas discriminatórias são capazes dissuadir a busca por atendimento à saúde24. Por isso, a abordagem diferenciada dos profissionais de saúde, baseada em práticas interculturais, precisa ser efetivada nas práxis dos sujeitos que ofertam cuidado em saúde aos povos indígenas25.
A média de elementos dentários cariados que precisam receber tratamento (2,4) e a autopercepção de necessidade de tratamento odontológico relatada por 77,9% dos participantes são respectivamente medidas normativas e subjetivas que confirmam a existência de barreiras de acesso do povo Xukuru ao atendimento odontológico. Apesar disso, aspectos positivos são verificados na organização dessa rede de cuidados, com a grande maioria dos entrevistados com consulta odontológica já realizada (98,5%), sendo a última consulta há menos de um ano (81,4%) e com o tempo de espera entre a marcação e o atendimento de uma a duas semanas (89,1%).
O desempenho dos serviços nos anos de 2017 e 2018 envolvendo todos os grupos etários residentes no território Xukuru do Ororubá também foi analisado a partir de indicadores construídos com dados secundários extraídos do SIASI. Corroborando um quadro de progressos, os resultados revelaram crescimento da cobertura de primeira consulta odontológica e de escovação dental supervisionada, além de crescimento da média de procedimentos per capita. Quanto aos entraves que permeiam esse acesso à saúde bucal indígena, verificou-se queda da taxa de tratamentos odontológicos concluídos e aumento da proporção de exodontias realizadas26. A proporção de exodontias confirma a média elevada de elementos perdidos entre os Xukurus evidenciada no Gráfico 2, que apesar de ser uma forma de acesso ao serviço odontológico, se dá em um momento tardio, com comprometimento já avançado do elemento dentário, além de contribuir para a elevação do Índice CPO-D e implicar consequências negativas para os indivíduos mutilados, como vergonha, dificuldade em se alimentar, prejuízo ao relacionamento social e sentimento de incompletude27.
Sobre as condições de moradia, o perfil assemelha-se às comunidades rurais do Nordeste brasileiro. Um resultado preocupante sobre essa caracterização se dá em relação às condições sanitárias dessas residências. Uma parcela importante não possui banheiros no domicílio, há dificuldade de acesso à água encanada e serviços de coleta de lixo não contemplam a totalidade da população. Esse contexto exige das EMSI uma atenção especial para a prevenção de doenças de veiculação hídrica, com necessidade de fortalecimento de ações de educação sanitária.
Os indígenas investigados caracterizam-se por resultados positivos sobre sua formação escolar, com percentual importante de indígenas havendo concluído o 3º Ano do Ensino Médio. Entendendo o processo educacional como indispensável para melhor compreender seu povo e suas necessidades, acredita-se que esse nível de formação será capaz de impulsionar maior cuidado da saúde.
Com renda familiar mensal média inferior a um salário mínimo, 73,3% dos participantes afirmaram possuir no domicílio algum integrante da família como beneficiário do Programa Bolsa Família (PBF). Implementado em 2003, o Programa é uma estratégia de transferência condicional de renda destinada às famílias pobres que cumpram certas condições relacionadas à saúde e educação, sendo capaz de impactar positivamente na condição de saúde28. Resultados obtidos por Arantes e Frazão29 apontaram que famílias indígenas não eleitas como beneficiárias do PBF, por apresentarem renda acima dos critérios do Programa, apresentaram índices de cárie 40% menores. A atuação da renda como fator protetor para a condição de saúde bucal sugere a existência de desigualdades também entre os indígenas.
Iniciativas que visam reduzir as desigualdades em saúde bucal indígena tem sido documentadas na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos e também no Brasil30. Com o povo Xavante foi implementado um programa de saúde bucal apoiado na incorporação de três componentes: educação, prevenção e atendimento clínico, promovendo redução significativa na experiência de cárie19. Assim, já é possível apontar que o caminho de enfrentamento desse cenário passa por iniciativas sensíveis às especificidades locais e com garantia de sustentabilidade31.
Ainda que o ineditismo na apresentação de dados sobre a condição de desigualdade em saúde bucal para uma população indígena no Nordeste brasileiro justifique a relevância do presente estudo, é importante destacar algumas limitações, como número de participantes e faixa etária investigada (o estudo não foi conduzido na faixa etária índice de monitoramento da OMS). Tais limitações se deram em função da opção metodológica de priorização do monitoramento dos mesmos indivíduos integrantes de estudo anteriormente desenvolvido com a etnia e impedem que os resultados aqui apresentados sejam extrapolados para os demais grupos etários indígenas.
A condição de saúde bucal verificada entre os indígenas caracteriza-se por expressiva desigualdade quando comparada aos resultados de levantamento epidemiológico realizado no País envolvendo outros grupos populacionais.






Referências
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Mauricio, H. A., Fávaro, T. R., Moreira, R. S.. Desigualdade em saúde bucal: caracterização do povo indígena Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Abr). [Citado em 06/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/desigualdade-em-saude-bucal-caracterizacao-do-povo-indigena-xukuru-do-ororuba-pernambuco-brasil/19219?id=19219

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